Lima Barreto: triste visionário | Lilia Moritz Schwarcz

A escolha de Lima Barreto como autor homenageado pela 15ª edição da Feira Literária Internacional de Paraty (FLIP), ocorrida em 2017, ensejou uma série de publicações que o tomaram como tema central. Nascido em 1881, ainda sob a vigência da escravidão e do regime monárquico, o negro carioca que ousou tornar-se escritor viveu numa época de transições cruciais para a história do Brasil e produziu, com sua literatura, um testemunho precioso que se oferece como um rico acervo documental para todos aqueles que desejam compreender melhor os significados de nossas primeiras décadas republicanas.

Nesse momento em que, como desdobramento do golpe que depôs Dilma Rousseff em 2016, recrudescem os questionamentos sobre a pertinência das ações afirmativas e das cotas raciais, colocar Lima Barreto no centro das atenções torna-se estrategicamente importante para fazer frente aos retrocessos que seguidamente vêm sendo anunciados nos últimos tempos. Afinal, sua diversificada obra — constituída da publicação de romances, contos, crônicas, artigos, diários e correspondências — e sua trajetória são reveladoras das atrocidades às quais a população negra foi submetida no pós-abolição. Atrocidades essas perpetuadas inclusive nas variadas formas de preconceito racial ainda existentes entre nós em pleno século XXI.

Dentre os títulos que vieram a público recentemente, destaca-se a minuciosa biografia elaborada por Lilia Moritz Schwarcz, intitulada Lima Barreto, triste visionário. E o destaque é necessário, tendo em vista que a primeira e única biografia até então produzida sobre o literato data de 1952, quando Francisco de Assis Barbosa publicou A vida de Lima Barreto. 1 Se entre a morte precoce do escritor, em 1922, e a publicação da pioneira biografia de Barbosa decorreram três décadas, foi preciso mais de seis (entre 1952 e 2017) para que uma pesquisadora voltasse a enfrentar o desafio de construir um novo estudo biográfico do autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha.

A própria Schwarcz reconhece a importância do trabalho desenvolvido por Barbosa, no qual a nova biografia por inúmeras vezes busca respaldo e do qual muito se beneficia. A vida de Lima Barreto de Barbosa possui o grande mérito de compartilhar com o leitor um vasto repertório de fontes que foi consultado para viabilizá-lo. Por isso, o livro tornou- se leitura obrigatória para todos que buscam se aprofundar na trajetória daquele escritor. Mas é uma biografia dos anos 1950, ou seja, bastante marcada por uma linearidade que produz no leitor a ilusão de que conheceu por completo, com todos os detalhes, a história de uma vida do começo ao fim, seguindo rigorosamente a ordem cronológica dos acontecimentos. É texto com certo ranço positivista, embora não chegue a comprometer a singularidade da inegável contribuição que deu para a compreensão da trajetória de vida do escritor.

Já a história do “triste visionário” que nos é apresentada em 2017 teve obrigatoriamente que enfrentar as muitas problematizações sobre o gênero biográfico que pautaram a historiografia e as ciências humanas em geral nas últimas décadas. Parte dessas discussões foi contemplada por Pierre Bourdieu, em artigo em que alguns dos limites ao trabalho do biógrafo foram devidamente evidenciados. 2

É verdade que os debates acadêmicos sobre biografia levaram muitos pesquisadores a se questionar — de forma pertinente — sobre até que ponto é possível contar a história de uma vida. Já os pós-modernos mais entusiasmados logo se apressaram em repisar o argumento burlesco de que o lugar de acontecimento da história teria se transferido para o plano do discurso, afirmando que o máximo que podemos fazer é construir uma narrativa sobre a história de vida de um indivíduo que jamais seremos capazes de conhecer concretamente.

Obviamente esse não é o caso da biografia que Lilia Schwarcz nos apresenta, demonstrando quão valioso continua sendo o empreendimento de contar uma história de vida e, além disso, apropriando-se dos avanços da historiografia no que tange às vicissitudes do gênero biográfico. O resultado é um texto original e diferente do biógrafo que a antecedeu.

São várias as contribuições inovadoras dessa biografia, a começar pela ênfase que a autora deu à questão racial. Nota-se o quanto sua experiência nesse campo de estudos lhe permitiu iluminar aspectos da vida de Lima Barreto sobre os quais ela mostrou que vale a pena se debruçar, fazendo uso desse viés racial. 3 A pesquisadora coloca em evidência as situações e passagens em que o preconceito se fez presente na trajetória do escritor, ainda que travestido de teoria científica corrente na época.

Se hoje temos clareza de que uma boa biografia não é aquela que apenas descreve cronologicamente a trajetória do biografado, mas vai além disso, enfatizando a análise de determinados aspectos que podem ajudar a compor uma compreensão mais aprofundada sobre um indivíduo, é exatamente esse procedimento que a autora coloca em prática nas páginas desse livro.

Uma investigação mais aprofundada foi feita, por exemplo, sobre a parte da história do escritor que antecede o início de sua carreira literária. Destrinchando suas origens familiares e o quanto isso foi determinante nos rumos que sua vida tomou, essa cuidadosa abordagem abrange aproximadamente um terço do livro (até o capítulo 6). Nessa parte da biografia, o foco recai especialmente sobre João Henriques e Amália Augusta, pai e mãe do futuro romancista. Aos 7 anos o jovem Afonso Henriques de Lima Barreto se tornaria órfão de mãe e seu pai vivenciaria o desafio de atravessar a transição entre a monarquia e a república, perdendo inclusive o emprego. Mais tarde, a partir de 1902, João se tornava um doente psiquiátrico e o filho lhe dedicaria todos os cuidados dentro de casa, sem jamais tê-lo internado. Ou seja, aos 21 anos de idade, Lima vê despencar sobre seus ombros a responsabilidade de manter a casa e a família. Forjava-se assim uma parte importante do ambiente a partir do qual ele se lança no mundo das letras da Primeira República.

Vale a pena fazer também algumas considerações sobre o luxuoso trabalho de edição realizado pela editora Companhia das Letras. Como existem poucos registros fotográficos e iconográficos de Lima Barreto (que ilustram várias páginas da publicação), a maior parte deles já é bastante conhecida. Esse parece ter sido um dos motivos que instigou Lilia Schwarcz a convidar Dalton Paula a produzir uma verdadeira obra de arte retratando o escritor, reproduzida na capa. O projeto gráfico teve ainda o cuidado de evocar na grossa lombada a célebre e mais completa edição das obras de Lima Barreto, feita em 17 volumes pela editora Brasiliense, em 1956, quando Caio Prado Júnior comandava aquela casa editorial.

Reconhecendo, tal como outros pesquisadores, a importância do subúrbio como um lugar a partir do qual Lima Barreto olhava — pelo avesso — para a modernização excludente do centro da Capital Federal e para o próprio Brasil, Schwarcz dedica-se também a examinar o tema (no capítulo 6).4 O próprio autor de Triste fim de Policarpo Quaresma decidiu apelidar a sua casa, no bairro de Todos os Santos, de “Vila 4uilombo´, dizendo que o fazia para implicar com Copacabana — que naquela época não passava de um vasto areal para o qual a especulação imobiliária ainda mal despertara. O fato é que o apelido diz muito sobre a condição da população mais pobre e negra que, como ele e sua família, viu-se forçada a buscar moradia em regiões cada vez mais distantes do centro e, preferencialmente, às margens da Estrada de Ferro Central do Brasil. De algum modo, Lima tentava dizer, em forma de troça, que quilombos sobreviviam na periferia como abrigo para os negros no pós-abolição.

Outra passagem bastante significativa contemplada na biografia é a que diz respeito à criação da revista Floreal. Argumentando que encontravam fechadas as portas dos periódicos, um grupo de jovens e desconhecidos escritores, liderados por Lima Barreto, decidiu se publicar lançando a própria revista. Embora a iniciativa tenha resultado na realização de apenas quatro números que venderam muito pouco, entre 25 de outubro e 31 de dezembro de 1907, o conteúdo é bastante revelador dos propósitos dos autores ali reunidos. O nome com que a revista foi batizada é dos mais eloquentes, tendo em vista tratar-se de

homenagem ao oitavo mês do calendário revolucionário, decretado em 1793 pela Convenção Francesa, e que lembrava a primavera e a liberdade dos povos (p. 194).

Foi nas páginas desse periódico que começou a ser publicado em folhetins o livro Recordações do escrivão Isaías Caminha. Na revista também é possível delinear a rede de sociabilidades e alianças que Lima foi constituindo através dessa iniciativa conjunta com Antônio Noronha Santos (com quem manteve sólida relação de amizade examinada atentamente pela biógrafa), Domingos Ribeiro Filho, João Pereira Barreto, Edmundo Enéas Galvão e Mario Pinto de Souza, entre outros. E a busca de Lima Barreto pelo reconhecimento como literato teve em Floreal uma etapa das mais relevantes, especialmente se considerarmos que foi a partir dali que um dos mais renomados críticos literários da época, José Veríssimo, “descobriu´ o escritor, fazendo-lhe elogios.

A casa suburbana onde o escritor viveu até o seu falecimento guardava também uma preciosa biblioteca com 707 volumes. É verdade que o acervo não sobreviveu a ponto de chegar aos nossos dias. Como a família doou os livros para José Mariano Filho, em agradecimento por ele ter arcado com os custos do funeral do autor de Clara dos Anjos, os mesmos foram parar numa chácara em Jacarepaguá – na época, zona rural do Rio de Janeiro. Coube a Francisco de Assis Barbosa descobrir, tarde demais, o paradeiro da biblioteca acondicionada num porão úmido e devorada por traças e cupins. Se a biblioteca particular de Lima Barreto — chamada pelo seu proprietário de “Limana” — não existe mais, dela sobreviveu um inventário elaborado pelo próprio literato.

Schwarcz examina esse inventário e analisa (no capítulo 12) os significados da biblioteca e o tanto que ela pode dizer sobre a formação intelectual, as leituras e os interesses de Lima. Embora não seja possível afirmar que todos os livros que faziam parte da coleção foram lidos pelo seu dono, não resta dúvida de que a listagem que sobreviveu pode servir como um mapa para situar o escritor num certo universo de leituras. O cotejamento da relação dos seus livros com a sua produção literária permitiu à biógrafa perscrutar muitas das escolhas feitas por Lima Barreto.

Por fim, como o autor da série de crônicas Os Bruzundangas fez da sua literatura uma forma de participar do movimento da história, expressando todo o seu engajamento diante das questões do seu tempo, um desafio que uma nova biografia não poderia deixar de enfrentar consiste na definição do perfil político do escritor. Outros pesquisadores já se impuseram a mesma tarefa, inclusive o autor dessa resenha.5 Ao desenvolver tão longa e alentada pesquisa, Lilia Schwarcz também se incumbiu de cunhar uma definição para a atuação política de Lima Barreto e fez isso afirmando que, de modo geral, ele foi “do contra”.

De fato, considerando que estamos diante de um literato que expressou profundo descontentamento com os rumos que a república tomou nos seus primeiros tempos — descontentamento por vezes confundido com uma pretensa defesa da monarquia —, que flertou com o anarquismo e o socialismo, que defendeu a Revolução Russa e os seus ideais ainda sob o calor dos acontecimentos de 1917, que solidarizou-se com a causa operária e sempre combateu as injustiças decorrentes das profundas desigualdades de classe da sociedade brasileira, ainda que vez por outra se identificasse apenas como um liberal, a tarefa de situar politicamente o escritor não é das mais fáceis. Mas a categoria “do contra” também não parece das mais adequadas ou pertinentes. Afinal, o que é ser “do contra”? Pode parecer, por exemplo, um não lugar, ou seja, sugere certa imprecisão. E mais do que isso, acaba encobrindo e obscurecendo uma trajetória de vida que foi especialmente marcada pela tomada de posições muito assertivas e deliberadas.

Para quem certa vez escreveu e publicou um artigo intitulado “No ajuste de contas…”6, posteriormente tomado como um “manifesto maximalista”, defendendo propostas como a extinção do direito de deixar heranças por testamento, o confisco dos bens das ordens religiosas e a instituição do divórcio, a genérica expressão “do contra” não é capaz de defini-lo apropriadamente. Essa generalização acaba por sugerir uma desqualificação das posições tomadas pelo “triste visionário”.

Lima Barreto tomou, sim, posições muito claras no seu tempo e frequentemente pagou um preço elevado por isso. Ademais, nos dias que correm, em que grassam discursos de aversão à política, demonizada por indivíduos que se apressam a manifestar descontentamento difuso contra tudo e contra todos, inclusive contra a democracia que vem sendo tão arduamente construída ao longo do regime republicano em que vivemos, não é de bom tom permitir sequer que se insinue qualquer associação confusa entre esse tipo de postura e aquela mantida pelo literato carioca. Lilia Schwarcz não faz essa insinuação, nem mesmo sugere isso, como a leitura da competente biografia em questão demonstra. Mas talvez fosse o caso de não identificar o biografado como “do contra”, ou melhor, como não sendo a favor de nada.


Notas

1 Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto, Rio de Janeiro: José Olympio, 1952 (Documentos Brasileiros, 70).

2 Pierre Bourdieu, ³A ilusão biográfica´, in Janaína Amado e Marieta M. Ferreira (orgs.), Usos e abusos da história oral, 8ª ed. (Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006), pp. 183-91.

3 Ver, por exemplo, Lilia M. Schwarcz, O espetáculo das raças: cientistas, instituições e pensamento racial no Brasil, 1870-1930, São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

4 Ver também, por exemplo, Rômulo Costa Mattos, “Pelos pobres! As campanhas pela construção de casas populares e o discurso sobre as favelas na Primeira República”, tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2008‑ e Joachin Azevedo Neto, Uma outra face da Belle Époque carioca: o cotidiano nos subúrbios nas crônicas de Lima Barreto, Rio de Janeiro: Multifoco, 2011.

5 Denilson Botelho, A pátria que quisera ter era um mito: história, literatura e política em Lima Barreto, Curitiba: Prismas, 2017.

6 Lima Barreto, “No ajuste de contas…”, A.B.C., Rio de Janeiro, 11 de maio de 1918.


Resenhista

Denilson Botelho – Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. Resenha de: BOTELHO, Denilson. Revisitando o Brasil da Primeira República através da biografia de um escritor negro. Afro-Ásia, n. 57, p. 259-264, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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