O Capital em Jogo: fundamentos filosóficos da especulação financeira | Gilson Schwartz

W. Rostow sugeriu certa vez que o socialismo era apenas uma moléstia do crescimento do capitalismo. Retrospectivamente, isso parece correto. Contudo, para os que viveram os anos seguintes à Revolução Russa de 1917 e, mais ainda, os da Grande Depressão, as coisas se apresentavam de modo muito diferente. John Maynard Keynes foi um deles — e dos mais brilhantes. Os fantasmas da depressão, diretamente, e da revolução, indiretamente, rondam atrás do seu Tratado Geral, publicado em 1936.

A economia política encarava as depressões como uma fase do ciclo econômico que se esgotava, a longo prazo, pela ação dos mecanismos de reativação do próprio mercado. A melhor tirada de Keynes — “a longo prazo, estamos todos mortos” — sintetizou a sua crítica devastadora à teoria clássica sobre o desemprego e funcionou como bandeira do paradigma emergente de administração anticíclica da demanda. O Tratado Geral ensinou os governos a regular os mercados ao longo do ciclo e assinalou o nascimento da política econômica. Nos limites do raciocínio contrafactual, é razoável argumentar que o keynesianismo salvou o capitalismo do abismo da depressão e, por essa via, “provou” o erro de Karl Marx.

No pós-guerra, durante três décadas, o keyenesianismo funcionou como ortodoxia adventícia, fornecendo régua e compasso para a administração das políticas fiscal e monetária dos governos. Na história econômica, o nome de Keynes foi incorporado à tradição da economia política e o keynesianismo foi interpretado, tanto por seguidores quanto por adversários, como uma explicação da natureza do funcionamento do mercado. O Capital em Jogo, de Gilson Schwartz, é um desafio à interpretação convencional. À luz do seu holofote, habilmente deslocado para um ângulo incomum, revela outro Keynes e — ainda mais importante — sugere outra gramática para o discurso sobre a economia. É um empreendimento de resgate do núcleo mais relevante e atual da herança keynesiana: “a reconstrução da lógica da economia como sujeita ao jogo da política econômica, um campo de regras cuja formulação é histórica”.

O trajeto mais curto entre dois pontos é uma reta. O mais eficiente pode ser uma curva. Schwartz não faz um ataque frontal à Teoria Geral, mas reconstitui a abordagem profunda de Keynes partindo do Treatise on Probability e dos estudos críticos sobre o Padrão Ouro. Esses textos constituem um programa de insurreição contra a naturalização da economia, expressa tão notavelmente na ilusão da “existência efetiva de um padrão monetário baseado no metal ouro”.

A revolução e a depressão não representam os cenários relevantes para apreender a posição metodológica de Keynes. A sua sensibilidade histórica abarcava um horizonte mais largo, formado pela crise da hegemonia britânica, no interior de uma economia que se internacionalizava e dependia cada vez mais da regulação financeira. É nesse marco que situa-se o desvendamento das engrenagens financeiras associadas ao Padrão Ouro, pelas quais a potência hegemônica armava uma camisa de força capaz de subordinar as relações econômicas internacionais.

Depois da Primeira Guerra Mundial, estavam expostos os sinais de esgotamento da hegemonia britânica e Keynes já não ocupava o seu posto oficial no Tesouro. A sua proposta de abandono definitivo do Padrão Ouro, expressa causticamente no The economic consequences of Mr. Churchill, destinava-se a evidenciar o caráter financeiro da regulação econômica e proporcionar instrumentos para uma administração eficaz da transição histórica. A crítica à naturalização da economia desdobrava-se em programa de ação política internacional. Já na década de 20, ele se inclinava por um sistema de taxas de câmbio flutuantes, coordenado por uma entidade supranacional capaz de regular a oferta de crédito. O ouro, ou uma moeda contábil, poderia funcionar como padrão de valor de referência.

O fetichismo foi mais forte. O Banco de Compensações Internacionais (BIS), criado em 1929 para a gestão das dívidas de guerra alemãs, jamais se tornou, de fato, um banco central supranacional. Na Conferência de Bretton Woods, em 1944, Keynes travou a sua última batalha, tentando fazer do FMI essa entidade supranacional e opondo-se tenazmente ao sistema de câmbio fixo ancorado no dólar. A interpretação convencional enxerga aí apenas uma defesa dos interesses britânicos, no contexto da formalização da hegemonia norte-americana. Contudo, atrás disso, está a coerência da linha de crítica ao Padrão Ouro.

A estagflação dos anos 70 implodiu o “consenso keynesiano” do pós-guerra, mas esse consenso exprimia apenas a ortodoxia do “keynesianismo bastardo” que “sonha com uma política econômica que não seja política econômica, apenas o encantamento mimético das forças de mercado”. A atualidade de Keynes não reside no fiscalismo anticíclico, mas na apreensão da economia como espaço de regras instáveis, formuladas pelos homens.

Depois da ruptura do mecanismo de câmbio fixo de Bretton Woods, a explosão dos fluxos especulativos e as sucessivas crises sistêmicas reinstalaram o debate sobre a regulação do sistema monetário internacional, mas esse debate continua preso à armadilha dicotômica que separa o capital da regra, o mercado do Estado, a economia da política. Aí está a atualidade do Keynes que coloca “a economia sobre um tabuleiro de decisões humanas, sem a pretensa segurança de leis naturais regulando o curso dos acontecimentos”.

Esse Keynes exumado por Schwartz identifica no âmago da própria instituição do contrato monetário a posição especulativa que impele os indivíduos a imaginar (e apostar em) cenários futuros. Nesse contexto, a política econômica surge “essencialmente como produção de uma informação relevante: o sistema pode ser administrado”. A interrogação desloca-se dos supostos automatismos do “mercado” para a criação das regras que são o jogo: “Como construir um cenário envolvendo toda a sociedade e até o espaço internacional que seja crível e legítimo?”

A pergunta é perene, pois, o jogo muda sempre. É um jogo simbólico que se estrutura como linguagem e pode degenerar em mera aposta. Compete à liberdade e à inteligência humanas conjurar, a cada passo, esse risco. O resgate de Keynes serve para isso, pois, nas palavras de Sir Alec Cairncross, “ele confiava na inteligência humana” e “detestava a escravização a regras”.


Resenhista

Demétrio Magnoli


Referências desta Resenha

SCHWARTZ, Gilson. O Capital em Jogo: fundamentos filosóficos da especulação financeira. Rio de Janeiro: Campus, 2000. Resenha de: MAGNOLI, Demétrio. Revista Brasileira de Política Internacional, v.43, n.1, 2000. Acessar publicação original [DR]

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