O Latim Medieval | Signum – Revista da ABREM | 2018

Três questões cruciais se apresentam aos historiadores das línguas e da cultura europeia na Idade Média: i) a problemática das fontes escritas; ii) o aparecimento de uma língua literária; iii) a emergência das línguas românicas. Estes fatores, ainda que aparentemente distintos, apresentam por certo um denominador comum: o latim medieval.

Os estudiosos medievalistas constantemente encontram-se confrontados com fontes que foram escritas em latim até o final do período Medieval. A língua latina, desde a época romana, jamais deixou de evoluir. Durante a Antiguidade Tardia adquiriu um caráter próprio, já bastante distinto daquele praticado por César e Cícero. Suas transformações podem ser observadas em diferentes níveis e campos de conhecimento, desde a gramática até o vocabulário. Em todos os domínios onde a inovação social implica na renovação linguística, a língua escrita se transforma, e com ela a própria ideia de sociedade também.

No entanto é pertinente aqui não opormos o latim medieval ao latim clássico, ou simplesmente apresentar o primeiro como o resultado direto da degradação do segundo. A língua latina passou por uma longa evolução, e as singularidades apresentadas ao longo dos séculos, acordes a tempos e espaços determinados, outorgaram ao latim suas formas e elementos característicos no período Medieval.

Durante a Antiguidade Tardia (séculos III-VIII) formou-se no entorno do Cristianismo ocidental, de fato, uma língua carregada de particularidades, já bastante distinta daquela apresentada nos primeiros séculos da época romana. Assumindo novos conceitos, ressignificando empréstimos – especialmente do grego –, o latim se transforma num idioma específico, uma língua Medieval, constituída, deveras, por sucessivos enriquecimentos muito mais que por rupturas. Notadamente, o uso da palavra escrita, desde o início da Idade Média, parece ter sido restringido a uma determinada elite clerical, embora não nos falte bons exemplos de uma cultura laica letrada. Todavia, será no final do século VIII – com os Carolíngios – que a cultura escrita da Europa Medieval conhecerá uma profunda transformação nos seus usos e suas formas. A sociedade franca alcançou níveis altamente divergentes na educação de leigos e clérigos.

O latim medieval deixou de ser uma língua materna para se transformar numa língua paternal, erudita, técnica, administrativa, jurídica e literária. Sobre esse último aspecto é necessário dizer que, uma característica elementar do contexto cultural da época Carolíngia foi o compromisso da Igreja com a palavra escrita. De fato, os Carolíngios foram em grande parte, dependentes da palavra escrita para sua religião, suas leis ou seu governo. Em certa medida, pode-se dizer que o latim tornou-se um veículo de propaganda política e religiosa no reino dos Francos.

Indubitavelmente um dos problemas mais concretos com que nos deparamos quando intentamos traçar um panorama histórico da língua latina no período Medieval é justamente o nascimento de uma literatura que se gera no seio da religião, cujo resultado foi, grosso modo, a artistificação da palavra escrita e a prospecção de uma língua literária peculiarmente Medieval. No embargo deste aspecto, destaque-se que o florescimento da literatura no período Medieval acarretou igualmente a proliferação de gêneros literários à época, de modo que não são poucos os exemplos deste aspecto, como as vitae, os fabliaux, ou a poesia cristã. Não devemos olvidar que o termo litteratura, em latim, tem o mesmo sentido que grammatica e, portanto, designa a gramática propriamente dita ou a leitura comentada dos autores e seus respectivos conhecimentos, e não propriamente as obras em si. Na Idade Média criou-se uma consciência da atividade literária1. Por extensão observe-se ainda a emergência dos primeiros escritos consagrados a uma identidade real da fala comum: nascida no âmbito do latim medieval o latim vulgar torna-se o cerne e origem das línguas românicas.

A historicidade da língua (ou diacronia linguística) será, portanto, o aspecto primaz das elaborações teóricas e das tentativas de compreensão de seus estatutos e mudanças. A língua deve ser entendida como uma realidade viva, espontânea, e, portanto, sujeita as mais diversas influências e tendências que, num certo sentido, traduz o modus vivendi de determinados grupos de indivíduos. As línguas românicas derivam do latim vulgar na Idade Média, que em seu estado atual traduz-se pelas modernas línguas neolatinas. É, portanto, inegável o papel que o latim teve durante toda Idade Média e além, servindo como a base e o alimento daquilo que mais tarde considerar-se-á como a gênese cultural, linguística e literária do Ocidente Medieval, seus autores, suas obras e seus estilos.

A proposta deste dossiê foi reunir estudos sobre o latim medieval em seus múltiplos aspectos, históricos, linguísticos, literários, filosóficos e sociais. Espera-se assim contribuir com este tema no que concerne às pesquisas relativas aos usos, formas e elementos do latim durante a Idade Média.

A tradição histórica e historiográfica, de modo geral, apresenta o orador pagão Mário Vitorino (século IV) como a principal fonte dos escritos exegéticos e manualísticos de Cassiodoro. Com efeito, o estudo que abre este dossiê intitulado “Mário Vitorino e o “De definitionibus” na obra exegética e manualística de Cassiodoro” da autoria de Patrizia Stoppacci, apresenta justamente a contramão das tradicionais pesquisas do tema. Dividindo sua reflexão em dois momentos, Stoppacci nos apresenta um quadro oposto ao que comumente se pensa sobre o problema, afirmando por um lado que Cassiodoro não conhecia tão bem a obra de Mário Vitorino; e por outro lado que Cassiodoro não possuía uma cópia integral do De definitionibus, mas possivelmente alguns excertos à sua disposição para fins compilatórios.

Pauca De Barbarismo Collecta De Multis: algumas observações sobre um tratado gramatical carolíngio” artigo de Tommaso Mari, vem na esteira da editio princeps do tratado que leva o mesmo nome, realizado por ele recentemente. Seu artigo constitui-se em três partes, sendo que na primeira Mari reflete sobre problemas deixados ainda abertos pela sua edição; na segunda discute, a partir de um manuscrito de Bamberg sobre a tradição do mesmo tratado e finalmente, apresenta-nos questões entre Pauca e Barbarismo e alguns comentários do século IX inventariados na Ars Maior de Elio Donato.

Joseph Pucci em “Gendered knowing in Dhuoda’s Liber Manualis” nos apresenta uma reflexão a partir de um opúsculo do século IX escrito por uma aristocrata carolíngia chamada Dhuoda para seu filho William. O Manualis na verdade caracteriza-se como um speculum principis, escrito como um manual cristão no qual sua autora denota suas dificuldades como mulher, a fraqueza diante determinadas situações, e seus direitos como mãe. Pucci explora as potencialidades desta fonte como um registro da maneira feminina do saber, cujos conhecimentos apresentam-se de modo tão importante quanto as verdades cristãs num mundo de homens poderosos.

Caroline Akie Ochiai Seixas Lima, em “O Commentarium in Apocalipsin (1047): um manuscrito medieval”, discute a partir de um códice escrito em letra visigótica e depositado na Biblioteca Nacional de Madri (Ms. Vitr. 14-2, olim B.31), as implicações da linguagem apocalíptica tão importante para os escritos patrísticos e homiléticos na Idade Média. A autora procura mostrar que o reconhecimento do gênero apocalíptico como parte integrante da literatura medieval é determinante para a compreensão não somente da cultura clerical, mas, sobretudo, da chamada cultura laica média e popular.

Em “Considerações acerca da rima em Latim Medieval”, Álvaro Bragança discute um dos principais axiomas constitutivos do sermo medievalis: a criação da rima. Marcadamente, em seu artigo denota que a substituição da acentuação quantitativa, legada pelo mundo greco-romano, pela acentuação intensiva, fora o ponto de partida de tais edificações literárias no medievo. Ademais, o autor expõe que as características da rima medieval configuram-se como uma das principais inovações da língua latina na Idade Média, o que ao fim, acabam por caracterizar a vitalidade da língua no período.

Partindo de um estudo da obra de Tomás de Erfurt intitulada Tratado sobre os modos de significar ou gramática especulativa, Alessandro Beccari traz à luz o caminho percorrido pelo magister regens na confrontação entre a Física, a Lógica e as implicações Metafísicas de Aristóteles. Notadamente, Beccari demonstra como Tomás de Erfurt constitui sua Grammatica a partir das analogias entre os movimentos da Física e as noções da Metafísica, denotando a Lógica, assim, como o resultado das proposições argumentativas da especulação da linguagem.

Nota

1 Nesse sentido, muito expressivas as palavras de Michel Zink (2006, p.79) de que “sem dúvida, existe na Idade Média uma consciência da atividade literária em seu conjunto e em sua especificidade, consciência também de um corpus literário. Isso é visível no latim e no olhar lançado às letras antigas”. Cf. ZINK, M. Literatura. In: LE GOFF, J.; SHMITT, J-C. Dicionário temático do Ocidente Medieval. Vol.2. São Paulo: Edusc, 2006, p.79-93.


Organizador

Everton Grein – Universidade Estadual do Paraná.


Referências desta apresentação

GREIN, Everton. Apresentação. Signum- Revista da ABREM, v. 19, n. 1, p.5-9, 2018. Acessar publicação original [DR]

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