O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa

Qual de nós que, em seus dias de ambição, não sonhou o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rimas, tão macia e maleável para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência. É, sobretudo, da frequentação das enormes cidades e do crescimento de suas inumeráveis relações que nasce esse ideal obsessivo

(BAUDELAIRE, 2020, p. 7).

No final de 2020, a Editora 34 lançou O spleen de Paris, que reúne anedotas, reflexões e epifanias (pequenos poemas em prosa) do francês Charles Baudelaire (1821-1866). O volume conta com tradução primorosa de Samuel Titan Junior e texto de apresentação do escritor e cineasta argentino Edgardo Cozarinsky. Esta obra, do poeta maldito, já recebeu mais de dez edições no Brasil ― a primeira em 1937 ― e com certeza outras virão, mas esta tem todo um charme especial, a começar pela capa que traz o autorretrato de Baudelaire. Petits poèmes en prose (Le spleen de Paris) apareceu pela primeira vez, como edição póstuma, no quarto volume das Obras completas (1869) do poeta, organizadas por Théodore de Banville (1823-1891) e Charles Asselineau (1820-874) e editadas pela Gallimard.

Baudelaire lançou, em 1857, As flores do mal, livro de poesias líricas que deveria ter recebido o título de Les lesbianes por conter poemas que narravam o amor entre mulheres. A obra é considerada por críticos literários (AUERBACH, 2007) como percussora do decadentismo e do simbolismo ― o decadentismo é a forma ancestral do simbolismo e tem raízes profundas no romantismo. Em poemas da série Spleen, o poeta mostra o sentimento de tédio existencial que aprisionava os humanos. Ao fim laborioso de preparo de seu único livro de poesia e de ter passado pelo estresse de ver a obra condenada pela Sexta Vara do Tribunal Correcional do Sena, em Paris, sob a acusação de insulto à moral pública e religiosa ― O mesmo promotor, Ernest Pinard (1822- 1909), que acusara Gustave Flaubert (1821-1880) e sua obra Madame Bovary (1856) também de “ofensas à moral pública e à religião” ― , Baudelaire se dedicou à realização de seu sonho de criar “uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rimas” (BAUDELAIRE, 2020, p. 7).

Ele admitiu, na dedicatória de O Spleen de Paris a Arsène Houssaye (1815-1896), que a inspiração para escrever poemas em prosa veio da leitura da obra Gaspar de la Nuit (1842), de Aloysius Bertrand (1807-1841), considerado hoje por muitos estudiosos como inventor do poema em prosa.

Foi folheando, pela vigésima vez ao menos, o famoso Gaspard de la Nuit de Aloysius Bertrand […] que me veio a ideia de tentar algo de análogo, e de aplicar à descrição da vida moderna, ou sobretudo de uma vida moderna e mais abstrata, o procedimento que ele aplicara à pintura da vida antiga, tão estranhamente pitoresco (BAUDELAIRE, 2020, p. 7).

Deambulando pelas ruas da metrópole Paris, que a cada dia se transformava, por força das reformas impostas por Napoleão III, o poeta retrata com cumplicidade, para usar uma expressão de Machado de Assis (2015), as “coisas miúdas” da cena urbana que, muitas vezes, demostram desolação, obscuridade, alienação e desintegração. Ele criou uma “galeria de criaturas em que palpita a matéria romanesca” (COZARINSKY, 2020, n. p.) em 50 textos curtos. Charles Baudelaire “desposa a multidão” das ruas da cidade, buscando nelas a matéria de sua prosa poética.

Pequenos poemas em prosa é uma obra “que não tem pé nem cabeça, uma vez que tudo nela é, ao mesmo tempo, pé e cabeça” (BAUDELAIRE, 2020, p. 7). Então, pode-se ler um poema na primeira página e outro na última que se entende sem a necessidade de apreender o todo da obra. Não há unidade que exija uma leitura sequenciada dos poemas. Há, sim, uma unidade temática, pois todos os poemas exprimem a agústia do homem moderno em meio às multidões das grandes cidades. Uma estética, que reivindica inovações formais que rompem com padrões estabelecidos, é inaugurada com os pequenos poemas em prosa. A liberdade criadora é reivindicada do primeiro ao último poema.

O spleen de Paris é também uma galeria de criaturas em que palpita uma matéria romanesca, quase sempre em estado de esboço, volta e meia já como personagens delineados: a mãe do menino que pede, como recordação, o prego e um pedaço da corda que serviram à morte de seu filho; numa feira de atrações, um homem que exibe numa jaula de ferro a própria mulher, disfarçada de orangotango, arranca-lhe dos dentes um animal vivo e a castiga com “uma boa pancada”; chegada a noite e finda a brincadeira, uns meninos que se separam para, sem sabê-lo, “amadurecer seu destino, escandalizar os seus e gravitar rumo à glória ou à desonra”. (COZARINSKY, 2020, n. p.)

A polaridade que mais ilustrou a vida de Baudelaire foi, talvez, seu dandismo e sua boemia: do vapor à água em um único movimento. Difundia o seu “eu” em todos os meios. Viver todas as experiências parecia ser sua meta, inclusive a experiência com drogas. Em Baudelaire, houve sempre a busca pelo verso perfeito: o poeta chegava a refazer, dezenas de vezes, um só poema. Os artistas mais admirados por ele eram, também, modelos de concentração e disciplina: Delacroix (1798-1863), Gautier (1811-1872) e Constantin Guys (1802-1892). Aliás, Baudelaire sempre buscou combater a visão burguesa de que o fazer artístico era algo menor e desorganizado (cf. MENEZES, 2020).

A vida moderna, que os novos espaços urbanos fizeram surgir, tinha, por excelência, a marca do eu; o indivíduo era o centro das atenções. Para esse homem se voltaram todas as estratégias do mercado. A arte moderna também tinha de nascer daí, da experiência individual. O indivíduo deveria ― ele mesmo ― participar diretamente da vida e fazê-la transcender-se.

O spleen (melancolia), que anula o interesse e a receptividade, era uma das características marcantes do homem do século XIX, e era preciso tentar salvar sua personalidade da degradação provocada pela nova cidade. O melancólico se isola e o mundo passa por ele como um filme em preto e branco: nada o toca ou tem sentido. O indivíduo tenta preservar seu “eu” ante a massificação.

Em Baudelaire, o melancólico encontra seu correspondente no sujeito blasé, de Simmel (1858-1918): ambos lutam para preservar a autonomia perante as esmagadoras forças do mundo objetivo. Suas personalidades são arrastadas para uma sensação de inutilidade. Parece não restar a eles outra saída contra a planificação de suas vidas.

No poema em prosa “As multidões”, Baudelaire nos ensina que “multidão, solidão, são termos iguais e conversíveis para o poeta ativo e fecundo” (BAUDELAIRE, 2020, p. 26). Desgarrado deste mundo, o poeta não deixa que os prazeres lhe obscureçam a iluminação estética. Essa multidão só pode ser vista e sentida por alguém que sabe “povoar a sua solidão” (Ibidem, p. 26). “Aquilo que os homens chamam amor é muito pequeno, muito limitado e muito frágil, comparado a essa inefável orgia, a essa sagrada prostituição da alma que se dá inteira, poesia e caridade, ao imprevisto que surge, ao desconhecido que passa” (Ibidem, p. 26).

Baudelaire é mostrado como o artista que não se furtou das experiências com as novas técnicas e maneiras de sentir a realidade ao redor. Se experimentou drogas, o fez para buscar uma nova percepção das coisas. O poeta se embriagou com álcool e haxixe na tentativa de abrir a percepção para capturar a atmosfera que o envolvia ― mundo novo que deveria, também, fazer parte da nova arte.

“É preciso estar sempre ébrio. Essa é toda, essa é a única questão. Se não quiserdes mais sentir o terrível fardo do Tempo que vos dobra as costas e vos curva ao chão, é preciso que vos embriagueis sem trégua” (BAUDELAIRE, 2020, p. 81). É este o convite do poeta no poema em prosa: “Embriaguem-se”. Aquele que vaga solto, embriagado, consegue sentir melhor as formas e os contornos do urbano, e era essa a pretensão de Baudelaire: ele queria ver e sentir a cidade para melhor traduzi-la em poesia.

Já no poema em prosa “Os olhos dos pobres”, o poeta nos conta a história de uma família de pobres que observava um casal através da vidraça de um belo café em um desses novos boulevards.

Bem diante de nós, na calçada, estava plantado um bom homem de uns quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, segurando com um das mão um menino e carregando no outro braço uma criaturinha fraca demais para caminhar. Fazia as vezes da babá e levava os filhos para respirar a fresca da noite. Todos em farrapos. Aqueles três rostos eram extraordinariamente sérios, e aqueles seis olhos contemplavam fixamente o novo café com igual admiração, mas com nuanças diversas, segundo a idade. (BAUFELAIRE, 2020, p. 58-59)

Vários outros poetas, contemporâneos de Baudelaire, falavam desse cenário. Victor Hugo (1082-1885) talvez tenha sido o mais eloquente em Os miseráveis (1862). Mas essa não era só uma ideia literária, mas, antes, a mais brutal realidade. As mudanças sociais provocadas pelo novo modo de produção fizeram com que as cidades inchassem e aqueles que não encontravam emprego no mercado estavam fadados a viverem nas ruas e praças.

Nesse cenário, não só o poeta não tinha o que fazer, como também milhares de pessoas perambulavam em busca de pão. Mas no poeta a dor era maior. Não se tratava apenas de vender sua força de trabalho a outrem, mas sua produção intelectual. Afinal, o artista, mensageiro dos deuses, como podia, agora, ver-se obrigado a se entregar a tão vil “amante”?

Há um misto de dor e prazer nessa entrega; em um momento ele a recusa, mas no outro se vê obrigado ao ato. Afinal, a burguesia consegue despojar da auréola, como reclamava Marx (1818- 1883), todas as profissões liberais. Transformou também o artista em trabalhador assalariado. Se não há mais o mecenas, existe o gosto geral e particular que deve ser agradado.

No poema “A perda do halo”, Baudelaire, na opinião de Marshall Berman (1940-2013) (1986), apresenta-nos cenas arquetípicas da vida moderna. Um poeta atravessa um boulevard, espaço construído em Paris durante as reformas urbanas do Barão Haussmann (1809-1891), quando seu halo vai ao chão em meio ao lamaçal da rua. Não é uma rua qualquer; é antes, a nova rua que nasce na cidade reurbanizada, rua larga, em linha reta que corta a metrópole. Quando essas ruas foram projetadas, pensava Napoleão III, que elas não só poderiam sorver o tráfego rápido, mas também facilitar a locomoção dos exércitos de sua majestade para conter eventuais revoltas populares (cf. MENEZES, 2013).

No poema, acontece o encontro entre dois homens; antes, porém, acontece o encontro entre o poeta e as forças dispersas na rua: tráfego, animais, pessoas. O diálogo entre o homem do povo e o poeta acontece em um mauvais lieu, um bordel. O homem se espanta em ver ali um poeta: “O que!? Você aqui, meu caro? Você, num lugar desses!” (BAUDELAIRE, 2020, p. 100).

O homem, que via no artista um santo, alguém acima do bem e do mal, fica escandalizado. O halo representa isto: o sagrado na arte. Não só Baudelaire, mas muitos de sua época, viam a arte e o artista como algo puro. O que cai é o sagrado. O divino é a morte de Deus na arte que caminha para o grande mercado capitalista. A imagem lembra o Manifesto Comunista (1848).

— Mas como? Você por aqui, meu caro? Você, num lugar de má fama! Você, sorvedor de quintessência, você, um degustador de ambrosia! Vamos e venhamos, é de surpreender!

— Meu caro, você sabe do meu terror aos cavalos e às carruagens. Ainda há pouco, quando vinha atravessando o bulevar com a maior pressa, saltitando sobre a lama, através daquele caos movente em que a morte chega a galope, de todos os lados, a um só tempo, minha auréola, por conta de um movimento brusco, deslizou da minha cabeça e caiu no lodo do macadame. Não tive coragem de pegá-la de volta. Achei menos desagradável perder minhas insígnias do que ter os ossos rebentados. E, depois, eu me dizia, há males que vêm para bem. Agora posso passear incógnito, cometer atos vis e me entregar à devassidão, como os simples mortais. E cá estou, perfeitamente semelhante a você, como vê! (BAUDELAIRE, 2020, p. 100)

O herói de Baudelaire é aqui o anti-herói. O encontro entre o homem e o poeta acontece em um lugar onde não há o que esconder. Um surpreende o outro, e o véu se rompe. Não há desculpas a serem dadas, são o que são. É esta a grande contribuição desses novos espaços urbanos: para se livrar da morte no tráfego, você tem de se despir de medos, preconceitos e se vê obrigado a lutar com as armas que possui. É neste momento, nu, que percebemos que somos todos iguais, feitos do mesmo “tecido”. Lançado no turbilhão do trânsito da cidade, o poeta é o arquétipo do homem moderno, perdido no tráfego da grande metrópole do século XX.

O poema mostra como, nessa cidade moderna, cada pessoa tem de aprender a se arranjar, ou morre debaixo da roda das carroças. Mas, ao mesmo tempo, esta nova experiência vai mostrar a este homem como ele pode ser livre e vagar por toda a cidade, fazer dela seu ninho, seu quase paraíso. O poeta de Baudelaire sabe agora que a arte não é santa e que ela pode nascer em qualquer lugar, até mesmo na sarjeta.

Um dos paradoxos da modernidade, como Baudelaire a vê aqui, é que seus poetas se tornarão mais profunda e autenticamente poéticos quanto mais se tornarem homens comuns. Lançando-se no caos da vida cotidiana do mundo moderno ― uma vida de que o novo tráfego é o símbolo primordial ― o poeta pode apropriar-se dessa vida para a arte. (BERMAN, 1986, p. 155)

A modernidade de Baudelaire traz em si o seu contrário: a resistência à modernidade. O “novo” do poeta é desesperado, que é justamente uma possibilidade de sentido do francês spleen. Ele se torna ambivalente a essa modernidade cuja invenção lhe é atribuída. A visão alegórica de Baudelaire transforma a cidade em ruínas.

Baudelaire se entregou a tudo com muita paixão. Mergulhou nas ruas de Paris em busca de experiências que pudessem ser agregadas ao seu fazer poético: ele amava toda a vida que florescia nos submundos da metrópole. Paradoxal, com uma insólita capacidade de mudar substancialmente de direção, Baudelaire quis viver todas as experiências, mas, ao mesmo tempo, sabia que não se podia perder a disciplina. Confira estes debates expostos de forma poética na nova edição de O spleen de Paris, lançada pela Editora 34. Boa leitura!

Referências

AUERBACH, Erich. Ensaios de literatura ocidental. São Paulo: Editora 34, 2007.

BAUDELAIE, Charles. O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2020.

BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo. Companhia de Letras, 1986.

COZARINSKY, Edgardo. In: BAUDELAIE, Charles. O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Tradução de Samuel Titan Jr. São Paulo: Editora 34, 2020.

HUGO, Victor. Os miseráveis. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2005.

MENEZES, Marcos Antonio de. O poeta da vida moderna: história e literatura em Baudelaire. Curitiba, CRV, 2013.

MENEZES, Marcos Antonio de. Um flâneur perdido na metrópole do século XIX: história e literatura em Baudelaire. Curitiba: CRV, 2020.


Resenhista

Marcos Antonio de Menezes – Possui graduação em História pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU (1996), mestrado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP Franca (1999) e doutorado em História pela Universidade Federal do Paraná – UFPR (2004). Estágio Pós-doutoral pela Universidade Federal de Minas Gerias – UFMG (2016). É professor associado da Universidade Federal de Jataí, atuando no Programa de Pós-Graduação em História (Mestrado e Doutorado) da Universidade Federal de Goiás – UFG, em Goiânia, desde 2005. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5906542748941462 . E-mail: [email protected]   https://orcid.org/0000-0001-8472-8186


Referências desta Resenha

BAUDELAIE, Charles. O spleen de Paris: pequenos poemas em prosa. Trad. Samuel Titan Junior. São Paulo: Editora 34, 2020. Resenha de: MENEZES, Marcos Antonio de. Melancolia urbana: o poeta maldito vaga pela Paris oiticentista. Albuquerque. Campo Grande, v. 13, n. 26, p. 202- 207, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]

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