Morfologia Histórica | LaborHistórico | 2020

Com o advento do paradigma estruturalista e, dentro dele (e a partir dele), embora com algumas exceções1 , a aceitação de uma leitura a-histórica do fenômeno linguístico (MARTÍNEZ, 1993 2 ; CARVALHO, 2008 3), o peso quantitativo e qualitativo dos estudos histórico-diacrônicos sobre a língua sofreu uma séria obnubilação (KABATEK, 2007 4; MATTOS E SIVA, 2008 5; ANDERSON, 2016 6; SIMÕES NETO; OLIVEIRA; SANTOS, 2019 7), só parcial e timidamente recuperado a partir das décadas de 70 e 80 do século passado, processo que continua em marcha até os dias atuais.

A morfologia histórica, como subdisciplina da linguística histórica, não foi poupada de tal descenso, tendo o seu cultivo quase que fenecido, na Ibero-România e em outras plagas (cf. PENA, 2009 8; cf. também BUENAFUENTES DE LA MATA, 2017 9). Não obstante, parece ela experimentar o reinício de uma discreta vitalidade nos últimos anos (BASILIO, 2009 10), talvez pela redescoberta (ou ênfase) de que a estruturação e o comportamento do componente morfológico (tal como os demais âmbitos do fenômeno linguístico) moldam-se em conformidade com as características enraizadas no fluxo temporal da língua (RIO-TORTO, 2014 11).

Parece indiscutível que tal revitalização encontra-se ligada ao surgimento e divulgação do marco teórico da sociolinguística variacional (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968 12), aos avanços nos estudos dialetológicos, aos paradigmas epistemológicos pautados no uso e em descrição de corpora empíricos temporalmente recuados (SOLEDADE, 2004 13; SANTOS, 2009 14; LOPES, 2013 15; VIARO, 2014 16) e, sem dúvida, à teoria da gramaticalização, desembocando (ainda que timidamente), nos estudos de natureza cognitivista, desenvolvidos, sobretudo, por pesquisadores brasileiros (CASTRO DA SILVA, 2010 17; SOLEDADE, 2013 18; SIMÕES NETO, 2016 19; LOPES, 2018 20) 21.

Aproveitando esse quadro multifacético, vê-se legitimidade em um intento de reunir estudos que se debrucem sobre a descrição e análise de fenômenos ou questões morfológicas mediante alguma leitura historicocêntrica, seja atinente ao fluxo temporal, seja fincada em recortes específicos de tal devir, pertencentes ao passado ou ao presente da língua.

Levando em consideração essas premissas, a revista LaborHistórico, revista quadrimestral on-line dos Programas de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (PPGLEV) e em Letras Neolatinas (PPGLEN) da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Rio de Janeiro, brinda a comunidade acadêmica, em seu sexto volume, com um dossiê temático sobre estudos de Morfologia Histórica no qual logra reunir nove artigos atinentes a essa seara, o que demonstra, per se, o interesse que a temática suscita em linguistas portugueses e brasileiros. O artigo que abre esta edição especial voltado para a morfologia em perspectiva histórica é Suffixal changes in middle portuguese22 (https://doi.org/10.24206/lh.v6i1.31282), de autoria de Graça Maria Rio-Torto, da Universidade de Coimbra. Nesse texto, a autora segue os passos da professora Charlotte Galves, no sentido de discutir novas perspectivas para a periodização da língua, e analisa a viabilidade de fenômenos relativos à derivação sufixal na história do português serem considerados relevantes para a delimitação do português médio.

Em seguida, Juliana Soledade (UFBA/UnB), no artigo Esquemas construcionais no português arcaico: X-ada1, X-ada2, X-ado, X-do, X-da (https://doi.org/10.24206/lh.v6i1.31294), retoma os dados da sua tese de doutorado de 2005, abordados em uma perspectiva descritivista-estruturalista, e reanalisa-os, seguindo os pressupostos teóricos da Morfologia Construcional e da Linguística Cognitiva. Assim, destaca-se a discussão que a autora faz acerca dos limites entre a polissemia e a homonímia nos esquemas formados por esses sufixos.

Carlos Alexandre Victório Gonçalves (UFRJ) e João Carlos Tavares da Silva (CEDERJ) são os autores do artigo Sobre o estatuto de -nte: da flexão em latim à derivação em português (https://doi.org/10.24206/lh.v6i1.30736), em que debatem sobre o estatuto morfológico do sufixo – nte, considerado desinência de particípio presente no latim, por isso flexão, e abordado como sufixo atuante na formação de palavras no português, nesse sentido derivação. A discussão dos autores considera aportes teóricos da Morfologia Construcional, da Linguística Funcional e da Morfologia Diacrônica.

No artigo Do latim [[X]-ūtus]A ao português -[[X]-udo]A: considerações sobre a trajetória de um esquema morfológico adjetival (https://doi.org/10.24206/lh.v6i1.28585), Natival Almeida Simões Neto (UEFS/UFBA), seguindo os pressupostos teóricos da Morfologia Construcional, analisa o desenvolvimento histórico do sufixo –udo, considerando três momentos da sua gênese: a forma latina, os usos no português arcaico e as realizações no português contemporâneo.

Em Desaparecimento de sufixos do português ao longo do tempo: -ádig- / -ádeg- e -idão (https://doi.org/10.24206/lh.v6i1.31298), Maria do Céu Caetano, da Universidade Nova de Lisboa, discute aspectos de produtividade na morfologia histórica, considerando a improdutividade dos sufixos –ádego/-ádigo e -idão na formação de palavras. A autora faz um levantamento de dados em textos do português arcaico e compara as suas análises com os ensinamentos das gramáticas históricas. Nesse sentido, a perspectiva desse artigo é fundamentalmente diacrônica.

Rui Abel Pereira, da Universidade de Coimbra, é o autor de “Não me aquenta, nem me arrefenta”: considerações a propósito da origem e evolução dos verbos terminados em -entar em português (https://doi.org/10.24206/lh.v6i1.29260), artigo em que discute o desenvolvimento histórico de verbos, como amolentar, apodrentar, avelhentar, endurentar, enfraquentar, adormentar, acrescentar ou afugentar, avaliando a produtividade dessas formações em variados estágios da língua portuguesa.

No artigo A combinação de prefixos no galego-português (https://doi.org/10.24206/lh.v6i1.31990), Mailson dos Santos Lopes (UFBA) descreve o fenômeno de combinação de prefixos no galegoportuguês dos séculos XIII a XVI, a partir de dados extraídos de um corpus textual. Alguns exemplos do fenômeno estudado são arrenegado (a(d)- + re-), desencaixotar (des- + en-) e reconfirmação (re- + com-). Nos termos do autor, tal proposta “vem pautada no lastro teórico-epistemológico das premissas fundamentais da morfologia histórica, numa visão epistemológica compromissada com o fato linguístico, com a valorização do dado empírico e com a consideração do evidente fator diacrônico da língua”.

Antonia Vieira dos Santos (UFBA/Capes-PRINT/Universidade de Coimbra), no artigo Uma abordagem ampliada da reduplicação no Vocabulario Portuguez, e latino de Bluteau (séc. XVIII) (https://doi.org/10.24206/lh.v6i1.31300), tem como objetivo descrever o fenômeno da reduplicação, observado a relevância desse processo de formação de palavras a partir de palavras registradas por um dos mais importantes lexicógrafos da história da língua portuguesa. A autora apresenta, ainda que brevemente, uma leitura das marcas de uso das quais Bluteau lança mão, ao analisar as formas reduplicadas.

O último artigo deste volume chama-se Perspectivas onomasiológica e semasiológica nos estudos de neologia (https://doi.org/10.24206/lh.v6i1.31296), de autoria de Bruno Oliveira Maroneze (UFGD) e João Henrique Lara Ganança (USP). Os autores apresentam uma proposta teórico-metodológica para os estudos da neologia, levando em consideração os conceitos de onomasiologia e semasiologia. Nessa proposta, avaliam a criação neológica tanto do percurso conceito-denominação quanto denominação-conceito.

Os nove artigos apresentados neste dossiê têm o compromisso com a revitalização da morfologia histórica, sobretudo da língua portuguesa, a partir da diversidade teórico-metológica, percebida tanto na pluralidade de aportes teóricos dos estudos da linguagem quanto na diversidade de fenômenos analisados

Notas

1 Como, e.g., estudos oriundos do Círculo Linguístico de Praga e de estruturalistas americanos, como Sapir. Cf. MATTOS E SILVA, R. V. Teoria(s) da mudança e a sua relação com a(s) história(s) da(s) língua(s). Linguística, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 39-53, 2008a.

2 MARTÍNEZ, A. El problema del cambio, desde la diacronía al sistemismo. Signa, Madrid, v. 2, p. 113-128, 1993.

3 CARVALHO, C. de. Para compreender Saussure: fundamentos e visão crítica. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

4 KABATEK, J. Las tradiciones discursivas entre conservación e innovación. Rivista di filologia e letterature ispaniche, v. 10, p. 331-345, 2007.

5 MATTOS E SILVA, R. V. Caminhos da linguística histórica: ouvir o inaudível. São Paulo: Parábola, 2008b.

6 ANDERSON, S. Synchronic vs. diachronic explanation and the nature of the language faculty. Annual Review of Linguistics, Palo Alto, v. 2, p. 11-31, 2016.

7 SIMÕES NETO, N. A., OLIVEIRA, M. S., SANTOS, A. V. A Linguística Histórica entre fluxos e refluxos: antigos e novos caminhos. Macabéa – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 8, n. 2, p. 1-10, 2019.

8 PENA, J. La morfología léxica ante los retos del siglo XXI. Cuadernos del Instituto Historia de la Lengua, San Millán de la Cogolla, n. 2, p. 11-18, 2009. [Entrevista concedida a Mar Campos Souto].

9 BUENAFUENTES DE LA MATA, C. Viejas y nuevas relaciones entre la diacronía y la formación de palavras en español. In: ENCUENTRO DE MORFÓLOGOS, 13., 2017. Málaga, Hand-out oferecido pela autora ao público assistente da Ponencia sobre formación de palabras y variación diacrónica, em 5 maio 2017. p. 1-8.

10 BASÍLIO, M. M. P. Morfologia: uma entrevista com Margarida Basílio. ReVEL, v. 7, n. 12, mar. 2009.

11 RIO-TORTO, G. M. Desafios em morfologia: história e (re)conhecimento. In: VIARO, M. E. (Org.). Morfologia histórica. São Paulo: Cortez, 2014. p. 31-57.

12 WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical foundations for a theory language change. In: LEHMAN, Winfred; MALKIEL, Yakov. (Ed.). Directions for historical linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968. p. 95-195.

13 SOLEDADE, J. Semântica morfolexical: contribuições para a descrição do paradigma sufixal do português arcaico. 2 v. 575 f. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) — Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2004.

14 SANTOS, A. V. dos. Compostos sintagmáticos nominais VN, NN, NA, AN e NPrepN no português arcaico (sécs. XIII-XV). 284 f. Tese (Doutorado em Letras e Linguística) — Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009.

15 LOPES, M. A prefixação na primeira fase do português arcaico: descrição e estudo semânticomorfolexical etimológico do paradigma prefixal da língua portuguesa nos séculos XII, XIII e XIV. 2 v. 943 f. Dissertação (Mestrado em Língua e Cultura) — Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.

16 VIARO, M. E. (Org.). Morfologia histórica. São Paulo: Cortez, 2014.

17 CASTRO DA SILVA, C. C. Das mudanças históricas na parassíntese à luz da linguística cognitiva. Cadernos de Letras da UFF, Niterói, n. 41, p. 55-70, 2010.

18 SOLEDADE, J. Experimentando esquemas: um olhar sobre a polissemia das formações [Xi-EIR-]Nj no português arcaico. Diadorim, Rio de Janeiro, n. especial, p. 83-111, 2013.

19 SIMÕES NETO, N. A. Um enfoque construcional sobre as formas X-eir-: da origem latina ao português arcaico. 655 p. Dissertação (Mestrado em Língua e Cultura) – Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia, Salvador. [2 tomos], 2016.

20 LOPES, M. Estudo histórico-comparativo da prefixação no galego português e no castelhano arcaicos (séculos XIII a XVI): aspectos morfolexicais, semânticos e etimológicos. 5 v. 2430 f. Tese (Doutorado em Língua e Cultura; Doutoramento em Linguística do Português) — Instituto de Letras/Faculdade de Letras, Universidade Federal da Bahia/Universidade de Coimbra, Salvador/Coimbra, 2018.

21 É patente, nesse aspecto, o vanguardismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

22 O texto é uma versão ampliada e em inglês de RIO-TORTO, Graça. Morfologia lexical no português médio: variação nos padrões de nominalização. In: LOBO, Tânia et al. (Orgs.). ROSAE: linguística histórica, história das línguas e outras histórias. Salvador: EDUFBA, 2012. p. 305-322.


Organizadores

Natival Simões Neto – UEFS/UFBA.

Mailson Lopes – UFBA.


Referências desta apresentação

SIMÕES NETO, Natival; LOPES, Mailson. Apresentação. LaborHistórico. Rio de Janeiro, v.6, n.1, p. 10-14, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

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