Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística | Gary Saul Morson

O livro Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística é situado como uma publicação sobre pensadores. É assim adjetivando Mikhail Bakhtin, como um pensador, que os autores explicitam o desenvolvimento das teses bakhtinianas.

Não estamos diante de um simples livro sobre conceitos extraídos de vasta obra. Além de exposição de teses e conceitos, apresenta-se uma biografia de Mikhail Bakhtin, relacionando essas teses a contextos históricos e às circunstâncias da vida de Bakhtin.

De imediato, questiona-se: o que compõe o pensamento bakhtiniano? É sabido que a autoria de muitos de seus escritos é de peculiar indefinição. Muitos só vieram a público vários anos após a sua produção. Livros do período de 1920 a 1924 – período de densa produção – só foram publicados na Rússia em 1986, como, por exemplo, Para uma filosofia do ato, ainda sem tradução no Brasil. Assim, compreender o que se denomina como pensamento bakhtiniano significa percorrer um caminho que envolve não apenas o indivíduo Bakhtin, mas um conjunto de intelectuais, cientistas e artistas que, especialmente, nas décadas de 1920 e 1930, dialogaram em diferentes espaços políticos, sociais e culturais.

A trajetória pessoal e intelectual de Mikhail Bakhtin foi atravessada pela prisão e pelo exílio, e também marcada pela sua opção em apoiar a Revolução Russa e pela marginalidade de seus estudos nos meios acadêmicos. Os autores, enfatizando a natureza universal da obra de Mikhail Bakhtin, optaram por expor essa obra em blocos temáticos. As questões selecionadas pelos autores assentam a obra bakhtiniana sob um pano de fundo de natureza multidisciplinar. Elegem o dialogismo, natureza da linguagem, como uma inovadora concepção de método dialético para se investigar os domínios, limites e interfaces da linguagem. Com comentários esclarecedores sobre os conceitos bakhtinianos, datando-os quando de sua primeira ocorrência, e expondo as reformulações que esses termos sofreram ao longo da produção, os autores revelam um Mikhail Bakhtin rigoroso nas suas postulações e críticas, instigante nos desdobramentos de sua obra, pioneira na sua crítica ao paradigma estruturalista vigente. Constrói-se um perfil de pensador e filósofo imbuído de uma postura singular de abordagem e tratamento teórico-metodológico sobre a linguagem, afirmando-a como trabalho e processo de interação. Essa dimensão é transdisciplinar em toda a obra, o que faculta, na constatação dos autores, entender os fundamentos da ética e da estética bakhtiniana.

Mikhail Bakhtin nasceu em 16 de novembro de 1895, em Oreal, ao sul de Moscou. Faleceu em 7 de março de 1975. Publicou apenas dois livros, enquanto vivo. Formou-se em Literatura Clássica e Filosofia na Universidade de Petrogrado, em 1918. Recluso, após ter sido preso e tendo essa pena transformada em exílio, devido a sua saúde precária, exerce diversas atividades externas ao meio acadêmico. Vivendo no ostracismo, é com surpresa que um grupo de estudantes, em 1950, descobre-o em Saransk. O contato com esses estudantes provoca a revisão de muitos de seus escritos, o que repercutiu na ampliação dos estudos de textos de autoria de Bakhtin e do Círculo. Ampliase a profusão das idéias do Círculo, dos próprios textos e livros de autoria designada a Bakhtin, divulgando-se sua concepção sobre a linguagem e a crítica à hegemonia do paradigma estruturalista.

Essa breve situacionalidade da vida e obra de Bakhtin revela a importância da publicação resenhada. O livro subdivide-se em três partes. A primeira, “Conceitos chaves e períodos”, apresenta a constituição do campo teórico e as condições e circunstancias histórico-sociais e culturais de produção dos escritos bakhtinianos. Essa parte subdivide-se em três capítulos. A segunda parte, tematizada de “Problemas de autoria”, revela a complexidade do conceito de autoria e sua apropriação por campos distintos de conhecimento, sendo subdividida, também, em três capítulos. Nessa parte, incursiona-se pelas palavras-chaves: metalingüística, polifonia, autoridade, discurso etc. Pode-se afirmar que é a parte mais pertinente à formulação de uma teoria do discurso, correndo-se o risco de redução didática que a afirmação da resenhista professa. A parte III, denominada “Teorias do romance”, recupera os indícios e vestígios do nascimento do romance como gênero, articulando-o com o difícil conceito de cronótopo. Inusitadamente, mesmo organizando-se no formato introdução/ partes/capítulos, o livro não apresenta uma conclusão, como poderia ser o usual. Após a terceira parte, expõem-se as notas, ricamente detalhadas.

O livro reflete a densidade da produção bakhtiniana. Define essa produção como fascinante, pioneira, densa. Os autores demonstram o trabalho de pesquisa acurada, tanto nos cenários biográficos, como na construção e reconstrução das idéias e formulações teórico-metodológicas criadas por Bakhtin. Fica exposta a dicotomia entre os dois modos de se conceber a realidade: um que a concebe como unidade – monologismo e acabamento – e outro que a considera como diversidade, dialogismo e interação verbal.

Os autores, com a subdivisão didática, intentam subsidiar o leitor para construir e encontrar (re) senhas que provoquem o entendimento da prosaística. Na página 30 informam que “Bakhtin empregava constantemente os termos não-finalizabilidade e diálogo; prosaística, contudo é neologismo nosso”. O livro verticaliza o pensamento bakhtiniano, refratando filosoficamente os conceitos-chaves de todo o percurso produtivo de Bakhtin. É uma leitura fulcral para se investigar e incursionar sobre a essencialidade da obra bakhtiniana. A divisão em três partes concebe liberdade ao leitor de não seguir uma ordem linear. Muitos dos conceitos são retomados, a exemplo de não-finalizabilidade e prosaística, para reforçar a compreensão de que, ao escrever, Bakhtin deslocava a palavra, conferindo-lhe neutralidade necessária para a instauração do processo de interação verbal.

Constata-se que o livro não remete apenas ao âmbito dos estudos filosóficos e literários. Os autores, com pertinência, estendem a obra e o pensamento bakhtiniano para outros campos de conhecimento, a saber, a psicologia, a história, a lingüística, a educação. Reafirmam a centralidade da incompletude e inacabamento da linguagem na obra de Bakhtin. A linguagem e a palavra são quase tudo na vida humana, referem-se os autores (p.100), citando-o.

Os autores situam Bakhtin e seus outros. Confrontam-no com Saussure, Sigmund Freud, Vigotsky e Volochinov etc. Amplia-se, com esse movimento de não-verdade, por meio de estratégias de confrontação, paralelismo e negação de idéias, a real dimensão e pertinência de conceitos inventados e recriados por Mikhail Bakhtin. Em alguns aspectos, infere-se que não se foge da negativa para se afirmar o pensamento bakhtiniano. Essa construção ensaística apresenta-se em todo o livro, exigindo-se o refluxo e retomadas de páginas dantes lidas. De todo modo a leitura flui, pela gama de novas informações que os autores apresentam. Situa-se Bakhtin como um humanista, paradoxalmente um religioso marxista; dispõe-se sobre sua vida ordinária e sua vida acadêmica. Constrói-se uma prosaística, lendo de “baixo para cima, por meio de formas de pensar artístico”. Há um Bakhtin interacionista, filosófico, crítico literário, lingüista e tantos múltiplos. Precisamente um humanista, extrato raro.

A obra resenhada desdobra-se para apresentar o específico do pensamento bakhtiniano. Como toda obra compõe-se de valores, sendo carregada dos contextos de produção e recepção de uma época. É inusitado indagar sobre a atualidade das teses bakhtinianas, e isso os autores fazem. A essa proposta os autores constatam no Hoje, com seus valores dominantes de exclusão e negação de alteridades, que, mais do que nunca, a obra se atualiza em conceitos e significados, desdobrados em matriz filosófica. Bakhtin, para os autores, não foi (é) mais um formalista russo. É um cientista multifacetado, sendo, na proposição do livro resenhado, necessário abdicar de rótulos, para se extrair a base teórica que sustenta a sua obra.

Os escritos de Bakhtin e seu Círculo têm merecido inúmeras traduções e proporcionado a elaboração de inúmeros ensaios e teses acadêmicas. O livro, mais uma produção nesse sentido, singulariza-se por pautar, pela primeira vez, as diversas fases da trajetória intelectual de Bakhtin. Mesmo permitindo a formulação e reformulação de inúmeros conceitos extraídos dos manuscritos bakhtinianos, alguns ainda ficam por merecer maior destaque, como por exemplo, o enunciado concreto. O mesmo não se pode afirmar em relação à prosaística – palavra título deste livro –, carnavalização, teorias do romance dentre outras.

O livro oferece uma idéia do conjunto do pensamento bakhtiniano, na sua unidade e diversidade, na aplicação de seus principais conceitos em campos diversos que se aplicam ao leque temático da Literatura, Lingüística, História, Antropologia, Psicologia, Comunicação etc. Sem dúvida, M. Bakhtin foi um dos maiores pensadores do século XX. Um intelectual que repensou a sua obra como uma unidade não-monológica, como inconclusa e incompleta, curvandose a dimensão dialética da linguagem como noção fundante para a construção de suas teses. A vitalidade do pensamento bakhtiniano se atualiza por sua originalidade e rigor teórico. Os autores de Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística produziram, assim, uma rica combinação de texto biográfico e texto acadêmico-científico.


Resenhista

Ester Maria de Figueiredo Souza – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MORSON, Gary Saul; EMERSON, Caryl. Mikhail Bakhtin: criação de uma prosaística. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Edusp, 2008. Resenha de: SOUZA, Ester Maria de Figueiredo. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 8, n. 1, p. 241-245, 2008. Acessar publicação original [DR]

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