Mastodontes: a história da fábrica e a construção do mundo moderno | Joshua Freeman

Em 2010, dezoito trabalhadores da empresa de tecnologia chinesa Foxconn tentaram cometer suicídio ao pularem do telhado de uma das instalações da empresa. Quatorze deles infelizmente conseguiram. Este trágico evento foi uma das razões que levaram o historiador norte-americano Joshua Freeman a refletir a escrever Mastodontes: a história da Fábrica e a construção do mundo moderno, publicado originalmente em 2018 pela W.W. Norton, e traduzido imediatamente para o português em 2019 pela editora Todavia. O livro faz parte do esforço da editora brasileira em trazer para uma audiência nacional produções estrangeiras que versam sobre temas proeminentes do mundo contemporâneo. Neste caso, a obra traduzida busca contribuir para o debate sobre a relevância do mundo industrial nos dias de hoje e frisar o quanto este universo impactou e continua a impactar o presente.

No livro, Freeman nos traz uma história das fábricas. Mas não qualquer fábrica __ como ele mesmo salienta no começo do livro __ mas aquelas mastodônticas, que se destacaram à época de sua construção por terem suscitado na sociedade industrial uma miríade de questões políticas, culturais e econômicas, incorporando, a um só tempo, um imaginário de horror ancorado na exploração do trabalho, degradação ambiental e miséria social com a esperança de um futuro glorioso pautado na abundância material. Como o próprio autor ressalta, estas fábricas “não eram típicas” e se diferenciaram da maior parte das unidades produtivas fabris do século XIX e XX, que eram menores tanto em tamanho quanto em sofisticação (FREEMAN,2019, posição 134). Além disso, sua experiência como professor do Queen’s College (um dos principais centros de história operária dos EUA) e um representante da Nova História Social do Trabalho1 , com vasta produção em história do operariado estadunidense e publicações a respeito do capitalismo norte-americano em perspectiva global, pode ser percebida no enfoque fornecido pelo autor, que se difere dos trabalhos acadêmicos que analisam as fábricas sob o viés arquitetônico (DARLEY, 2003), e das pesquisas que as compreendem como uma componente secundária dentro do mundo do trabalho (LE ROUX, 1980). Freeman, por sua vez, busca apresentá-las como uma “instituição em si mesma”, dotada de historicidade própria, com seus aspectos políticos, culturais, econômicos e estéticos sendo compreendidos como elementos que variaram no tempo e no espaço (FREEMAN, 2019, posição 142).

Para cumprir sua promessa de apreender de que forma o mundo industrial deixou sua marca na sociedade para além da mera esfera produtiva, sendo responsável por muitas de nossas dinâmicas sociais contemporâneas, ele se vale de uma imensa variedade de fontes primárias e secundárias, empregando desde materiais escritos, como obras literárias, jornais, revistas e relatos de observadores da época, até documentos imagéticos (que estão reproduzidos no livro), como fotos e desenhos.

O livro é dividido em sete capítulos (fora introdução e conclusão). Em cada um deles, o autor nos apresenta várias fábricas mastodônticas em diferentes contextos. O primeiro capítulo aborda os primórdios do mundo fabril, nos conduzindo pela revolução industrial britânica no século XVIII. Nele, Freeman nos apresenta o cotonifício Derby Silk Mill de Thomas Lombe, considerado pela literatura como a primeira fábrica da Inglaterra. A partir dessa e de outras fábricas inspiradas por ela, Freeman mapeia toda construção desse novo universo, abordando o desenvolvimento dos primeiros teares mecânicos, das máquinas a vapor, dos novos métodos de organização do trabalho __ que apelavam para a centralização, fiscalização (muitas vezes com o uso de castigos físicos) e coordenação rígidas dos trabalhadores, vários deles mulheres e crianças __ e a repercussão que estas transformações tiveram na sociedade da época, explorando tanto o ar de surpresa e de modernidade esboçado pelos contemporâneos do processo, quanto seu assombro pela miséria e sofrimento social dos trabalhadores que esse novo mundo centrado na organização industrial trazia.

Cabe ainda ressaltar neste capítulo um questionamento que será abordado ao longo de todo o livro: por que alguns complexos fabris se tornaram tão grandes? Muito se discutiu na academia sobre isso e as explicações foram das mais variadas. Uns argumentaram que o desenvolvimento tecnológico e a organização científica do trabalho aumentavam a produtividade e criavam máquinas cada vez maiores, conduzindo necessariamente a uma área construída maior. Outros defenderam que o tamanho estava relacionado às facilidades na coordenação dos trabalhadores e no controle da produção por parte dos patrões. Embora Freeman não descarte nenhuma das perspectivas acima, ele lança outra hipótese que será discutida ao longo do livro: o tamanho exagerado de algumas unidades produtivas simbolizava o nascimento de uma nova época gloriosa e um monumento à grandeza que a humanidade poderia atingir.

Nos três capítulos seguintes, Freeman cruza o Atlântico e aporta nos EUA. Nos é apresentado (no capítulo 2) o desenvolvimento industrial estadunidense. Primeiramente com os cotonifícios da região de Lowell, Massachusetts, onde o desenvolvimento industrial da região incorpora as narrativas do excepcionalismo americano2, em que se buscou forjar uma revolução industrial diferente da barbárie europeia, tentando construir na América uma comunidade próspera que se ancorasse na abundância material prometida pela produção fabril. A tentativa de construção de um futuro glorioso por meio das fábricas também se refletiu no gosto pela tecnologia que o país adquiriu (capítulo 3). Exposições e feiras de inovação mecânica, expondo o maquinário fabril e os bens oriundos das fábricas, materializaram esta atração que o mundo industrial exercia nas pessoas, pois encarnavam o “progresso”, a fartura e a “civilização”. Mas é apenas com o Fordismo na indústria automobilística (capítulo 4) que, de acordo com Freeman, o gigantismo fabril encontrou seu ápice, pelo menos em solo americano. A padronização da produção levada a cabo pela esteira de montagem Fordista elevou absurdamente a produtividade fabril, lançando as fábricas para outros patamares em termos de tamanho. As duas principais plantas da Ford, High Land Park e River Rouge, empregaram cerca de 53.300 e 102.811 trabalhadores, respectivamente, em seus melhores dias. Contudo, nem tudo são flores neste EUA industrial. Os embates trabalhistas, como muito bem destaca o autor, são tão presentes e fundamentais neste novo universo quanto a fumaça da chaminé das fábricas, pois o cotidiano fabril também possibilitou aos trabalhadores forjar elos de solidariedade e consciência de classe, capazes de resistir e combater a autocracia industrial, que reprimiu sempre com violência o trabalho organizado. A sensação era de que a industrialização trouxera, além do “progresso”, o espírito da luta de classes para os EUA.

Os capítulos 5, 6 e 7 saem do mundo anglófono e analisam o gigantismo fabril em regiões do mundo com ideologias políticas bem distintas daquelas expressas por EUA e Inglaterra. Ao pensar a industrialização de locais como a União Soviética, Polônia e China, Freeman mostra como a grande fábrica foi capaz de atingir até mesmo as reflexões daqueles que se opunham ao capitalismo industrial. Esses rejeitavam a sociedade de mercado, todavia, compartilhavam da visão de que a indústria simbolizava o avanço, o futuro e o progresso, e que, portanto, deveria se tornar a norma dali por diante. Aos oponentes do capital, cabia a função de pensar uma modernidade alternativa àquela que estava se impondo, mas, que ainda assim comportasse o universo fabril em seu horizonte.

Não à toa, a União Soviética (capítulo 5) viu na grande fábrica um caminho para a superação do “atraso russo” e um passaporte em direção a uma modernidade comunista. A fim de reproduzir esse modelo, os russos recorreram aos Estados Unidos e a figuras como Henry Ford e seu arquiteto Albert Khan para desenvolver um plano de industrialização centralizador ancorado em fábricas gigantes, capazes de urbanizar e modernizar a economia soviética. Contudo, ao contrário do Velho Continente e dos EUA onde a função das fábricas era, quase que exclusivamente, a produção de bens, na Rússia, as unidades produtivas cumpriam também um importante papel cultural e educacional que almejava formar não só operários qualificados, mas também cidadãos socialistas capazes de erguer, solidificar e aprofundar o comunismo. Pela primeira vez na história, o gigantismo fabril ultrapassava a mera dimensão econômica e se tornava um pilar cultural e ideológico para construção de um mundo alternativo ao capitalismo ocidental.

O esfacelamento da grande fábrica (pelo menos no ocidente) e o seu enraizamento na União Soviética são os temas do capítulo 6. Na América, o ápice do gigantismo industrial também representou o prenúncio de sua queda. O Pós-45, momento em que os trabalhadores, após décadas de luta sindical, conseguiram um lugar central no pacto social estadunidense, foi o mesmo período em que empresas começaram a pensar estratégias para reorganizar a produção em escalas menores. Descentralização da produção, realocação para áreas sem tradição sindical e downsizing foram as táticas utilizadas para desmobilizar o operariado e atacar seus sindicatos. O trabalhador fabril, uma figura que havia orbitado o cerne dos debates políticos, econômicos e culturais do passado, estava sendo esquecido, relembrado apenas quando a desindustrialização escancarava sua miséria. Em contrapartida, na União Soviética e em outras partes do mundo, o culto à fábrica descomunal e à modernidade que esta representava, ainda fazia parte do horizonte de expectativa. Ao contrário dos capitalistas norte-americanos que perceberam que a classe trabalhadora do gigantismo fabril podia desafiá-los e atrapalhar seus lucros, os intendentes soviéticos não se opunham às formas de articulação de seus operários. Isto mais tarde se tornou um problema, pelo menos para o Estado russo, já que a formação educacional e profissional que os trabalhadores recebiam dentro das instituições fabris deu origem a movimentos críticos da linha comunista soviética. Como Freeman destaca, o caso do movimento polonês Solidariedade reflete justamente isso.

O assunto da parte final da obra confirma, mais do que qualquer outro capítulo, a tese de Freeman de que as fábricas foram e ainda são responsáveis pela construção do mundo moderno. Ele versa sobre o ressurgimento e a persistência do gigantismo fabril na atualidade, simbolizado nas enormes fábricas asiáticas, tomando como exemplo o caso da gigante de tecnologia Foxconn. Os chineses, assim como os soviéticos, também viram nas fábricas gigantes uma instituição que deveria se preocupar com a cultura e a educação da comunidade, mesmo que isso significasse a redução de sua eficiência econômica. Contudo, as tentativas de pôr esse modelo em prática na China pós-revolução não foram bem sucedidas, e, na década de 80, membros do Partido Comunista chinês (inspirados por figuras neoliberais como Thatcher e Reagan) se voltaram para um ideal de modernidade cada vez mais capitalista, tentando incorporar reformas de mercado a sua economia socialista (FREEMAN, 2019, posição 5107).

Mas, se no ocidente a ortodoxia neoliberal causou a eliminação da grande fábrica e levou à dispersão, descentralização, automação e downsizing, por que na Ásia o gigantismo industrial se manteve mesmo com reformas pró mercado? A explicação, para Freeman, reside no crescimento do varejo e da terceirização. No passado, as grandes corporações concentravam grande parte dos estágios da cadeia de fabricação e de distribuição de seus produtos em plantas fabris e em lojas revendedoras a elas subordinadas. Entretanto, a crise econômica, a ampliação da concorrência internacional, o aumento de pressões do capital financeiro e do trabalho organizado forçaram as companhias a reverem suas formas de produzir e a cortarem gastos. Os incrementos tecnológicos ajudaram nesta tarefa, auxiliando na dispersão da produção por meio da subcontratação de empresas terceirizadas, e o crescimento de grandes varejistas, como o Walmart, Target e Amazon, eliminou a necessidade das empresas de arcarem com os custos de distribuição de seus bens. Nesse modelo, grandes companhias como Apple, Disney e Nike se preocupam unicamente em gerir sua marca, o design de seus produtos e em contratar empresas terceirizadas que possam se encarregar de fabricá-los no menor preço e tempo possíveis. Dessa forma, o gigantismo industrial ressurge em locais com mão de obra barata, abundante e com baixo nível de sindicalização, como a China, para atender justamente a estas demandas. A Foxconn é capaz de responder a diversos pedidos de diferentes marcas ao mesmo tempo com seus mais de 300.000 trabalhadores, contudo, diferentemente do passado, dificilmente será exaltada por tal feito, pois a exploração e precarização do trabalho causados pela Foxconn prejudicariam não somente ela, mas também todos os seus clientes internacionais.

As fábricas ocuparam um papel crucial ao longo dos séculos XIX, XX e XXI, celebradas no passado __ tanto no capitalismo quanto no comunismo __ como a encarnação da modernidade, e escondidas no presente por não simbolizarem mais um futuro melhor. Freeman reconstrói com maestria todos os altos e baixos do mundo fabril, enfatizando o fazer humano multifacetado por detrás desse. É um excelente guia introdutório para diversos debates já consolidados sobre classe trabalhadora e revolução industrial, além de contribuir também para discussões em campos mais recentes, como de desindustrialização3, por demonstrar, simultaneamente, como este mundo __ que está morrendo no ocidente __ foi forjado e forjou muitas das estruturas (materiais e ideológicas) contemporâneas. Embora os casos estudados forneçam uma boa descrição do gigantismo industrial e de sua relação com a modernidade, é uma pena que boa parte do sul global fique de fora da obra. Seria riquíssimo para o livro analisar casos de fábricas descomunais na América Latina, por exemplo, local que possui uma relação delicada com projetos nacionais de industrialização e com a própria noção de modernidade. O mesmo pode ser dito para as questões ligadas ao meio ambiente, que raramente são endereçadas no livro, pois quase nada é dito sobre o impacto do mundo fabril na natureza e como esse lidou com críticas ambientais.

Notas

1 A Nova História Social do Trabalho (New Labour History) foi um dos principais campos da historiografia americana no século XX. Começou a ser construída nos anos 60 pelos historiadores David Montgomery e Herbert Gutman, de quem Freeman é um dos herdeiros intelectuais. Ambos os autores, inspirados pelo britânico Edward Thompson, buscaram superar o campo da História do Trabalho (Labour History) tradicional, escrita, em sua maioria, por economistas que pensavam a história dos trabalhadores estadunidenses tendo o conflito de classe entre sindicatos e empresários como eixo central. Ao se distanciar desta perspectiva a Nova História do Trabalho procurou olhar para um contexto mais amplo, indo além de uma história dos sindicatos de seus conflitos. Observou as referências intelectuais pela qual os trabalhadores norte-americanos davam sentido a suas próprias experiências e formavam suas sociabilidades, seja no cotidiano fabril, seja em momentos de maior tensão como greves e passeatas. Além de pensar a classe trabalhadora a partir de outras perspectivas, tais como gênero e raça (NORRELL,1990, p. 230-231).

2 O excepcionalismo americano é uma crença, muito disseminada na cultura estadunidense, de que o nascimento e o desenvolvimento histórico do país teriam sido positivamente diferenciados quando comparado com outras nações e regiões do globo. O fato de os Estados Unidos não possuírem estruturas do antigo regime europeu (tais como monarquia e servidão) em seu território e terem se originado, enquanto Estado Nação, a partir da primeira revolução liberal “moderna” do mundo, fariam deste uma sociedade única no planeta destinada a realizar grandes feitos.

3 Os estudos sobre desindustrialização (Deindustrialization Studies) datam de meados dos anos 70. Eles almejam explicar porque várias regiões altamente industrializadas (sobretudo regiões do norte global) sofreram com fechamento de fábricas, ou com a realocação de unidades produtivas para países do sul global __ especialmente nações asiáticas __ nos últimos 40 anos. Num primeiro momento, muitas das análises se deram a partir de um viés majoritariamente econômico, destacando a mão de obra barata e pouco organizada sindicalmente das regiões do terceiro mundo como as principais causas do fenômeno. Contudo, com amadurecimento do campo, o leque de perspectivas analíticas se ampliou, e atualmente muitos trabalhos abordam não somente os aspectos econômicos que motivaram estas mudanças como também ressaltam os impactos sociais, políticos e culturais que a desindustrialização causa nas comunidades que se organizavam fortemente em torno do trabalho fabril.

Referências

  1. A. Le Roux, The Size of Firms in the Cotton Industry: Manchester 1815-1840, The Economic History Review, nova série, v. 33, n. 1, fev. 1980.

DARLEY, Gillian. Factory. Londres: Reaktion, 2003.

FREEMAN, Joshua. Mastodontes: a história da fábrica e a construção do mundo moderno. São Paulo: Todavia. 2019. Edição Kindle.

NORRELL, R. J. After Thirty Years of “new” Labour History, there is still no Socialism in Reagan Country. The Historical Journal, v. 33, n. 1, 227–238. 1990.


Resenhista

Vinicius Patrocínio Pereira Costa – Bacharelado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro – RJ, mestrando em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro – RJ. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0003-0456-9352


Referências desta Resenha

FREEMAN, Joshua. Mastodontes: a história da fábrica e a construção do mundo moderno. São Paulo: Todavia, 2019. Edição Kindle. Resenha de: COSTA, Vinicius Patrocínio Pereira. A Fábrica como instituição da Modernidade. Faces da História. Assis, v.8, n.1, p. 423 -429, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

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