O feroz mosquito africano no Brasil: o Anopheles gambiae entre o silêncio e a sua erradicação (1930-1940) | Gabriel Lopes (R)

Filosofia e Historia da Biologia 2 Anopheles gambiae
Gabriel Lopes | Foto: Academia.edu |

SCOTT The common wind 6 Anopheles gambiaeEm 1930, Raymond Shannon, entomólogo da Divisão de Saúde Internacional (DSI) da Fundação Rockefeller, verificou a presença, em Natal, do mosquito Anopheles gambiae, o mais letal vetor da malária na África. Nos anos seguintes, a espécie se alastrou por Rio Grande do Norte e Ceará, adaptando-se às condições geográficas e climáticas da região sem, no entanto, causar novos surtos de malária. Preocupadas com outras questões políticas e sanitárias, em particular a febre amarela, as autoridades brasileiras relegaram o combate ao “invasor africano” a segundo plano. As consequências não tardariam. Em 1938, o Nordeste foi palco da maior epidemia de malária já ocorrida nas Américas.

É a história da chegada, do “alastramento silencioso” e do extermínio do Anopheles gambiae do Brasil, nos anos 1930, que nos conta o historiador Gabriel Lopes (2020) em seu livro O feroz mosquito africano no Brasil: o Anopheles gambiae entre o silêncio e a sua erradicação (1930-1940), lançado pela Editora Fiocruz. Fruto de sua tese de doutorado, vencedora do Prêmio Oswaldo Cruz de Teses 2017, na categoria Ciências Humanas e Sociais, o livro articula com sucesso os aspectos políticos e científicos, bem como os condicionantes históricos e sanitários, que contribuíram para transformar a questão em um importante projeto de cooperação sanitária internacional entre o governo brasileiro e a Fundação Rockefeller, materializada na criação, em 1939, do Serviço de Malária do Nordeste (SMNE).

Inicialmente considerado uma emergência local e combatido de forma paliativa, o Anopheles gambiae se transformou, transcorridos oito anos desde a sua chegada ao país, em uma oportunidade privilegiada de realização de um experimento de erradicação. Na busca por reconstituir esse processo histórico, Gabriel Lopes dialoga com o campo dos animal studies, que tem espécies não humanas como objeto de suas pesquisas (Ritvo, 2002) e reflete sobre a coexistência entre as culturas humanas e os animais (Wolfe, 2003). No percurso, o autor enfrentou com desenvoltura o desafio de superar as fronteiras disciplinares, sendo bem-sucedido na difícil tarefa de não apartar a história da biologia e, consequentemente, a natureza da cultura. O seu estudo, ao articular um período (anos 1930), um espaço (Rio Grande do Norte e Ceará) e um personagem (Anopheles gambiae), concilia a história da ciência e a história ambiental, trazendo esta para o centro de sua análise. Distancia-se, assim, do que o filósofo das ciências Michel Serres (2007, p.169) designa “acomismo” nas humanidades – presente naquelas narrativas marcadas por uma ausência de mundo, que consideram apenas os homens entre eles –, cumprindo o desafio de uma reflexão sobre o tempo e o espaço “numa escala compatível com a aventura humana, as espécies, a vida, o mundo” (Serres, 2005, p.143).

Estudos anteriores sobre a campanha contra o Anopheles gambiae no Nordeste brasileiro privilegiaram a última fase dessa história, justamente aquela marcada pela atuação do SMNE (1939-1942), que culminou no extermínio do mosquito da região em 1940. Lopes, por sua vez, priorizou as fases correspondentes à chegada da espécie ao país e ao seu “alastramento silencioso” por Rio Grande do Norte e Ceará. Sua compreensão dessas fases iniciais está embasada em um conjunto valioso de fontes até então inexploradas, pesquisadas em arquivos localizados no Brasil e nos Estados Unidos. Destaque para as pesquisas sobre o transporte de mosquitos na aviação e a saúde das aeronaves nas décadas de 1920 e 1930, cuja análise constitui um dos muitos pontos altos do seu trabalho.

Autores como Packard e Gadelha (1994) já haviam apontado para a necessidade de considerar a erradicação do Anopheles gambiae do Brasil sob uma perspectiva analítica ampliada, capaz de relacionar as altas taxas de mortalidade das epidemias de malária no Rio Grande do Norte e no Ceará com as condições naturais e climáticas da região e os contextos sociais e econômicos mais amplos. Ao seguir essa trilha, Lopes preenche uma importante lacuna nos estudos sobre o tema, recuperando a história dos trabalhos epidemiológico e entomológico da DSI da Fundação Rockefeller no Brasil, relacionado ao vetor africano, antes e durante a campanha do SMNE.

Dessa forma, o autor dialoga com trabalhos no campo dos “Rockefeller Foundation Studies” que, ao analisar a atuação da DSI no país, nos anos 1930, destacam o Serviço Cooperativo de Febre Amarela (SCFA) e consideram a campanha contra o Anopheles gambiae e a própria criação do SMNE parte das suas atividades. Embora a continuidade entre os dois serviços seja notória, uma vez que o SCFA forneceu recursos, pessoal e a infraestrutura necessária para o novo órgão emergencial, Lopes sublinha dois elementos que os distinguem: o SMNE tinha como única meta o extermínio do Anopheles gambiae e gozava de consideráveis graus de autonomia e de flexibilidade para atingir o objetivo.

O historiador inova na abordagem do processo de institucionalização do SMNE, ao analisar fatores além dos científicos que marcaram a sua criação e atividades. Destaque para a atuação de Evandro Chagas, diretor do Serviço de Estudos de Grandes Endemias (Sege), no Ceará, cujos experimentos com o medicamento Atebrina, da Bayer, foram desaprovados por Fred Soper, chefe da Fundação Rockefeller no Brasil e diretor do SCFA e do SMNE. A controvérsia, analisada no quarto capítulo, evidencia como o combate ao Anopheles gambiae alcançou a centralidade no cenário da saúde pública no final dos anos 1930, impulsionando rivalidades e dando visibilidade a diferentes agendas de pesquisa.

Na trama de perdedores e vencedores, dois norte-americanos se sobressaem. De um lado, Raymond Shannon, personagem trágico e fascinante, cuja trajetória é reconstituída pelo autor, que tem o mérito de sublinhar a importância de suas investigações iniciais sobre o Anopheles gambiae para as ações adotadas posteriormente. De outro, Fred Soper, que liderou os esforços para controlar a epidemia de malária no Nordeste e exterminar o mosquito africano do Brasil em 1940. Esses feitos alçaram Soper à condição de um dos principais líderes do campo da saúde internacional.

O sucesso alcançado por brasileiros e norte-americanos no Brasil lançou as bases do otimismo sanitário que renasceria no pós-Segunda Guerra Mundial. Ele também possibilitou uma reabilitação do conceito de erradicação, o que contribuiu decisivamente para a formulação e implementação de campanhas contra vetores e doenças nos anos seguintes. A Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti, lançada pela Organização Sanitária Pan-americana (OSP) em 1947, e o Programa Global de Erradicação da Malária, implementado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1955, são tributários da bem-sucedida campanha contra o Anopheles gambiae no Nordeste brasileiro nos anos 1930.

Por suas importantes contribuições, pelos diálogos interdisciplinares que propõe e por nos contar essa história de maneira cuidadosa e com rigor acadêmico, em uma narrativa clara, envolvente e bem escrita, o livro de Gabriel Lopes é leitura obrigatória tanto para os pesquisadores do tema como para o leitor interessado em compreender os caminhos e descaminhos da saúde pública no Brasil.

Referências

LOPES, Gabriel. O feroz mosquito africano no Brasil: o Anopheles gambiae entre o silêncio e a sua erradicação (1930-1940). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2020. [ Links ]

PACKARD, Randall; GADELHA, Paulo. A land filled with mosquitos: Fred L. Soper, the Rockefeller Foundation and the Anopheles gambiae invasion of Brazil. Parasitologia, v.36, p.197-213, 1994. [ Links ]

RITVO, Harriet. History and animal studies. Society & Animals, v.10, n.4, p.403-406, 2002. [ Links ]

SERRES, Michel. Júlio Verne: a ciência e o homem contemporâneo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. [ Links ]

SERRES, Michel. O Incandescente. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. [ Links ]

WOLFE, Cary. Zoontologies: the question of the animal. Minneapolis; London: University of Minnesota Press, 2003. [ Links ]

Rodrigo Cesar da Silva Magalhães – Professor, Departamento de História/Colégio Pedro II.Rio de Janeiro – RJ – Brasil [email protected].


LOPES, Gabriel. O feroz mosquito africano no Brasil: o Anopheles gambiae entre o silêncio e a sua erradicação (1930-1940). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2020. Resenha de: MAGALHÃES, Rodrigo Cesar da Silva. Um experimento de erradicação do Anopheles gambiae no Brasil, 1930-1940. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.28 n.1, mar. 2021. Acessar publicação original [IF].

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