Os estudos decoloniais centrados nas filosofias indígenas ameríndias | PerCursos | 2021

Este dossiê foi organizado por docentes que atuam com a temática indígena; o historiador Clovis Antonio Brighenti (UNILA), a advogada Rosane Freire Lacerda (UFPE) e o bioeticista Saulo Ferreira Feitosa (UFPE). A escolha do título, Os estudos decoloniais centrados nas filosofias indígenas ameríndias, tem como propósito promover diálogos inter epistêmicos que possibilitem uma interação entre os sistemas tradicionais de conhecimentos indígenas e os conhecimentos acadêmicos produzidos a partir de pesquisas científicas. Nesse sentido, espera-se que ele contribua com os processos de contestação e insubmissão à colonialidade do saber, na medida em que possibilite a visibilização de outros modos de existência construídos com base em filosofias próprias dos povos originários da América Latina e do Caribe.

Os artigos aqui reunidos têm em comum as novas abordagens possibilitadas pelas teorias decoloniais, a partir das perspectivas dos povos indígenas expressas em seus sistemas de vida: seus saberes, suas práticas, relações socioeconômicas, relações socioambientais e espirituais − enfim, um conjunto de conhecimentos específicos e diferenciados.

O Dossiê é resultado das reflexões do Curso de Extensão em Histórias e Culturas Indígenas, no qual os organizadores são docentes, ofertado anualmente pela Universidade Federal da Integração Latino-americana, em parceria com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a um público bastante diversificado, mas que tem como foco a atuação com a temática indígena no seu campo de pesquisa e ação.

Os estudos decoloniais ganharam importante espaço nas produções acadêmicas nas últimas décadas, estabelecendo novas e profundas viradas epistêmicas ao assumirem um posicionamento crítico à colonialidade do poder, do saber e do ser. São produções que questionam a dominação colonial e propõem uma nova forma de pensar e de relacionar-se com as epistemologias dos povos originários, a partir de novos lugares e de outros valores, rompendo com a dominação histórica e o racismo epistêmico.

Os saberes dos povos indígenas são centrais nesse processo porque, além da rica diversidade, estão ancorados em experiências milenares que se formaram a partir das próprias ciências nativas, de experimentos e vivências com o ambiente latino-americano, ou seja, gestados no Território da Abya Yala, conforme é denominado por alguns povos esse espaço continental. Ao longo da história dos últimos 529 anos da invasão Ibérica no continente, os saberes dos povos originários não foram considerados, exceto aqueles usurpados para serem transformados em mercadoria. Ocorreu o processo que o professor Boaventura de Sousa Santos definiu como epistemicídio, ou seja, tentativas de eliminação e substituição dos saberes nativos.

Apesar da violência histórica, os povos originários resistiram na defesa de seus modos de existir, tanto na luta para assegurar seus territórios físicos, as terras tradicionalmente ocupadas, quanto na defesa de seus territórios epistêmicos. O presente dossiê revela o grande desafio que é conhecer e dialogar com a pluralidade de saberes dos povos indígenas, o que poderá servir como apontamento para a superação de diversas mazelas humanitárias decorrentes do projeto colonial europeu que pretendeu subjugar e homogeneizar os saberes Outros. São temas que partem do pressuposto da interculturalidade e interdisciplinaridade não apenas nas áreas da antropologia e história, mas nas diversas áreas do conhecimento.

No primeiro artigo, Do encobrimento da memória e do outro: uma analítica acerca dos relatos da colonização, os autores traçam uma análise do processo de colonização, pelo qual surge a figura do “índio” e toda sua carga generalizante e pejorativa. Atividade necessária para o colonialismo a fim de descaracterizar a humanidade e diversidade dos povos indígenas e justificar o mito da modernidade. Na sequência, vem o artigo Un pueblo y una clave para filosofar, no qual os autores propõem romper com os parâmetros da modernidade e pós-modernidade e buscar novas atitudes decoloniais através da experiência de “inserção e enculturação” ou indigenização, a fim de superar os paradigmas racionais dominantes e acessar o “ayxa sk” ujol, ou seja, usar mais o coração e a percepção e menos a razão manifestada pelo cérebro.

No artigo Espelho espelho meu… a ferida narcísica de um colonialismo falocêntrico, a autora propõe a criação de uma nova linguagem decolonial a fim de reconstruir a noção de conhecimento. Para ela, foi o sistema patriarcal moderno que colonizou, ao longo da história, as narrativas e as línguas nativas que, segundo ela, são intraduzíveis para os colonizadores, sendo a língua um ideal regulatório. A partir do pensamento feminista decolonial, propõe a criação de uma nova linguagem, fugindo das restrições gramaticais que perpassam o gênero, a sexualidade e a racialidade. Por fim, defende que escrever é, portanto, um ato de resistência. Por sua vez, o artigo Filosofia de uma pessoa coletiva faz uma análise das obras do filósofo indígena Ailton Krenak, a fim de problematizar a ideia de sujeito coletivo ou pessoa coletiva. Para o autor, é necessário questionar o senso comum ocidental que considera o labor filosófico como algo que se realiza individualmente. Propõe também uma crítica às noções de ancestralidade, memória e tradição ao compreender como o filósofo Krenak sugere outra forma de se relacionar com temas da Filosofia.

Em Interculturalidade, colonialidade e povo Guarani – a busca da Terra sem Males, os autores convidam a uma reflexão sobre os processos de colonização sofridos pelos povos indígenas da América Latina, em particular o povo Guarani. Registram as contribuições de Néstor Garcia Canclini e Clifford Geertz para pensar a interculturalidade e suas relações. Como análise prática, trazem a contribuição do povo Guarani e sua concepção mística/religiosa da “busca da Terra sem Males”.

O debate sobre a memória é a proposta do artigo Narrativas savantes construindo os territórios dos povos tradicionais no semiárido alagoano, em que a autora analisa as narrativas orais do povo Xukuru-Kariri na cidade de Palmeira dos Índios (AL), destacando que o exercício de cultivar a memória dentre os povos indígenas agrega principalmente a função de educar. O artigo destaca também que na arte de educar emergem as experiências pretéritas que contribuíram para a recuperação do antigo território (outrora ocupado), também usado nos exercícios das atividades cotidianas, dos rituais funerários, das correrias contra os invasores, contra a seca, contra a fome. Conclui afirmando que falar em narrativa histórica e memória dos esquecidos é invocar a presença do passado, que não podendo ser retomado em sua totalidade, retoma a relação interétnica e os desafios da alteridade.

Através do artigo Pensamento indígena e conhecimento histórico: reflexões acerca das funções do ensino de história, o autor faz uma reflexão sobre possíveis diálogos entre a produção teórica de autores indígenas e o ensino de história. O artigo traz uma reflexão acerca do ensino de história indígena com base nas discussões apresentadas pela educação histórica, focando na perspectiva das narrativas indígenas e suas contribuições para a historiografia e o ensino. Na sequência, o artigo Filosofias indígenas: fractalidade como ferramenta de conhecimentos tradicionais busca compreender a complexidade do pensamento indígena da não exclusão e multiescalaridade, permitindo espaço para os contraditórios, ao passo que a filosofia não ameríndia, dos povos egípcios, helenos, persas, fenícios e romanos, que deram a base para o pensamento europeu, fundamentarem-se na perspectiva compactada por Aristóteles no princípio da não contradição, que afirma nada poder ser e não ser ao mesmo tempo.

O artigo Comunidade indígena Fuduwaadunha: vida e convivência na região de Auaris – Terra Indígena Yanomami – Roraima analisa a prática da gestão territorial das comunidades Ashikamau e Fuduwaadunha da região de Auarís, na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Traz ao debate as mudanças impostas pelos agentes externos – Funai, missões evangélicas, pelotão de fronteira e Funasa – a fim de compreender as mudanças impostas à gestão do território nos tempos atuais, considerando o crescimento populacional e demandas por produção e extração de alimentos. Na mesma perspectiva de pensar os desafios das gestões territoriais e os impactos do mundo externo, o artigo Entre mundos: a colonialidade no rompimento da barragem de fundão em Mariana/MG. sentidos e percepções dos Krenak analisa os impactos do crime ambiental e humano provocados pela empresa Vale do Rio Doce. A partir do depoimento de lideranças do povo Krenak, os autores analisam os desafios para os Krenak, não apenas na dimensão econômica, mas também na perspectiva da identidade, da sociabilidade, da religiosidade e da medicina tradicional. Para os autores, os depoimentos demonstram que o crime não foi um fato isolado, mas o capítulo de um processo histórico de violências impostas pelo colonialismo.

Na sequência, o Dossiê incorporou o artigo sobre as práticas medicinais indígenas e os preconceitos revelados sobre os mesmos. Com o título Entre as (re)existências da cura xamânica na região amazônica e o cientificismo colonial: Um olhar discursivo sobre o silenciamento vivenciado pelos povos originários, o artigo aborda a temática da eficácia simbólica do Xamanismo, na busca da cura dos sujeitos envolvidos, bem como levanta questões sobre o silenciamento desses sujeitos originários em favor das práticas de cura cientificistas. Tendo como proposição teórico-metodológica a análise do discurso, as autoras analisam a prática xamânica na contemporaneidade, sua experimentação, os preconceitos e a subjugação frente às práticas de cura trazidas pelo colonialismo, com seu cientificismo e suas religiões. Na mesma perspectiva do artigo acima, Pesquisa ação e possibilidades de interculturalidade crítica e decolonização da prática acadêmica: comunidade Kanhgág (Kaingang) Por Fi Ga /RS/Brasil analisa o preconceito acadêmico com relação às práticas indígenas. Com base em estudos, os autores analisam que mesmo depois da publicação da Lei 11.645/2008, os cursos pedagógicos e de licenciaturas nas universidades não refletem as histórias e contribuições ameríndias na construção do país. Propõem, então, a participação efetiva das comunidades indígenas nos centros de ensino. Sugerem que as academias se abram para aprender outras epistemologias com as comunidades, construindo espaços que realmente funcionem a partir delas próprias, valorizando assim os conhecimentos indígenas.

Com o artigo Corpo político e crítica decolonial: a 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, a autora traz ao cenário a análise da 1ª Marcha das Mulheres indígenas, ocorrida em agosto de 2019, na cidade de Brasília/DF. O tema é analisado a partir da crítica decolonial à violência de gênero e étnica que as mulheres indígenas experienciam. Faz apontamentos sobre as imagens e os discursos construídos por mídias tradicionais e alternativas, bem como entrevistas realizadas por mulheres indígenas que participaram desse movimento. Por fim, o último artigo, Resurgence: caminhos para descolonização no pensamento de Taiaiake Alfred, traz a contribuição do pensamento indígena através do conceito de Resurgence, elaborado por Taiaiake Alfred, um dos mais importantes pensadores indígenas do Canadá. Para o autor, a definição de Alfred sobre Resurgence é uma estratégia de rompimento com as relações coloniais de poder que incidem sobre a capacidade dos Povos Indígenas viverem e se desenvolverem de acordo com os seus próprios sistemas de pensamento.


Organizadores

Clovis Antonio Brighenti – Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA.

Rosane Freire Lacerda – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

Saulo Ferreira Feitosa – Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.


Referências desta apresentação

BRIGHENTI, Clovis Antonio; LACERDA, Rosane Freire; FEITOSA, Saulo Ferreira. Apresentação. PerCursos. Florianópolis, v. 22, n. 48, p. 04 – 09, jan./abr. 2021. Acessar publicação original [DR]

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