Outras eróticas e desejos possíveis – volume II / Albuquerque: Revista de História / 2015

É com imensa satisfação que apresentamos a@s leitor@s de albuquerque: revista de história o dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, conjunto temático de textos proposto com vistas à socialização e debate de pesquisas referentes ao amplo campo interdisciplinar dos estudos sobre a sexualidade e as performances de gênero em suas diferentes facetas e suportes.

Na história ocidental a sexualidade e sua relação como o poder, a política e a cultura, remontam à narrativa seminal do Gênesis. No Éden, o criador advertiu ao homem que deveria ter cuidado com a arvore da ciência do bem e do mal, pois se dela comesse haveria consequências negativas. Ali encontramos o cenário e o herói (Adão) originário da saga cristão-ocidental; faltava a vilã dessa história, e senhor resolveu criá-la, fazendo-lhe adjutora de Adão, Eva.

Quando o homem provou o fruto proibido no jardim do Éden, iniciou-se sua conturbada relação com seu corpo e sexualidade. Incitada pela serpente, Eva ousou tocar e provar da árvore que lhe parecia agradável e cujos frutos pareciam bons para serem comidos e os compartilha com Adão. Segunda a narrativa sagrada, o ato de Eva ocorreu em função da curiosidade e da ganancia humanas; os homens ansiavam se comparar a Deus e esperavam que isso ocorresse ao comer do fruto e conhecer o bem e mal; encontraram, entretanto, o castigo da decadência – oriunda do afastamento daquelas plagas e o impedimento de comer da árvore da vida, o que levaria à mortalidade.

Ao provar do fruto perceberam que estavam nus e se cobriram com a folha da figueira. O que antes, segundo a narrativa bíblica, era um mundo natural marcado pela relação harmoniosa entre o criador e a criatura, tornou-se uma experiência de dor, de negação do corpo, da sexualidade e do prazer sexual. O ato de desobediência foi punido severamente pelo criador que amaldiçoou a serpente, e condenou o homem a comer o pão com o suor do teu rosto até que retornasse ao pó e a mulher parir com dor os seus filhos e a desejar seu marido que a dominaria.

(Cumpre, aqui, abrir esse parêntesis, para retomar outra figura feminina, presente nas tradições babilônica e hebraica, associada a Adão: Lilith. Ela teria sido a primeira mulher, feita do mesmo barro que seu companheiro, não de sua costela. Em determinado momento, querendo ficar por cima de Adão durante o coito sexual, teria por isso sido expulsa do paraíso, perseguida por anjos. Enquanto fugia, copulava com animais e demônios, dando à luz outros seres. Teria se refugiado no mar, tornando-se sua senhora. É também associada à noite. Outra vez, a mulher é a transgressora, mas aqui, tendo “ofendido” seu companheiro com sua audácia erótica, sofre sozinha as consequências de seus atos.)

Retomando a passagem da expulsão de Adão e Eva, sobre qual se assenta a longa tradição ocidental de negação do corpo e do desejo, do exercício do poder patriarcal que subordina, explora e mata as mulheres e todos os demais sujeitos considerados inferiores ao homem branco, cristão e europeu. Foi, portanto, a partir da subordinação sexista, misógina e machista que se construiu o projeto de civilização no ocidente, bem como o projeto de colonização que se espalhou por diversas regiões do mundo, as quais, como apontou Michael Foucault, o cristianismo modificou o cenário, fazendo a ligação entre sexo e pecado da carne, distanciando-o da noção de desejo.

Foucault também afirma que a partir do século XVI, com reforço no XIX, o sexo foi incitado a se manifestar. O autor pensa a história do homem e do desejo e realiza uma genealogia de como o homem ocidental foi levado a se reconhecer como sujeito de desejo. A sociedade capitalista não obrigou o sexo a esconder-se. Contudo, ainda hoje, em pese o crescimento do consumo da pornografia, da prostituição (principalmente feminina), da divulgação de discursos de especialistas sobre o sexo e das experiências proporcionadas pelo ciberespaço, ainda lidamos mal com nosso corpo e nossa sexualidade. Ainda existem diversos tabus, sobretudo hoje, com a retomada conservadora em escala global que interdita a discussão sobre a sexualidade na família, na escola e no espaço público de maneira geral.

Assim ansiamos, nesse dossiê, verticalizar reflexões e debater teórica e metodologicamente, além da relação entre história e imprensa escrita, linguagens artísticas, produção virtual, os movimentos feministas, em suas diversas temporalidades e feições, a violência de gênero e os movimentos de afirmação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, bem como suas representações, a sexualidade e suas diversas expressões e representações (artísticas, corporais, sociais), notadamente aquelas divergentes da heteronormatividade e os embates sociais que de tais expressões surgem.

Além disso, debateremos ainda as novas possibilidades de expressão das performances de gênero, seja nas práticas sexuais efetivas ou ainda no ciberespaço. Há na contemporaneidade uma ênfase significativa nos valores e virtudes de instantaneidade e de descartabilidade, sendo importante a capacidade de abandonar rapidamente um sistema de valores e estilos de vida e construir imagens e personas que se moldem a diferentes situações, sobretudo nos ambientes virtuais, espaços nos quais ocorre uma reconfiguração das relações de sociabilidade, da sexualidade, dos corpos e das performances de gênero. Todas as dimensões da sexualidade são reelaboradas nesse ambiente. Corpos, prazeres, sensações eróticas são experimentadas numa nova relação corpo-máquina.

Organizamos esse dossiê em dois volumes, sendo o primeiro “Outras eróticas e desejos possíveis, volume I”, referente ao volume 7, número 13 de albuquerque: revista de história, nos meses de janeiro a junho de 2015, e o segundo volume (referente ao volume 7, número 14, nos meses de julho a dezembro de 20015) o que segue.

Assim, no primeiro conjunto de textos @s autor@s tomam como objeto de suas análises a produção literária. No primeiro artigo deste segundo volume do dossiê, Dilemas sentimentais e identidade homoerótica: uma leitura de Frederico Paciência de Mário de Andrade, Peterson José de Oliveira se debruça sobre o conto de Mário de Andrade escrito e reescrito por dezoito anos, no qual a amizade e o homoerotismo se desenrolam entre dois adolescentes. Um libelo ao desejo. Flávia Benfatti, em Identidade de gênero: a masculinidade hegemônica em Tropic of Capricorn, toma a obra de Henry Miller, publicada em 1961 (traduzida no Brasil em 1975) para acionar as categorias de sexo, gênero, sexualidade como construções sociais, analisando, em especial, o primado da masculinidade. George de Santana Mori, no artigo Queer, identidade e masculinidade em Giovanni, de James Baldwin, busca interpretar as principais personagens do romance publicado em 2008 a partir das questões de gênero e da teoria queer, notadamente a partir da construção identitária das masculinidades homossexual e heterossexual. O embate hegemonia versus diferença permeia sua narrativa. Encerrando esse primeiro conjunto de textos dedicados à literatura está o artigo de João Carlos Nunes Ibanhez, Cartografias homoeróticas: uma leitura de Onde andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu. O autor, interdisciplinarmente, busca compreender a produção de espaços na obra literária de Caio Fernando Abreu, bem como as formas de apropriação de parte destes espaços, especialmente os marginais, por determinados grupos sociais, entre eles os homossexuais, transformando a margem em seu locus de atuação. Literatura, espacialidade e tensões sociais são o foco de Ibanhez.

No segundo conjunto de artigos que compõe o segundo volume do dossiê Outras eróticas e desejos possíveis, encontra-se o texto de Robson Pereira da Silva, “Nenhuma malícia será castigada”: eróticas no corpo e no palco de Ney Matogrosso, no qual o autor analisa aspectos do espetáculo Mato Grosso, de 1982, de Ney Matogrosso, compreendendo-o na conjuntura de sua produção, ou seja, no Brasil da abertura, da decadência da ditadura militar estabelecida por meio do Golpe de 1964, trazendo à baila os sujeitos marginais tornados arquétipos pelo artista, tais como índios, caipiras e malandros, carnavalizados, erotizados. Antonio Ricardo Calori de Lion, no artigo Ivaná: a grande dúvida no Teatro de Revista dos anos 1950, apresenta um belo estudo sobre as ambiguidades da representação de gêneros da transformista Ivaná, nos anos 1950, no Teatro de Revista da Companhia de Walter Pinto. A repercussão da dúvida sobre a performatividade de gênero do / a artista foi objeto de matérias na imprensa escrita, de capas de revista. Compreender esse impacto no Brasil dos anos 1950 é uma tarefa importante para o conjunto dos estudos Gays, Lésbicos e Transgênicos da atualidade. Encerrando o dossiê, Diego Aparecido Cafola, no texto Madame para uns, Satã para outros: uma leitura do corpo marginal em Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, busca, a partir da interseccionalidade, compreender a personagem criada por Aïnouz e vivida nas telas pelo ator Lázaro Ramos, João Francisco dos Santos, e sua transformação em Madame Satã, uma das lendas da boemia e da malandragem cariocas. Aqui, a violência tornada linguagem, a navalha transformada em resposta.

Espera-se, por fim, que @s leitor@s apreciem as presentes reflexões que reafirmam a transversalidade das eróticas e das performances de gênero na sociedade contemporânea, bem como uma cultura que nega a violência de gênero em suas diversas formas e repõe as experiências libertárias dos usos dos corpos, de suas expressões e sociabilidades.

Para além, na Seção de Artigos Livres, Cássio Rodrigues da Silveira, no artigo intitulado Crise do regime de historicidade moderno, individualização e confiança: entre os movimentos e as mobilizações, analisa o tipo de indivíduo e de individualidade que têm sido produzidos na contemporaneidade, a partir de proposições de R. Koselleck e F. Hartog, avaliando suas implicações para a efetivação dos movimentos sociais. Mais uma vez, indivíduo, coletividades, diferença e tensionamentos sociais entram na pauta do dia.

Miguel Rodrigues de Souza Netto – Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia. Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: miguelrodrigues.snetto@gmail.com

Aguinaldo Rodrigues Gomes – Doutor em História e Filosofia da Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Docente do Curso de História do Campus Universitário de Rondonópolis da Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: aguinaldorod@gmail.com


SOUZA NETTO, Miguel Rodrigues de; GOMES, Aguinaldo Rodrigues. Apresentação. Albuquerque: revista de história, Mato Grosso do Sul, v.7, n.14, 2015. Acessar publicação original [DR]

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