O Estado Interventor no Brasil e seus reflexos no direito administrativo e constitucional (1930-1964): Themistocles Cavalcanti e sua contribuição doutrinária | Mauricio Mesurini da Costa

O direito administrativo brasileiro é um objeto ainda por ser historiado.

A despeito do já consagrado campo da história da administração pública, que tem em Arno Wehling (1986, 2003) o seu representante mais próximo da história do direito, a história específica da sua ordenação jurídica é ainda dependente de estudos pontuais e de escopo temporal limitado3 – como os trabalhos pioneiros de Airton Seelaender sobre a polícia e a modernização do direito administrativo brasileiro (2003, 2006, 2010, 2020, 2021), as pesquisas de Walter Guandalini Junior sobre a gênese do saber jurídico-administrativo no Brasil Imperial (2015, 2016, 2019a, 2019b, 2019c) e os nossos estudos conjuntos sobre a transição da disciplina nas primeiras décadas do século XX (Teixeira e Guandalini, 2019; Guandalini e Teixeira, 2021; Teixeira, 2021). Revisões panorâmicas de caráter dogmático-cronológico, como as realizadas por Maria Sylvia Zanella di Pietro (2006) e Fernando Dias Menezes de Almeida (2015), apesar da boa vontade e esforço dos autores em consultar as fontes primárias, não são suficientes; falta-lhes o método historiográfico, a contextualização necessária ao desvio das armadilhas do anacronismo e à compreensão das funções e significados específicos atribuídos à disciplina em cada momento de sua história.

Nessas circunstâncias, o livro de Maurício Mesurini da Costa (2021) sobre a contribuição doutrinária de Themistocles Cavalcanti à constituição jurídico-administrativa do Estado interventor preenche uma importante lacuna na historiografia do direito administrativo brasileiro. Redigido a partir das pesquisas que realizou para a sua tese de doutorado (Costa, 2016), o livro aborda um período crucial ao desenvolvimento da doutrina brasileira sobre o direito administrativo, e ainda pouco estudado pelos historiadores da matéria: os 34 anos de instituição e consolidação do Estado Administrativo brasileiro, no período que vai de 1930 a 1964.

De fato, após a Revolução de 1930 propagou-se no país um novo ciclo de intenção modernizadora, acompanhado de extensas promessas de reformas jurídicas, políticas, sociais, culturais e econômicas. Prenhe de intenções transformadoras, o Estado que exsurge da ruptura com a Primeira República tem natureza essencialmente interventora, e o seu primeiro desafio é justamente conciliar as novas intenções ativas com o pensamento jurídico liberal que marcou as décadas anteriores. Entre 1930 e 1964 diversas esferas da vida social foram impactadas pela ação estatal, acarretando mudanças profundas na racionalidade governamental e uma interdependência cada vez maior entre direito, política e economia; esse impulso deu início a um processo de transformação dos conteúdos e funções do direito administrativo que culminaria, já na virada para o século XXI, na perspectiva até mesmo de sua metamorfose em direito econômico4. Ao concentrar a atenção nos catalisadores desse fenômeno Costa presta um inestimável serviço não somente aos historiadores do direito administrativo, mas também aos cultores do direito administrativo contemporâneo.

E o faz pela perspectiva de um dos mais complexos e importantes administrativistas da nossa história: Themistocles Cavalcanti, que foi uma das principais vias de canalização das ideias políticas e jurídicas em circulação durante esse período. Cavalcanti apresenta-se, afinal, como alguém que busca preservar elementos do pensamento jurídico-liberal clássico, conciliando-os com a figura de um Estado modernizador-interventor e com a necessidade, comum a ambas as perspectivas, de se afastar qualquer possibilidade de aprofundamento democrático popular. Para isso, entendia que as reformas propostas deveriam acontecer no Executivo, o que dependeria de um aparato jurídico-burocrático forte e organizado a depender, por sua vez, de um direito administrativo sólido e coerente. Noutras palavras, a complexa estrutura administrativa seria imprescindível ao projeto político-econômico pós-30, e o direito administrativo seria o instrumento por excelência de sua formalização e materialização.

Buscando compreender as complexidades desse processo, Costa divide a sua pesquisa em três capítulos, dedicados respectivamente à análise da pessoa de Themistocles Cavalcanti, ao ambiente histórico e intelectual no qual atuou e ao conteúdo do pensamento jurídico que produziu.

No primeiro capítulo Costa examina o perfil e a trajetória de Themistocles Cavalcanti, avaliando a sua origem familiar, a sua formação profissional, a sua rede de conexões políticas e as suas conexões com a ideologia autoritária. Classifica-o, em diálogo com a melhor historiografia jurídica e social disponível5 , como um jurista de perfil “assimilacionista-modernizante”, atento às novidades estrangeiras e disposto a importá-las e adaptá-las aos contextos nacionais; integrante civil de “vanguardas modernizadoras”, que via na elite tecnocrática o motor privilegiado da modernização nacional; com traços de “objetivismo tecnocrático”, que propunha a substituição da irracionalidade política pela racionalidade técnica objetiva; e integrado à “ideologia do Estado autoritário”, que enxergava na intervenção estatal sobre a sociedade civil a forma adequada de conformar a realidade aos padrões de racionalidade modernizadora propostos – donde a importância atribuída ao direito administrativo como instrumento dessa intervenção modernizadora.

No segundo capítulo Costa avalia o contexto doutrinário em meio ao qual Cavalcanti produziu suas obras, e as referências de pensamento com as quais ele pretendia dialogar. Demonstrando que “o pensamento doutrinário pode se desgarrar dos textos constitucionais e assumir ‘vida própria’” (Costa, 2021, p. 275), o autor reflete sobre o profundo descompasso existente entre os textos normativos e as interpretações doutrinárias que se produziam acerca deles, enquadrando o pensamento de Cavalcanti como parte de uma ordem discursiva mais geral de caráter interventor – compartilhando com os demais autores do período o reconhecimento da emergência histórica de um novo modelo de Estado, a crença na necessidade de uma legislação técnica incompatível com os debates políticos do Poder Legislativo, a defesa da ampliação das competências (inclusive normativas) do Poder Executivo, o uso dos modelos ingleses e norte-americanos como referenciais, a ressignificação de antigos conceitos da tradição constitucional e administrativa liberal e o posicionamento favorável às delegações legislativas, que considera importantes instrumentos de governo técnico e compatíveis com o funcionamento regular dos parlamentos.

Por fim, no terceiro capítulo Costa se dedica à análise da doutrina administrativista proposta por Themistocles Cavalcanti. É esse o verdadeiro núcleo da pesquisa, que ocupa mais da metade das trezentas e poucas páginas do livro. O capítulo é dividido em duas abordagens distintas: na primeira seção Costa analisa o que denomina as “ideias centrais” do pensamento jurídico-administrativo de Cavalcanti, descrevendo as concepções do autor acerca da história do direito administrativo, do conceito de direito administrativo, das fontes do direito administrativo, da dicotomia entre direito público e direito privado, da atuação interventiva do Estado e das características do Estado Corporativo. Em seguida é analisado o tema das delegações legislativas, em três momentos distintos do período examinado – de 1934 a 1937, de 1937 a 1945, de 1946 a 1964.

E é na doutrina administrativista de Cavalcanti que encontramos os mais claros traços distintivos de uma nova concepção de direito administrativo. Logo no início de seu esforço argumentativo já se verifica a noção de que a matéria se caracteriza, a partir de 1930, por estabelecer uma ruptura em relação às concepções anteriores. A tese é que se inicia, então, uma nova era para o campo jurídico-administrativo, marcado pela cada vez maior “necessidade” de intervenção estatal para a reorganização técnica da vida social – o que depende, evidentemente, de uma maior autonomia e uma modernização da disciplina em relação aos seus velhos cânones. Essas características se percebem com clareza na reflexão sobre o conceito e as fontes do direito administrativo, quando se enfatiza a necessidade de se reconhecer a sua autonomia em relação aos outros ramos do direito, mas também na reflexão sobre a dicotomia entre o direito público e o privado, segundo o autor cada vez mais apagada em prol – claro! – de uma interferência cada vez maior do direito público sobre a esfera do direito privado. Essa concepção se traduz em maior autoridade interventiva concedida ao Poder Executivo, o que se reflete também na defesa das delegações legislativas, consideradas necessárias em um contexto de colaboração entre os poderes para a melhor técnica legislativa, e uma constante no pensamento do autor apesar das mudanças de ênfase em cada um dos períodos examinados.

Para Cavalcanti o direito administrativo se apresenta, então, como uma exigência dos fatos e um inevitável instrumento de promoção do esforço de modernização estatal, que pode assim se tornar mais ágil e técnico graças à sua capacidade de evitar os intermináveis debates políticos do Poder Legislativo e as formas rígidas e imutáveis do processo constitucional.

Por descrever com competência esse processo histórico, a obra de Mauricio Mesurini da Costa se revela grande contributo à história do direito administrativo nacional. Atento à metodologia própria da história do direito, o autor realiza um intenso trabalho de reconstrução das ideias jurídicas do período entre 1930 e 1964 a partir da análise do pensamento de um jurista expoente em seu contexto. Ao descrever a sensível dinâmica que se estabelece entre o esforço de instituição de um Estado interventor e a discussão jurídico-administrativa, contribui não apenas para a melhor compreensão jurídica e social do período histórico, mas também para o robustecimento teórico da disciplina, e, em consequência, para a contemporaneamente necessária reconstrução histórica da nossa nação.

Notas

3 O que de modo algum implica demérito, visto que no atual estágio de desenvolvimento da disciplina a limitação do escopo temporal é condição imprescindível à verticalização da análise.

4 Ver Sundfeld, 2000.

5 Buscando aporte metodológico em autores como Airton Seelaender (2013), Christian Lynch (2015), Bolívar Lamounier (1974) e Ricardo Virgilino da Silva (1998).

Referências

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COSTA, Mauricio Mesurini (2021). O Estado Interventor no Brasil e seus reflexos no direito administrativo e constitucional (1930-1964): Themistocles Cavalcanti e sua contribuição doutrinária. Belo Horizonte: Dialética.

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Resenhistas

Walter Guandalini Junior – Universidade Federal do Paraná e Centro Universitário Uninter. ORCID: 0000-0003-2426-3326

Lívia Solana Pfuetzenreiter de Lima Teixeira – Universidade Federal do Paraná e Universidade Regional de Blumenau. ORCID: 00000-0003-3936-8745


Referências desta Resenha

COSTA, Mauricio Mesurini da. O Estado Interventor no Brasil e seus reflexos no direito administrativo e constitucional (1930-1964): Themistocles Cavalcanti e sua contribuição doutrinária. Belo Horizonte: Dialética, 2021. Resenha de: GUANDALINI JUNIOR, Walter; TEIXEIRA, Lívia Solana Pfuetzenreiter de Lima. O Direito Administrativo do Estado Interventor. História do Direito. Curitiba, v. 2, n. 3, p. 350-355, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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