O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média | Jean-Claude Schmitt

Em O corpo das imagens Schmitt se propõe a abordar o problema das imagens na Europa Ocidental durante a Idade Média, decidido a encarar um duplo desafio: “analisar a arte em sua especificidade e em sua relação dinâmica com a sociedade que a produziu” (p. 33). Como historiador, afirma, é seu dever recolocar as imagens no conjunto do imaginário social, como nas implicações de poder e de memória.

Por imaginário Schmitt entende uma realidade coletiva partilhada pelos atores sociais. Em uma determinada sociedade ou para um grupo constituído, o imaginário é garantia de coesão e identidade.

Na Cristandade Ocidental, a produção, a difusão e o culto das imagens, tanto quanto de textos escritos se constituem em práticas culturais de importância central.

Embora a imago seja um fundamento mesmo da antropologia cristã, o cristianismo, desde os seus primórdios, se afirmou como uma religião do livro e na escrita reside o fundamento da legitimidade do discurso cristão e do poder dos clérigos. Mas, lentamente, as imagens puderam se afirmar nos modelos espirituais e práticas cultuais legítimas do Ocidente.

Se a Igreja conferiu um papel crescente às imagens no culto e na devoção, foi porque as imagens, mais do que a palavra dos pregadores (a leitura dos livros não sendo acessível senão a uma pequena minoria), exercia sobre a imaginação dos fiéis uma ação decisiva considerada benéfica (p. 353).

É possível se falar em um “problema das imagens” no conjunto das civilizações cristãs e Schmitt faz ressaltar a diversidade de soluções a esse problema no Ocidente, em comparação com o Oriente. Entre o Leste e o Oeste da Cristandade há diferenças não apenas do ponto de vista da evolução dos caracteres formais das imagens, mas também das suas funções cultuais, litúrgicas e políticas e, sobretudo, quanto aos contextos sociais e ideológicos de sua produção e recepção.

Inicialmente, os debates sobre o culto às imagens se estabeleceram na Europa Ocidental tendo como contraponto o seu desenvolvimento no setor oriental da cristandade. Mas, ao longo da Idade Média, no Ocidente, as imagens conheceram um extraordinário desenvolvimento das formas plásticas, das práticas cultuais a elas associadas e das reflexões teóricas que visavam precisar sua significação e fundamentar sua legitimidade.

Herdeiros da tradição instituída por Gregório Magno, os teóricos ocidentais afirmaram a importância da imagem, especialmente para a educação dos iletrados. Para os os laicos, mais próximos do paganismo, a decifração da pintura é como uma espécie de leitura. A imagem fixa a memória, na medida em que remete ao passado e o torna presente. Mediadoras entre o homem e o divino, as imagens presentificam as realidades invisíveis, que transcendem a realidade dos olhos.

Uma cronologia da imagem e de seu culto no Ocidente aponta para o fato de que não antes do ano mil é possível falar de um reconhecimento da sacralidade das imagens. Do ponto de vista dos usos e práticas cultuais envolvendo imagens, argumenta Schmitt, é possível detectar a existência de “normas” no alvorecer do século XI. A noção de normas implica, neste contexto, a própria aceitação do culto às imagens e a sua subordinação aos desígnios da instituição eclesial. Os milagres, controlados pelo poder eclesial, legitimam as imagens e determinam o limite aos seus cultos. Neste sentido, compreende-se a importância que o culto às imagens teve nos discursos heréticos, que o negavam, bem como negavam as prerrogativas sacramentais dos clérigos:

A contestação herética, sem dúvida, provocou por reação na Igreja as posições mais favoráveis ao culto e ao desenvolvimento das imagens religiosas, das quais se conhece aliás uma floração artísticas a partir do século 12. Ela também encorajou os clérigos a dar uma base teórica ao novo culto das imagens para conferir-lhe legitimidade (p. 73).

Pode-se considerar, portanto, que o desenvolvimento das práticas cultuais associadas a imagens foi estimulado, também, pelo aparecimento das heresias que, ao negá-las, exigiram da Igreja uma pronta resposta no sentido da sua afirmação.

O culto às imagens atinge seu ápice no Ocidente no século XIII, com a escolástica – de onde advém a sua justificação religiosa – e com a difusão das ordens mendincantes, das confrarias laicas e das comunidades urbanas. A evolução da iconografia cristã está intimamente associada com a própria evolução da espiritualidade cristã, em especial com a afirmação da humanidade de Cristo e o desenvolvimento do culto à sua mãe. Neste momento, uma nova espiritualidade cristã, aberta à participação dos laicos, serviu de impulso a uma cultura visual cristã. A partir de então a cristandade latina pode seguramente ser associada com a idéia de uma “religião das imagens”.

O século XIII marca, também, o desenvolvimento de normas internas da produção artística, de convenções estéticas que se transformam e se sucedem. Do ponto de vista do dogma, dos debates teologais, não há, até o final da Idade Média, uma tendência à normalização das imagens cristãs, mas, como ressalta Schmitt, “a importância crescente das imagens, por seu número e por suas funções sociais, explica que tenham igualmente sido objeto de um maior número de comentários, alguns imbuídos de intenção explicitamente normativa” (p. 150). E essa “normalização” se processa tanto como afirmação de uma “estética medieval” das imagens, quanto às questões propriamente dogmáticas. Mas, de uma maneira geral, parece ter sido resguardada certa liberdade do artista em relação às normas figurativas.

Mais do que a produção da imagem, foi objeto de diversas normas o seu uso, matéria que era preciso “normatizar” para se evitar os exageros, à maneira oriental, e as distorções típicas do paganismo.

Assim como as imagens materiais, traduzidas em obras de arte, são objeto de análise, por parte de Schmitt, as imagens verbais, oníricas e visionárias. Mesmo porque os sonhos, conforme o autor, “podiam contribuir para a legitimação e a promoção de novas imagens cultuais em torno das quais se desenvolviam formas de devoção e de piedade originais”. É nessa perspectiva que se afirma a importância, no Ocidente, das archéiropoiètes, imagens não feitas por mãos humanas.

A origem oriental afirma-se como fator de atribuição de legitimidade às imagens concebidas miraculosamente. Espaço de recepção, o Ocidente é o centro único e universal da religião cristã, para onde elas se destinam. Roma, a Itália e depois a parte setentrional do Ocidente são os espaços beneficiários do poder miraculoso das imagens. O funcionamento das imagens no Ocidente, sua difusão e diversificação, ocorrem em espaços mais ou menos precisos, que oscilam entre os locais de culto e o centro universal de referência cristã. Para a sua difusão, concorrem não apenas a hierarquia clerical, mas também as comunidades de mercadores que, por meio das imagens cultuais, buscam reforçar as solidariedades em terras estrangeiras e evitam o rompimento com suas regiões de origem.

Texto marcado por um acurado rigor científico, pelo exaustivo trabalho de exploração de fontes escritas e imagéticas, bem como da bilbiografia relativa aos temas que pretende explorar, O corpo das imagens se oferece ao deleite de uma clientela um tanto mais vasta do que a academia circunscreve. E chega ao Brasil, na esteira de um fenômeno inaugurado pelas obras dos medievalistas Georges Duby e Jacques Le Goff, em uma época em que o mercado editorial e o público permanecem abertos à recepção de livros sobre a história, sobre a Idade Média em particular.

Herdeiro de um modo de fazer a história que teve em Le Goff e Duby dois dos seus maiores expoentes, Jean Claude Schmitt confirma, com O corpo das imagens, as tendências já apontadas pela geração que o precedeu. A abordagem do autor sobre a cultura visual na Idade Média é marcada pela idéia de totalidade histórica, pelo comparativismo entre sociedades coevas, pela perspectiva de contribuir com as reflexões sobre o presente.

Pautado nos princípios da antropologia histórica, Jean Claude Schmitt põe em relevo o método comparativo entre estruturas comuns, dispostas de forma seriada ou não, mas as expõe na diacronia. Schmitt aborda não apenas as imagens, pelo que elas podem revelar das sociedades que as produziram e conduziram à condição de objeto de culto, mas também as atitudes em relação a elas. Enfim, se propõe a considerar não apenas os modelos culturais utilizados pelos autores das obras, mas também por aqueles a quem cumpria normatizar o seu uso e pelo público responsável pela sua difusão como objetos de culto.

O livro de Schmitt tem como mérito ratificar a idéia de que a Idade Média, época de grandes transformações, deve se constituir em foco privilegiado de investigações historiográficas. É evidente a atualidade da reflexão sobre o seu objeto – o corpo das imagens – seja por força da permanência e renovação do seu culto pelos fiéis ao catolicismo, seja pela sua rejeição nas Igrejas protestantes renovadas. Mediante a análise da produção artística voltada para as práticas sociais de culto na Idade Média é possível inferir importantes informações sobre um movimento contínuo de re-significação da formas de exercício da espiritualidade cristã até os nossos dias.


Resenhista

Rita de Cássia Mendes Pereira – Professora da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média. Trad. José Rivair Macedo. Bauru: Edusc, 2007. Resenha de: PEREIRA, Rita de Cássia Mendes. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 8, n. 1, p. 235-239, 2008. Acessar publicação original [DR]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.