Muitas memórias, outras histórias | Déa Ribeiro Fenelon, Laura Antunes, Paulo R. de Almeida e Yara A. Khoury

A coletânea “Muitas memórias, outras histórias”, organizada pelos professores Déa Ribeiro Fenelon, Laura Antunes Maciel, Paulo Roberto de Almeida e Yara Aun Khoury, apresenta o resultado dos trabalhos desenvolvidos pelos pesquisadores que integram o PROCAD – Programa Nacional de Cooperação Acadêmica – composto por docentes de diferentes instituições de ensino superior [3]. Esse projeto, desenvolvido entre 2001 e 2004, promoveu um intercâmbio de experiências entre pesquisadores das ciências humanas visando ao fortalecimento de questões relacionadas à memória e à história.

No seu conjunto, o volume reúne ensaios que, mediante distintas interpretações, apresentam abordagens que enfocam a memória, compreendida como uma das mais importantes experiências do tempo, representadas pela capacidade humana de reter vínculos com o passado e de reconhecer neles múltiplas experiências do viver. A memória, no entendimento dos autores, faz “falar o indizível”, trazendo para o presente momentos históricos pretéritos e experiências silenciadas.

Apesar da diversidade das interpretações, pode-se reconhecer na organização do volume a emergência de alguns eixos temáticos que sopesam indicativos metodológicos e discussões conceituais que envolvem as relações da história e da memória com a cultura, o trabalho e o espaço citadino. Talvez, a mais destacada contribuição da coletânea deva-se justamente ao fato de que seus textos tendem a valorizar os sujeitos históricos e suas práticas. A obra, além de contemplar o necessário equacionamento do conceito de cultura, indica diferenciadas tendências teóricas e contribui para o aprofundamento da reflexão no âmbito da pesquisa histórica, sua natureza epistemológica e hermenêutica.

Entre os subsídios apresentados no volume, chamam especial atenção as análises que ressaltam a importância dos depoimentos orais como fontes para pesquisa histórica. Tal procedimento, do ponto de vista dos autores, permite recuperar as versões de sujeitos que “ao saírem” de cena levaram consigo marcas de determinados acontecimentos mantidos à margem de outras narrativas históricas. Formas sugestivas de abordar a problemática da memória levam o leitor a apreender os depoimentos orais como fontes documentais que contemplam diferentes visões acerca do passado, bem como episódios pouco abordados na historiografia. Neste percurso, o volume denota o intuito de valorizar os “sujeitos históricos” e o “compromisso de reavivar memórias de sujeitos excluídos”, destacando – se “os estudos dos modos de viver e das culturas de que nos falam as memórias” (FENELÓN, 2004, p. 6-7).

Resulta daí uma premissa instigante para pensarmos o trato das memórias, e, como bem o lembra Michel Pollack (1989, p. 2), o trabalho com a fonte oral viabiliza a retomada de memórias que foram ocultadas e oferece visibilidade às “memórias subterrâneas”, integrantes das culturas minoritárias que se opõem à memória oficial ou à memória nacional. Dessa forma, as reflexões presentes no livro se ocupam das culturas que remetem a diversas memórias e relatam distintos modos de viver e sentir as coisas do mundo. Dar voz e visibilidade a múltiplas perspectivas significa perceber diferentes experiências sociais. Significa, sobretudo, buscar a compreensão de momentos pretéritos que sobrevivem ainda no presente.

Outro grande mérito da coletânea é o de definir a memória como campo privilegiado de embates e disputas de diversos segmentos ou grupos sociais, entre os quais são produzidas “memórias hegemônicas” e “alternativas”. Nessa direção, são ressaltados os embates produzidos no âmbito dos espaços urbanos que incluem a cultura, o trabalho e o lazer. Nesse particular, vale salientar que, no capítulo “Os carnavais na cidade de São Paulo nos anos de 1938 a 1945”, Zélia Lopes da Silva destaca a insistência dos foliões carnavalescos em manter vivos os seus festejos, apesar das proibições e do intenso controle sobre as manifestações populares, na década de 1930. Nessa linha interpretativa, Sérgio Paulo Morais se ocupa da análise dos confrontos entre os defensores da modernização e os carroceiros que lutaram pelo direito de circular pelas ruas da cidade de Uberlândia entre 1970 e 1980. Esses trabalhadores, vistos como “estorvos” à organização “racional” da cidade, resistiram às mudanças no espaço físico urbano e, em especial, às transformações da área central da cidade. A imposição de novos padrões de convivência citadina afetou diretamente os carroceiros, pois suas atividades, do ponto de vista dos discursos dos dirigentes municipais, não se adequavam às imagens do desenvolvimento e modernização da década de setenta e as suas respectivas relações com a limpeza urbana e as normas da saúde e da higiene pública.

No âmbito da problematização do urbano, cabe destacar também “Memórias de um trauma: o massacre de GEB”, de Heloísa H. P. Cardoso, ensaio que analisa como os trabalhadores vivenciaram a construção de Brasília e de que forma suas narrativas viabilizaram a percepção de outros significados, não restritos à noção da “cidade de homens iguais”, propagada nas versões oficiais sobre a Capital Federal. Por seu turno, Rinaldo José Varuza, ao detalhar as transformações do espaço urbano e das atividades produtivas, no capítulo “Em Trabalhadores e memória: disputas, conquistas e perdas na cidade”, toma como referência as entrevistas de antigos moradores e/ou trabalhadores de Jundiaí (São Paulo), entre as décadas de 1940 e 1960. Neste percurso, Varuza trata dos vínculos estabelecidos entre o sujeito e o trabalho, explorando o ritmo, a disciplina e os valores atribuídos ao labor e à cidade. De toda forma, em ambos os estudos, a cidade parece reconstruída ou apresentada como lugar de tomada de consciência e de construção da identidade de seus habitantes. Portanto, como assevera Alessandro Portelli em “O momento da minha vida: funções do tempo na história oral”, a narrativa deve ser observada como um exercício em “evolução”, onde os narradores examinam a imagem do seu próprio passado enquanto caminham.

Não obstante, se é apropriado afirmar que o tempo configura um elemento que influencia as circunstâncias do relato, devemos reconhecer que os recursos da narrativa não se limitam ao acontecido, muito pelo contrário, eles permeiam distintas experiências vividas em outros tempos e lugares, engendrando outras interpretações do passado. Essa maneira de recompor vestígios do passado nos é sugerida em vários capítulos do referido volume, mas, particularmente, em “Produzindo notícias e histórias: algumas questões em torno da relação telégrafo e imprensa – 1880/1920 (Laura A. Maciel), em “Tempos e memórias. Caminhos para o sertanejo: quem conta histórias” (Regina I. V. Vasconcelos), em “Muitas memórias, ouras histórias: cultura e o sujeito na história” (Yara A. Koury), entre outros. Aliás, Khoury realça a contribuição dos depoimentos orais nas reflexões sobre as lutas cotidianas por direitos sociais e culturais. A compreensão dessas narrativas como experiências passadas e como práticas sociais evidencia, segundo a autora, a pluralidade de lugares que criam, modificam e ampliam as formas de identificação social. Nesses termos, o ato de narrar deve ser compreendido e explorado “em suas raízes sociais e históricas, em seus significados culturais e na dinâmica histórica em que se constituem e assumem sentidos” (2004, p. 137).

A salutar problematização dos processos de constituição da memória dominante que buscam instituir uma “única” e “verdadeira” memória acaba propondo a reivindicação e o direito a outras histórias. Evoca a percepção de distintas interpretações sobre o vivido e a retomada de um passado que não foi “apaziguado”. “O futuro traído pelo passado: o processo de esquecimento sobre as ferrovias brasileiras” (Dilma Andrade de Paula) e “Os famintos do Ceará” (Marta E. J. Barbosa) constituem análises substanciais sobre as mútuas relações entre a história e a memória, e implicam uma profunda reflexão sobre o exercício da investigação histórica.

Se a cultura nos possibilita a compreensão das mudanças históricas, a apreensão da memória como um dos campos de prática social certamente contribui para a percepção dos modos como os seres humanos lidam com o passado e como este lhes interpela o presente. O trato com a fonte oral possibilita ao pesquisador “(re)descobrir a trama do real a partir dos sujeitos sociais”, uma vez que os relatos referentes às “experiências de vida” dessas pessoas trazem à tona “os valores, a cultura, e os significados que os sujeitos imprimem a sua prática social” (2004, p.267). Esta vem a ser a perspectiva que informa o trabalho de Lêda Maria Leal de Oliveira, “Memórias e experiências: desafios da investigação”, no qual a autora salienta como diferentes sujeitos elaboram em sua cultura compreensões multifacetadas de seus direitos e como atribuem sentidos simbólicos ao exercício da representação cotidianamente marcada pelo “fazer político”.

O trabalho com fontes orais, enfatizado em todo o volume, permite o vislumbrar de alternativas para a construção de “outras histórias” que trazem à tona diferentes modos de viver dentro de um modelo socioeconômico que busca se afirmar como o único possível. Dalva Maria de Oliveira Silva, em “Algumas Experiências no diálogo com memórias”, por exemplo, mostra como múltiplas possibilidades da análise do social são abertas quando se busca construir relatos de diferentes sujeitos sociais reunidos em diferentes lugares.

Esses depoimentos orais revelam valores que permeiam as práticas de homens e mulheres que narram seu tempo, sua história. Nesse caso, narrar o “passado” é (re)significar o vivido, recompondo traços de experiências marcadas por lutas, derrotas e conquistas, e num sentido amplo, passar a limpo o que já se experimentou, mas ainda sugere novas significações aos sujeitos que as relembram no presente. Um dos desafios do historiador reside, justamente, em desvendar esses significados trazidos pela memória.

Enfim, vale assinalarmos que a coletânea “Muitas memórias, outras histórias” instiga o leitor a perceber que as tramas da memória são culturalmente engendradas, aspecto que torna sua leitura imprescindível à atenta observação da produção social da memória e das interpretações históricas.

Nota

3. Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Universidade Católica de Salvador e Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis).

Referências

FUNARI, Pedro Paulo, ORSER JR., Charles E. e SCHIAVETTO, Solange N. O. Identidades, discurso e poder. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2005.

POLLACK, Michel. Memória, silêncio, esquecimento. Estudos Históricos. v. 2, n. 3, 1989.


Resenhistas

Sandra C. A. Pelegrini – Doutora em História social pela USP, Docente da Universidade Estadual de Maringá, Bolsista do CNPq, Pós-doutoranda em História pela UNICAMP, sob a tutela do Prof. Dr. Pedro Paulo Funari.

Ana Paula dos Santos – Pós-graduanda do Programa de Pós-Graduação em História – Mestrado da Universidade Estadual de Maringá e professora da rede estadual de ensino do Mato Grosso do Sul.


Referências desta Resenha

FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY, Yara Aun (Orgs). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’água, 2004. Resenha de: PELEGRINI, Sandra C. A.; SANTOS, Ana Paula dos. Diálogos. Maringá, v.9, n.3, 215-219, 2005. Acessar publicação original [DR]

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