Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra Mundial – CLARK (HU)

CLARK, C. Os sonâmbulos: como eclodiu a Primeira Guerra Mundial. São Paulo, Companhia das Letras, 2014, 700 p. Resenha de: AVILA, Carlos Federico Domínguez. A Grande Guerra cem anos depois: relações internacionais em perspectiva histórica. História Unisinos 20(1):107-109, Janeiro/Abril 2016.

Em 28 de junho de 1914, o bósnio-sérvio Gavrilo Princip disparou e acertou o príncipe-herdeiro do Império Austro-Húngaro e sua esposa, Francisco Ferdinando e Sophie Chotek, respectivamente. Trinta e sete dias depois do atentado em Sarajevo, o continente europeu iniciava a Grande Guerra (1914-1918). Essa conflagração provocou a morte de aproximadamente 20 milhões de pessoas, causou graves ferimentos a outros 21 milhões e forçou uma significativa recomposição da ordem mundial, dentre outras trágicas e dramáticas consequências. Assim, no contexto das comemorações do centenário do início daquela conflagração europeia e mundial têm sido lançadas numerosas obras sobre o assunto, inclusive o magistral trabalho do australiano Christopher Clark, intitulado Os sonâmbulos.

Publicada originalmente em 2012 e lançada no Brasil em maio de 2014 pela Companhia das Letras, a obra resenhada tem recebido críticas muito positivas de especialistas, acadêmicos e do grande público, em numerosos países.

Esses elogios são merecidos. O trabalho de Clark se fundamenta em uma sólida e formidável pesquisa em arquivos e literatura especializada, inclusive documentos diplomáticos procedentes de uma dezena de países europeus, em memórias e em fontes hemerográficas.

Igualmente, é possível perceber inovações metodológicas, particularmente naquilo que diz respeito ao estudo dos processos de tomada de decisões em contexto de crise, ao denominado cálculo estratégico, isto é, a correlação entre objetivos, meios e riscos em política, e à análise de política externa. Nessa linha, a obra dialoga com os estudos históricos, com os estudos políticos, com as relações internacionais, com as ciências sociais e com os estudos interdisciplinares.

A estrutura interna do livro inclui três partes. A primeira, intitulada “Caminhos para Sarajevo” (capítulos 1 e 2), explora as complexas relações bilaterais entre a Sérvia e a Áustria-Hungria, com destaque para a questão do Este é irredentismo dos eslavos do sul, isto é, dos sérvios, dos bósnios e, em menor medida, dos croatas. A segunda parte, intitulada “Um continente dividido” (capítulos 3 a 6), aborda a dinâmica geopolítica europeia, então caracterizada pela tensa coexistência de duas alianças antagônicas; de um lado, a denominada Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria- -Hungria e Itália) e, de outro, a Tríplice Entente (França, Rússia e Reino Unido). E a terceira parte, denominada “Crise” (capítulos 7 a 12), avalia os desdobramentos do atentado em Sarajevo, até o início das hostilidades nos diferentes teatros de operações militares, especialmente no continente europeu, nas colônias das potências beligerantes e nos oceanos. Cumpre adiantar que essa última parte é, salvo melhor interpretação, a mais significativa, proveitosa e relevante do livro.

Com efeito, é pelo magistral estudo da crise de julho de 1914 que Clark continua recebendo os elogios da comunidade acadêmica e do público. Acontece que a crise de julho de 1914 se erigiu em um acontecimento e em problema-objeto de pesquisa extremamente complexo.

Quando comparado à crise dos mísseis soviéticos em Cuba, de 1962, percebemos que a crise de julho de 1914 teve mais atores envolvidos, três atores fundamentais no primeiro caso (Estados Unidos, União Soviética e Cuba), e uma dezena de atores mais ou menos independentes e autônomos, no segundo acontecimento citado (Sérvia, Áustria-Hungria, Rússia, Alemanha, França, Reino Unido, Bulgária, o Império Otomano e, em menor medida, Albânia, Grécia e Itália), sem esquecer algumas organizações secretas ligadas diretamente ao atentado em Sarajevo.

Ao longo da densa obra ora resenhada, é possível verificar numerosos tópicos essenciais no estudo da crise: (i) o clima de desconfiança recíproca entre as alianças antagônicas, (ii) a temerária predisposição a correr riscos, seja para dissuadir os potenciais adversários ou para disciplinar e assegurar a lealdade dos aliados, (iii) a complexa correlação entre fatores estruturais e mudanças conjunturais ou de curto prazo, (iv) as ideologias nacionalistas e militaristas predominantes na época, (v) os planos estratégicos e os desígnios dos Estados (ou sistema de finalidade), e (vi) o uso político do atentado de Sarajevo pelas grandes potências no intuito de alcançar outros objetivos buscados ao longo de muitos anos. Nessa linha, o autor do livro afirma, categoricamente, o seguinte: “Todos os autores principais de nossa história filtravam o mundo através de narrativas construídas com pedaços de experiência coladas por medos, projeções e interesses disfarçados de máximas” (p. 584).

Paralelamente, Clark demonstra convincentemente que, em contraste com a imagem do ator racional unificado própria do pensamento realista clássico, todas as principais potências com vínculos e interesses na crise de julho de 1914 experimentavam significativas disputas interburocráticas, especialmente entre as elites civis, militares e parlamentares. Algo semelhante se observou em relação aos atores não estatais, e àquilo que na atualidade é chamado de agentes da sociedade civil. Inclusive no despótico Império Russo se verificaram divergências interburocráticas significativas, dado que o cenário balcânico, ou especificamente servo-austríaco, poderia desbordar gerando uma guerra europeia; em consequência, o tsar Nicolau II postergou a mobilização geral das forças armadas do seu país por um dia, para tentar encontrar, in extremis, uma saída político-diplomática junto com o seu primo, o kaiser Guilherme II, e evitar a guerra, iniciativa que, finalmente, não prosperou. Nesse sentido, acertou o pesquisador australiano ao sublinhar o seguinte:

Os principais decisores, reis, imperadores, ministros das Relações Exteriores, embaixadores, comandantes militares e uma multidão de autoridades menores, caminharam em direção ao perigo em passos vigilantes, calculados. A eclosão da guerra foi a culminância de cadeias de decisões tomadas por agentes políticos com objetivos conscientes, que eram capazes de certo grau de autorreflexão, avaliaram um conjunto de opções e fizeram os melhores julgamentos ao seu alcance com base nas melhores informações de que dispunham.

Nacionalismo, armamentos, alianças e finanças foram, todos, parte da história, mas só podemos dar-lhes um peso explicativo se for possível considerar que eles moldaram as decisões que, combinadas, fizeram a guerra eclodir (p. 28).

A forte inclinação metodológica de Clark pela documentação político-diplomática e pelo estudo dos processos de tomada de decisões acaba valorando fundamentalmente os atos e o papel das elites e das lideranças, isto é, dos denominados homens de Estado. Segundo o autor do livro, essa opção atenderia ao objetivo de “reconstituir o mais vividamente possível as ‘posições de decisão’ altamente dinâmicas ocupadas pelos principais atores antes e durante o verão de 1914” (p. 29). Acreditamos que o pesquisador australiano consegue alcançar seu objetivo geral de forma muito satisfatória.

Ainda no campo metodológico, parece pertinente, e acertada, a opção de Clark por responder prioritariamente à questão do “como” se gestou e se desenvolveu a crise de julho de 1914, e somente de forma subsidiária e indireta assumir a ainda mais espinhosa questão do “porquê”.

Resumidamente, o “como” pretende compreender as ideias, interpretações e preocupações dos diferentes atores em conflito de forma equilibrada e isenta. Nessa linha, todos os atores envolvidos tinham interesses objetivos, verificáveis e concretos a defender e sustentar. Em outras palavras, ninguém era totalmente virtuoso, inocente ou pacífico no conflito; “precisamos entender como esses acontecimentos foram vivenciados e entremeados em narrativas que estruturaram as percepções e motivaram os comportamentos”, assinala o autor do livro. Paralelamente, Clark recusa, ao máximo, esbarrar nos “porquês”, inclusive para evitar ser forçado a adotar visões teleológicas ou ex post facto, que certamente resultariam, por exemplo, na questão da culpabilidade e em outros dilemas morais de difícil – ou mesmo impossível –, resolução sob uma perspectiva estritamente científica.

A esse respeito, parece pertinente lembrar que, segundo o tratado de Versalhes, de 1919, o tema da culpabilidade da guerra foi atribuído fundamentalmente à Alemanha. Contudo, uma avaliação mais isenta e bem documentada não pode deixar de constatar que o sistema de alianças antagônicas, a qualidade das lideranças, os interesses e as ambições imperialistas das classes dominantes, especialmente dos lobbies industriais e financeiros, e até a cultura política de orientação militarista predominante em numerosas sociedades europeias tiveram igual ou maior responsabilidade do que a política germânica diante dos disparos de Sarajevo, em particular, e da geopolítica continental e global, em geral. Nesse sentido, cobra relevância, significado e pertinência o próprio título da obra: “os protagonistas de 1914 eram sonâmbulos, despertos, mas incapazes de enxergar, atormentados por sonhos, mas cegos para a realidade do horror que logo mais trariam para o mundo” (p. 589).

O trabalho de tradução para o português é muito bom, ainda que seja possível constatar algumas poucas imprecisões de datas e locais. A editora Companhia das Letras está de parabéns pela acertada determinação de colocar a mencionada obra à disposição do público brasileiro, em particular, e lusófono, em geral. Entende-se que o contexto da rememoração do centenário do início da Primeira Guerra Mundial é um excelente motivo para realizar o esforço de publicação no Brasil de uma obra magistral, da maior relevância científica e de grande impacto acadêmico e social.

Finalmente, parece pertinente acrescentar que, no momento de escrever a presente resenha, existem numerosas crises políticas, econômicas, ambientais e étnicas no mundo que poderiam sair do controle dos governantes e das lideranças das principais potências mundiais e acabar provocando um novo desastre humanitário. Eis os casos da virtual desintegração do Iraque, da emergência de diferentes tipos de fundamentalismos, do colapso da denominada Primavera Árabe (guerra na Síria, golpe no Egito, caos na Líbia e no Iraque), e a nova escalada no intratável conflito entre Israel e os palestinos. Fora do Oriente Médio, é possível verificar graves conflitos na Ucrânia, numerosas divergências limítrofes terrestres e marítimas no Leste da Ásia, e a persistência de dificuldades econômico-financeiras na União Europeia e em outros países capitalistas centrais.

O cenário internacional em 2016 é bem diferente do predominante em 1914. Entretanto, existem algumas preocupantes semelhanças, dentre outras a falta de lideranças carismáticas, combinada com a presença de certas chefias que parecem caminhar para a guerra como “sonâmbulos”. O risco de uma crise internacional sem controle exige um permanente acompanhamento da sociedade civil e das organizações internacionais. Trata- -se de evitar um novo desastre global, seja ele de natureza política, ambiental ou econômica.

Carlos Federico Domínguez Avila – Professor e pesquisador do Mestrado em Ciência Política do Centro Universitário Unieuro. Centro Universitário Unieuro. Av. das Nações, Trecho 0, Conjunto 5, Campus Asa Sul, 71000-000, Brasília, DF, Brasil. [email protected].

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