Migrações Contemporâneas: Reflexões e práticas profissionais | José Sterza Justo e Mary Yoko Okamoto

Movimentos coletivos e deslocamentos individuais voluntários e forçados fazem parte da constituição da humanidade, entretanto, a intensificação do ir e vir no mundo atual tem se ampliado dado as condições sociais possibilitadas pela globalização e pelo avanço tecnológico dos meios de transporte e comunicação. Compreender essas dinâmicas, assim como os fluxos e refluxos, além das mobilidades geográficas e psicossociais, os trânsitos e as formações identitárias, são os objetivos centrais da obra Migrações contemporâneas: reflexões e práticas profissionais organizada pelos psicólogos José Justo e Mary Okamoto. O caráter interdisciplinar desse empreendimento, entretanto, justifica-se pela variedade de temas, enfoques, métodos e profissionais que fazem desta obra que veio à baila em 2019.

O primeiro capítulo, batizado Migrações, multiculturalismo e identidades: revisitando conceitos, produzido pelos psicólogos Marcelo Naputano e José Justo busca a partir de uma abordagem conceitual explicar as transformações e abrangências das concepções de cultura, fronteira e identidade.

O objetivo aqui é chamar atenção para a instrumentalização do conceito de “cultura”, vista esta última como um construto simbólico e não como um dado natural. Dessa forma, a noção de cultura, instrumentalizada a partir dos interesses econômicos e políticos passam a delimitar fronteiras, identidades e direitos, como, por exemplo, no caso europeu, onde as novas ondas migratórias desencadeiam uma série de problemas de diversas ordens socioculturais.

No segundo capítulo, denominado Migrantes em Roraima (Brasil): a massificação dos termos acolher e acolhimento, escrito pelos antropólogos José Carlos Franco de Lima e Gilmara Fernandes, analisa a intensificação da vinda de haitianos, cubanos e venezuelanos para a região Norte do país. Os autores buscam compreender, com relação ao aumento da entrada de migrantes, sobretudo venezuelanos na segunda década do século XXI, as ações empreendidas em âmbito municipal (Boa Vista), estadual (Roraima), federal (Universidade Federal de Roraima e Exército do Brasil), da sociedade civil (instituições religiosas e individualmente pontuais) e internacional (Organização das Nações Unidas e organizações não-governamentais) para o acolhimento, proteção e inserção dessas populações no sistema laboral. Um dos temas que mais chama atenção é a incapacidade do Estado brasileiro em oferecer um tratamento justo e digno, o que acaba por aumentar os problemas sociais, especialmente a violência urbana, a situação de rua e a exploração da mão-de-obra.

O terceiro capítulo, chamado “No me parecia bien…” Cuidados, relaciones familiares y de género a la luz del relato de un inmigrado boliviano desempleado, composto pela psicóloga Laura Cristina Yufra e pelo sociólogo Enrique Santamaría, discute a partir da análise de um caso específico as redefinições dos supostos papeis de gênero no âmbito da família emigrada para Barcelona.

Dessa forma, intenta compreender as questões de gênero, de inserção pública e as dinâmicas familiares no contexto da imigração de latino-americanos para à Europa, sobretudo no contexto pós-crise econômica de 2008. O quarto capítulo, titulado Olutchindo: articulações subjetivas no Sudoeste angolano, elaborado pelo psicólogo Felizardo Tchiengo Bartolomeu Costa examina a disseminação da(s) cultura(s) banta(s) pela África Equatorial, especialmente pelo Sudoeste angolano, tendo em vista os diversos conflitos de interesse, as especificidades dos grupos, suas dinâmicas internas, suas interações com os diversos outros grupos étnicos e as simbologias do processo migratório para os povos bantus.

Como salienta o estudioso, diferente da concepção de transumância europeia (pastoreio), o olucthindo é uma dinâmica não apenas da esfera produtiva, fazendo parte de toda a “economia” da vida dos povos bantus, em outras palavras, seria uma articulação complexa e multifacetada entre cultura, economia, espiritualidade e religiosidade.

O quinto capítulo, designado Sociedade e psiquismo na clínica do migrante: a hipótese do “mito do migrante exitoso” como organizador sociocultural, criado pelos psicólogos María Liliana Inés Emparan Martins Pereira e Pablo Castanho, discute as implicações individuais e coletivas, subjetivas e contextuais, nos processos de deslocamentos, visto este último a partir das três etapas: escolha do destino e decisão de abandonar seu ponto de origem; a experiência da viagem, da fuga ou mesmo do transporte forçado; e por fim, o estabelecimento no destino “final”.

De forma transversal, os autores problematizam a hipótese de “mito do migrante exitoso”, ou seja, uma construção coletiva que se dá para sujeitos singulares que parte, como para a sua família ou grupo que o vê partir, ou mesmo para a sociedade que o vê chegar. A ideia de sucesso, entretanto, pode mascarar, quando não distorcer, a real situação de desamparado, inadequação e exclusão, pelas quais estão submetidos esses migrantes em seus locais de destino.

O sexto capítulo, nomeado Projeto Kaeru: relato sobre a experiência de 10 anos no atendimento às crianças retornadas do Japão, elaborado pela psicóloga Kyoko Yanagida Nakagawa, examina a experiência de dez anos de existência do projeto Kaeru (palavra que a depender do ideograma japonês significa “voltar”, “transformar” ou “sapo”), responsável pelo atendimento infanto-juvenil dos brasileiros retornados, duplos cidadãos ou japoneses filhos de brasileiros. A migração brasileira para o Japão em busca de trabalho, denominada dekassegui iniciou a partir da década de 1980 e intensificou-se a partir de 1990, tendo chegado em 2007 a marcas expressivas. Todavia, a crise econômica global de 2008, mesmo ano do centenário da imigração dos japoneses para o Brasil, obrigou muitas famílias brasileiras a retornarem do Japão, o que intensificou os problemas de adaptação das crianças regressadas, cerca de 20% da população em transito.

O objetivo do texto é fazer um balanço das ações empreendidas com essa população infanto-juvenil do ensino fundamental atendidas entre os anos de 2008-2018 pelo projeto na rede pública da cidade de São Paulo. Conclui-se que o projeto, de abrangência binacional, presta assim um importante serviço não apenas alunos, pais e professores, como orientação a gestores e membros de organizações não-governamentais, a fim de minimizar os impactos causados pela experiência da dekassegui.

O sétimo capítulo, intitulado Filhos de dekasseguis: os desafios dos imigrantes brasileiros no Japão feito pelas psicólogas Cizina Célia Fernandes Pereira Resstel e Mary Yoko Okamoto, investiga o sentido inverso da migração, iniciada com a vinda dos japoneses para o Brasil a partir de 1908, ou seja, a ida de brasileiros para o Japão em busca de trabalho. Observa-se, desde os anos finais da década de 1970, o processo de retorno de muitos japoneses vindos ao Brasil para seu país de origem, entretanto, é a partir dos anos de 1980 com o início da crise econômica e a instabilidade política causada pelo regime ditatorial que o Brasil entrará no rol internacional das nações exportadoras de mão-de-obra, tendo o Japão se mostrado como um destino.

O movimento conhecido como dekasséguis representa a migração em busca de trabalho (inicialmente formado pelos que ficou conhecido com 3ks “kitanai/sujo”, “kiken/perigoso” e “kitsui/pesado”, sendo incorporado posteriormente mais 2ks “kibishi/exigente” e “kirai/detestável”) não qualificado, sobretudo na indústria e na prestação de serviços. Se em fins de 1970 os regressos eram de japoneses, na década de 1980 foi a vez dos descendentes de primeira e segunda geração, porém, somente a partir da década de 90 o número de brasileiros cresceu, atingindo cifras exponenciais a partir dos anos 2000.

No caso brasileiro a nacionalidade é jus solis, ou seja, definida pelo local de nascimento, enquanto que no Japão a mesma é jus sanguinis, definida pela nacionalidade dos pais. O que pretende o estudo é examinar os dilemas encontrados pelos filhos desses migrantes para estabelecimento, inserção e adaptação no território e na cultura japonesa, tendo a língua e os costumes como principais entraves à completa integração, criando assim uma situação de “não pertencimento”.

De forma geral, os trabalhos aqui analisados apresentam uma pluralidade de temas, enquadramentos metodológicos e esforços individuais e coletivos para a compreensão das dinâmicas, dos inconvenientes e problemas relacionados com o processo de migração (saída, viagem e chegada). Em busca de similitudes, pudemos ver que em quase todos os capítulos houve um enorme esforço em compreender conceitos chaves, como multiculturalismo (Cap. 1), acolhimento (Cap. 2), imigração de retorno e imigração não comunitária (Cap. 3), Olutchindo (Cap. 4), migrante exitoso (Cap. 5) e dekasseguis (Cap. 6 e 7). De forma específica, cada trabalho apresentou uma estrutura particular e uma forma de ler e interpretar os mecanismos encontrados pelas pessoas, pelos grupos ou nações em enviar ou receber os povos, ideias e culturas em transito. Além da pluralidade de temas e enfoques, vemos ao longo dos estudos um intenso diálogo com autores clássicos, com campos de análise e ideias norteadoras.

Mesmo sendo um trabalho oriundo do campo da Psicologia, não apenas pela formação de seus organizadores, como também da maioria de seus colaboradores, sendo psicólogos(as) em formação, observamos o esforço em contextualizar os temas tratados, tendo como fio condutor a concepção de “cultura”. Ao longo dos estudos, percebemos o empenho coletivo não somente em utilizar a ideia de cultura como norteadora das sociedades, bem como problematizar a própria noção de cultura, vista esta última como algo complexo, fluído, multifacetado, heterogêneo e contraditório, mesmo no interior de uma determinada coletividade.

Ressaltamos assim o enorme valor desse empreendimento literário e o seu préstimo em auxiliar os estudos históricos na compreensão e interpretação das dinâmicas contemporâneas de migração, tendo em vista seu caráter interdisciplinar. Outro ponto importante é a transversalidade da concepção polissêmica de “cultura”, operacionalizada pelos autores, sendo ela extremamente pertinente aos estudos históricos.


Resenhista

Raick de Jesus Souza – Mestre em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ; Graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

JUSTO, José Sterza; OKAMOTO, Mary Yoko. (Orgs.). Migrações Contemporâneas: Reflexões e práticas profissionais. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2019. Resenha de: SOUZA, Raick de Jesus. Tempos Históricos. Marechal Cândido Rondon, v.25, n.1, p.520-525, 2021. Acessar publicação original [DR]

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