Os Carrascos Voluntários de Hitler. O povo alemão e o Holocausto – GOLDHAGEN (RBH)

GOLDHAGEN, Daniel Jonah. Os Carrascos Voluntários de Hitler. O povo alemão e o Holocausto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Resenha de: BERTONHA, João Fábio. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19 n.37 sept. 1999.

Em 1996, o livro de um jovem professor de Harvard provocou um verdadeiro terremoto no meio universitário europeu e americano, além de uma verdadeira crise de consciência na Alemanha, onde o texto foi lido, relido e provocou imenso debate. Sua tese central: os alemães, como povo, foram ativos e voluntários carrascos dos judeus durante o Holocausto nazista.

Goldhagen refuta categoricamente a idéia de que os carrascos nazistas assassinaram os judeus por coerção, por uma disciplina tipicamente alemã que os levava a cumprir mesmo as ordens que consideravam indignas, por pressão psicológica, ou ainda, numa recusa clara das teses de Hannah Arendt1, por serem burocratas cumprindo suas obrigações, sem se importar com mais nada. Para ele, os alemães massacraram os judeus porque acreditavam realmente que assassinar o povo hebreu era algo necessário e correto, e a base para essa crença seria o anti-semitismo, desenvolvido em séculos de história alemã.

Trabalhando em torno dessa tese, o autor vai procurar demonstrar as origens do anti-semitismo em torno do cristianismo e a sua lenta evolução de um padrão “religioso” onde havia aversão e discriminação (mas onde não se pregava o extermínio e se abriam as portas, ao menos teóricas, da conversão) para um outro “nacional” e cada vez mais “racial”, onde o problema judeu só poderia ser realmente resolvido com a sua eliminação do corpo nacional e racial alemão.

Para ele, o modelo anti-semita alemão, com ênfase na periculosidade e na necessidade de eliminar os judeus, já estava plenamente desenvolvido na Alemanha do século XIX e início do XX. O regime nazista não teria criado, assim, o ódio aos judeus, mas se aproveitado de um sentimento antigo e disseminado pela sociedade alemã como um todo. Tanto seria assim que as leis anti-semitas e o próprio Holocausto teriam sido integralmente apoiados pela sociedade alemã, mesmo entre os grupos (católicos, conservadores etc.) que, por outros motivos, opunham-se ao menos parcialmente, ao Reich.

Hitler e o nazismo sempre teriam tido, sempre segundo Goldhagen, a intenção de efetivar o genocídio. Apenas as condições objetivas teriam retardado o processo até o momento adequado, quando então o massacre dos judeus se tornou a prioridade número um do regime.

O texto procura ressaltar à exaustão que os alemães foram cruéis até o último segundo. Que não eram burocratas executando ordens. Odiavam. Que não foram enganados. Tinham consciência e apreciavam o que faziam. Que não foram coagidos. Eram voluntários. E que, especialmente, os carrascos não eram simplesmente os SS, mas militares, policiais, alemães comuns, os “carrascos voluntários” de Hitler.

A abordagem de Goldhagen é muito interessante em vários aspectos. Em primeiro lugar, a idéia de interromper o estudo da máquina de morte alemã na voz passiva, como se ela fosse apenas uma estrutura mecânica, sem homens de carne e osso que a faziam funcionar e estudar as motivações desses homens é muito importante ao recuperar o seu papel (e a sua culpa) num processo em que eles não eram, sem dúvida, cem por cento passivos.

O livro também cresce ao ressaltar o papel das idéias e das mentalidades no fazer-se histórico. De fato, é uma realidade que o extermínio dos judeus foi realizado contra toda a lógica das necessidades militares e econômicas, e é possível até imaginar que o uso racional da mão de obra judia na economia e nas forças armadas poderia ter levado a Alemanha à vitória na guerra. Em nome da necessidade de eliminar o grande inimigo (cem por cento imaginário, sem dúvida) da raça alemã e de atender o leitmotiv de sua ideologia e uma das bases de sua estrutura mental (o “perigo judeu”), os nazistas podem, paradoxalmente, ter destruído as suas próprias chances de vitória. Nesse sentido, os carrascos não eram, certamente, totalmente passivos e a grande maioria devia considerar que fazia o correto e o justo, por mais repugnante que isso possa parecer.

Pensando nesse sentido, a idéia assustadora levantada pelo autor de que os nazistas foram, talvez, os maiores revolucionários modernos, não deve ser descartada. Eles não pensavam, realmente, em apenas resolver questões de classe e poder, mas em reverter a moral européia, arrasar a herança do moralismo cristão e do humanismo iluminista e criar um novo mundo baseado na biologia, na raça, na dominação e no ódio.

Apesar de tudo, porém, várias das teses de Goldhagen podem ser questionadas. Que havia uma base cultural de séculos que facilitou e muito o trabalho dos nazistas e que eles não criaram e impuseram o anti-semitismo, é algo evidente, mas é grandemente duvidoso que esse anti-semitismo tenha sido tão generalizado e genocida como ele propõe.

De fato, suas provas de que o anti-semitismo era absoluto e incontestável na Alemanha; de que o povo alemão estava total e completamente consciente do que ocorria, que aprovava tudo sem hesitação2 e de que toda pessoa que compartilhasse algum traço de anti-semitismo (por mais sutil que fosse) era um genocida pronto a atuar quando as condições fossem propícias, são muito falhas e não refletem a realidade histórica.

Não sejamos ingênuos. É verdade que a idéia, correta para muitas pessoas, de que os judeus deviam morrer, colaborou para o Holocausto e que, muito provavelmente, as resistências teriam sido muito maiores se, para usar o exemplo do autor, tivesse sido o povo dinamarquês o escolhido para vítima. Esse anti-semitismo, porém, era comum à grande parte da Europa e o autor não consegue provar que o alemão era tão particularmente genocida como ele deseja demonstrar.

Diferenças nacionais frente ao anti-semitismo certamente existiram e determinaram reações diferentes frente ao desejo nazista de exterminar o judaísmo europeu (ver o colaboracionismo báltico ou romeno e a resistência italiana e dinamarquesa), mas não há nada que indique realmente que apenas o alemão, apesar de fortíssimo e com suas peculiariedades3, tinha o ethos cultural que levaria inevitavelmente ao genocídio.

A particularidade da Alemanha nazista, na realidade, é que um grupo particularmente radical e disposto a implantar seus ideais (e dentro destes a eliminação do “perigo judeu” atingia uma importância única), assumiu o poder (fazendo-o não apenas pelo seu anti-semitismo, ao contrário do que propõe o autor) e não só permitiu, como estimulou ao extremo a criação de uma máquina de morte que foi dirigida com especial ênfase e crueldade aos judeus, mas que podia ser transferida (e o foi) contra outros povos e até mesmo contra os próprios alemães, se isso fosse necessário para a manutenção do poder e a criação do “mundo novo” nazista4. Goldhagen apenas consegue isolar o elemento que explica o “tratamento especial” dado aos judeus5 e não aquele capaz de nos fazer compreender a “máquina da morte” nazista como um todo.

Nesse sentido, parece-nos que, apesar das objeções de Goldhagen, as informações e reflexões de Hannah Arendt e Cristopher Browning6 sobre como muitos dos mentores e agentes do extermínio não eram necessariamente anti-semitas extremados, mas principalmente fiéis funcionários da Alemanha e do Reich que cumpririam quaisquer funções – com maior ou menor entusiasmo – para os quais fossem designados, continuam válidas. Sendo assim, o extermínio dos dinamarqueses, por exemplo, teria suscitado muito menos entusiasmo e muito mais resistências do que o dos judeus, sem dúvida, mas, se fosse esse o interesse dos dirigentes do Reich, teria sido certamente realizado.

Também é bastante questionável a sua convicção (compreensível dentro do seu esforço para mostrar o massacre dos judeus como efeito natural do anti-semitismo alemão) de que o Holocausto figurava permanentemente nas mentes de todos os alemães desde sempre. Que muitos alemães, desde o século XIX, e, especialmente, muitos nazistas (incluindo Hitler), pensavam com freqüência na idéia de exterminar os judeus e esperaram o momento propício para isso, é perfeitamente aceitável. É difícil acreditar, porém, que essa idéia tenha estado sempre tão presente na mente de todos os alemães e mesmo na de todos os nazistas e que soluções outras não tenham sido cogitadas. Mais provável é que a evolução das condições históricas tenha feito a cúpula nazista decidir pela “solução final” e não que eles tenham simplesmente esperado essas condições para implementar um plano decidido desde sempre7.

A incapacidade (ou falta de vontade) do autor em fazer distinção entre, por exemplo, os iluministas alemães do XIX interessados em assimilar pacificamente os judeus e ferozes anti-semitas realmente genocidas como, por exemplo, Streicher, também é frustrante. Ao reunir, de fato, numa categoria única (determinada pela cultura alemã) todas as pessoas que tenham tido algum tipo de pensamento ou ação anti-semita, isolá-las de seus contextos e ignorar o anti-semitismo fora das fronteiras da Alemanha, ele acaba negligenciando o próprio papel e a própria culpa das elites nazistas e dos genocidas verdadeiros, pois, se levarmos o seu raciocínio ao extremo, o Holocausto não teria sido mais do que a expressão da essência da alma alemã. Voltamos à “voz passiva” de onde tínhamos tentado sair.

O livro também tem inconsistências metodológicas evidentes e é irritantemente repetitivo, como que desejando convencer o leitor pelo cansaço da validade de suas teses. Entre essas inconsistências, as mais gritantes são a generalização, as simplificações, a colocação de fatos fora do contexto e a ignorância de dados que poderiam contradizer a tese principal.

De fato, a partir de alguns exemplos de anti-semitismo dos carrascos (certamente verdadeiros), ele generaliza para todo o povo alemão, sem dar virtualmente nenhum indício consistente de que essa generalização era possível8 e recusando fontes que fornecem indícios em contrário9. No decorrer do próprio livro, além disso, são contínuos os momentos em que, para demonstrar o anti-semitismo generalizado e absoluto dos alemães, ele cita exemplos que acabam por contradizê-lo10. São problemas que afetam, sem dúvida, a credibilidade do trabalho11.

O livro, além disso, procura mostrar-se como totalmente inovador ao trabalhar as motivações dos carrascos e a resposta definitiva ao problema do Holocausto, o que na verdade não é12. Em grande parte, realmente, ele não passa de uma “reescritura” de velhos textos, o que nos impede de aceitar que ele seja o “supra-sumo” da historiografia que o autor considera. Ele é útil ao isolar, ainda que de forma problemática, um elemento (o anti-semitismo) que fez dos judeus a grande vítima da “máquina da morte” nazista, mas é incapaz de trabalhar com o conjunto que fez dessa máquina um perigo para todo o mundo, incluindo judeus, não judeus e até alemães.

Notas

1 ARENDT, Hannah. Eichmann in Jerusalém. Um retrato sobre a banalidade do mal. Rio de Janeiro, Diagrama e Texto, 1983.

2 Que não havia total ignorância, é evidente até pela própria magnitude do evento. Ver LAQUEUR, Walter. O Terrível Segredo – A verdade sobre a manipulação de informações na “solução final” de Hitler. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

3 Ver TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza. O Anti-semitismo na era Vargas (1930-1945). São Paulo, Brasiliense, 1988, parte 1; POLIAKOV, León. A Europa Suicida. São Paulo, Perspectiva, 1985 e SORLIN, Pierre. O anti-semitismo alemão. São Paulo, Perspectiva, 1974.

4 O caso do extermínio dos doentes mentais alemães é, nesse sentido, exemplar. Goldhagen tem razão, porém, em recordar como o massacre dos alemães levantou muito mais protestos na Alemanha do que o dos judeus. Ver CYTRYCNOWICZ, Roney. Memória da Barbárie – A história do genocídio dos judeus na II Guerra Mundial. São Paulo, EDUSP/Nova Stella, 1990, pp. 47-56 e BURLEIGH, Michael. Euthanasia in Germany, 1900-1945. Cambridge, Cambridge University Press, 1995.

5 Ele demonstra com razoável eficiência (ainda que ignorando a brutal violência e crueldade nazista contra os eslavos e ciganos, por exemplo, e subestimando o fato, sobre o qual ele é plenamente consciente, de que a crueldade nos campos não era, muitas vezes, derivada apenas de motivações cognitivas, mas também de uma estratégia cuidadosamente pensada para instituir a dominação e a submissão) que realmente os judeus foram o povo escolhido não para o trabalho escravo e a morte e a violência ocasionais, mas para o extermínio e a crueldade totais. Ainda assim, e ainda que os séculos de anti-semitismo tenham influência clara nessa situação, esquecer o papel da “pirâmide racial nazista” na determinação dos níveis “aceitáveis” de violência e extermínio em relação a cada grupo é problemático.

6 ARENDT, Hannah. op. cit. e BROWNING, Cristopher R. Ordinary Men – Reserve Police Batallion 101 and the final solution in Poland. New York, Harper Collins, 1992.

7 Ver CYTRYNOWICZ, Roney. op. cit. e BURRIN, Philip. Hitler e os judeus – Gênese de um genocídio. Porto Alegre, L & PM, 1990.

8 Ainda assim, sua demonstração de que os agentes do Holocausto não eram apenas os membros da SS e que incluíram muitos alemães comuns é convincente e merece ser destacada como lembrança do nível de envolvimento do povo alemão com o nazismo. Só nesse sentido é que a “culpa geral do povo alemão” poderia, no nosso entender, ser aceita.

9 Ver o diário do judeu alemão Viktor Klemperer, onde há vários exemplos de alemães solidários com os judeus (subutilizado no livro) ou, para ficar em exemplos mais conhecidos da mídia, os casos de Edward Schultze e Oskar Schindler. Ver KLEMPERER, Viktor. I will bear witness – A Diary of the Nazi years, 1933-45. Random House, 1998; LAQUEUR, Walter e BREITMAN, Richard. O herói solitário. São Paulo, Best Seller, 1987 e o filme A lista de Schindler, de Steven Spielberg.

10 O mais gritante é o das páginas 371-372, onde ele mostra prisioneiras judias em plena “marcha da morte” sendo impedidas de receber alimentos ofertados pela população das pequenas aldeias alemãs por onde elas passavam. Um bom exemplo de como os guardas, muitos deles “alemães comuns”, não apreciavam (para dizer o mínimo) os judeus e desejavam puní-los, mas dificilmente um bom indício de que o anti-semitismo era tão absoluto como o que ele propõe.

11 Para uma análise detalhada dos problemas metodológicos do livro de Goldhagen, ver FINKELSTEIN, Norman e BIRN, Ruth. A Nation on trial. New York, Metropolitan, 1998.

12 Cristopher Browning e Raul Hilberg, por exemplo, já haviam trabalhado a questão das motivações dos carrascos, mas se concentrado nas circunstâncias que haviam feito bons pais de família alemães virarem genocidas, incluindo preocupações anti-semitas, mas não propondo um anti-semitismo absoluto como motivação única. Ver BROWNING, Cristopher. op. cit. e HILBERG, Raul. The Destruction of the European Jews. New York, New Viewsport, 1973.

João Fábio Bertonha – Universidade Estadual de Maringá.

Acessar publicação original

[IF]

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.