Neomedievalismo em Países Sem Medievo: Idade Média na América | Signum – Revista da ABREM | 2021

Nos anos 70 do século XX, o acadêmico e escritor italiano Umberto Eco escreveu uma série de artigos sobre o interesse no que chamamos de idade média, descrevendo o início de um neomedievalismo contemporâneo. Eco associou esse neomedievalismo a uma grande variedade de elementos do mundo atual, desde parques temáticos como a Disneylândia, capazes de simular um mundo neomedieval dos desenhos animados, até um neofeudalismo de arranha-céus que separava novos senhores dos novos servos com acesso apenas aos andares inferiores. O próprio Eco passou aos anais do neomedievalismo quando escreveu um dos mais famosos e conhecidos romances medievais, O Nome da Rosa. A nomenclatura de Eco, ele próprio um acadêmico dedicado à idade média, claramente separava entre o medievalismo, como área de estudo dedicada aos materiais do chamado período histórico medieval, e o neomedievalismo, como uma área de temática pós-medieval a qual abrange uma ampla gama de produções culturais, artísticas e teóricas.

Paralelamente a Eco, no entanto, na mesma década de 70, o pesquisador independente inglês Leslie Workman também fundou dos Estados Unidos um jornal e uma área de estudos que ele chama de “medievalismo”, a qual é baseada, principalmente no século XIX, nas Ilhas Britânicas e no seu grande interesse nos tempos medievais. Com foco no romantismo de língua inglesa e nos elementos como o revival medieval em torneios, nos artesanatos ou no Movimento Oxford, bem como na literatura medieval e em uma vasta arquitetura neogótica, Workman nomeia o campo por intermédio de um termo usado por John Ruskin no século XIX inglês2.

Enquanto o uso de Eco delimita com nitidez a diferença entre medievalismo como estudo de matérias provenientes dos séculos cinco ao quinze, o emprego do termo medievalismo de Workman cria uma dificuldade não resolvida que despreza o contraste entre aqueles que estudam matérias criadas na idade média histórica e aqueles que estudam matérias pós-medievais, seja o estudo de materiais criativos ou culturais, seja materiais historiográficos (e.g., o estudo da disciplina de estudos medievais ou o estudo da disciplina de estudos neomedievais). O uso de Eco, escolhido para este dossiê, também facilita a distinção entre medievalistas como aqueles que se dedicam aos estudos medievais e os neomedievalistas como aqueles que se dedicam aos materiais criados depois desse período histórico. É evidente que o termo neomedievalismo é o mais claro, além de explicar com maior exatidão e facilidade o nosso próprio campo de trabalho como “neomedievalistas”. Ao contrário, a utilização da nomenclatura inglesa do século XIX, instaurada por Workman, levou a sua própria escola a se autodefinir de maneira forçada e artificial como “medievalismo-istas”.

Para responder a nossa pregunta então, em que pese à certa inserção da escola anglófona de Workman em uma espécie de colonialismo disciplinar, o termo medievalismo, em países de língua latina, equivale aos estudos medievais, enquanto o neomedievalismo equivale à criação ou ao estudo de materiais que fazem alusão ao período medieval, mas que foram produzidos posteriormente a este período histórico. Os medievalistas são aqueles que estudam o período medieval e os materiais culturais criados durante a chamada idade média. Os neomedievalistas são aqueles que estudam a gama completa de alusões e apropriações posteriores. Muitos neomedievalistas, contudo, podem ser apenas neomedievalistas e estudarem unicamente produtos de séculos posteriores ao medievo, como é de imaginar que continuará acontecendo especialmente entre colegas interessados principalmente em videogames, internet e novas tecnologias.

Vale citar, finalmente, que a escola de Workman teve que batalhar, desde o início, contra a utilização do termo “medievalismo” no sentido de estudos medievais, e, especialmente, contra posturas provenientes de renomadas universidades norte-americanas que propunham a renovação teórica desses estudos medievais como um “novo medievalismo”. E só quando a escola de Workman consegue vencer essas batalhas conceituais e estabelecer-se sob a terminologia inglesa do século XIX que aparece uma facção dissidente e, concedendo uma certidão de óbito ao termo neomedievalismo proposto por Eco, propõe sua reapropriação para se referir especialmente às alusões mais a-históricas do campo – aquelas como Dungeons & Dragons, Babe, Harry Potter ou Lord of the Rings nas quais a alusão ao neomedieval poderia chegar a considerar-se uma interpretação contrafeita do crítico mais do que uma efetiva reutilização do “medieval”.

Existem várias razões para a nossa utilização do termo neomedievalismo para este campo de estudos, ou de estudos e de criação para aqueles que também praticam o neomedievalismo. Uma destas razões é o inconformismo com a postura a-histórica do campo, segundo a qual, é suficiente que um crítico determine que certas alusões às superstições, às bruxas, ou à vida rural, citando apenas algumas, são sugestões suficientes para determinar que se trata de uma reutilização neomedieval. Por outro lado, dentro da perspectiva disciplinar, o uso terminológico de neomedievalismo é também uma forma de resistência. É uma resistência em aceitar a colonização intelectual por um campo anglocêntrico. É uma resistência a que sejam fagocitados os estudos medievais e as historiografias em idiomas de menor poder institucional para se apropriar dos termos medievalismo e neomedievalismo. E por último, como detalhado em outra introdução3, mencionada por autores deste dossiê, o uso de neomedievalismo é também uma chamada a um trabalho disciplinar independente que nos afaste da imitação e nos leve a encontrar nossos próprios “dragões”.

Por que estudar neomedievalismo em países que não viveram a chamada idade média histórica?

Após a apresentação acima, sobre a nossa opção pelo termo neomedievalismo, seria pertinente expor a seguir os interesses que guiam os estudos sobre as apropriações da idade média em um país que não viveu o período nos moldes definidos para a Europa.

Comecemos pela citação de um acontecimento ocorrido neste ano de 2021. No dia 9 de junho, o presidente argentino Alberto Fernández, ao recepcionar, em Buenos Aires, o primeiro-ministro da Espanha em visita oficial, pronunciou a seguinte afirmativa: “Octavio Paz [escritor mexicano, Prêmio Nobel de Literatura] escreveu uma vez que os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas nós, os argentinos, chegamos em barcos. Eram barcos que vinham da Europa.4”

Paz não escreveu essa frase. Escreveu: “Os mexicanos descendem dos astecas, os peruanos dos incas e os argentinos dos barcos”. O trecho, na verdade, foi retirado de uma canção do compositor argentino Litto Nebbia. Seja como for, é possível supor que Fernández pretendia com essa frase, dita ao ministro espanhol, elogiar a Europa pela imigração para a Argentina, que marcou a história do país entre os séculos XIX e XX. A frase provocou um desconforto geral, tanto na Argentina quanto no Brasil, em virtude dos conceitos que carrega e que não são desprovidos de história. A menção ao brasileiro ter vindo da selva não foi bem aceita por aqui e muitos perguntaram-se se a selva referida era apenas a das matas brasileiras ou aquelas do continente africano também. Já no caso argentino, a pergunta poderia ser sobre o lugar que o presidente reservou às culturas indígenas autóctones que habitavam o território antes do extermínio provocado com a chegada dos europeus. De certo, o presidente argentino não refletiu acerca de tais perguntas. Talvez não tenha pensado que estava reproduzindo discursos repetidos há muito tempo, e que servem para mobilizar certos aspectos sobre as origens latino-americanas.

A perspectiva de que as jovens nações americanas nascem dos barcos, herdeiras de uma cultura europeia que se transfere para colônia, significou pensar na história do território sul-americano como uma parte, na maioria das vezes, atrasada e incompleta da história do continente europeu. O discurso na perspectiva de progresso perpetua o entendimento de que as jovens culturas estariam caminhando para construir na colônia uma sociedade europeia. Entretanto, erguer aqui todos os edifícios e as estruturas, reproduzir a cultura e hábitos europeus não seria uma tarefa rápida e simples, estávamos sempre um passo atrás. Ou seja, no contexto de uma teoria do progresso, que foi bastante difundida ao longo do século XIX e parte do XX, as nações sul-americanas estariam em uma etapa menos avançada do desenvolvimento linear em escala mundial.

Com efeito, a frase de Fernández pode ser entendida nesta perspectiva, posto que mobiliza um discurso que fez parte de nossa historiografia durante muitas décadas. Entendemos que é neste mesmo sentido que foram difundidas nas sociedades latino-americanas muitas referências ao passado medieval que teria chegado dentro dos barcos europeus. Isto é, as características medievais herdadas da Europa estariam presentes em diversos aspectos de nossa sociedade e representariam, não apenas vestígios do nosso passado europeu, mas também um presente, que expõe os entraves do atraso contra o qual devemos batalhar na direção da modernidade.

A produção de um discurso sobre as raízes europeias da América apoia-se em uma série de referências ao passado medieval que teria se transferido para as colônias nos barcos vindos do velho continente. É neste sentido que evocamos a relevância de compreender os usos políticos e ideológicos que foram feitos sobre a idade média em terras latino-americanas. Ou seja, mesmo sem termos vivido o período histórico chamado de medieval, ele foi apropriado em um discurso que contribuiu para fundar nosso mito de origem e construir uma legitimidade para o nome “países em desenvolvimento”. Na América Latina, a idade média, como um conceito temporalizado, transformou-se na mãe zelosa ou na madrasta má dos nascentes Estados, muitas vezes, desempenhou ambos os papéis, ora exaltada, ora rejeitada, mas é uma constante nos discursos sobre as nossas origens.

Por meio do exemplo do discurso do presidente argentino observamos como os estudos na área de neomedievalismo em países latino-americanos contribuem para uma análise sobre os usos e apropriações do passado medieval, investigando os sentidos políticos e ideológicos aos quais serviram, e ainda servem, em nossa sociedade, este tipo de discurso sobre nossas origens. Um dado que deve ser considerado na frase do presidente argentino é que, embora ele possa não ter feito a devida reflexão prévia, certamente, este tipo de pensamento faz parte de um “senso comum acadêmico” que, desde o século XIX, vinculou, de uma forma ou de outra, os processos de independência na América Latina a um passado europeu, sobretudo, por meio do romantismo.

Apesar de não citar diretamente a idade média, o presidente da Argentina, mobilizou em seu discurso uma “ancestralidade” construída por via da imigração europeia, legando ao povo brasileiro uma “ancestralidade” indígena, se compreendermos que a selva referida por ele seria a existente aqui quando desembarcaram os portugueses, ou a selva africana, se a compreendermos como uma visão também pejorativa do continente africano e dos milhares de africanos que foram transplantados como escravos para o Brasil. O aspecto a ser destacado é que, independentemente da forma como a imigração europeia tenha sido mobilizada por Alberto Fernández, ela volta às categorias opostas e complementares da selva/barcos (civilização versus barbárie) da Europa (que nos remetem aos opostos modernidade/arcaísmo, civilização/atraso capitalismo/feudalismo etc.), base da formação identitária dos países da América Latina. Observamos que, por intermédio dessas mobilizações, o medievo seria um denominador comum, pois ele é temporalizado, ou seja, incorporado como um elemento da formação da identidade latino-americana, perpetuando a ideia de que, deste lado do Atlântico, estamos sempre um passo atrás na hierarquia temporal.

Apesar da advertencia de Richard Utz para que não sejamos esnobes5, e de Hayden White ter nos lembrado do Fardo da História6, uma parcela significativa dos medievalistas brasileiros ainda vê a história medieval, e a própria disciplina história, como uma disciplina científica, cuja pseudo-epistemologia foi fundada no século XIX com o historicismo. Provavelmente, essa necessidade de nos legitimarmos como “cientistas” vinculados à Europa e à sua idade média alva e cristã, seja um elemento para explicar o sucesso e a grande repercussão positiva do livro A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América de 2004, cuja edição em língua portuguesa ocorreu em 2006.

Embora não tenhamos uma pesquisa detalhada para subsidiar a nossa próxima afirmação, inferimos que se trata de um manual bastante usado nos cursos de graduação em história Brasil afora. Nele, o autor corrobora a tese da longa idade média de Jacques Le Goff, inclusive ultrapassando-a. Para Baschet, a sociedade medieval não apenas cruzou os limites cronológicos do século XV na Europa, mas chegou à América. Ele defende que:

Uma visão histórica mais global deveria, inevitavelmente, reconhecer o peso de uma dominação colonial surgida da dinâmica ocidental, que conduz à transferência e à reprodução de instituições e de mentalidades europeias, mas sem ignorar que uma realidade original, irredutível a uma repetição idêntica, toma forma nas colônias do Novo Mundo.7

A tese subjacente ao próprio título do livro é que foi na dinâmica do crescimento, da expansão, dos progressos técnicos e intelectuais dos séculos medievais que se assenta a empreitada colonialista para fora do continente europeu. Isso reeditou, no século XXI, uma abordagem que parecia esquecida nos estudos sobre a idade média no contexto americano: o das raízes e das reminiscências do passado medieval europeu ainda presentes na sociedade americana. Para nossa sorte, Baschet faz a ressalva de que não é uma reprodução idêntica! Tais abordagens podem conduzir a uma reflexão que, além de vincular o passado das sociedades coloniais à história europeia, percebe elementos da sociedade construída nas Américas como reminiscências de um modelo que na Europa já se encontrava superado pela modernidade.

Neste dossiê, embora que ainda de forma incipiente, temos como objetivo, por um lado, evidenciarmos as potencialidades trazidas pelo campo do neomedievalismo, sobretudo, se for aplicado às regiões onde a idade média é uma abstração conceitual em perpétuo movimento, muitas vezes, chega até a ser um grande hipérbole carnavalizada, como, por exemplo, nas Cavalhadas. Por outro, optamos por tocar em temas, muitas vezes silenciados nos meios acadêmicos, como os das ideologias presentes nas mobilizações do conceito de idade média. Os exemplos do discurso do presidente da Argentina e do sucesso editorial do livro de Baschet são duas faces da mesma gambiarra discursiva cujo propósito é temporalizar a história latino-americana por meio de uma centralidade discursiva e temporal europeia, vista como “universal”.

No sentido que entendemos o neomedievalismo, ele se oferece como uma potente teoria capaz de analisar uma série de aspectos da cultura latino-americana e pode contribuir para descolonizar o conhecimento. Aqui, não temos castelos medievais, não temos guerreiros mitológicos, não precisamos tê-los. O que é fundamental que possamos fazer é compreender como um complexo mecanismo de apropriações de um imaginário, já inventado e mobilizado, desde o século XVI, produziu algo novo e suis generis deste lado do Atlântico.

O exemplo de gambiarra discursiva, muitas vezes transformada em “ciência” pelos medievalistas, não é obra do acaso, mas fruto da forma como o medievo foi incorporado à cultura latino-americana. Vemos, com frequência, temas próprios da cultura brasileira serem tratados como reminiscências medievais, sem uma reflexão sobre o descolamento temporal, no sentido de nos colocar em uma temporalidade atrasada, somos o ponto de partida para outras temporalidades centrais. Ou, ainda, sobre o próprio descolamento geográfico, por meio do qual a história europeia é vista como um centro do qual as demais histórias descolam-se. Um dos objetivos deste dossiê é o de demonstrar como os incipientes estudos do neomedievalismo, no Brasil e em países da América do Sul como Argentina, Chile e Peru, já possibilitam uma reflexão crítica dessa construção discursiva por parte da academia latino-americana. Um dos caminhos tomados pelo neomedievalismo é pensar os usos do passado medieval em sociedades que não o possuíram e assim demonstrar a relação entre o neomedievalismo e a teoria pós-colonial, descortinando o véu dos nossos próprios dragões.

Embora o neomedievalismo seja um campo em processo de fundação na América Latina, e este dossiê seja um indício disso, é importante destacarmos que este volume já o apresenta em um sua dimensão internacionalizada. Afinal, uma parte significativa dos autores é proveniente da América do Sul e, ao proporem análises de casos em seus respectivos países, contribuíram para demonstrar uma série de potencialidades da teoria neomedieval quando aplicada às regiões onde a “chamada idade média histórica” nunca existiu. Essa potência foi demonstrada pelo estudo de Egoavil por meio do seu artigo intitulado Del Antimedievalismo de los siglos XVIII y XIX al Neomedievalismo del siglo XXI en el pensamiento filosófico peruano. Un balance historiográfico. Nele, há uma análise sobre o neomedievalismo filosófico nascido como uma reação ao antimedievalismo, desenvolvido entre os séculos XVIII e XIX. Para tanto, o autor estabeleceu o percurso historiográfico sobre o antimedievalismo, considerando as reformas bourbônicas até a sua consolidação no século XIX por intermédio da influência positivista. Ao refletir sobre o contexto do século XXI, segundo o autor mais propício aos estudos medievais, ele demonstra o crescimento do neomedievalismo filosófico no Peru.

Ainda como demonstração da diversidade dos objetos de estudo do neomedievalismo, temos a reflexão de Fernández e Lacalle em La medievalización del relato en El Medioevo Peronista (2020) de Fernando Adolfo Iglesias: operaciones ideológicas sobre la política argentina a partir de una mirada negativa de la Edad Media. Nesse artigo, os autores analisam o imaginário medieval empregado por Fernando Adolfo Iglesias em El Medioevo Peronista y la llegada de la peste de 2020 para demonstrar um movimento político e um perfil ideológico da política na Argentina. No âmbito da teoria do neomedievalismo, eles se dedicaram a apresentar diferentes apropriações do passado medieval por intermédio de sete categorias, associando-as a uma visão negativa da idade média. Nesse jogo de associações, aspectos considerados como medievais são empregados como forma de deslegitimação da autoridade política do Estado argentino.

O artigo de Varela, intitulado Neomedievalismo en el contexto chileno de la protesta social, aborda os usos do medievo no contexto das manifestações ocorridas no Chile em 2019. Para analisar tais protestos, a autora selecionou um conjunto de imagens, classificando-as em três eixos: roupas e artefatos; conhecimento visual e mutilação e sacralização/diabolização das representações. Ela sustentou a hipótese de que o neomedievalismo, no contexto chileno, funciona com um detranslatio do imperri. Assim, interrompe a transferência hegemônica de poder, estabelecendo um telos civilizador capaz de escapar da narrativa do progresso como modernidade capitalista.

Já em La actualidad de la historia medieval de Apolonio de Tiro en El Delfín de Mark Haddon de Zubillaga, há uma análise da novela El Delfín de Mark Haddon publicada em inglês em 2020. Como demonstrado pela autora, a novela apresenta uma reformulação contemporânea da lenda de Apolonio de Tiro. Desta forma, é possível refletir sobre como a visão cristã medieval foi secularizada, considerando temas, como, por exemplo, o pecado, o amor e a morte. Por meio da comparação entre El delfín e o Libro de Apolonio, uma das primeiras versões medievais da lenda no vernáculo, a autora aprofunda a reformulação contemporânea da história de Apolonio pelo motivo do incesto como eixo paradigmático.

No que diz respeito aos autores brasileiros, podemos ver também a diversidade temática, tal como fora apresentada pelos pesquisadores de língua espanhola. Essa constatação, além de reafirmar as potencialidades do campo do neomedievalismo, demonstra a existência de autores brasileiros vinculados ao nascente campo. Em Eu planejo fazer algo como um game de fantasia medieval”: RPG makers e a estética neomedieval em RPG’s digitais, Birro reflete sobre a estética neomedieval por intermédio de duas ferramentas o RPG Makder, software criado na década de 1990, e o RPG Playground, plataforma online disponibilizada gratuitamente em meados de 2012. Em sua análise, destacou o acalorado debate sobre a agência de jogadores e desenvolvedores e a sua relação com os mecanismos de retroalimentação na produção de paradigmas medievalizantes. Assim, o artigo serve como uma admoestação às tentativas imprudentes de gamificação, sobretudo, quando são empregados recursos gráficos considerados como “medievais” pelas partes envolvidas no processo de elaboração de jogos.

No artigo intitulado Apropriações do pensamento medieval no Brasil nos séculos XX e XXI: um estudo de caso sobre o neotomismo, Bosch traz uma reflexão sobre a forma como os medievalistas brasileiros, notadamente os neotomistas, apropriaram-se de aspectos da obra de Tomás de Aquino para os transformar em uma alternativa a-histórica aos projetos políticos em disputa. Outrossim, o autor considerou um amplo escopo temporal, partindo da fundação da primeira faculdade de filosofia no Brasil, em 1908, até o início do século XXI. A sua análise baseia-se nos preceitos da história da história da filosofia (Geschichte der Philosophiegeschichte). O artigo parte do pressuposto de que determinados contextos institucionais, sociais e políticos influenciaram a produção de conhecimento sobre a idade média e na forma como foi mobilizada para transformar a realidade.

No artigo Relações de gênero e telenovelas: um estudo de caso com abordagem de neomedievalismo, Gual trouxe um tema diretamente coligado à cultura brasileira. A autora fez uma análise sobre a telenovela, que é indiscutivelmente uma manifestação artística típica do Brasil, inclusive, com algumas diferenças em relação ao mesmo gênero na América Latina. Por meio da teoria do neomedievalismo, analisou a novela Deus Salve o Rei, de 2018. Em seu estudo, há uma reflexão sobre as relações de gênero, aproximando-os às análises feitas pelo neomedievalismo. A autora apresenta elementos especificamente brasileiros dos usos do passado medieval e das relações de gênero por meio da análise dessa novela.

A forma muito peculiar de reapropriar e de recriar a idade média por parte de instituições religiosas conservadoras no Brasil foi evidenciada por Lisbôa em seu artigo Política, religião e neomedievalismo: As diferentes Idade Média da Tradição Família e Propriedade (TFP) e os Arautos do Evangelho. Nele, o autor fez um estudo comparativo entre a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) e da Associação Religiosa de Fiéis de Direito Pontifício Arautos do Evangelho, demonstrando mecanismos de reapropriação próprios a cada uma dessas instituições. No caso da TFP, o medievo está vinculado ao aspecto político e ao retorno da ideia de cristandade medieval, ao passo que nos Arautos a ressignificação da idade média é feita, majoritariamente, por intermédio do elemento religioso, o qual seria, inclusive, a chave para a compreensão da legitimidade da instituição. Além de refletir sobre as relações entre o neomedievalismo e a religião, o autor sublinhou como a teoria do neomedievalismo é importante para a reflexão acerca de movimento religiosos no Brasil contemporâneo.

Após a telenovela e os grupos religiosos conservadores, deparamo-nos com os Vinkings. Em Vikings Invadem o Brasil no Século XXI: O Neomedievalismo dos Movimentos de Recriação Histórica Nórdica nos Trópicos, Porto, por meio da “Recriação Histórica”, entendida como uma prática educativa lúdica e, ainda, como um neomedievalismo vivo, analisa a inserção dessa prática no Brasil que, rapidamente, cresceu associada às recriações da chamada “Era Viking”. Outrossim, o autor demonstra as origens do movimento ao mesmo tempo que tenta compreendê-lo, considerando a sua dimensão e a forma tropicalizada que o mundo escandinavo é apresentado nas recriações realizadas por aqui.

Por fim, demonstrando ainda as possibilidades de reapropriações realizadas no Brasil, Santos, em seu artigo intitulado Giotto de Bondone e o neomedievalismo: novos olhares do “novo mundo” para velhas tradições do “velho mundo”, discute como uma política de temporalização produzida na Europa, sobretudo, a partir do século XIX, encontrou terreno fértil e pouca reflexão crítica no Brasil, inclusive, do século XXI. Baseando-se na teoria do neomedievalismo, ela reconstitui as temporalizações em torno do pintor Giotto, compreendido não só pela história da arte, mas pela própria história, como marco do início do renascimento. Para a autora, tal premissa rompe a coetaneidade do pintor. Todavia, a sua maior argumentação gira em torno do fato de que a construção de um Giotto como marco inicial do renascimento ultrapassou os limites da Europa e teria chegado ao ambiente acadêmico brasileiro como uma naturalização.

Como já ressaltamos, esta publicação, em conjunto com outras publicações nos últimos 2 anos, demonstra mais uma etapa no caminho de fundação dos estudos sobre neomedievalismos latino-americanos. A diversidade apresentada por artigos de diferentes países, com autores de diferentes formações, em áreas distintas das humanidades, é, sem dúvida uma comprovação de que o campo do neomedievalismo está a se desenvolver rapidamente por aqui. Assim, convidamos os leitores da Revista Signum a mergulharem no neomedievalismo latino-americano e, desta forma, fomentarem o debate nesta nascente área.

Notas

2 Para uma discussão mais extensa e aprofundada, cf. ALTSCHUL, Nadia R., Introduction: Postcolonizing Neomedievalism. In: ALTSCHUL, Nadia R.; RUHLMANN, Maria (orgs.). Iberoamerican Neomedievalisms: The “Middle Ages” and Its Uses in Latin America. Amsterdam: Arc Humanities Press, [prelo] 2022.

3 Cf. ALTSCHUL, Nadia e GRZYBOWSKI, Lukas. Em busca dos dragões: a idade média no Brasil. Revista Antíteses. Londrina, vol. 13, nº 25, jan/jun., 2020, p. 24-35. Disponível em: < http://www.uel.br/revistas//uel/index.php/antiteses/article/view/42304/0>. Acessado em 28 de julho de 2021.

4 Folha de São Paulo, 9 de junho de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/06/fernandez-diz-que-brasileiros-vieram-da-selva-e-argentinos-chegaram-de-barcos-da-europa.shtml. Acessado em 21 de julho de 2021.

5 Cf. UTZ, Richard. Don’t Be Snobs, Medievalists! Disponível em: https://www.chronicle.com/article/dont-be-snobs-medievalists/. Acessado em 25 de julho de 2021.

6 WHITE, Hayden. O Fardo da História. In. Ibidem. Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 2004, p. 39-63

7 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Editora Globo, 2006, p. 32.


Organizadores

Nadia R. Altschul – Professora da Universidade de Glasgow. Pesquisadora das Linhas/UFRRJ (https://linhas-ufrrj.org/ ).

Maria Eugênia Bertarelli – Professora da Unigranrio. Pesquisadora das Linhas/UFRRJ (https://linhas-ufrrj.org/ ).

Clínio Amaral – Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Pesquisador das Linhas/UFRRJ (https://linhas-ufrrj.org/ ).


Referências desta apresentação

ALTSCHUL, Nadia R.; BERTARELLI Maria Eugênia; AMARAL Clínio. O que é o neomedievalismo? Signum- Revista da ABREM, v. 22, n. 1, p.6-18, 2021. Acessar publicação original [DR]

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