Novas, antigas, outras institucionalidades | MODOS. Revista de História da Arte | 2022

Fachada noturna do MAM Rio Foto Fabio SouzaG1
Fachada noturna do MAM Rio | Foto: Fabio Souza/G1

O presente dossiê temático parte de interesses convergentes de reflexão, pesquisa e atuação por parte de suas organizadoras. Tendo o primeiro contato ocorrido em um projeto profissional em 2004 e vivido muitos reencontros desde então, nós – Bruna Fetter e Mônica Hoff – nos vimos desafiadas e instigadas a propor um dossiê ao redor de uma temática complexa, que nos aproximou em vários momentos ao longo dos últimos 15 anos: a arte e seus modos de institucionalidade.

O grande marco deste encontro afetivo, intelectual e profissional se deu em 2006/2007 quando atuamos no contexto da 6a Bienal do Mercosul trabalhando lado a lado à frente das equipes de produção executiva e do programa educativo do referido projeto. De lá para cá ambas percorremos trajetórias que nos levaram a diferentes contextos geográficos e institucionais, mas que seguem convergindo até hoje no interesse que compartilhamos pelos modos de institucionalidade da arte e pelas estruturas de poder e saber que estão no cerne deste processo.

A semente que nos traz a este dossiê foi plantada e vem sendo cultivada, portanto, através de diálogos, debates e projetos comuns, há mais de uma década.

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Em 2016, praticamente dez anos após nosso encontro na sexta edição da Bienal do Mercosul, havia rumores de que o projeto estava prestes a encerrar sua atuação na cidade de Porto Alegre. Uma grave crise institucional e financeira atravessara a última edição, realizada em 2015, deixando dívidas e dúvidas quanto à sustentabilidade da instituição e sua capacidade de adaptação a um contexto cultural, social, político e econômico bastante diferente de quando foi criada, em meados da década de 1990.

Não era a primeira vez que este tipo de preocupação reverberava entre agentes do sistema da arte local. Desde a crise financeira global de 2008, com a desvalorização do real em relação ao dólar, um efeito dominó fez com que grandes empresas passassem a operar com uma margem de lucro muito reduzida, ou mesmo em prejuízo. Dentre outras razões, isso gerou uma debandada ou redução significativa de valores concedidos pelos principais patrocinadores parceiros do evento. A partir de então, a cada nova edição da mostra sempre aparecia alguém para entoar a pergunta: será esta a última?

Vários fatores podem ter se somado para que, naquele 2016, o fim da instituição parecesse mais próximo do que em momentos anteriores – foi a primeira vez que observamos uma (re)ação do meio artístico através de um engajamento coletivo. Uma busca que integrou artistas, professores, curadores, produtores culturais, ex-colaboradores, ex-gestores, dentre tantos outros agentes do campo que fluem por entre essas categorias profissionais, estando ora numa posição, ora noutra. Em comum todos tinham sua história pessoal e profissional emaranhada com a da instituição. Em outras palavras: carregavam em si um grande carinho e respeito pela Bienal do Mercosul, a tendo como inseparável da sua própria trajetória, compreendendo-a muitas vezes como uma verdadeira “escola” – ambas somos exemplos dessa relação e do efeito gerado pelo projeto – principalmente a partir de sua sexta edição, na vida de pesquisadores e profissionais atuantes no meio da arte local.

Assim, frente aquilo que parecia ser a crônica de uma morte anunciada que se repetia ano após ano, entre cafés e almoços, começamos a conversar sobre o que o fim da instituição significaria para o meio artístico local – da sobrevivência de um circuito de arte que começava a ganhar fôlego à formação de artistas, educadores e profissionais do campo, bem como a uma política de atuação institucional que florescia na cidade com o surgimento de novos equipamentos culturais, agrupamentos, coletividades e formas de gestão. Detectado o tamanho significativo do impacto, decidimos agir. A ação consistiu inicialmente na mobilização de outros agentes. Nos dias 26 e 27 de agosto daquele ano, após uma série de conversas com dirigentes da Fundação Bienal do Mercosul, propusemos quatro encontros públicos – a modo de rodas de conversa – nos quais aos convidados iniciais foram se somando outros, movimentando mais de 50 pessoas determinadas a construir conjuntamente uma visão possível de futuro (e sobrevivência) para a instituição. A primeira conversa foi a mais íntima e aconteceu na própria sede da Fundação Bienal do Mercosul. Reuniu profissionais que ali trabalhavam ou que já haviam trabalhado ao longo das 10 edições acontecidas até então. A segunda conversa ocorreu no Instituto de Artes da UFRGS e agregou majoritariamente professores e artistas, muitos dos quais estavam presentes no momento de criação da instituição. O terceiro encontro aconteceu no então Santander Cultural, hoje Farol Santander, e foi voltado a um público considerado prioritário para a instituição: educadores. O quarto e último encontro ocupou a antiga Galeria Península, no centro histórico da cidade, e talvez tenha sido o ápice das discussões, pois ali estavam reunidos representantes de todos esses grupos, com seus pontos de vista e posicionamentos, tensionando-se uns aos outros nas compreensões compartilhadas.

Foram quase quinze horas de intensos debates. A uma contextualização geral introdutória se somavam elementos para buscar gerar diagnósticos para a crise institucional. A partir de perguntas como: O que podemos elencar como processos – institucionais, artísticos e educacionais – importantes/relevantes no contexto da Bienal do Mercosul? O que podemos dizer sobre o seu tamanho/ escala? Que outros formatos ela poderia ter? Que contribuições e reverberações ela tem gerado, e que outras poderá gerar nas esferas local, regional, nacional e internacional? Qual a importância da Bienal continuar? De que outras maneiras isso pode se dar? Que pontos podem ser revisados? Como a Bienal pode fazer maior sentido para a comunidade? Que programas/ações seriam oportunos para que a Bienal possa dar conta disso? O que a Bienal do Mercosul poderia (ainda) aprender? Para o que serve e para o que poderia servir a Bienal do Mercosul? Assim, foi lançado o convite não apenas para repensar a instituição, como o próprio modelo que a originou.

Um diagnóstico ao redor de oito eixos de ação foi elaborado a partir das questões e demandas trazidas pelos agentes do meio. Ele serviu como disparador para processos de reinvenção institucional centrados em quatro pilares iniciais: reposicionamento do Conselho, Diretoria e Equipe da Fundação; criação do Núcleo Experimental de Educação e Pesquisa; desenvolvimento de uma visão de co-realização (com a comunidade local) e o lançamento de uma proposta conceitual para a 11a Bienal do Mercosul.

Ao fim, o estudo e proposta elaborados não interessaram à diretoria da instituição, que optou por seguir outros rumos. Mas a semente para continuamente nos propormos a pensar e repensar formas de institucionalidades estava plantada; o exercício de reimaginar política e coletivamente um projeto que era tão caro à Porto Alegre e sua comunidade estava feito. Assim, quando convidadas a propor um dossiê para a MODOS, nos ficou evidente que além de honrarmos o espaço afetivo e a admiração mútua pela forma de pensar uma da outra, retornaríamos a nos questionar sobre institucionalidades possíveis, tema que aprendemos a habitar juntas e na prática há quase vinte anos.

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Este breve retrospecto não apenas contextualiza nossas trajetórias, como situa nossos interesses e modos de estar no mundo. Além de conectar experiências profissionais aplicadas a reflexões teóricas e acadêmicas, ele também explica aos leitores da revista – e nos relembra – as motivações por trás da redação da chamada pública realizada e dos convites feitos a autoras e autores para participar deste lugar de enunciação, que é uma revista acadêmica.

Assim, nós propusemos questionar estruturas de saber, estruturas de poder, modos estético-políticos de organização, autoridades temporárias. Mas também a realizar exercícios de revisão histórica, operações de adaptação discursiva. A pensar pluralidade de formatos, escalas, agentes, narrativas. Materialidades experimentais. Vínculos interdependentes. Novas, antigas, outras institucionalidades.

Este dossiê temático tem como foco entender de que forma e sob que circunstâncias configurações institucionais têm respondido à demandas das proposições artísticas e dos agentes do sistema da arte; também, de que maneiras tais agentes têm pensado e abordado as instituições e os modos de institucionalidade da arte desde suas práticas; e, ainda, como as diferentes formas de existir em sociedade têm provocado outras institucionalidades na arte.

Redes que se formam, afetam e são tensionadas mutuamente, ora a partir de orientações tradicionais, muitas delas replicando modelos coloniais, ora a partir de exercícios contrapedagógicos, inventando outras formas de coexistir.

Os artigos aqui reunidos estão organizados em três eixos principais, mas também poderiam estar agrupados de muitas outras formas. O eixo que inicia o dossiê e engloba as produções de Guilherme Marcondes, Maria Amélia Bulhões, de um grupo de pesquisadores encabeçado por Bruno Moreschi, Amanda Jurno e Giselle Beiguelman, e pelo texto de Nei Vargas da Rosa, nos apresenta embates de e entre distintas institucionalidades. Como no texto de Marcondes, “Implodindo a Colonialidade: A produção científica de artistas negras na/da arte contemporânea brasileira”, no qual o autor analisa o papel da universidade nos processos de legitimação da produção contemporânea, ao lançar um olhar sobre as teses de doutorado de três artistas mulheres negrodescentes, Janaina Barros, Maria Cecília Felix Calaça e Renata Felinto, bem como sobre as narrativas ao redor dos seus trabalhos poéticos. Maria Amélia Bulhões também questiona as práticas coloniais de instituições artísticas. Em “Museus de arte, das práticas coloniais aos desafios da virada digital”, a autora parte de resistências institucionais ancoradas em suas estruturas coloniais de saber e exclusão para apresentar um panorama de mudanças a partir dos desafios impostos pela pandemia de covid-19 ao sistema da arte, naquilo que ela chama de virada digital. Avançando neste tipo de questionamento, o artigo escrito por Bruno Moreschi, Giselle Beiguelman e Amanda Jurno, “Continuum histórico e normatizações em acervos de arte e datasets – Experimentos com Inteligência Artificial no Museu Paulista”, conta com a colaboração de um engajado grupo de bolsistas, e propõe, a partir de cinco diferentes experimentos, desvios nos padrões visuais normatizantes, sugerindo chaves de leitura e narrativas possíveis para a compreensão do acervo do Museu Paulista. Já o texto de Nei Vargas da Rosa, “Estratégias para pensar o colecionismo de arte contemporânea no Brasil”, faz parte de extensa pesquisa de doutorado que investigou o colecionismo privado de arte contemporânea brasileiro em suas distintas manifestações e escalas de inserção. Ao percorrer o país entrevistando distintas colecionadoras e colecionadores, o autor procura compreender as principais características de sua atuação com base em três vetores: aquisição, gerenciamento e empresariamento das coleções, como indícios de institucionalidades que emergem e se consolidam.

O eixo representado pelos artigos de Pedro Caetano Eboli Nogueira, Jorge Bucksdricker, Felipe Braga e Camila Bôrtolo Romano propõe (re)visões históricas, apresentando perspectivas críticas sobre exposições, projetos artísticos e proposições conceituais que se cruzam no tempo e no espaço, tendo distintas institucionalidades como morada. Assim, em “Da crítica institucional à institucionalidade crítica: uma análise da exposição O Abrigo e o Terreno”, Pedro Caetano Eboli Nogueira parte da inclusão do suporte instalativo Poética do Dissenso em uma das mostras inaugurais do Museu de Arte do Rio para discutir a criticidade de dispositivos instituionais que interrogam o estatuto político da exposição. Jorge Bucksdricker, no texto “Nenhuma galeria é um artista: periódicos, crítica e autoinstituições no Brasil nas décadas de 1970-1980”, pergunta: poderia um artista ser uma galeria? Assim, abre o debate sobre como os artistas ampliaram o seu espectro de ação, especialmente a partir da perspectiva editorial, procurando mostrar seu papel e relevância para a circulação de proposições que não tinham espaço nos circuitos institucionais da época. Já Felipe Braga, em “MAM em chamas: reconstruções sob novas bases”, propõe o trágico incêndio ocorrido no Museu de Arte Moderna do Rio, em 1978, como um marco simbólico da morte do modelo moderno de museu. Para tanto, o autor parte do debate público instaurado entre artistas, críticos e agentes culturais da época como uma oportunidade para sua reconstrução a partir de outras noções de arte, museu, acervo e público. Em sintonia com o que o meio artístico propunha naquele momento, mas também compreendendo a relevância que tal produção obtém nos dias de hoje, o artigo “A Arte Postal na XVI Bienal de São Paulo: 40 anos depois”, de Camila Bôrtolo Romano, parte da participação da arte postal na na 16a edição da bienal e sua posterior assimilação em instâncias institucionais e museológicas, como o Museu da Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e Centro Cultural São Paulo.

Por fim, o eixo representado pelos textos de Luciana Borre, Luiz Guilherme Vergara, Jessica Gogan, Cristina Ribas e pela entrevista com Luis Camnitzer busca revisar e indagar a própria noção de institucionalidade a partir da relação entre arte e vida através de questionamentos éticos e reposicionamentos utópicos, e, assim, como a arte participa ou não nos modos de pensar e refazer mundos. No texto “Narrativas Têxteis: quais regimes de verdades buscamos criar”, a partir de uma análise com perspectiva de gênero sobre a produção de arte têxtil contemporânea no país, a autora Luciana Borre problematiza o campo da arte, suas tramas, limites, epistemologias e processos atuais de revisão histórica. Em “Pragmatismo utópico: Labor textil / coincidentia pppositorum“, a partir de uma trama feita de múltiplas vozes, Luiz Guilherme Vergara propõe um exercício epistemológico contracolonial para pensar as práticas artísticas como institucionalidades regenerantes de Demos e Gaia. No texto “Ensaios por uma curadoria ao avesso: Caminhando com Lygia Clark”, Jessica Gogan revisa o potencial da obra da artista brasileira a partir de questões de reencenação, outras historiografias e do uso do seu processo artístico como dispositivo clínico no mundo, e como ela desafia a instituição (de) arte no século XXI. Em “Diagramas especulativos a partir da análise institucional, ‘desejos de grupo’ no Brasil em crise”, Cristina Ribas versa sobre a história da análise institucional, seu potencial de transformar, destruir e também reconstruir instituições. No texto, a autora parte de uma “experiência de análise institucional e artes visuais tendo o desenho e o conceito de diagrama como ferramentas de uma construção coletiva”. Fechando este eixo e também o dossiê temos uma entrevista com Luis Camnitzer intitulada “Imaginación infinita: la administración del absurdo, los agentes perturbadores y la hipocresía institucional”, na qual conversamos com o artista uruguaio sobre revisão histórica, mediação da arte, a função política e social das escolas de arte, a ideia de museu como escola, o sentido de utopia e sobre o que significa atuar eticamente no mundo da arte atualmente.

Cabe aqui lembrar e ressaltar que Camnitzer foi uma figura fundamental para o desenvolvimento do nosso interesse por outros modos de institucionalidade da arte e por chacoalhar nosso pensamento e nossa prática naqueles primeiros anos de 2000 no sul do Brasil. Como curador pedagógico da 6a Bienal do Mercosul afirmou em sua proposta para aquela edição a importância da Bienal declinar da ideia de ser um projeto sazonal para se estruturar e apresentar como uma instituição cultural de caráter educativo com atuação permanente que realiza um grande projeto de arte a cada dois anos. Com isso, ele não propôs apenas um giro educativo da Bienal do Mercosul, como facilmente se lê em literatura sobre o projeto, mas um câmbio epistemológico, ou seja, uma mudança estrutural nos modos de pensar e fazer da referida instituição. Com ele entendemos que uma instituição deve aprender mais do que ensinar e que se, em teoria, esta parece ser uma equação fácil, na prática envolve um estado de disponibilidade ao deslocamento e ao fazer juntes que excede qualquer otimismo retórico e as agendas mais ferozes do mundo da arte. Porque, no fundo, sabemos: não basta mudar o objeto sem mudar a episteme. Por isso, mais do que qualquer coisa: este dossiê é um convite.


Organizadores

Bruna Wulff Fetter – Doutora em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora do Departamento de Artes Visuais da UFRGS. Vice-coordenadora da Especialização em Práticas Curatoriais na mesma universidade, investiga relações contemporâneas em processos de legitimação nos sistemas e ecossistemas da arte. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6840-4269

Mônica Hoff Gonçalves – Artista, curadora e pesquisadora. Doutora em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2019) com pesquisa sobre escolas de artistas, ou como metodologias artísticas se convertem em pedagogias instituintes e estas em escolas; e Mestre em História, Teoria e Crítica de Arte, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2014), com pesquisa sobre o fenômeno educational turn e o contexto de arte brasileiro. E-mail: [email protected]  ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5469-9334 .


Referências desta apresentação

FETTER, Bruna Wulff; GONÇALVES, Mônica Hoff. Modos de reinventar, pensar e fazer instituições: imaginar politicamente é imaginar coletivamente. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 6, n. 2, p. 135–145, maio/ago. 2022. Acessar publicação original [DR]

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