Garota/mulher/outras | Evaristo Bernardine

Garota, mulher, outras é um romance arrebatador. Vencedor do Booker Prize em 2019 – uma das mais importantes premiações da Inglaterra – é de ler com a alma, leitura de fazer reverberar nossas memórias e histórias – mesmo as que ainda vamos querer (re)descobrir. Leia Mais

Afropessimismo | Frank B. Wilderson III

Entre os aspectos extraordinários do livro Afropessimismo – e são muitos – está o modo particular como o texto, desobedecendo fronteiras genéricas e disciplinares, combina memorialismo, teoria, filosofia, poesia e análise cinematográfica. Conhecido por suas contribuições ao pensamento crítico negro nas obras Incognegro: A Memoir of Exile and Apartheid (2008) e Red, White & Black: Cinema and the Structure of US Antagonisms (2010), ao longo da última década, o autor, Frank B. Wilderson III, professor de Estudos Afro-Americanos na Universidade da California em Irvine, já vinha elaborando, em diálogo com pensadores negros estadunidenses como Jared Sexton, Saidiya Hartman, David Marriott, Patrice Douglass e Zakkiyah Imam Jackson, hipóteses críticas relacionadas ao termo “Afropessimismo”. Reunindo algumas dessas intuições, esse volume, publicado em inglês em 2020, no ano seguinte em português em cuidadosa tradução de Rogerio W. Galindo e Rosiane Correia de Freitas,1 deu nova forma e maior ambição às propostas teóricas, que aqui vão sendo apresentadas, capítulo a capítulo, em meio a reflexões sobre episódios variados de sua vida, incluindo a infância num bairro quase exclusivamente branco da cidade de Minneapolis, a relação conturbada com os pais durante essa etapa de formação, o período de cinco anos de atuação política na África do Sul, no final do regime do apartheid, quando, além de dar aulas, foi eleito para o Congresso Nacional Africano e participou de atividades clandestinas de resistência ao regime, e as crises de diferentes tipos vividas como estudante de pós-graduação em retórica e cinema na Universidade da California em Berkeley na virada do século. Leia Mais

A mitologia maldita: estereótipos políticos e raciais na gênese da indústria cultural | Renato da Silveira

A filósofa Julia Kristeva postula que “a semiótica utiliza-se dos modelos linguísticos, matemáticos e lógicos e os liga às práticas significantes que aborda. Esta junção é um fato tanto teórico quanto científico, portanto profundamente ideológico, e que desmistifica a ‘exatidão’ e a ‘pureza’ do discurso”.1 Para efeito do presente texto, proponho expandir a definição de Kristeva e incluir a imagética no escopo dos modelos linguísticos. Claude Lévi-Strauss afirma que “os mitos despertam no Homem pensamentos que lhe são desconhecidos”.2 O diálogo entre estas duas citações ajuda a entender a problemática apresentada pelo antropólogo e artista visual Renato da Silveira, em A mitologia maldita. Dessa forma, o título da obra já indica o caminho pelos quais o autor nos convida a caminhar: as tortuosas trilhas para se entender e, acima de tudo, enfrentar o racismo, tanto em sua forma de discurso quanto prática social e política. Leia Mais

Em busca da África: pretitude e modernidade | Manthia Diawara

O livro de Manthia Diawara tece uma instigante investigação sobre algumas das tensões que explodem em países africanos após sua independência dos países europeus, remetendo-nos aos debates de ideias que motivavam, na segunda metade do século XX, algumas das principais querelas que então se produziam em torno do ideal de modernidade que ali se alçava, anelando a história pessoal do autor à do próprio continente: Leia Mais

Navigating Socialist Encounters: Moorings and (Dis)Entanglements between Africa and East Germany during the Cold War | Eric Burton, Anne Dietrich, Immanuel R. Harisch, Marcia C. Schenck

A consolidação da História Global como um campo historiográfico, que ganhou força a partir dos anos 2000, esteve relacionada a intensos debates sobre ausências e silêncios que o campo parecia perpetuar. Atualmente, é consensual nos estudos africanos que uma escrita da história tendo como base a perspectiva da “virada global” não deu a devida atenção para o lugar que a África ocupou – e ocupa – nas dinâmicas de interconexões e interrelações mundiais que buscavam ser evidenciadas. A esse propósito, como recorda o historiador Andreas Eckert, desde a década de 1950 o senegalês Cheikh Anta Diop, um dos intelectuais africanos mais conhecido e pioneiro na promoção de uma história da África fora de balizas europeias coloniais, tinha como uma de suas principais prerrogativas “reconfigurar o lugar da África no Mundo”.1 Leia Mais

Racismo brasileiro: uma história da formação do país | Ynaê Lopes Santos

Ynaê Lopes dos Santos, professora da Universidade Federal Fluminense, onde dirige atualmente o Departamento de História, nos brinda nesse ano de 2022 com um novo livro, Racismo brasileiro. O livro tem a ambição de reinterpretar a história do Brasil, mais precisamente, a formação do Estado nacional brasileiro, tomando o racismo como fio condutor. É, portanto, um livro escrito a contrapelo da história oficial. Leia Mais

Palm Oil Diaspora: Afro-Brazilian Landscapes and Economies on Bahia’s Dendê Coast | Case Watkins

Quando turistas ou moradores locais conceituam a Bahia, o azeite de dendê representa uma gama diversificada de significados sociais. Como muitos acadêmicos têm observado, o estado da Bahia e a cidade de Salvador (muitas vezes simplesmente referida como Bahia) são considerados os pináculos da autenticidade africana que continuam alimentando práticas religiosas, gastronômicas, culturais e sagradas. Dentro destes repertórios sociais, o azeite de dendê é central. O dendê é parte fundamental das obrigações religiosas dos praticantes das religiões de matriz africana (principalmente do Candomblé), e é um ingrediente essencial nos alimentos sagrados e profanos da Bahia, incluindo acarajé, moqueca e vatapá. Além dessas práticas, as práticas da linguagem cotidiana reforçam a forte associação entre o dendê e a Bahia. Como observa Watkins, “dizer que algo é ‘do dendê’ é qualificá-lo como absolutamente baiano e com conexões fundamentais com a África e sua diáspora” (p. 7). Um dos objetivos deste livro é discutir como esta associação veio a ser e persiste para habitantes locais, brasileiros e mundiais. Leia Mais

Selling Black Brazil: Race/Nation/ and Visual Culture in Salvador/Bahia | Anadelia Romo

Em seu novo livro, a historiadora Anadelia Romo explora a construção de Salvador da Bahia como uma cidade “negra” por meio de uma fonte inovadora: guias turísticos ilustrados da cidade, escritos em português, dirigidos ao público nacional, em um momento de expansão do turismo doméstico (décadas de 1940-1960). Os guias, na sua maioria escritos por romancistas, jornalistas ou acadêmicos conhecidos, documentam mudanças importantes nas concepções de identidade local e regional. Mas eles são especialmente reveladores, argumenta Romo, pelas formas com que suas ilustrações ajudaram a estabelecer uma nova iconografia da cidade – uma iconografia que, ela argumenta, tornou-se “aceita como comum e natural” (p. 9), mas (naturalmente) possui uma história complexa e reveladora. Selling Black Brazil conta essa história. Leia Mais

A Coleção Adandozan do Museu Nacional. Brasil-Daomé/ 1818-2018 | Mariza de Carvalho Soares

O livro aqui resenhado, vale ressaltar de início, toma outra dimensão ao relembrar o devastador incêndio sofrido pelo Museu Nacional em 2 de setembro de 2018, transformando em cinzas objetos ali guardados ou expostos, entre eles os da coleção estudada pela historiadora Mariza Soares. Acontecimento que confirma o aspecto trágico e a impermanência que rondam museus e coleções no Brasil.1 Isso torna este livro um material de prova, documento e memória daquilo que foi irremediavelmente destruído. Ele foi escrito, declara a autora, para “dar vida a algo que já não existe”, e feito, muito apropriadamente, juntando o argumento historiográfico às práticas de museus (p. 35). Leia Mais

Maria d’Apparecida. Negroluminosa voz. Esboço biográfico | Mazé Torquato Chotil

A historiografia da música, especialmente a do Brasil, de modo geral pouco destaque deu às cantoras líricas negras do passado. É que, de fato, trata-se de uma tarefa complexa conhecer essas histórias, uma vez que seus rastros são raros e os vestígios muito incertos. Sabe-se, por exemplo, que nos séculos XVII e XVIII senhores de escravos brasileiros mantinham em suas propriedades, por vaidade e luxo, orquestras e coros compostos somente de escravizados que continham vozes femininas no conjunto.1 No século XVIII há registros em Vila Rica de cantores e cantoras negras, geralmente maquiadas para esconder a cor da pele, se exibindo nos teatros da cidade. No século XIX escravas cantoras eram valorizadas e alugadas a bom preço para se apresentarem cantando modinhas ou trechos de ópera em salões e festas aristocráticas, como as sopranos Leonor Joaquina, Ignacia Francisca e Maria da Conceição.2 Os motivos para explicar esse quadro rarefeito são variados, a começar obviamente pelos imensos obstáculos impostos aos escravizados. Mas é preciso considerar também as incontáveis e permanentes barreiras à carreira artística feminina. Mulheres tinham restrições para apresentações nos palcos e cantar óperas no Brasil somente foi permitido a elas no começo do século XIX. E certamente esses entraves eram bem mais dramáticos às cantoras negras ou mestiças. Mesmo sendo assim, na colônia as leis muitas vezes eram tratadas de maneira mais acomodadiça, prevalecendo as práticas e necessidades impostas pelo cotidiano. Isso significava que nem sempre eram respeitadas integralmente as restrições nos palcos e plateias às mulheres, e às negras em particular.3 Leia Mais

Estudantes africanos e africanas no Brasil (Anos 1960) | Luiza Nascimento dos Reis

O lançamento do livro Estudantes africanos e africanas no Brasil (Anos 1960) provoca a necessidade de relembrar que, nos séculos XVII, XVIII e até meados do XIX, o Brasil mantinha relações estreitas com o continente africano. Nesse período, África e Brasil formavam um espaço relativamente interligado, em razão do tráfico negreiro, que produzia um volumoso comércio de mercadorias e de pessoas. O fim do tráfico, em 1850, silenciou essas relações e, por praticamente um século, o continente esteve ignorado nas relações internacionais do país. A África não constava nos discursos oficiais, tampouco nos conteúdos escolares, causando aos brasileiros o desconhecimento da realidade africana, e deixando marcas profundas na memória nacional. Leia Mais

Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970) | Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

De acordo com Ítalo Calvino, “Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura”.1 O livro Modernidades negras, de Antonio Sérgio Guimarães, já nasceu um clássico. Primeiro, porque o autor tem a capacidade de poucos para sintetizar teorias raciais, de desigualdades, o racismo e agora a modernidade negra no Brasil, temas presentes em vários artigos dele que se tornaram clássicos. Em segundo lugar, dentro do contexto atual, em que a memória está cada vez mais relacionada aos relatos curtos sobre períodos recentes, o autor faz um recuo histórico e recupera um debate importante relacionado à raça, cor, etnia, racialização, identidade nacional, formação racial, cultura negra e racismo, no contexto nacional, e a partir dessa perspectiva é capaz de informar muito rapidamente às novas gerações sobre quando vigorava a crença na democracia racial no país. Leia Mais

Modernidade em preto e branco: arte e imagem/raça e identidade no Brasil | Rafael Cardoso

De vez em quando, aparece um livro que desloca o debate em torno de um determinado assunto de tal forma que se torna impossível, ou, no mínimo, desaconselhável, entrar na discussão sem lidar com ele. Estes livros raramente apresentam argumentos inteiramente novos, mas conseguem captar e sintetizar de modo instigador uma crítica que circula há algum tempo. Como trechos de pavimentação sobre caminhos de terra, eles se estendem e solidificam trilhas previamente batidas. É o caso do novo estudo de Rafael Cardoso, Modernidade em preto e branco, que defende uma compreensão temporalmente expansiva do modernismo brasileiro que desafia o “mito de 1922” associado à Semana de Arte Moderna em São Paulo, descrita como uma cidade “ainda provinciana apesar de sua grande prosperidade” (p. 18). As inovações estéticas da geração anterior foram ofuscadas por este mito propagado por intelectuais paulistas durante a segunda metade do século XX. O centenário da Semana de 1922 ocasionou uma infinidade de eventos e publicações, em grande parte comemorativas, tornando a Modernidade em preto e branco uma intervenção bem-vinda. Bem escrito e enriquecido com uma impressionante coleção de ilustrações coloridas, está destinado a se tornar um clássico da historiografia da modernidade cultural brasileira. Leia Mais

A cidade que dança: clubes e bailes negros no Rio de Janeiro (1881-1933) | Leonardo Affonso de Miranda Pereira

O livro aqui resenhado é resultado de mais de uma década de pesquisa realizada por meio da lente cuidadosa da história social. O historiador Leonardo Pereira apresenta ao público leitor uma pesquisa sofisticada, com ampla utilização de fontes conhecidas e inéditas, orais e escritas. Combina questões caras ao público especializado que se interessa por cultura, política, trabalho e sociedade, ou seja, pela história complexa da sociedade no sentido atribuído por Eric Hobsbawn.1 É capaz de proporcionar para aquela leitora e aquele leitor que não são versados na ciência histórica elementos fundamentais para compreender como a dança e a música, no seu aspecto vivencial, transformado e recriado por gentes negras de origens populares, tão caras ainda hoje à cidade do Rio de Janeiro, têm uma trajetória que remonta ao fim do regime escravista e, sobretudo, às primeiras décadas da República. Leia Mais

Enciclopédia Negra | Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano, Lilia Moritz Schwarcz

Com suas quase setecentas páginas, a Enciclopédia Negra foi pensada como uma reação a “um grande e constrangedor silêncio” (p. 9). Na introdução, os organizadores fazem uma dura crítica aos arquivos, manuais e livros didáticos, que em grande parte contribuíram para silenciar por muito tempo a história, a trajetória e as lutas da população negra. Partindo dessa constatação, propõem como mola-mestra da obra dar visibilidade a personalidades negras africanas e afro-brasileiras que viveram no Brasil desde os primeiros séculos de colonização até tempos recentes. A obra apresenta mais de 550 personalidades e está organizada em 417 verbetes individuais e coletivos. Visando alcançar um público amplo, seus autores proporcionam uma linguagem clara, direta e acessível a todos. Leia Mais

Nas ruas: abolicionismo/republicanismo e movimento operário no Recife | Felipe Azevedo e Souza

Há livros que costuram temas apaixonantes. Esse é um deles. Temas já clássicos na história do Brasil, como o abolicionismo, o republicanismo, o movimento operário, foram discutidos com o aporte de novos conceitos, base documental sólida e uma abordagem sensível às fontes, sem plainar no alto de teorias grandiloquentes que, não raro, deixam de escrutinar as experiências vividas pelos sujeitos. A História Política, que praticamente funda a História como ciência, tem em Felipe Azevedo e Silva um sopro renovador, um frescor que traz sujeitos subalternos ao centro de suas próprias inquietudes e projetos políticos. E aqui já expresso uma contribuição inestimável: o escrutínio do autor sobre as eleições nos últimos anos do Império e primeiras décadas da República tem muito a ensinar para nós, contemporâneos de uma República em crise, onde, para muitos, votar parece um fardo. Leia Mais

Hiding in Plain Sight: Black Women/the Law/and the Making of a White Argentine Republic | Erika Edwards

O livro aqui resenhado busca investigar as origens do embranquecimento e da narrativa que produziu o apagamento da população negra no imaginário da Argentina. Diferentemente da ideologia da mestizaje, que prevaleceu na América Latina, na Argentina a identidade nacional pode ser sintetizada em uma frase repetida por sua população: “no hay negros en Argentina”. Erika Edwards, professora da Universidade do Texas – El Paso, discute a invisibilidade da população negra a partir de um conceito mais abrangente de embranquecimento, que foi ao mesmo tempo físico – com a efetiva diminuição dos negros na composição demográfica do país – e cultural – com seu apagamento da narrativa nacional.1 Leia Mais

O maior revolucionário das Américas: a vida épica de Toussaint Louverture | Sudhir Hazareesingh

A publicação do livro de Sudhir Hazareesingh diminui em alto nível a escassez de bibliografia disponível no Brasil acerca dos acontecimentos que eclodiram em agosto de 1791, conhecidos por Revolução Haitiana, que levou à abolição da escravidão em 1793 naquela lucrativa colônia francesa, fundando novos direitos para seus habitantes, e da qual resultou sua independência da França, em janeiro de 1804. Apesar das traduções para o português de livros como os de C. R. L. James e de Michael-Rolph Trouillot, este mais recente, e da publicação do de Marco Morel,1 ainda há pouca coisa sobre suas repercussões por aqui, mais especificamente, sobre como escravizados, libertos, senhores e autoridades policiais reagiram ao evento, revelando, a depender do protagonista, rebeldia, ameaça e medo de abalos à escravidão.2 Leia Mais

Eu vou piorar | Fernanda Bastos

Eu vou piorar é o segundo livro da poeta Fernanda Bastos. O primeiro foi Dessa cor (2018), ambos publicados pela Editora Figura de Linguagem. Escritora jovem, nascida em 1985, Bastos inscreve-se na escrita contemporânea de mulheres negras que acionam a criação literária a partir do diálogo interdisciplinar entre a história e a literatura. E que tem como principais temas o racismo, o machismo e questões de classe. Eu vou piorar é um livro de poemas objetivos no uso da linguagem e diretos nas referências histórico-sociais. É uma publicação exigente com a pessoa leitora, pois pressupõe uma abertura para entender a literatura nesse encontro com outras formas do saber e disposta à dinâmica de uma leitura como experiência de vida. A objetividade temática e a assertividade da linguagem direta são resultados de uma criação literária complexa, que se relaciona com um desejo da autora, mulher negra contemporânea, de escapar das opressões. Como disse Glória Anzaldúa, o conjunto de relações significativas que marcam o escrever de uma mulher negra são: experiências pessoais, visão de mundo segundo a realidade vivida, vida interior, “nossa história, nossa economia”.1 E esse conjunto de relações marcam o desejo que é, ainda seguindo Anzaldúa, a ânsia de não repetir a performance da opressão, movimento de criação literária utilizados pela poeta Fernanda Bastos. Leia Mais

Intimações do desumano | Edson Lopes Cardoso

Edson Lopes Cardoso é uma das pessoas-bússolas quando pensamos em ativismo político, intelectualidade e movimento negro brasileiro contemporâneo. E digo isso não como mero protocolo, digo com o sentimento de quem nasceu exatos quarenta anos depois dele e encontrou caminhos em comum alicerçados com ideias e reflexões sobre as armadilhas da violência estrutural sofisticada que é o racismo. Como mulher negra, também nascida na Bahia (em Berimbau – Conceição do Jacuípe), formada em jornalismo (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), que enveredou por espaços acadêmicos e por Brasília, é inspirador acessar obras literárias e também trajetórias de pessoas negras que contribuíram com estratégias a favor de uma coletividade que teve historicamente os direitos negados. Com sua percepção apurada, Edson Cardoso continua sinalizando às máscaras que ainda seguem ativadas na sociedade brasileira. E com sua experiência de vida e combate, trança pensamentos com as gerações que o antecedeu e com as posteriores, com o compromisso de amplificar a dignidade das vidas negras. Leia Mais

Carnaval e Política: o Ilê Aiyê e a reinvenção da África | Niyi Afolabi

Vinte e dois anos atrás, escrevi para o n. 24 da Afro-Ásia uma resenha sobre o livro de Michel Agier, Anthropologie du Carnaval, uma contribuição substancial sobre o Ilê Aiyê, o bloco afro de Salvador que, ao longo dessas quatro décadas e meia, vem recebendo mais atenção de pesquisadores, jornalistas e cronistas.1 Provavelmente, trata-se do grupo de exaltação à Negritude que mais atrai os acadêmicos, bem como o Afoxé Filhos de Gandhy e as casas de Candomblé mais famosas, como o Gantois, a Casa Branca e o Axé Opô Afonjá. Leia Mais

Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro | Bianca Santana

O livro Continuo preta é a mais completa biografia de Sueli Carneiro realizada até o momento no Brasil. Não é a primeira vez que a filósofa brasileira foi biografada. Este é o segundo livro sobre a vida da feminista afro- -latino-americana. O primeiro perfil biográfico foi escrito pela pesquisadora e jornalista Rosane Borges, baseado em entrevistas com Sueli Carneiro e publicado pela Editora Summus, em 2009. Ao contrário, nessa segunda biografia, escrita por Bianca Santana, há evidente investigação documental, além de entrevistas com Sueli, seus familiares, círculos de amigos e de militantes políticos. No livro, passamos a conhecer com mais profundidade as origens da personagem retratada e sua tortuosa trajetória social até tornar-se respeitável intelectual pública no Brasil. Leia Mais

Hubert Harrison: The Struggle for Equality/1918–1927 | Jeffrey B. Perry

Um verdadeiro tour de force. Hubert Harrison: The Struggle for Equality, 1918–1927 (Nova Iorque: Columbia University Press, 2021, 998 páginas), segunda parte da ambiciosa biografia escrita por Jeffrey B. Perry, retrata os últimos anos daquele que foi considerado “o pai do radicalismo do Harlem”, completando a trajetória de um dos mais importantes ativistas políticos afro- -americanos do início do século passado. Leia Mais

Barry Farm Hillsdale in Anacostia: A Historic African Community | Alcione M. Amos

Quando li o livro de Alcione Amos me convenci logo de sua importância para a compreensão da história dos negros norte-americanos. Estava na leitura do seu livro durante o julgamento do policial que matou George Floyd, e na sua finalização o ex-presidente Barack Obama disse mais ou menos isso: “enquanto os afro-americanos forem tratados como diferentes pela força policial e pela sociedade, jamais teremos democracia em nosso país”. Obama atingira o cerne do problema: o afro-americano – e outros grupos minoritários politicamente – apesar de todas as tentativas para a sua integração na sociedade americana, permanecia como o estranho, o diferente. Mudanças significativas ocorreram; porém, efetivas barreiras invisíveis impedem uma participação igualitária dos negros. Mais: expulsando-os do território administrado, ou quando possível, destruindo-os fisicamente. Enfim, quando aparecem figuras inusitadas como Trump, elementos adormecidos ou retraídos ganham força e aparecem sem pudor, configurando o racismo nacionalista.1 Racismo construído por séculos de opressão e violência. Dessa forma, nada disso pode ser esquecido, por atravessar a vida de milhões de afro-descendentes em todo o país. Entretanto, a formulação como o racismo se desencadeou não foi homogênea, sendo diversificada local e regionalmente, além de variada temporalmente. Leia Mais

Diásporas imaginadas: Atlântico Negro e histórias afro-brasileiras | Kim Butler

É mais que oportuna a publicação, no Brasil, do livro Diásporas imaginadas. O texto é resultado de uma profícua colaboração entre a historiadora norte-americana Kim Butler e o historiador brasileiro Petrônio Domingues. Ambos uniram seus esforços para apresentar um estudo que envereda por questões epistemológicas relacionadas aos estudos da diáspora e avançam na investigação de experiências da diáspora africana, mais especificamente da diáspora afro-atlântica, ao longo do século XX. Butler, que há mais de três décadas se dedica aos estudos da diáspora e investiga experiências brasileiras, recebeu Domingues no Department of Africana Studies, na Universidade de Rutgers, Nova Jersey (Estados Unidos), por ocasião de seu pós-doutoramento. Naquela oportunidade, Domingues, docente na Universidade Federal de Sergipe, cuja trajetória é igualmente longa nos estudos acerca da mobilização negra no Brasil, pôde investir na abordagem transnacional, introduzindo novas nuances à sua pesquisa. Leia Mais

De que lado você samba? Raça/ política e ciência na Bahia do pós-abolição | Gabriela dos Reis Sampaio, Wlamyra Ribeiro de Albuquerque

Os historiadores da escravidão no Brasil têm feito milagres com os documentos dos períodos colonial e imperial para escrever uma valiosa história dos escravizados. Está menos estabelecida, contudo, a questão sobre o que aconteceu com esses mesmos indivíduos com o advento da abolição e, especialmente, com o advento da República. E a natureza ambígua da Primeira República no Brasil ― imposta por um golpe militar contra uma monarquia que presidira a abolição ― torna a realidade dessa transição política ainda mais ambivalente. De que maneira os ideais republicanos abriram espaço para garantir direitos e autonomia aos negros, e de que maneira os mesmos ideais foram usados para impor a continuidade e o controle? Gabriela dos Reis Sampaio e Wlamyra Ribeiro de Albuquerque examinam ambos os lados desse debate para concluir que os primeiros anos da era republicana trouxeram tanto novos espaços como novos controles para a população negra; mas a análise elegante das autoras imprime uma ênfase decisiva no último aspecto e expõe as atitudes repressivas das elites republicanas para manter suas posições no topo das hierarquias racial e política. Conforme elas escrevem com eloquência, Leia Mais

O massacre dos libertos: sobre república e raça no Brasil | Matheus Gato

À luz da “sociologia histórica do racismo”, a obra de Matheus Gato narra e analisa um trágico confronto envolvendo libertos, policiais e republicanos, em São Luís do Maranhão, dois dias após o golpe militar que derrubou a Monarquia. Aos gritos de morras à República, um grande número de homens negros (alguns sobrestimaram em 3000 deles) cruzou as ruas da cidade desde a manhã daquele dia. Leia Mais

Fantina: cenas da escravidão | Francisco Coelho Duarte Badaró

Não é comum, no campo da História, que obras literárias sejam resenhadas em revistas acadêmicas. A reedição recente de Fantina: cenas da escravidão, romance lançado originalmente em 1881 por Duarte Badaró, merece figurar como uma exceção, tanto pela sua evidente relação com um dos campos mais desenvolvidos da historiografia brasileira quanto pelo significativo aparato crítico que o acompanha. Publicada pela Chão Editora, especializada na edição de fontes primárias de grande interesse, a obra em questão vem acompanhada de um alentado posfácio de autoria de Sidney Chalhoub – cuja produção historiográfica ajudou a iluminar, ao longo das últimas décadas, a experiência da escravidão brasileira, sobretudo no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. Juntos, o romance e o posfácio compõem uma obra que se apresenta, ao mesmo tempo, como um testemunho atento sobre uma das dimensões mais trágicas da ideologia de domínio que sustentou no Brasil o regime escravocrata – a naturalização da violência senhorial contra as mulheres escravizadas – e como um minucioso exercício metodológico sobre a relação entre a produção literária do período e a história social. Leia Mais

The Sacred Cause: The Abolitionist Movement/Afro-Brazilian Mobilization/and Imperial Politics in Rio de Janeiro | Jeffrey Needell

Datando o início do abolicionismo organizado no Rio de Janeiro a partir de 1880, Jeffrey Needell tratará das estratégias de líderes, ativistas e dos debates dentro do governo imperial. Crítico de uma “interpretação materialista” do abolicionismo brasileiro, Needell enfatiza que “as teses abolicionistas defendidas nos últimos cinquenta anos não conseguiram demonstrar precisamente a articulação [da política abolicionista] entre os afro-brasileiros, o movimento e o governo parlamentarista da monarquia brasileira (1822-1889)” (p. 1). Ele deixa clara sua intenção de demonstrar “a presença e a participação da classe média e das massas afro- -brasileiras no movimento” (p. 65). Dado seu foco sobre o papel decisivo das “massas” afro-brasileiras para acabar com o regime escravista em maio de 1888, um título mais apropriado para a monografia poderia ter sido The Sacred Cause: AfroBrazilian Mobilization, the Abolitionist Movement, and Imperial Politics in Rio de Janeiro. Leia Mais

Nazário e um plano de rebelião escrava na Aldeia dos Anjos: “os brancos eram uns pelos outros/por isso os negros também deviam fazer o mesmo” | Wagner de Azevedo Pedroso

A historiografia que estuda o extremo sul do Brasil já há muito abandonou a ideia de que naquela região a escravidão inexistiu ou teve pouco impacto. Se, por muito tempo, advogou-se que a mão de obra escrava era pouco importante para a economia e para a sociedade na província de São Pedro do Rio Grande do Sul, hoje em dia essa hipótese já caiu por terra, graças à multiplicação de estudos rigorosos produzidos nos programas de pós-graduação em História. Leia Mais

Palmares & Cucaú: o aprendizado da dominação | Silvia Hunold Lara || Guerra contra Palmares: o manuscrito de 1678 | Silvia Hunold Lara, Phablo Roberto Marchis Fachin

Palmares tem sido estudado e descrito desde o início do século XIX na literatura científica brasileira e, ocasionalmente, na portuguesa. É bem conhecido no Brasil graças tanto a trabalhos acadêmicos quanto à representação popular; mas é também muito conhecido fora do Brasil, pois há uma extensa historiografia sobre aquela comunidade quilombola escrita em inglês (e bem menos em outras línguas). Leia Mais

Blood and Boundaries: The Limits of Religious and Racial Exclusion in Early Modern Latin America | Stuart Schwartz

Stuart Schwartz é certamente um dos mais importantes autores da historiografia atual sobre o mundo ibérico na primeira modernidade. Para simplificar, podemos definir este campo como o dos estudos sobre Portugal e Espanha, além de seus domínios e espaços de interesse entre os séculos XV e o XIX. Schwartz tem pesquisado sobre as dimensões da vida econômica, social, política e cultural, com atenção para a formação econômica, as instituições do poder e da justiça, a luta social, formas de resistência e negociação, assim como aspectos da cultura política, intelectual e religiosa dos povos imersos e submersos nesse espaço dos impérios português e espanhol. Seus livros, artigos e textos compõem uma obra vasta e plural, mas coesa; uma obra comprometida com o estudo crítico da sociedade e de expressões da resistência popular. Leia Mais

Zoológicos humanos: gente em exibição na era do imperialismo | Sandra S. M. Koutsoukos

O livro aqui resenhado apresenta como protagonistas Eko, Iko, Hilda, Kurt, Elly, Stephan, Krao, Schlitzie, Peter, Bunny, Violetta, Mungo, William, Charles, Lavinia, George, Minnie, Sarah, Betty, Byrne, Ella, Lazzaro, Giovanni, Millie, Christine, Violet, Daisy, Chang, Eng, Maria, Rosalina, Liou-Seng, Liou-Tang, Joseph, Fanny, Quacke, “Manuel”, “Marie”, Abal, Nancy, Ota, Bomushubba, Shamba, Kondola, Lumbango, Latuna, Kalamma, Malengu, Lumo, Antonio, Ibag, Singwa, Johnny, entre outros tantos. Eles compõem um enorme grupo de seres humanos que foram desumanizados a partir da prática, consolidada no século XIX, de exibir seres humanos considerados exóticos, selvagens ou monstruosos em museus, teatros, circos, zoológicos, feiras e instituições científicas, tendo-se como base o discurso que se convencionou chamar “racismo científico” no mundo ocidental, um dos esteios fundamentais dos Estados imperialistas europeus. Leia Mais

Imaging Culture: Photography in Mali/West Africa | Candace Keller

Aqueles que se interessam por fotografia africana contemporânea, e mesmo os que gostam de fotografia contemporânea sem outro adjetivo, já devem ter tido contato com as obras de Seydou Keïta (1921- 2001) e Malick Sidibé (1936-2016). Ambos malineses, mestres da fotografia preto-e-branco em estúdio, foram “descobertos” por curadores e colecionadores europeus no início da década de 1990. Ao longo dos anos que se seguiram participaram de exposições, receberam prêmios e seus trabalhos se tornaram ícones no mercado internacional de arte. Leia Mais

África/margens e oceanos: perspectivas de história social | Lucilene Reginaldo, Roquinaldo Ferreira

Resenhar coletâneas é sempre uma tarefa difícil devido à multiplicidade de temáticas e argumentos, e ainda mais quando a obra em questão se insere em um campo fora da especialidade do resenhista. A importância do livro África, margens e oceanos me impôs, porém, o abandono da cautela, justificada pelo fato de que ele não interessa apenas aos africanistas. Publicada como parte da coleção Várias Histórias ― uma das mais tradicionais da historiografia brasileira ― e inserida na renomada tradição da história social da Unicamp, esta obra oferece ao leitor uma saborosa seleção da produção brasileira sobre a história da África entre os séculos XVI e XX, com participação ainda de estudiosos dos EUA e de Portugal. Leia Mais

Slave Trade and Abolition: Gender/Commerce and Economic Transition in Luanda | Vanessa Oliveira

Slave Trade and Abolition, publicado em 2021, é a mais recente obra de Vanessa Oliveira. O livro analisa as estratégias adotadas pelos comerciantes sediados em Luanda face ao processo de transição do tráfico transatlântico de escravos para o comércio “lícito” de produtos tropicais. A obra presta particular atenção às interações sociais entre estrangeiros e a população local nas esferas do comércio, casamento e da exploração da mão de obra africana. Trata-se do estudo social e económico mais aprofundado e abrangente sobre Luanda no período do tráfico de escravos e após a abolição. No livro, a autora procura, com base na micro-história conectada à história global, desvendar as vivências cotidianas experimentadas pelos comerciantes de escravos em Luanda, sem perder de vista as conexões atlânticas dos seus residentes. Semelhante metodologia pode ser observada na obra Crosscultural Exchange in the Atlantic World, de Roquinaldo Ferreira, na qual o autor evidencia os fortes laços culturais e outros que interligavam Brasil e Angola na época do tráfico de escravos.1 Leia Mais

The Yorùbá: A New History | Akinwum Ogundiran

O autor deste erudito e estimulante livro sobre os iorubás declarou, durante uma recente discussão promovida pela ASWAD – Association for the Study of the Worldwide African Diaspora (Associação para o Estudo da Diáspora Africana Mundial), que seu projeto nasceu de sua crescente percepção de que os dados históricos, arqueológicos, antropológicos e culturais relativos ao tema não se alinhavam com as representações do passado desse povo em grande parte da literatura acadêmica.1 Enquanto suas próprias pesquisas apontam para origens antigas e complexos processos de mudança através de longo horizonte temporal, um corpo crescente de literatura histórica, na sua opinião, “achata […] a história iorubá” e “trata a cultura [iorubá] como fossilizada num passado atemporal” (p. 3). De fato, tem havido uma tendência nos últimos setenta e cinco anos de representar o século XIX, o período do encontro missionário cristão e colonial europeu, como o “lócus e centro gravitacional da mudança cultural [iorubá]” (p.3). O desejo de Ogundiran de corrigir esse legado colonial e descolonizar a historiografia africana inspirou-o a escrever um grande e importante livro, pelo qual os leitores podem ficar agradecidos. Leia Mais

Travessias no Atlântico Negro: reflexões sobre Booker T. Washington e Manuel R. Querino | Sabrina Gledhill

De certa maneira, os historiadores são verdadeiros parceiros dos eguns – ancestrais cujos mundos pretendemos reviver com nosso trabalho. Um dos exemplos mais claros disso tem sido o desenvolvimento da nossa compreensão da escravidão; abordagens inovadoras da história social têm nos ajudado a ouvir atentamente os escravizados e a dar voz à natureza horrenda da escravidão e à imensidão do esforço, fé e criatividade necessários para se sobreviver a ela. A biografia tem desempenhado um papel particularmente importante nesse sentido. Leia Mais

Torto Arado | Itamar Vieira Junior

Torto arado conquistou, em 2018, o LeYa, maior prêmio concedido a romance inédito em língua portuguesa. Em 2020, recebeu o Jabuti de Melhor Romance e também o Prêmio Oceanos. Aclamado pela crítica especializada e consagrado pelo público, o livro escrito pelo baiano Itamar Vieira Júnior vem sendo traduzido em outros idiomas, a exemplo do búlgaro e do italiano. Nascido em Salvador, em 1979, o autor obteve, na Universidade Federal da Bahia, o título de Doutor em Estudos Étnicos e Africanos. Sua pesquisa sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do Nordeste brasileiro confere lastro sólido à sua ficção. Transcorrida na Chapada Diamantina, a trama fala sobre um grupo de trabalhadores descendentes de escravizados, destacando suas formas de culto, suas lutas por sobrevivência, trabalho e posse da terra. Leia Mais

O dia em que Charles Bossangwa chegou à América | João Melo

Lançado em fevereiro de 2020, em Lisboa, O dia em que Charles Bossangwa chegou à América é o sétimo livro de contos de João Melo. Logo ao abrirmos essa edição, a lista de títulos registrados na página 3 leva- -nos, sem dúvida, à presença de um autor experiente: são doze volumes de poemas e sete de contos, ou seja, dezenove livros e 35 anos de envolvimento direto com a escrita literária. Com mais atenção, podemos também perceber, ao lado do empenho, uma certa contenção expressa na distância temporal entre as edições, fato que nos sugere um perfil cuidadoso, resistente às pressões do mercado, que tantas vezes quer fazer da literatura um produto como outro qualquer. No ritmo adotado por João Melo parece se projetar a morosidade afeita a uma concepção de escrita que recusa o pacto com a voracidade do presente que nos cerca. Leia Mais

Por um feminismo afro-latino-americano | Lélia Gonzalez

Estávamos falando do que a gente pode fazer nos próximos dez anos em termos de comunidade negra, e veja as dificuldades que a gente tem. A perspectiva é de que a gente abra alguns caminhos, e a gente tem que ter aí consciência da nossa temporalidade, ou seja, a gente vem e passa no sentido de passar mesmo, e passa também a nossa experiência para quem está chegando. Aí é que me parece que os africanos podem nos ensinar muito (Lélia Gonzalez, Entrevista ao jornal do MNU). Leia Mais

Negros de prestígio e poder: ascensão social/estilos de vida e racismo na cidade de Salvador | Ivo de Santana

O livro é resultado da tese de doutorado em Ciências Sociais defendida na Universidade Federal da Bahia, em 2009, com foco nas “trajetórias profissionais de pessoas negras que vivenciaram processos de mobilidade social na administração pública” (p. 35) na capital baiana. A temática não é inédita para Ivo de Santana, já que havia desenvolvido pesquisas nos anos 1990 sobre executivos negros em organizações bancárias, tendo publicado sobre o assunto um artigo na Afro-Ásia, n. 23 (2000). Leia Mais

Protagonismo negro em São Paulo: historiografia e história | Petrônio Domingues

Neste livro iluminador, Petrônio Domingues nos oferece uma introdução compreensiva às pesquisas recentes sobre a história e a cultura negra em São Paulo, muitas delas realizadas por estudiosos afro-brasileiros. Leia Mais

The Things of Others: Ethnographies, Histories/and Other Artefacts | Olívia Maria Gomes da Cunha

O que primeiro chama a atenção do livro The Things of Others são suas mais de 750 páginas. Se for certo aquele ditado que diz que um bom livro deve se sustentar em pé, este possui alicerces sólidos para tal. Fruto de mais de duas décadas de pesquisa, as 65 páginas de bibliografia atestam a vastidão e densidade da empreitada. Talvez estejamos diante da obra de uma vida. Olívia Maria Gomes da Cunha, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, transita com fluência entre a antropologia e a história e percorreu arquivos no Brasil, em Cuba, na Inglaterra e, sobretudo, nos Estados Unidos, atrás dos acervos, fundos e coleções documentais dos principais antropólogos e sociólogos responsáveis pela configuração, no campo das ciências sociais, dos chamados “estudos afro-americanos”, um processo que a autora vai conceitualizar como “a criação de um artefato de conhecimento” (p. xi). Leia Mais

A adivinhação na antiga Costa dos Escravos | Bernard Maupoil

A tradução de uma obra pioneira de etno-história africana implica também em fazer um trabalho de confronto com a versão original. No presente caso, a segunda edição em português do livro, originalmente publicado em francês, é uma tradução da obra La Géomancie à l´ancienne Côte des Esclaves, do etnólogo francês Bernard Maupoil. A primeira edição foi publicada pelo Instituto de Etnologia de Paris, em 1943. A segunda, muito provavelmente, em 1961. A terceira, segundo informa o tradutor Carlos Eugênio Marcondes de Moura (p. 12), é de 1981, com um posfácio de Claude Rivière. Algumas fontes falam de um total de 24 edições entre 1943 e 1988. O cotejo entre a obra original e sua tradução é uma das metas desta resenha. Cabe destacar o trabalho sério e paciente de tradução feito por Carlos Eugênio Marcondes de Moura, uma das autoridades mais dedicadas ao legado multifacetado da África no Brasil. Leia Mais

Slavery in the Age of Memory: Engaging the Past | Ana Lucia Araujo

Na última década, a abordagem da historiadora Ana Lucia Araujo sobre a escravidão atlântica e seu legado de memória no mundo contemporâneo consolidou-se como uma das mais originais e abrangentes. Slavery in the Age of Memory, seu mais recente livro, vem na esteira dessa trajetória, original em sua ênfase no problema das representações do passado escravista ao longo do tempo e especialmente abrangente na perspectiva transnacional e comparativa. Como todo bom livro, pode ser lido sem qualquer informação prévia, mas conhecer a trajetória e a produção anterior da autora permite ao leitor um diálogo mais rico e denso com os novos aportes trazidos por esta obra. Leia Mais

Lutas pela memória em África | Cláudio Alves Furtado, Lívio Sansone

Durante o ano de 2015, eclodiu na Cidade do Cabo, na África do Sul, uma onda de protestos estudantis que procurou denunciar os resquícios de colonialismo que percorriam o currículo da Universidade da Cidade do Cabo e, o que ganhou mais visibilidade, atacou diretamente a estátua de Cecil Rhodes situada nas dependências da instituição.1 O personagem, que esteve inegavelmente envolvido na colonização de diversas regiões da África e foi autor de várias declarações acerca do direito inglês ao governo e exploração de povos e territórios africanos, era representado nesse monumento de maneira imponente. A estátua lá estava porque Rhodes fora um dos financiadores da universidade, em tempos outros, com uma fortuna, muitos disseram, obtida graças à espoliação colonial. Leia Mais

The Unfinished Revolution: Haiti/Black Sovereignty and Power in the Nineteenth-Century Atlantic World | Karen Salt || Maroon Nation: A History of Revolutionary Haiti | Johnhenry Gonzalez

Onde reside a soberania haitiana? A questão é sempre urgente durante cada virada da espiral da história política haitiana, com suas crises e a consequente insistência na busca de “soluções” que eternamente pioram o problema que pretendem resolver. O que é difícil – mas necessário quando se fala da urgência do momento – é também encontrar, de alguma forma, um caminho para guiar nossas ações por uma compreensão da história profunda do agora. No Haiti, como em toda parte, mas nem sempre com a mesma intensidade, a tirania das rotinas interpretativas e das categorias sem saída limitam o presente, frequentemente nos impedindo de ver o que está bem em nossa frente. Leia Mais

They Were Her Property: White Women as Slave Owners in the American South | Stephanie E. Jones-Rogers

Mulheres frágeis e delicadas, dedicadas exclusivamente aos cuidados do lar, cujas ações estavam pautadas pela maternidade e que não se envolviam nos assuntos escravistas em consequência de seu gênero. Assim foram representadas as mulheres brancas do Sul dos Estados Unidos no antebellum (período anterior à Guerra Civil). O livro de Stephanie E. Jones-Rogers, Professora Associada do Departamento de História da Universidade da Califórnia, campus de Berkeley, contesta a difundida imagem das brancas sulistas como distantes do universo da escravidão, no tocante ao gerenciamento e disciplina da população cativa. O protagonismo dessas mulheres – seu envolvimento nas variadas esferas da escravidão – é escrutinada com detalhes, desfazendo o mito de que não se envolviam nos negócios escravistas. Não eram simples espectadoras, elas participavam ativamente do sistema, na administração, exploração e violência. Leia Mais

African Women in the Atlantic World: Property/Vulnerability & Mobility/1660-1880 | Mariana P. Candido, Adam Jones

Esta coletânea é fruto de um esforço profícuo de realizar um trabalho comparativo sobre mulheres nas sociedades africanas, desde o Senegal até o sul de Angola, entre o século XVII e finais do XIX. A obra teve como origem um seminário internacional em Dublin, no qual os textos foram debatidos. Além disso, autoras e autores tiveram acesso aos artigos uns dos outros e, assim, puderam comparar seus estudos de caso sobre outras partes da África atlântica. A introdução do livro, escrita por Mariana P. Candido e Adam Jones, que o organizaram, apresenta uma valiosa revisão historiográfica do estado da arte dos estudos sobre mulheres nascidas naquela região e também aponta para a escassez de estudos sobre esta temática. Neste texto introdutório, as notas de rodapé fornecem uma generosa mostra das principais contribuições para esse campo do conhecimento histórico. Fica claro o bem sucedido esforço para produzir uma obra comparativa sobre mulheres na costa atlântica africana antes do período colonial. Leia Mais

Em defesa da liberdade. Libertos/coartados e livres de cor nos tribunais do Antigo Regime português (Mariana e Lisboa/1720-1819) | Fernanda Domingos Pinheiro

Os estudos sobre alforrias e sobre o acesso de libertos e livres de cor à Justiça, a fim de assegurar a liberdade contra investidas de herdeiros, de testamenteiros, de credores e, até mesmo, de senhores arrependidos, já é um campo consagrado na historiografia brasileira. O livro de Fernanda Pinheiro insere-se nesse campo. Porém, não se trata apenas de mais uma contribuição ao tema. Em defesa da liberdade estabelece uma nova forma de abordagem do assunto no universo da pesquisa sobre o acesso de forros, crioulos e africanos aos tribunais. Logo de início, os arranjos de liberdade, reconstruídos por Fernanda Pinheiro, por sua variedade, surpreendem a leitora e o leitor. Ela confere originalidade e força aos estudos sobre o tema e o faz por, pelo menos, três caminhos. Leia Mais

A Fistful of Shells: West Africa from the Rise of the Slave Trade to the Age of Revolutions | Toby Green

A campanha da Nigéria pela restituição das esculturas de bronze depositadas em museus europeus colocou o passado pré-colonial africano nas recentes manchetes internacionais. Com sua longa história de comércio global, o reino do Benim era um dos estados na África Ocidental mais bem conhecidos e bem conectados com o mundo durante o período medieval.1 No contexto da conquista colonial de finais do século XIX, os britânicos saquearam Edo, sua capital. Dos muros do palácio, retiraram as esculturas de bronze que retratavam a história do reino. Os ingleses colocaram essas crônicas visuais em museus e as usaram para criar célebres coleções de arte “primitiva”. Centenas dos artefatos saqueados permanecem trancados em museus ao redor do mundo, e estão apenas começando a serem devolvidos aos lugares a que por direito pertencem. Leia Mais

The Portuguese Slave Trade in Early Modern Japan: Merchants/Jesuits/and Japanese/Chinese/and Korean Slaves | Lúcio de Sousa

No livro aqui resenhado, Lúcio de Sousa pretende atingir três objetivos. Um deles consiste na reconstrução do que denominou de sistema de tráfico de escravos japoneses, chineses e coreanos, que operou no seio de redes mercantis portuguesas estabelecidas na Ásia marítima oriental. O segundo objetivo do autor consiste na reconstituição das “comunidades japonesas” estabelecidas em territórios que estiveram sob a influência das Coroas ibéricas. O terceiro objetivo é analisar o impacto do tráfico de escravos japoneses sobre a legislação ibérica produzida nos séculos XVI e XVII, que inclui o período da união das coroas luso-espanholas (1580-1640). Leia Mais

Confluence Narratives: Ethnicity/History, and Nation-Making in the Americas | Antonio Luciano de Andrade Tosta

A obra aqui resenhada se inscreve no campo de investigação de uma identidade americana nascida do encontro de culturas diferenciadas. É longa a lista de pesquisadores que se voltam para o exame de um comparatismo literário que, longe de buscar as influências das mães-pátrias, partem para observar o dinamismo cultural gerado na literatura do Novo Mundo. Exemplo desse gênero de pesquisa são as coletâneas organizadas por Zila Bernd e outra por mim, que mapeiam o imaginário coletivo do continente americano por meio de levantamentos de figuras míticas que passaram por processos variados de transformações, produzindo fenômenos específicos de mestiçagem e hibridismo.1 Leia Mais

Também os brancos sabem dançar – um romance musical | Kalaf Epalanga

Kalaf Epalanga nasceu em Angola, em 1978, e vive em Portugal desde os anos 1990. Músico, integrou a banda Buraka Som Sistema, uma das principais difusoras mundiais do kuduro, gênero de música dançante inventada nos bairros desassistidos de Luanda. Escritor, colabora na imprensa de Lisboa e publicou duas coletâneas de crônicas, Estórias de amor para meninos de cor (2011) e O angolano que comprou Lisboa (por metade do preço) (2014). Este seu primeiro romance mistura, de modo interessante e surpreendente, elementos autobiográficos, narrativas ficcionais e reflexões do autor (ou pertenceriam elas a seus diversos personagens?). Leia Mais

Fieldwork in Timor-Leste: Understanding Social Change through Practice | Maj Nygaard-Christensen, Angie Bexley

A coletânea organizada por Maj Nygaard-Christensen e Angie Bexley, Fieldwork in Timor-Leste, tem dois objetivos: prover aos pesquisadores que fazem suas primeiras pesquisas no Timor-Leste reflexões críticas sobre as categorias que foram utilizadas para estudar este país e envolver pesquisadores experientes nas conversas e reflexões sobre os trabalhos de campo mais recentes (p. 5). Neste sentido, reúne onze artigos em que vários especialistas em Timor-Leste refletem sobre os desafios e dificuldades (tanto práticas como teóricas) na hora de fazer pesquisa histórica e etnográfica sobre esse país. As editoras do volume são pesquisadoras experientes em temas do Timor-Leste: Nygaard-Christensen tem dez anos de trabalho de campo no país e é professora associada na Universidade de Aarhus, Dinamarca, e Bexley é pesquisadora na Universidade Nacional de Austrália; ambas publicaram numerosos artigos sobre temáticas relacionadas ao Timor-Leste. A coletânea que elas editaram inclui alguns dos nomes mais importantes nesse campo de estudos, como Douglas Kammen e Judith Bovensiepen, e também estudantes de pós-graduação. Certamente não era a intenção das organizadoras fazer um manual prático de trabalho de campo, mas uma obra de reflexão crítica sobre o trabalho de campo, e os autores o fazem com êxito. Leia Mais

A razão africana: breve história do pensamento africano contemporâneo | Muryatan Barbosa

Não tem sido comum na historiografia brasileira escrever sínteses que esclareçam temas e questões da contemporaneidade da África. Muryatan Barbosa enfrenta o desafio a começar pelo título da obra aqui resenhada, A razão africana, que talvez seja correto definir como a capacidade intelectual e moral que se realiza em circunstâncias históricas e contextos epistemológicos específicos. E para compreender a natureza e o sentido da razão africana, o autor elaborou um grande retábulo com as principais ideias de um número significativo de intelectuais africanos e africanistas. Leia Mais

Beatriz Nascimento/quilombola e intelectual. Possibilidades nos dias da destruição | Beatriz Nascimento

O livro Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual, organizado e editado pela União dos Coletivos Pan-Africanistas (UCPA), reúne o conjunto mais completo de escritos da historiadora e militante Beatriz Nascimento, entre já publicados e inéditos.1 A publicação chega em boa hora, atendendo a uma demanda crescente por parte de ativistas, estudantes e pesquisadores ávidos pelo conhecimento e reconhecimento da produção intelectual de negros e negras de diferentes gerações. A iniciativa da UCPA está em consonância com o projeto editorial que informou sua criação, assim como de outras editoras fundadas com o propósito de divulgar autoras e autores negros historicamente preteridos pelos grupos editoriais consolidados. A novidade, diga-se de passagem, são iniciativas semelhantes vindas de grandes editoras que, apenas recentemente, têm incluído em seus catálogos negros notáveis no campo das Ciências Sociais e da Literatura. Os organizadores e editores da UCPA têm seus próprios objetivos e público alvo, deixando explícito no primeiro texto de apresentação (orelha do livro) sua destinação última: “Quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição foi o título mais apropriado para sacramentar na consciência do povo preto a personalidade e a obra desta africana em diáspora: Maria Beatriz Nascimento”. Leia Mais

Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro | Ligia Fonseca Ferreira

Desde o século XIX, Luiz Gama insiste em nos provocar com Lições de resistência. Gama foi escravizado, conquistou a alforria, foi reconhecido como intelectual conceituado já no seu tempo, enquanto se tornava um dos principais personagens do movimento abolicionista. As suas ideias e o seu empenho como jornalista e rábula na defesa da liberdade dos escravizados o transformaram numa referência incontornável da luta pela igualdade racial ainda nos dias de hoje. Em tempos de aprofundamento das desigualdades, Luiz Gama, negro, abolicionista e republicano continua a ser um farol para quem aspira por justiça e, por isso, mantém-se entre os autores brasileiros mais lidos, seja como literato ou como ativista engajado no campo do direito. Leia Mais

Escravidão urbana e abolicionismo no Grão-Pará/século XIX | José Maia Bezerra Neto, Luiz Carlos Laurindo Junior

Como salienta José Maia Bezerra Neto, um dos organizadores da coletânea, na sua contribuição inicial, “Do vazio africano à presença negra”, desconhece-se ainda hoje a importância da escravidão de origem africana na Amazônia. Essa ideia da Amazônia apenas indígena ou mestiça foi construída ao longo de mais de um século por uma historiografia brasileira que quis salientar a peculiaridade ou a situação periférica da região em relação ao resto do Brasil. A historiografia nacional sobre a Amazônia focou exclusivamente na atividade econômica do extrativismo, que usava a mão de obra indígena em oposição à agricultura escravista de plantation. Mesmo a historiografia paraense mais antiga quase não menciona a escravidão de origem africana (por exemplo, Arthur Vianna) ou apenas trata dela em estudos específicos, mas não lhe dando a devida importância em obras mais gerais (Arthur Cezar Ferreira Reis). As coisas começaram a mudar a partir dos trabalhos pioneiros de Napoleão Figueiredo, Anaíza Vergolino e sobretudo Vicente Salles, como destaca Bezerra Neto. Destarte, acaba surpreendendo o leitor tanto a antiguidade quanto o volume da produção historiográfica regional sobre escravidão africana no Pará, passada em revista nesse ensaio, que será de grande utilidade para qualquer estudioso do assunto, quer no Pará ou mesmo, de maneira geral, nas Américas. Apenas achei que poderia ter incluído autores estrangeiros, como a importante monografia sobre a cabanagem, de Mark Harris, Rebellion on the Amazon (2010), e o excelente estudo de Oscar De la Torre, The People of the River: Nature and Identity in Black Amazonia, 1835-1945 (2018). Leia Mais

A negação da liberdade: direito e escravização ilegal no Brasil oitocentista (1835-1874) | Gabriela Barreto de Sá

A relação entre os afrodescendentes e o direito na América Latina é bastante complexa: enraizado na violência da escravidão, o direito assumiu papel importante no desgaste do regime escravista; mesmo assim, ainda hoje ele contribui para perpetuar desigualdades sociais.1 Leia Mais

Becoming Free/Becoming Black: Race/ Freedom/ and Law in Cuba/Virginia and Louisiana | Alejandro De La Fuente, Ariela Gross

Conquistar a liberdade sempre foi o objetivo das pessoas escravizadas nas Américas. Em todas as sociedades escravistas do continente mulheres e homens negros desenvolveram estratégias que, de alguma maneira, acabaram refletidas nos sistemas legais das colônias e nações onde viviam. As respostas das elites senhoriais às tentativas de alforria orientavam as leis, que acabaram constituindo critérios para uma cidadania de poucos, além de concessões e suspensão de direitos, ao mesmo tempo em que produziam hierarquias raciais. Alejandro de La Fuente e Ariela Gross afirmam que o livro que escreveram é um exercício de comparação que trata da ação de pessoas escravizadas e libertas sob os regimes escravistas nos estados de Luisiana e Virgínia, nos Estados Unidos, e em Cuba. Leia Mais

A metade que nunca foi contada: a escravidão e a construção do capitalismo norte-americano | Edward E. Baptist

A metade que nunca foi contada é o segundo livro do historiador norte-americano Edward E. Baptist. Professor na Universidade de Cornell (Ithaca, NY), Baptist apresenta em seu novo trabalho, originalmente publicado como The Half Has Never Been Told, em 2014, os resultados de um longo percurso de pesquisa sobre a construção da fronteira escravista no sudoeste norte-americano no século XIX, expandindo um tema que já era o centro do seu primeiro livro monográfico, Creating a New South (2002). Leia Mais

Mapping Diaspora: African American Roots Tourism in Brazil | Patricia de Santana Pinho

Alguns anos atrás, durante uma de minhas muitas viagens para Salvador, lembro de ter assistido a um programa na televisão que mencionava a chegada de turistas afro-americanos para a festa de Nossa Senhora da Boa Morte, que sempre acontece em agosto na cidade de Cachoeira na Bahia. Como pesquisador soteropolitano radicado no exterior que tem interesses em estudos de raça, o tema imediatamente chamou minha atenção. Soube pouco tempo depois, através do guia de turismo Frederico Bomsucesso, que essas visitas estavam acontecendo regularmente. A notícia, de fato, não me surpreendeu. Tive a oportunidade de trazer alunos afro-americanos para fazer intercâmbio em Salvador e já sabia que a relação deles com a cidade é sempre especial. Imaginava que mais cedo ou mais tarde alguém descobriria esta fatia de mercado para o turismo baiano. Leia Mais

Marriage/Divorce and Distress in Northeast Brazil: Black Women’s Perspectives on Love/Respect and Kinship | Melanie A. Medeiros

Na rodoviária de Salvador, na Bahia, a antropóloga entrou no ônibus, percorreu dez horas por estradas sinuosas até a região da Chapada Diamantina e chegou a Brogodó. Ao longo de uma década, entre 2006 e 2015, ela voltou ali. De início, chegou de mansinho, passou umas semanas, sentiu o clima. Depois, foi encontrar financiamento para mais pesquisa e voltou para passar mais tempo, dedicando-se a entrevistas e grupos focais, observação participante mais apurada, perguntas mais argutas. E, a partir desse longo relacionamento, Melanie Medeiros, professora da State University of New York, produziu monografia de graduação, dissertação de mestrado e tese de doutorado, resultando no presente livro, publicado em 2018. Leia Mais

Manuel Querino: criador da culinária popular baiana | Carlos Alberto Dória, Jeferson Bacelar

Justamente, em uma tarde qualquer de abril, “começou na Bahia […] a glória de Pedro Archanjo”, personagem de Tenda dos Milagres, livro de Jorge Amado.1 Nesse romance, o mundo da cozinha baiana está presente. Nos dizeres de Paloma Amado, Pedro Archanjo era “um obá de Xangô, Ojuobá cheio de conhecimento e sabedoria”, que conhecia “o povo mestiço da Bahia […] seus hábitos, sua cultura”, portanto, através dele se podia ter “a noção exata da delicadeza e da força, da simplicidade e da sofisticação dessa culinária”.2 Até porque Jorge Amado construiu seu romance inspirado em personagens reais. Pedro Archanjo se espelhava em Manuel Querino. Jorge Amado disse então: “enquanto escrevi este livro, muitas vezes recordei […] Manuel Querino”.3 São temas do livro aqui resenhado, tanto a pessoa, Manuel Querino, como sua obra, A arte culinária na Bahia. 4 Leia Mais

Shifting the Meaning of Democracy: Race, Politics/and Culture in the United States and Brazil | Jessica Lynn Graham

A atual ascensão da extrema-direita mostra contornos verdadeiramente globais. Com maior ou menor intensidade, ocorre em todos os continentes e ganha corpo em países de trajetórias históricas as mais distintas. Dada a natureza dos problemas que ele coloca às democracias mundo afora, o fenômeno tem tornado lugar-comum a comparação da presente conjuntura com o período de gestação do fascismo e do nazismo na Europa. A profunda recessão econômica, já esperada como decorrência da pandemia de coronavírus, que grassa o mundo no momento mesmo em que escrevo estas linhas, faz com a Crise de 1929 uma comparação cada vez mais atraente. Leia Mais

Black Feminisms Reimagined: After Intersectionality | Jennifer C. Nash

Black Feminisms Reimagined, o segundo e mais novo livro de Jennifer C. Nash, crítica cultural e professora de estudos afro-americanos, de sexualidade e gênero, analisa a complexa história institucional e intelectual do feminismo negro, na era do que ela chama de “guerras de interseccionalidade”, e propõe um armistício entre departamentos de estudo de gênero e o feminismo negro através da teoria do afeto. Nash leciona na Universidade Northwestern em Evanston, Illinois, nos Estados Unidos, e é doutora em Estudos Afro-Americanos pela universidade de Harvard. Seu primeiro livro, The Black Body in Ecstasy: Reading Race, Reading Pornography, publicado em 2014, analisa representações visuais do corpo de mulheres negras em um espaço que ela define como “lugar de desconforto” para o feminismo negro: a pornografia racializada. Nesse livro, ela questiona os limites das interpretações vigentes no engajamento teórico do feminismo negro com as representações visuais sexualizadas. Sendo assim, ambos os estudos de Nash procuram investigar os limites teóricos, ou zonas de desconforto, dentro do feminismo negro. Leia Mais

Exposing Slavery. Photography/Human Bondage/and the Birth of Modern Visual Politics in America | Matthew Fox-Amato

O livro de Matthew Fox-Amato resulta da tese de doutorado defendida no Departamento de História da Universidade do Sul da Califórnia. Composto de introdução, quatro capítulos e um epílogo, possui 92 imagens e parte de duas questões iniciais, colocadas pelo autor: como a descoberta, e subsequente uso, da fotografia “influenciou a cultura e a política da escravidão na América?”. E como, por seu turno, “a escravidão influenciou o desenvolvimento da fotografia – esteticamente e como prática cultural?” (p. 2). Leia Mais

Sociological Theory Beyond the Canon | Syed Farid Alatas, Vineeta Sinha

Há, entre docentes de Ciências Sociais no Brasil, certo estranhamento em relação aos autores que, comumente, são tratados nos cursos introdutórios, em especial na Sociologia. Cada vez mais perceptível em virtude do momento histórico de releituras críticas das tradições, esse estranhamento resulta de uma uniformidade em relação ao conjunto de sociólogos que desponta em nossos currículos, que espelha um padrão obsoleto: são homens, brancos e do Norte Global. Isso indica que o eurocentrismo e o androcentrismo seguem sendo colonialidades persistentes no ensino da Sociologia em nível global. Basta olhar para as ementas e para os manuais e livros didáticos usados no ensino da disciplina em diferentes escolas e universidades. Leia Mais

Páscoa et ses deux maris. Une esclave entre Angola/ Brésil et Portugal au XVIIe siècle | Charlotte de CastelnauL’Estoile

Este é um livro sobre Páscoa Vieira, uma africana denunciada à Inquisição em 1693 por bigamia. O gesto deu origem a uma investigação que durou sete anos e revela a vida de uma mulher ao mesmo tempo ordinária e excepcional. Páscoa nasceu e viveu em Massangano, uma pequena vila fortaleza situada a 200 km de Luanda, no Reino de Angola, trabalhando como escrava nos campos e nas casas de uma rica família de luso-africanos. Casou-se aos 16 anos com Aleixo, também escravo, com quem teve dois filhos, mortos ainda pequenos. O casal não se dava bem e Páscoa fugia com frequência. Como castigo, seu senhor a vendeu para um conhecido, um notário público (tabelião) residente em Salvador, capital do então Estado do Brasil. Foi assim que Páscoa atravessou o Atlântico pela primeira vez, por volta de 1686, aos 26 anos. Um ano depois, casou-se com Pedro, um africano procedente da Costa da Mina, seu companheiro de escravidão. Tiveram dois filhos. Leia Mais

Prieto: Yoruba Kingship in Colonial Cuba during the Age of Revolutions | Henry B. Lovejoy

Faz mais de um século que historiadores e antropólogos têm se atribuído a tarefa de realçar o legado dos homens e mulheres procedentes do chamado “país iorubá” em Cuba. Cumprir tal tarefa parecia inevitável, pois se tratava dos criadores de um dos sistemas religiosos de origem africana mais difundidos e aceitos no país: a Santería. Sistema que, a partir de uma visão colonialista assumida sem muitos reparos, foi catalogado como menos “selvagem” ou mais “civilizado” do que outros de igual origem, o Palo Monte ou Regla de Conga, uma herança que os cubanos podem ostentar com certo orgulho. No caso da Santería, admiração que possivelmente aumentaria se muitos outros cubanos soubessem que os lucumís – como eram chamados os iorubás em Cuba – foram os protagonistas de algumas das mais sérias sublevações produzidas na primeira metade do século XIX. Não importa tanto se estas revoltas se manifestavam, no dizer dos estudiosos, como mera continuidade das “guerras” que muitos haviam sustentado em suas terras, porque o próprio fato de rebelar-se fora suficiente para incorporá-los ao cânone da luta anticolonial, mais ainda se destruíram plantações açucareiras e cafezais e, no caminho da liberdade, mataram a todo soldado espanhol empregado por seus opressores. Em resumo, ainda que o ditado mais conhecido em Cuba seja “quem não tem de congo tem de carabali”, também devemos contabilizar um DNA lucumí digno de ser conhecido, e assim a muitas histórias de vidas que ainda permanecem ocultas nos arquivos. Leia Mais

Um porto no capitalismo global: desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro | Guilherme Leite Gonçalves, Sérgio Costa

Durante a administração de Eduardo Paes como prefeito do Rio de Janeiro (2009-2016), a prefeitura empreendeu um ambicioso projeto de revitalização da Zona Portuária da cidade, realizado sob a midiática alcunha de Porto Maravilha. O projeto consistiu na implantação de uma nova rede de infraestrutura viária e de serviços, que tinha por objetivo lançar a região como novo polo empresarial, fomentando ali um processo de adensamento demográfico e verticalização. Para tanto, em um gesto polêmico que suscitou um acalorado debate público, foi demolido o Elevado da Perimetral, que margeava o Cais do Porto e a região do Centro. A demolição foi apresentada como a obra-chave para a revitalização urbana proposta e, justamente na faixa de terrenos liberada com a remoção do elevado, foram construídos os espaços e equipamentos públicos que se transformariam nos principais símbolos da operação Porto Maravilha. Leia Mais

O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise | Noemi Kon, Maria Lucia da Silva, Cristiane Abdul

“Já que é preciso, de qualquer modo, não lhes pintar unicamente um futuro cor-de-rosa, saibam que o que vem aumentando, o que ainda não viu suas últimas consequências e que, por sua vez, se enraíza no corpo, na fraternidade do corpo, é o racismo. Vocês ainda não ouviram a última palavra a respeito dele”.1 Com essas palavras que hoje assumem ares proféticos, o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) terminava um dos seus seminários em 1972. Leia Mais

Ominíbú – maternidade negra em Um defeito de cor | Fabiana Carneiro da Silva

Um projeto de nação só é legítimo se reconhece todos os elementos que historicamente constituem os elos que formam aquilo que se pode compreender como povo. Essa é uma premissa ainda distante da realidade – especialmente no caso brasileiro –, onde a democracia é solapada por projetos obscurantistas, engendrados por falsos messias e apoiados por expressiva massa obnubilada por fake news, engenhosamente a serviço de quem sempre esteve em posição de mando. Leia Mais

Bahia: escravidão/pós-abolição e comunidades quilombolas – estudos interdisciplinares | Maria Fátima Novaes Pires, Napoliana Pereira Santana, Paulo Henrique Duque Santos

Organizar uma coletânea com vários/ as autores/as não é tarefa fácil no meio acadêmico. Exigirá, no mínimo, lidar com os diferentes tempos de produção dos textos, leitura dos originais, às vezes sugerir cortes, acréscimos, revisões para enquadrá-los nos padrões acadêmicos e no limite de páginas estabelecido. Juntas as partes para compor o todo, é a vez da burocracia editorial. Passada a fase de produção é a hora de lançar a obra. Organizadores/as e autores/as esperam boa recepção das suas contribuições, especialmente entre os pares, ávidos por encontrar no novo livro informações valiosas para suas pesquisas e novas interpretações sobre temas já discutidos. Leia Mais

The People of the River: Nature and Identity in Black Amazonia/1835-1945 | Oscar De La Torre

Em 2020, The People of the River ganhou o prêmio de melhor livro do GT Amazônia da LASA (Latin American Studies Association). Publicação baseada na tese de doutorado em História do autor, este livro já havia obtido, em 2019, um prêmio (Outstanding First Book Prize) da ASWAD –Association for the Study of the Worldwide African Diaspora. Sem dúvida, a obra é instigante e fascinante, com uma narrativa fluente, às vezes com doses de ironia bem aplicadas ao longo do texto. Leia Mais

The Yellow Demon of Fever: Fighting Disease in the Nineteenth-Century Transatlantic Slave Trade | Manuel Barcia

Não é necessário ser especialista para saber que o tráfico de pessoas escravizadas entre o continente africano e as Américas, ao longo dos séculos, foi um mar de horrores em termos sanitários, dentro e fora das embarcações. Nem é coincidência que os navios que transportavam esses africanos e africanas para a venda na outra costa do Atlântico fossem chamados de tumbeiros. Mas, além da dor e da desumanização de suas vítimas, a viagem negreira foi também uma experiência sobre o conhecimento das doenças que se manifestavam durante a travessia. Foi também o terreno em que diferentes tratamentos daquelas enfermidades puderam se desenvolver para salvar vidas. Leia Mais

“Não somos bandidos”: a vida diária de uma guerrilha de direita: a Renamo na época do Acordo de Nkomati (1983-1985) | Michel Cahen

O nascimento de Moçambique como país foi resultado de uma luta armada, chamada de “luta de libertação nacional”, guerra de uma década desenvolvida pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) contra a ocupação colonial portuguesa. A independência conquistada não trouxe paz aos povos moçambicanos. Logo foram estes arrastados para um novo e trágico conflito que, durante 16 anos, destruiu vidas, famílias e infraestrutura, bloqueando as condições de desenvolvimento do país que estava nascendo.1 Leia Mais

Médicas-sacerdotisas: religiosidades ancestrais e contestação ao sul de Moçambique (c. 1927-1988) | Jacimara Souza Santana

As contestações anticoloniais das populações rurais africanas, por vezes categorizadas como “pré” ou “protonacionalistas”, foram postas numa relação de hierarquia evolutiva com aquelas protagonizadas por frentes e partidos políticos orientados por ideologias “modernas”. A oposição tradicional versus moderno, organizada como teleologia, que deduz a superação linear da modernidade sobre a tradição, tem sido felizmente repensada. Os próprios termos utilizados, oriundos de uma visão modernista, têm sido ressignificados, sugerindo uma dinâmica muito mais complexa entre continuidade e mudança. As contestações rurais, informadas por cosmologias próprias e, via de regra, associadas a uma linguagem religiosa, passaram a ser vistas, a partir de então, menos como fenômenos conservadores e mais em toda a sua complexidade criativa. Leia Mais

Ferreiros e fundidores da Ilamba. Uma história social da fabricação de ferro e da Real Fábrica de Nova Oeiras (Angola/segunda metade do século XVIII) | Crislayne Gloss Marão Alfagali

A obra Ferreiros e fundidores da Ilamba, da historiadora Crislayne Alfagali, analisa de forma minuciosa a história social dos ferreiros e fundidores no contexto da instalação e funcionamento da fábrica de ferro de Nova Oeiras, em Ilamba, Angola, na segunda metade do século XVIII. Mas se engana quem acha que este é mais um trabalho sobre a fábrica de ferro, tida por muito tempo pela historiografia estadonovista portuguesa como o grande feito do governador d. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho (1764-1772).1 Aqui os protagonistas são os trabalhadores da Ilamba, quer dizer, trata-se de uma história social de trabalhadores africanos. Segundo a autora, seu interesse é inverter o foco da análise ao abordar o “tema da fábrica de ferro a partir das determinações locais, das escolhas das lideranças africanas” (p. 26). Leia Mais

Escravidão contemporânea | Leonardo Sakamoto

No Brasil, desde os anos 1990, nos acostumamos a ver na TV, nos jornais e posteriormente na internet, notícias de trabalhadores encontrados pelo Estado em condições de extrema exploração, que incluem alojamentos compartilhados com animais e seus excrementos, insuficiência de alimentação, jornadas incompatíveis com a resistência do corpo humano, dentre outras situações que chocam qualquer observador minimamente empático. Inicialmente, esses fatos pareciam circunscritos a locais distantes e de difícil acesso, particularmente em zonas rurais e no norte do país. Com o passar do tempo, começamos a assistir esses episódios nas grandes cidades e nos mais diferentes setores econômicos. Leia Mais

The Fetish Revisited: Marx/Freud/and the Gods Black People Make | J. Lorand Matory

A centralidade da obra de James Lorand Matory nos estudos afro-americanos não pode ser desconsiderada. Não apenas a textura teórica revela um joeiramento crítico profundo, com uma capacidade de reflexão eclética e hermenêutica, como a riqueza do seu conhecimento particular e diversificado das religiões do chamado Atlântico Negro tornam suas obras de leitura obrigatória a todos que se dedicam ao estudo das religiões dessa geografia. Em uma obra anterior, Matory já havia expressado a importância do espaço circum-atlântico na emergência do nacionalismo iorubano (Lagosian Renaissance).1 Nela evidencia o papel de determinadas famílias da elite afro-atlântica na constituição de um conjunto de valores, bens e serviços que promoveram a consolidação daquilo que a literatura designa por “supremacia nagô” ou “nagôcracia”, ao mesmo tempo que questiona a tradição cristalizada por Ruth Landes do matriarcado como padrão ortopráxico. Leia Mais

Escritos de liberdade: literatos negros/racismo e cidadania no Brasil oitocentista | Ana Flávia Magalhães Pinto

Anualmente, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulga dados a respeito das desigualdades por cor no país. Em tempos de “pós-verdade”, de ataque às instituições de pesquisa, de fake news divulgadas por fontes duvidosas, de convicções rápidas e não fundamentadas, mas que recebem status de verdades absolutas, é sempre bom lembrar que a desinformação oculta a forma como as desigualdades de hoje se vinculam às de ontem. De acordo com os dados disponibilizados pelo IBGE em 2019, os negros (soma de pretos e pardos) tornaram-se 55,8% da população brasileira. Entretanto, as pessoas brancas permanecem recebendo os salários mais elevados, continuam sendo majoritárias entre o ocupantes dos cargos gerenciais e seguem tendo as taxas mais elevadas de frequência escolar em todas as idades.1 Leia Mais

Laborers and Enslaved Workers: Experiences in Common in the Making of Rio de Janeiro’s Working Class/1850–1920 | Marcelo Badaró Mattos

A versão em inglês do livro de Marcelo Badaró Mattos é um feito da história social brasileira em seu notável esforço de reconhecimento de excelência internacional.1 Debruçado sobre contexto específico – a cidade do Rio de Janeiro entre a segunda metade do século XIX e as primeiras décadas do século XX –, o livro prossegue com a proposta de E. P. Thompson de derrubar as muralhas separadoras da história da agitação da classe trabalhadora da história cultural e intelectual do resto da nação (como está afirmado na Formação da classe trabalhadora inglesa, em seu prefácio). Como resultado, Mattos protagoniza um momento característico da historiografia brasileira, que é o foco na coexistência de trabalhadores livres e libertos, trabalhadores escravizados, ou não-livres. (Ou, simplesmente, trabalhadores.) Ao considerar a classe como processo e como uma relação – e não como um dado da estrutura social –, Mattos esclarece ser infrutífero voltar atrás no tempo apenas em busca de experiências de trabalhadores livres. Leia Mais

Formas de liberdade: gratidão/condicionalidade e incertezas no mundo escravista nas Américas | Jonis Freire, María Verónica Secreto

O livro aqui resenhado reúne textos de especialistas de diferentes países a respeito da experiência da escravidão e da liberdade na América Latina e Caribe. Com alguma variação de abordagem, estilo e perspectiva, os trabalhos transitam entre a história social e a micro-história, explorando uma rica documentação de natureza administrativa, eclesiástica, legislativa, judiciária e notarial. O livro é composto por nove capítulos que se estendem espacialmente pelo Caribe francês, por diferentes regiões da América hispânica, de norte a sul do continente, e pelo Brasil, concentrando-se de modo preponderante nos séculos XVIII e XIX. Alguns são escritos em espanhol, outros em português. Leia Mais

The War Within: new perspectives on the civil war in Mozambique/1976-1992 | Eric Mourier-Genoud, Michel Cahen, Domingos M. Rosário

Uma característica trágica compartilhada pela história nacional de alguns países africanos é a emergência de conflitos militares dentro de suas próprias fronteiras que, via de regra, estão marcados por uma combinação variável de fatores e atores internos e externos – de um lado, a explosão de tensões e clivagens sociais que o regime político implantado após a independência não foi capaz de resolver, e em alguns casos agravou; de outro, a incidência de interesses econômicos e geoestratégicos que condicionaram a participação de outros Estados, empresas multinacionais e órgãos multilaterais. Na década de 1960, essa dinâmica alimentou conflagrações sangrentas no Congo-Léopoldville, nos Camarões e na Nigéria; após a independência dos territórios africanos submetidos à dominação portuguesa, Angola e Moçambique viram seus nomes incluídos nessa malfadada lista. Em Moçambique, diferente de Angola, a hegemonia política e militar do novo regime demorou alguns anos a ser seriamente desafiada. Embora tenha havido uma resistência armada localizada na Zambézia desde 1976, foi a partir do início da década seguinte que uma situação de guerra interna se generalizou, prolongando-se até 1992, quando foi assinado o Acordo Geral de Paz. Leia Mais

Working the System: a Political Ethnography of the New Angola | Jon Schubert

A produção etnográfica publicada sobre Angola, já pouco expressiva durante o período colonial,1 declinou nas últimas décadas do século XX devido à situação política do país. Após sua independência em novembro de 1975, Angola enfrentou uma guerra civil até 2002. Esta findou com a morte de Jonas Savimbi, líder da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), movimento de guerrilha que questionou durante quase três décadas a legitimidade do governo exercido pelo MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) a partir de Luanda. Ao contexto de guerra somou-se a (auto)censura no que diz respeito à discussão pública de questões políticas e sociais, mais um empecilho à realização de trabalhos de campo no país.2 Finda a guerra, o desafio da “reconstrução nacional” deu-se em meio às expectativas de melhoria de vida colocadas pela paz, visto Angola ter-se tornado, com Nigéria e África do Sul, uma das três principais economias da África Subsaariana. Foi nesse cenário de expansão econômica ancorada na exploração do petróleo, mas com poucos benefícios para a população em geral, que se realizaram as etnografias mais recentes sobre Angola, a maioria sobre Luanda. Contudo, embora alguns artigos tenham resultado desse esforço, poucas investigações etnográficas extensivas foram publicadas nos últimos anos.3 Working the System: a Political Ethnography of the New Angola, de Jon Schubert, é, portanto, uma importante contribuição para o campo de estudos angolanista. Leia Mais

African Kings and Black Slaves: Sovereignty and Dispossession in the Early Modern Atlantic | Herman L. Bennett

Em sua introdução a este importante livro, Herman Bennett começa explicando como ele próprio foi levado ao tema da soberania africana no início do mundo atlântico moderno. Como estudante de pós-graduação que fazia pesquisa no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, Bennett cruzou com uma coleção de mapas e documentos comemorativos dos quinhentos anos de contorno do Cabo da Boa Esperança (1488) por uma esquadra sob o comando de Bartolomeu Dias. Bennett observou que esses velhos documentos revelavam uma história específica da diplomacia renascentista, na medida em que os portugueses receberam como seus iguais emissários de toda a África e Ásia; algo que falava sobre uma história do poder e da soberania que, como Bennett aponta, tem sido pouco abordada pela bibliografia sobre as relações mais remotas entre a África e a Europa. Leia Mais

Jinga de Angola/a rainha guerreira da África | Linda Heywood || Além do visível: poder/catolicismo e comércio no Congo e em Angola (séculos XVI e XVII) | Marina de Mello e Souza

É extremamente oportuno quando duas excelentes obras afins e complementares vêm a lume no mercado editorial brasileiro, quase no mesmo ano, o que revela um momento ímpar de historiografia internacionalizada e conectada. Ganha-se nos detalhes e em visão de conjunto. Uma obra de cada vez, porém. Leia Mais

Escravos e libertos nas minas do Rio de Contas: Bahia/século XVIII | Kátia Lorena Novaes Almeida

Publicado em 2018, o mais recente livro da historiadora Kátia Lorena Novaes Almeida aborda a escravidão e a liberdade na região mineradora de Rio de Contas, na Chapada Diamantina da Bahia, sendo fruto de sua tese de doutoramento defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia. Autora de um estudo anterior, lançado em 2012, no qual buscou compreender trajetórias sociais de egressos do cativeiro na referida região (Alforrias em Rio de Contas: Bahia, século XIX), Kátia Almeida explorou, desta feita, as leituras que escravos, libertos, senhores e advogados fizeram da escravidão e da alforria no termo de Rio de Contas, no século XVIII. Leia Mais

Racismos: das cruzadas ao século XX | Francisco Bethencourt

Francisco Bethencourt não é historiador de poucas palavras, embora seus livros, dois já publicados no Brasil, ainda que extensos, não sejam cansativos.1 Demonstrando que a erudição não precisa ser enfadonha, temos na obra aqui resenhada uma escrita fluente, marcada por um texto sem rodeios, preciso e fluido. Isto se verifica ainda mais nos capítulos que, abordando períodos mais recentes e contemplando realidades não europeias, se distanciam daquilo com que o autor é mais familiarizado. Leia Mais

A mulher de pés descalços | Scholastique Mukasonga

Na famosa carta às mulheres escritoras do terceiro mundo, Glória Anzaldúa explicita algumas das constrições vivenciadas pelas mulheres de cor que fazem da palavra escrita uma forma de inscrição no mundo. O lançar-se no papel é compreendido como um desafio e um risco para essas mulheres que, contudo, são conclamadas poeticamente pela autora à escrita, na medida em que tal gesto circunscreve uma forma de (auto)reconhecimento e poder: “o que nos valida como seres humanos, nos valida como escritoras”.1 Em seu apelo à expressão, a missiva remete a um conjunto plural e diverso de produções de mulheres que afrontaram os mecanismos históricos de interdição do acesso à literatura e por meio de seus textos constituíram espaços outros de existência, muitas vezes em contraposição ao lugar subalternizado a elas relegado pelas forças hegemônicas globais. Problematizando as possibilidades de transfiguração que atuam como corolário de certa noção de autonomia da literatura, tais escritoras produzem obras nas quais, em consonância com a proposição de Anzaldúa, experiência pessoal, história e ficção constituem um amálgama de notável força estética. Leia Mais

From the Kingdom of Kongo to Congo Square: Kongo Dances and the Origins of the Mardi Gras Indians | Jeroen Dewulf

Em seu último livro, Jeroen Dewulf, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, pretende compreender as origens dos Mardi Gras Indians, performance negra central no carnaval da cidade de Nova Orleans, Luisiana, EUA. Sua tese central fica evidenciada logo no título do livro: Do Reino do Kongo, na África Central, à Congo Square, em Nova Orleans. Ou seja, as Kongo Dances (danças do Congo) – performances negras descritas nas fontes desde o final do século XVIII – podem ser rastreadas até às danças de guerra simuladas no antigo Reino do Congo, que ficava a noroeste da atual Angola, nos séculos XVI e XVII, e seriam a base para reinvenções até a criação dos Mardi Gras Indians da atualidade.1 Essas reinvenções e adaptações respondiam aos desafios sociais que os africanos e seus descendentes enfrentavam nas Américas. Performances congolesas, portanto, devem ser entendidas como atos entre a tradição e a adaptação. “Eram mais tradições ‘inventivas’ do que ‘inventadas’” (p. 17). Leia Mais

Slave Traders by Invitation: West Africa’s Slave Coast in the Precolonial Era | Finn Fuglestad

“Traficantes de escravos por convite”: esse é o título do livro de Finn Fuglestad, professor da Universidade de Oslo. Antes desse trabalho, Fuglestad era mais conhecido por seu livro A History of Niger, publicado em 1983.1 Entre as duas obras, o autor publicou diversos capítulos de livros e textos de referência sobre história africana. Ou seja, estamos falando de alguém bastante experimentado nos meandros desse campo de estudos. Leia Mais

An African Slaving Port and the Atlantic World: Benguela and its Hinterland | Mariana P. Candido || The Atlantic Slave Trade from West Central Africa/1780-1867 | Daniel B. Domingues da Silva

O comércio transatlântico de escravos é um campo de estudos já bastante desenvolvido, e de crescente interesse, pelo menos nas últimas três décadas. Um número significativo de pesquisadores tem enfatizado o papel dos comerciantes de escravos do Atlântico Norte no tráfico de seres humanos, do século XVII ao XIX, bem como o impacto da escravização e exportação de cativos sobre as sociedades africanas. No entanto, o tráfico no Atlântico Sul, principalmente entre o Brasil e a África Central – nomeadamente Congo e Angola – atraiu menos atenção do que merece, dado que quase a metade dos escravos deportados através do Atlântico para as Américas veio daquela região, nos cerca de cem anos entre meados do século XVIII até a abolição do tráfico escravista, em meados do século seguinte. Leia Mais

O Brasil e Cuba, 1889/1902- 1929: o debate intelectual sobre as relações raciais | Pedro Alexander Cubas Hernández

Em 28 de novembro de 1939, no anfiteatro Enrique José Varona da Universidade de Havana, Fernando Ortiz encerrava um ciclo de conferências que tinha sido organizado pelo grêmio estudantil Iota Eta. O título da última palestra não poderia ser mais revelador: “Os fatores humanos da cubanidade”. Nela, Ortiz sintetizava que o cubano não podia ser definido pelo fator étnico, mas sim “pela peculiar qualidade de uma cultura, a [cultura] de Cuba”.1 Leia Mais

Racismo em português: o lado esquecido do colonialismo | Joana Gorjão Henriques

Entre os séculos XVIII e XIX, vários viajantes estrangeiros que passaram por Lisboa descreveram, frequentemente com grande incômodo, o que lhes parecia uma característica extravagante da capital do Reino de Portugal: uma presença considerável de gente negra. Só para destacar um, entre tantos registros expressivos, o italiano Giuseppe Barreti, que esteve em Lisboa em 1760, não escondeu sua perturbação diante da quantidade de negros e mulatos que “formigavam em todo canto” da cidade. A multidão de gente de cor permanecia numericamente expressiva no início do século XIX. Segundo cálculos coevos, em 1801, os negros eram cerca de 15.000, de um total de 220.000 moradores da cidade de Lisboa. Isso de fato particularizava a capital de Portugal em comparação com outras grandes cidades e capitais da Europa, cuja presença negra não alcançava proporções semelhantes.1 O fenômeno, menos expressivo em termos demográficos, também podia ser observado em outras cidades do reino, como Porto, Faro e Évora. Entretanto, a história dos descendentes de africanos no sul da Europa em geral, e particularmente em Portugal, começa muitos séculos antes. Embora, em termos cronológicos e geográficos, as pesquisas sobre o tráfico de escravos e a escravidão em Portugal2 ainda sejam modestas e circunscritas, investigações recentes têm demonstrado que, já no início do século XVI, algo entre 15% e 20% da população de Lisboa “tinha nascido na África ou era de origem africana”.3 Leia Mais

Before Boas: The Genesis of Ethnography and Ethnology in the German Enlightment | Han F. Vermeulen

Before Boas é daqueles livros cuja leitura produz diferentes efeitos e reverberações, não apenas quanto ao material, cenários e interpretações propostas pelo autor, mas também pelos desafios e implicações teóricas e analíticas daquilo que é apresentado e na maneira pela qual se o faz. Leia Mais