Memória ferroviária e cultura do trabalho: Balanços teóricos e metodológicos de registros de bens ferroviários numa perspectiva multidisciplinar | Eduardo Romero Oliveira

A obra aqui analisada é fruto de um trabalho coletivo na qual encontramos uma pluralidade de temas, profissionais, enquadramentos metodológicos e pesquisas concluídas e em curso. Seu organizador é Doutor em Filosofia pela USP (2003). Atualmente é Professor Assistente da Universidade Estadual Júlio Mesquita Filho, onde nos últimos anos tem se dedicado ao estudo do patrimônio, da história e da cultura dos transportes, especialmente do ferroviário. Vale ressaltar de antemão que esse é um livro multidisciplinar, especialmente pelas filiações de seus colaboradores; bem como um trabalho genuinamente interdisciplinar pelos diversos enquadramentos adotados ao longo de suas exposições.

Como salientado pelo Dr. José Manuel Lopes Cordeiro, autor do prefácio, esse empreendimento é o resultado da segunda edição do projeto PMF (Projeto Memória Ferroviária) cuja primeira obra foi publicada em 2017 (Balanço 2012-2015). O novo livro reúne resultados referentes ao triênio 2017-2019, beneficiado pelo apoio da FAPESP, CAPES e CNPq. Ainda de acordo com o investigador “[…] estamos perante um livro que amplia substancialmente a produção científica e, consequentemente, o conhecimento sobre os sistemas de transporte ferroviário do Estado de São Paulo, nas suas múltiplas vertentes” (Oliveira 2019, 19). Na apresentação, intitulada Memória Ferroviária: Esforço de revisão crítica da memória histórica sobre ferrovia e seu valor patrimonial, o organizador da obra reafirma a importância do empreendimento e atesta a longevidade desse projeto iniciado oficialmente em 2009, mas que remonta suas primeiras atividades ao ano de 2007.

Na primeira parte encontramos um total de cinco capítulos. No primeiro deles vemos a gênese e o ocaso da implantação do sistema ferroviário paulista entre os anos de 1835 a 1970, escrito pelo geógrafo e historiador Domingos Cuéllar, construído a partir de uma análise comparada com o exemplo espanhol, onde também ocorreu uma substituição dos investimentos privados em detrimento dos investimentos privados do Estado (sistema de concessões, financiamentos públicos, garantias de juros e subvenções para construção, manutenção e gestão das linhas). No segundo capítulo elaborado pelos historiadores Eduardo Romero de Oliveira e Lucas Mariani Corrêa são examinadas as leituras e releituras da história das ferrovias e a consolidação desse tema como objeto de estudo nos cursos de pós-graduação entre os anos de 1972 e 2017, onde foram arrolados 340 trabalhos, sendo 46,47% oriundos do campo da História e tendo cerca de 75,58% sido publicados entre 2001-2017, atestando assim o aumento do interesse da temática nos últimos anos e a crescente oferta nas vagas de pós-graduação (Oliveira 2019, 88). Outro dado constatado foi a proeminência da região Sudeste nessa produção, concentrando mais de 65% das investigações (Oliveira 2019, 93). Este capítulo caminha entre a análise quantitativa e a interpretação historiográfica, almejando apreender a história do “transporte ferroviário” enquanto objeto de análise.

No terceiro capítulo é investigado a memória imagética, especialmente a partir das fotografias produzidas durante o século XIX, cujo autor é o próprio organizador da coletânea. São analisados as técnicas empregadas, os materiais utilizados e os estágios das construções das vias em um contexto internacional, tanto americano (EUA e Brasil) quanto europeu, com atenção especial ao caso paulista. Ali também se encontram reproduzidas uma série de imagens que são interpretadas à luz das novas diretrizes metodológicas do campo da História, a partir das diretrizes da História do Trabalho.

O quarto capítulo, criado pelo organizador da obra, pelo linguista Ivanir Delvizio e pela arquiteta Jéssica Suellen Lattanzi, por sua vez, discute a definição dos patrimônios culturais a partir das cartas patrimoniais, por meio de um estudo da evolução dos conceitos. No primeiro momento os autores propõem uma revisão conceitual da ideia de patrimônio cultural com base na Carta de Atenas (1931; 1933) – primeiro documentando do gênero –, em seguida examinam os parâmetros metodológicos para as definições dos patrimônios culturais, e por fim, investigam as “traduções” e “circulações” dos termos em língua portuguesa, inglesa e espanhola, atentos as suas similitudes, discrepâncias e adaptações. Concluíram que as cartas patrimoniais são importantes documentos para o planejamento e a criação de medidas que visam conservar, restaurar e proteger os patrimônios locais, que são, na realidade, patrimônio cultural da humanidade, ou seja, universais (Oliveira 2019, 168). Finalmente o quinto capítulo examina os princípios de avaliação para o tombamento de edifícios do patrimônio ferroviário paulista e os métodos para reforma, produzido pelo arquiteto Samir Hernandes Gomez, a fim de propor uma metodologia que possa ser utilizada futuramente nos processos de avaliação pós-ocupação dos edifícios, conduzindo os trabalhos dos profissionais envolvidos com planejamento/programação, elaboração de projetos e revitalizações. Sua principal virtude é construir um modelo metodológico que logra abranger dimensões históricas, arqueológicas, urbanísticas, arquitetônica, antropológica e turística para o processo de preservação e conservação dos sítios.

Na segunda parte da obra vemos melhor detalhadas as ações de pesquisa voltadas à identificação, classificação e intervenção dos sítios ligados à história das ferrovias brasileiras. No sexto capítulo, escrito pelo arqueólogo Juan Manuel Sanchiz, a partir da experiência particular do autor entre os 2013-2017, vemos detalhados os procedimentos metodológicos adotados durante a etapa de registro dos sítios arqueológicos ligados à industrialização, especialmente com relação aos vestígios associados às ferrovias. No primeiro momento o autor apresenta e problematiza as etapas de prospecção e construção dos inventários (registros descritivos e levantamentos fotográficos), além dos arrolamentos bibliográficos e das fontes documentais, análises parientais (dimensionais) e entrevistas. Como discutido pelo autor, seu objetivo não é construir um modelo, entretanto, demonstrar a partir de sua experiência o valor da pesquisa arqueológica, ao construir informações que salvaguardam a memória e auxiliam nas análises e interpretações históricas, na reabilitação dos sítios e na reativação dos itens registrados (Oliveira 2019, 272). No sétimo capítulo a discussão gira em torno do método de Abordagem de Valorização do Patrimônio (AVP) relacionados com os bens industriais ferroviários. Para além dos bens materiais, esse estudo, proposto pelo organizador da obra com o auxílio de Priscila Kamilynn dos Santos e Rafaela Silva, ambas arquitetas e turismólogas, investiga os elementos simbólicos que caracterizam o valor cultural de tais patrimônios. Dessa forma, o estudo tenta demonstrar que para além dos valores estéticos, artísticos e arquitetônicos, existe uma dimensão política e social que orienta a identificação, preservação e conservação dos sítios. São apresentados os procedimentos metodológicos que orientam a definição das AVP’s e suas aplicações no tratamento dos patrimônios industriais ferroviários, mostrando-se como uma importante ferramenta no processo de preservação (Oliveira 2019, 303).

No oitavo capítulo, elaborado pela arquiteta Maria Isabel Dourado, a pesquisadora constrói uma base metodológica, conceitual e operacional capaz de oferecer suporte teórico e técnico na identificação e tratamento dos sítios arquitetônicos ligados à paisagem industrial. Assim como o trabalho anterior, seu objetivo é abranger dimensões sociais, políticas e culturais no tombamento, restauração e revitalização dos sítios, ligados especialmente à esfera do trabalho. Como salientado pela autora, sua proposta leva em consideração elementos histórico-culturais e ambientais como constituintes essenciais na garantia da qualidade de vida dos cidadãos, sobretudo aqueles que vivem nos centros urbanos. Sendo assim, há aqui uma justa valorização da arte, da memória e da paisagem como ferramentas de promoção da cidadania.

O nono capítulo, por sua vez, elaborado conjuntamente pelas arquitetas e urbanistas Maria Cristina Schicchi, Larissa Pereira, Luiza Ribeiro e Ana Laura Evangelista, trata das disputas de interesses entre os diversos setores (econômico, político, cultural e social) para a promoção, guarda, manutenção e gestão do patrimônio cultural e industrial. Dessa forma, a expansão urbanística e a ideia de valorização econômica dos espaços e desvalorização/obsolescência dos conjuntos ferroviários entrariam em confronto direto com os interesses em preservar e conservar o patrimônio industrial e consequentemente cultural. Sendo assim, o estudo abarcar áreas periféricas e que outrora serviam como polos irradiadores de trabalhadores e produtos. Enfatizando a interdependência do escoamento dos produtos e do transporte dos jornaleiros das malhas ferroviárias, tendo como exemplo o caso da Usina Ester e da Estrada de Ferro Funilense, na região metropolitana de Campinas. Outra área geográfica examinada é a região sul de Minas Gerais, porém aqui, o estudo pauta-se na interação entre os núcleos urbanos, as serras e os cursos d’águas. Além disso o exame ainda inclui o conjunto patrimonial ferroviário da Companhia Paulista (Louveira, Vinhedo e Valinhos). Ainda com relação a Companhia Paulista, atenção especial é dada às transformações socioespaciais provocadas pela instalação e ocaso na localidade de Jundiaí. Aqui vemos o estudo da ocupação, exploração e transformação ambiental a partir do advento da estrada de ferro, onde a mesma foi vital para a modificação, valorização e precarização dos espaços (Oliveira 2019, 362-364).

Por fim, no décimo capítulo, composto pelo arquiteto e urbanista Ewerton de Moraes e pelo organizador da coletânea, se discute o potencial que o patrimônio ferroviário desempenha para a economia do Estado de São Paulo e suas implicações com a formação identitária da população paulista. Ancorado a esse objetivo, os autores analisam, a partir do exemplo da cidade de Jundiaí – uma das primeiras cidades a receber o título de MIT (Município de Interesse Turístico) – seu potencial, tendo ali uma das frotas e malhas ferroviárias mais bem conservadas do Estado, sem, entretanto, terem sido levados em consideração esses fatores na formulação no seu Plano Diretório de Turismo (PDT) (Oliveira 2019, 368). Outros municípios como Araçatuba, Botucatu, Cachoeira Paulista, Cruzeiro, Cubatão, Sumaré e Vinhedo também fazem parte do estudo. Ao todo, no Estado de São Paulo, 22 dos municípios candidatos ao título de MIT têm bensferroviáriostombados, porém, um dos aspectos que mais chama atenção aos pesquisadores é a “irrelevância” desses patrimônios nas escolhas, mesmo esse fazendo parte dos itens inventariados (Oliveira 2019, 374). Uma das maiores riquezas desse estudo é demonstrar o papel atrativo que o patrimônio ferroviário pode desempenhar na formação da identidade do povo paulista e nas arrecadações de fundos dos municípios. Outro ponto abordado é a necessidade de reformulação dos parâmetros de escolhas do MIT, uma vez que, pelas novas disposições, o patrimônio ferroviário não é dignamente contemplado, quando não desvalorizado como fator relevante (Oliveira 2019, 391-393). Trazendo essa discussão para suas dimensões sociais e culturais, Willian Ricardo de Castro e Leonel Brizolla Monastirsky (2013) argumentam que a preservação do patrimônio ferroviário tem a função de representar a memória e a identidade de uma sociedade. Dessa forma, mesmo que as políticas de preservação/conservação não sejam neutras ou estejam movidas por interesses ideológicos e econômicos; dos interesses da indústria cultural sobrepondo-se ao valor simbólico; e, da incoerência estatal em determinar os usos dos sítios; devemos ter em mente que um bem cultural deve, em sua essência, permanecer cultural, transcendendo os interesses puramente econômico e políticos. Como vimos, uma das maiores riquezas da obra aqui resenhada é promover essa aproximação entre interesses sociais e culturais.

O esforço em realizar uma fina contextualização histórica de todos os temas tratados, caracteriza a obra aqui resenhada como um proveitoso material de auxílio aos historiadores, sobretudos aqueles ligados à história das ferrovias, dos caminhos, das dinâmicas do trabalho e da circulação de pessoas, produtos e ideias.

Referências

CASTRO, W. R., e MONASTIRSKY, L. B. 2013. “O patrimônio cultural ferroviário no espaço urbano: reflexão sobre a preservação e os usos”. Anales del XIV Encuentro de Geógrafos de América Latina, Lima, 2013.

OLIVEIRA, Eduardo Romero, org. Memória ferroviária e cultura do trabalho: Balanços teóricos e metodológicos de registros de bens ferroviários numa perspectiva multidisciplinar. São Paulo: Cultura acadêmica, 2019.


Resenhista

Raick de Jesus Souza – Doutorando em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB; Mestre em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz – COC/FIOCRUZ. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0002-2987-2924


Referências desta Resenha

OLIVEIRA, Eduardo Romero (Org.). Memória ferroviária e cultura do trabalho: Balanços teóricos e metodológicos de registros de bens ferroviários numa perspectiva multidisciplinar. São Paulo: Cultura acadêmica, 2019. Resenha de: Souza, Raick de Jesus. Memória ferroviária em perspectiva multidisciplinar. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.26, n.2, p. 481-485, 2020. Acessar publicação original [DR]

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