O olhar e a palavra – Fotojornalismo de José Medeiros na revista O Cruzeiro | Ranielle Leal

A fotografia produzida pelo fotojornalista José Medeiros durante sua passagem na revista O Cruzeiro termina por construir uma determinada memória histórica que nos remete ao Brasil de meados do século passado. Um Brasil de profundos contrastes e de uma rica diversidade cultural, característica desconhecida por boa parte dos brasileiros, em especial nos chamados grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo. Neste momento de reconhecimento nacional, que perpassa todo período da Era Vargas até a criação de Brasília, é possível afirmar que as lentes de Jose Medeiros foram fundamentais no desbravamento destes Brasis, em especial, durante sua fase na revista O Cruzeiro. É a partir deste prisma que navega o livro da piauiense Ranielle Leal, e ao discutir a análise das imagens coletadas pelo fotógrafo José Medeiros nos desvela parte do Brasil deste período, um Brasil anônimo e pouco conhecido pelo grande público. É neste quadro que a revista O Cruzeiro se inscreve no panteão das grandes publicações nacionais, assim como a norte-americana Life que também teve o mérito de apresentar os Estados Unidos e o mundo e para boa parte dos norte-americanos, a revista O Cruzeiro tornou acessível a multiplicidade do Brasil para milhões de brasileiros das chamadas camadas médias.

Nesse sentido, vale destacar que a revista O Cruzeiro foi o primeiro veículo de distribuição nacional, tanto que seu proprietário, o empresário Assis Chateubriand, tinha orgulho em afirmar que sua distribuição abarcava todo o território brasileiro, sendo simultaneamente encontrada nas bancas de jornais da cidade do Rio de Janeiro assim como nas bancas da longínqua Belém do Pará. Como afirma Ranielle:

Em um país onde a comunicação era bastante atrasada, no dia 10 de dezembro de 1928, aconteceu um fato antes não visto ‘a revista Cruzeiro estava nas bancas de Belém a Porto Alegre, simultaneamente’ (MORAIS, 1994, p. 187). Até em Buenos Aires e Montevidéu havia exemplares da revista nas bancas, da mesma edição que circulava no Brasil, em português.

Porém, esta revista marcou época na imprensa brasileira não somente devido a sua abrangência e divulgação, mas, em especial, pela criação do que seria conhecido como foto-reportagem, um estilo que mesclava textos e uma cuidadosa narrativa visual imagética, para tanto, a revista amealhou no decorrer de sua existência fotógrafos como Jean Mazon, Pierre Verger, Manuel Gautherout e o próprio Medeiros, que juntos são considerados os pais do fotojornalismo brasileiro.

O livro de Ranielle Leal, não tem a pretensão de ser uma obra acadêmica acerca da vasta produção imagética e documental de José Medeiros, mas, se constitui em uma espécie de homenagem a este “poeta da luz” – como era conhecido – a partir de sua passagem na revista O Cruzeiro. As famosas foto-reportagens de Medeiros na revista tinham a clara preocupação de retratar de forma cuidadosa e delicada as mais diversas situações limite, tanto no âmbito cultural como no âmbito social. Uma delicadeza que eventualmente se contrastava com os textos jornalísticos que acompanhavam as imagens, menos sutis e mais exagerados, como convinha à imprensa da época. Entretanto, o fato é que nestas reportagens, as imagens de Medeiros longe de serem meras ilustrações, disputavam o espaço de protagonistas, se rivalizando com a palavra escrita, o que era revolucionário para época, assim como é até os dias de hoje. As fotografias analisadas por Ranielle nos trazem um país distinto e pouco conhecido dos setores médios, como as religiões afro-brasileiras, os povos indígenas nos sertões do Brasil e a rotina de pescadores artesanais no litoral do nordeste. Estes são os principais personagens de Medeiros, longe dos gabinetes e da chamada high society carioca e paulista se revela uma multiplicidade de personagens anônimos na forma de pais-de santos, bailarinas, prostitutas, indígenas, trabalhadores braçais, carnavalescos e tantos outros.

Em relação à fotografia – em especial na linguagem do fotojornalismo e da fotografia documental – é importante frisar que apesar alguns dizerem que a fotografia é polissêmica, isto é, que permite diversos sentidos, vale destacar que a imagem fotográfica, com o qualquer produto humano, é fruto das relações históricas de uma dada época. A interpretação e leitura de uma imagem fotográfica, não está submetida apenas a subjetividade de quem lê, mas, também é determinada pelas relações sócio-históricas que lhe deram origem. Ler e decodificar uma fotografia sem levar em conta a época de sua produção e sua materialidade, termina por ser apenas uma leitura arbitrária e pessoal, que, pouco ou nada tem haver com o documento fotográfico. Como já afirmou Bertold Bretch, uma imagem dos trabalhos da Krupp, por si só, praticamente nada releva sobre aquela organização (Sontag, 1981, p.23), ou seja, a imagem fotográfica somente torna-se fonte quando decodificada a partir de seu contexto histórico. Assim como é necessário combater e negar a representação fotográfica positivista – entendida como “espelho da realidade” – negar a exaltação do seu contrário faz parte do mesmo movimento. O documento fotográfico não deve ser entendido como uma representação absolutamente subjetiva que se desdobra em infinitas possibilidades de interpretações do real, inviabilizando qualquer reconstrução histórica objetiva, descolando-a de qualquer base material, dando-lhe uma estranha aparência de autonomia.

Nesse sentido, a linguagem fotográfica tem sido recorrentemente interpretada de duas maneiras radicalmente distintas e igualmente equivocadas: a) como forma de conhecimento lúcido da realidade (sem qualquer intermediação do fotógrafo enquanto autor ideológico); b) como mera ilusão do real a partir de métodos e abordagens intuitivas e não racionais de caráter idealista. O registro fotográfico é um binômio indivisível que traz em seu bojo as marcas do real através dos grãos de prata que flutuam na representação do fotógrafo, uma representação sempre originária de bases reais. Mesmo as fotografias de caráter experimental, como as imagens surrealistas de Philipe Halsman são decodificáveis, datadas e localizadas historicamente. Toda e qualquer imagem fotográfica possui uma historicidade essencial, que aflora com mais ou menos força de acordo com a pergunta formulada. E, considerando, que todo “acontecimento” é potencialmente histórico, dependendo, novamente, das perguntas a serem feitas pelo pesquisador, afirmo que toda fotografia, assim como os acontecimentos que estas registram – ao contrário de apontarem para um passado inacessível – são potencialmente históricas e levam os sinais e os rastros de seu tempo.

A despeito de sua técnica, toda fotografia carrega uma intensa humanidade, e apesar dos procedimentos técnicos e mecânicos, toda imagem fotográfica é passível de interpretação e leitura. A fotografia, apesar de sua aparência objetiva, possui uma subjetividade duplamente mediada, seja na sua concepção material, seja na sua concepção ideológica. Afinal, a fotografia é produzida através de diversas técnicas dependendo do período e do conseqüente avanço tecnológico, como tipo de filme, velocidade e características da máquina fotográfica, o que, consequentemente acarreta em imagens, cores e composições distintas, além de, até a metade do século XX, ser produzida preferencialmente pelas classes dominantes, detentoras da tecnologia necessária para a sua produção, sendo, neste sentido, uma construção documental a partir da visão destas classes. Através de uma única imagem é possível acessarmos um inventário de informações acerca de um determinado momento histórico, mas, estas informações somente serão acessadas através de uma metodologia correta e se vinculadas ideologicamente à sociedade de classes, a imagem somente servirá enquanto fonte se respondermos as seguintes perguntas: quem a produziu, a partir de qual classe social, de qual grupo cultural, para quem foi produzida e com quais intenções. E esta interpretação não é mecânica e nem óbvia, pois além das intenções dos autores da imagem, também devemos trabalhar as representações dos retratados.

Ao contrário do que possa parecer, a fotografia não possui uma linguagem polissêmica ao sabor da arbitrariedade de quem lê. A leitura e a decodificação da fotografia se dá a partir da vivência e historicidade do leitor, que, apesar de múltiplas e variadas, pertencem e são determinadas por uma determinada época e tradição. A fotografia, como qualquer reprodução do real, é apenas uma faceta da realidade que envolve o fotógrafo, no caso, o autor da foto. O fotógrafo, de acordo com sua visão de mundo, seleciona os componentes que participarão do quadro a ser registrado. Afinal, de acordo com a posição escolhida pelo fotógrafo, poderá incluir ou não as paredes de uma construção ou privilegiar uma paisagem desértica que, caso inclinasse sua câmara para esquerda, ela desaparecia da composição, dando um novo significado ao registro visual. Esta escolha de um “ponto de vista” denuncia a parcialidade do registro fotográfico. Porém, esta parcialidade do autor convive com alguns elementos de inquestionável veracidade; os alemães retratados por August Sanders durante a República de Weimar de fato existiram, ainda que, eventualmente, certas legendas ou informações acerca daquelas pessoas não sejam corretas ou mesmo falseadas, elas de fato existiram, e, em torno disso não paira dúvida alguma. Toda e qualquer fotografia quando utilizada como documento torna-se histórica, ou seja, toda imagem possui uma historicidade potencial, que, de acordo com a pergunta formulada, aflora com mais força ou não. Toda a fotografia carrega uma intensa humanidade, a despeito dos procedimentos técnicos e mecânicos, toda imagem fotográfica é passível de interpretação e leitura histórica.

Os ensaios fotográficos apresentados por Medeiros na revista O Cruzeiro, são uma espécie de narrativas visuais, como nas reportagens – destacadas pela autora – em relação às temáticas indígenas e das religiões afro -brasileiras, como no caso da foto-reportagem “As noivas dos Deuses sanguinários” publicada em 1951 e de ampla repercussão nacional, devido tanto a qualidade como a originalidade das imagens em preto e branco. A partir da obra de Ranielle é possível contextualizar a produção de Medeiros em seu verdadeiro aspecto histórico, como um produto de sua época e – neste sentido – como revelador de um determinado Brasil até então desconhecido por boa parte dos brasileiros. Assim como as imagens de Medeiros, caso analisadas a partir de sua perspectiva histórica, nos permitem revelar um Brasil negro, mestiço, indígena e anônimo, o livro de Ranielle tem o inegável mérito de revelar a grande obra fotográfica de Jose Medeiros, uma obra documental, jornalística e profundamente compro – metida com a busca de nossa identidade nacional.


Resenhista

Paulo Porto – Doutor em Educação, fotógrafo, docente do curso de Pedagogia da UNIOESTE e do Programa de Mestrado de Letras.


Referências desta Resenha

LEAL, Ranielle. O olhar e a palavra – Fotojornalismo de José Medeiros na revista O Cruzeiro. São Paulo: All Print Editora, 2012. Resenha de: PORTO, Paulo. Um olhar sobre Jose Medeiros. Revista Brasileira de História da Mídia. São Paulo, v.2, n.1, p.197-199, jan./ jun. 2013. Acessar publicação original [DR]

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