Paradis du Nouveau Monde | Nathan Wachtel

As associações interdisciplinares entre os campos historiográficos e antropológicos parecem render grandes contribuições para o entendimento da História, como é possível de se perceber, por exemplo, pela abordagem histórico-cultural da Arqueologia, segundo a apresentação de Bruce Trigger (2004). É, pois, a partir dessa rica relação com a Antropologia que Wachtel, historiador nomeado à Cátedra de História e Antropologia das sociedades meso e sul-americanas do Collège de France em 1992 e grande expoente em seus “estudos marranos”, elabora os capítulos de seu livro2. Sendo dividida em duas grandes partes, separadas em um total de cinco seções, ademais de introdução e conclusão, a obra congrega suas considerações sobre algumas das concepções paradisíacas colocadas sobre a América. Desse modo, em sua Avant-propos, o pesquisador, tratando das principais questões historiográficas da atualidade, situa este livro como parte de suas análises marranas, apoiando-se em uma bibliografia embasada nas discussões sobre os pensamentos ocidentais e sobre a aculturação, bem como em documentos de trabalhos teóricos e de campo, históricos e antropológicos. Portanto, conclui que sua denominação de “Paraíso”, como resposta a eventos traumáticos, surge mais enquanto vocábulo contraditório, ao passo que recupera, pelas comparações paradisíacas, os terrores infernais vivenciados pelo continente americano.

Diante dessas primeiras considerações, o autor dá início à primeira parte de seu texto, denominada “Fables D’Occident”, nela assinalando os impactos do encontro do novo continente sobre o mundo ocidental. Assim sendo, ao inaugurar o primeiro capítulo de sua produção, intitulado “Le paradis en Amérique”, remete à extensa bibliografia dedicada à localização dos paraísos terrestres, um debate renovado com as descobertas de Cristóvão Colombo. Inserindo nesse cenário a obra de Antonio de León Pinelo, erudito e cristão-novo, o percebe alinhado cronologicamente à narrativa barroca, atribuindo a suas observações sobre o continente americano os preceitos e reafirmações de sua fé cristã e mariana. Nelas, coloca, em termos geográficos, e não metafóricos, o paraíso terrestre nas porções de terra centrais americanas, pensando, ainda, sobre questões como as origens do mundo, a presença e a chegada das populações das Américas, a remota existência de gigantes, a presença da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal e dos rios paradisíacos no recém conhecido continente. Por esse modo, teria ele principiado um pensamento racional e, tal qual outros cristãos-novos, o advento da Modernidade Ocidental. Para além do literato espanhol, Wachtel atenta-se para o jesuíta português Simão de Vasconcelos, sobretudo por sua colocação metafórica do Paraíso em solo brasileiro. Dessa maneira, assevera a concretização do comum trato narrativo das maravilhas americanas, igualmente que as constatações comparativas entre o Novo Mundo e as qualidades paradisíacas.

Seguindo, então, para o segundo capítulo de seu livro, nomeado “La ‘théorie de l’Indien juif’/L’origine des population américaines”, o historiador discorre sobre alguns dos discursos construídos acerca da origem dos povos indígenas americanos, especialmente aquelas centradas na teoria do “índio judio”. Por isso, classifica as tentativas de explicação sobre o povoamento das Américas como ancoradas nas tradições ocidentais, ressaltando a associação entre a peregrinação das Dez Tribos de Israel e os princípios dos assentamentos ameríndios, imbuído de intenso caráter messiânico pelo mito judaico-cristão de predição dos fins dos tempos. De modo a ilustrar esse pensamento, alude, em um primeiro momento, aos textos de Gregório García e de Diego Andrés Rocha, seus defensores, havendo o último inferido o destino divino dos espanhóis na evangelização e conversão dos povos israelitas refugiados na América. Ademais desses autores, descreve as concepções de Menasseh ben Israël, cuja predição dos fins dos tempos, igualmente fundamentada no encontro das Dez Tribos no novo continente, teria contribuído para a readmissão dos judeus na Inglaterra. Mesmo assim, tal narrativa, em consequência das novas noções objetivas de prova, contrárias às explicações de cunho religioso, fora progressivamente abandonada. À vista dessas novas práticas científicas, os povos indígenas acabaram por ser inferiorizados, o que leva o autor a argumentar que, ainda que errônea, a tese do “índio judio” atribuiu uma dignidade aos grupos ameríndios que só seria retomada muito tardiamente pelas ciências sociais.

Dessarte, na terceira seção de sua obra, chamada por “La Terre sans Mal”, o professor parte ao início da segunda parte de seu livro, denominada “Messianismes Indiens”, centrando-se na ótica indígena sobre a chegada europeia nas Américas. Em tal âmbito, averigua a existência de similitudes entre os movimentos reacionários “messiânicos”, cujas combinações dos modos de pensar locais com certas propostas ocidentais serviram como modo de enfrentamento dos eventos traumáticos advindos da colonização. Dessa forma, considerando, nessa seção, a ideia Tupi-Guarani de uma Terra sem Mal, examina os deslocamentos indígenas e a troca de informações sobre a presença europeia por todo o território americano, notando, nesse meio, a presença de motivações religiosas migratórias. Nessa questão, atribui relevância para as figuras xamânicas, garantidoras do caráter messiânico da pronunciação da Terra sem Mal, e dos caraíbas que, vistos como mensageiros divinos, reavivavam as narrativas sobre o fim do mundo. Nesse ponto, é interessante recordar o texto de Viveiros de Castro (1992), demonstrando a importância caraíba ao retrato de sua associação aos missionários pelos tupinambás, conferindo ao homem branco uma ótima posição de enunciação e a possibilidade de os indígenas atingirem seus próprios objetivos. Nesse contexto do advento da Terra sem Mal, o historiador ressalta, ainda, os trabalhos de Jean de Léry e de Curt Nimuendajú. Em tal movimento, analisa a corrente atribuição de “santidade” às suas faces revoltosas, as quais foram fundamentadas, sobretudo, na transformação do pensamento religioso em forma de resistência pela vingança, sendo igualmente incutidos de personificações divinas. Por fim, deduz a dualidade operacional, histórica e antropológica dessa teoria, refutando os exageros críticos destinados às obras de Alfred Métraux e de Nimuendajú e argumentando a favor da adoção de um método histórico regressivo para os estudos que aliam a ciência histórica à antropológica.

Avançando, então, para a quarta parte de seu livro, também alcunhada de “Le retour de l’Inca/Le messianisme andin”, Wachtel caracteriza os movimentos messiânicos ocorridos no mundo andino. Contextualiza, então, o primeiro deles, chamado Taqui Onqoy, em meio às dificuldades enfrentadas a partir do colonialismo, assumindo a defesa do restabelecimento huaca. Entretanto, tal reavivamento religioso não pode ser contemplado enquanto isolado das atitudes revoltosas, tendo em vista a forte e intrínseca relação existente entre a religião e a política. Referindo-se, sequencialmente, à memória dos incas, disserta sobre o Inkarri, narrativa enfocada nos conflitos do governante incaico contra os espanhóis, ou, em versões pré-hispânicas, contra os próprios inimigos andinos. Desse modo, partindo de certo atributo de messianismo, tais representações dos Incas passam a ser expressas no teatro popular, nas manifestações públicas, artísticas e literárias, marcando, assim, uma memória coletiva externalizada em uma variedade de reinvenções e de linguagens. Por consequência, constata as influências desses movimentos nas revoltas do século XVIII, dentre elas a de Juan Santos Atahualpa, a dos Kataris e a de Tupac Amaru, lideradas por indivíduos cujo carisma lhes atribuíram aura messiânica. Enfim, ao epílogo do capítulo, pontua a permanência da simbologia heroica dos líderes rebeldes nos contextos peruanos e bolivianos, países onde os mitos de retorno do Inca seguem presentes, conservados e reavivados na memória coletiva pela sacralidade do governante incaico.

Passando, então, ao quinto e último capítulo, o pesquisador detém sua atenção nos movimentos das Danças dos Espíritos, ocorridos em solo estadunidense, cujo caráter messiânico se instituiu em um processo de longa duração. Dessa maneira, contextualizando as problemáticas da colonização anglo-americana, como epidemias e a migração forçada, averigua o resultante surgimento de uma nova identidade indígena, formada sobre a união de diversas tribos. Assim, destacando o papel de profetas como Neolin, Wovoka e Wodziwob, demonstra o modo de difusão das profecias preconizadoras da restauração do mundo ao decorrer do século XIX, pautadas, nomeadamente, na Dança dos Espíritos. Nesse sentido, partindo das tribos Cherokees e Sioux, e de personagens como Sitting Bull, Short Bull e Kicking Bear, apura a vivência de embates entre propostas indígenas “progressistas” e “conservadoras”. Logo, retrata o massacre de Wounded Knee, decorrente da proibição de práticas pagãs entre os Sioux, estando dentre elas as Danças dos Espíritos. Esse evento traumático reside, ainda, na memória e na identidade coletiva indígena norte-americana, tendo as cerimônias das Danças dos Espíritos permanecido ainda muitos anos após o massacre. Em fechamento, menciona os protestos do American Indian Movement no local das mortes de Wounded Knee, celebrando, ali, uma última vez, a Dança dos Espíritos.

Em conclusão de sua obra, Wachtel diferencia as preocupações dos europeus, relativas ao conhecimento, das ameríndias, associadas às problemáticas provenientes da colonização. Desse modo, percebe como os três movimentos messiânicos aqui retratados se formaram em contextos espaço-temporais distintos, embora concebendo, semelhantemente, a necessidade de restituição dos pensamentos tradicionais, aliando-se, de algum modo, a elementos europeus, e opondo-se ao domínio colonial. Logo, os grupos indígenas teriam se dissolvido, paulatinamente, em uma identidade “pan-indígena”, desvendando suas intenções de se manterem fiéis às práticas ancestrais e, por essa maneira, demonstrado, sob a realidade caótica infernal subsequente da colonização, a simbólica amarga vitória dos vencidos.

Diante dessa leitura do texto de Wachtel, acredito ser pertinente concluí-la com uma crítica a suas atribuições de racionalidade aos escritores europeus, seguindo, para isso, as assertivas expostas por Bragato (2014). Afinal, como mostra a autora, a associação entre dignidade e racionalidade na modernidade europeia restringiu a qualidade de “humano” a certos indivíduos, hierarquizando as sociedades e levando à opressão dos considerados os “outros irracionais” – o que deve ser, evidentemente, considerado ao decorrer dessa obra, por tratar ela do momento de advento da Modernidade ocidental. Entretanto, penso que aqui um outro aspecto também merece ser ressaltado. É perceptível como as narrativas europeias construídas sobre o paraíso americano e as narrativas messiânicas ameríndias contém elementos essenciais para a perpetuação da memória, estes segundo as declarações de Peter Burke (2000). Isso pois, ao referenciarem histórias bíblicas e mitificarem o passado sob figuras heroicas, estariam elas usando de “esquemas” e “temas”, sendo, por conseguinte, enraizadas na memória coletiva e, logo, comunicadas de distintas maneiras, como aqui visto pelo teatro, pela literatura e pelas cerimônias. Desse modo, o presente texto apresenta grande importância para a compreensão, através de uma etno-história, da formação da memória americana, destacadamente a indígena, sobre os processos coloniais, reverberando, pois, o que Cunha (1998) denota como a afirmação indígena de responsabilidade sobre a própria história.

Referências

BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos direitos humanos: contribuições da descolonialidade. Revista Novos Estudos Jurídicos, v. 19, n. 1, p. 201-230, jan./abr. 2014.

BURKE, Peter. História como memória social. In: BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 67-90.

CASTRO, Eduardo Viveiros de. O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 35, p. 21-74, 1992.

CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma História Indígena. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (Org.) História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 9-24.

168 Cadernos de Clio, Curitiba, v. 11, nº. 1, 2020 TRIGGER, Bruce G. Arqueologia Histórico-Cultural. In: TRIGGER, Bruce G. História do pensamento arqueológico. Tradução de: Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysseus Editora, 2004. p. 144-200.

WACHTEL, Nathan. Nathan Wachtel: História e Antropologia de uma América “Subterrânea”. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 259-276, jun. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sant/a/pXdM475k7H8HNvf7pT3FkRM/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 13 fev. 2021.

Nota

2 Tais informações sobre Nathan Wachtel foram abstraídas da entrevista concedida pelo autor à revista Sociologia & Antropologia (2014).


Resenhista

Heloisa Motelewski Trippia – Discente do segundo ano de graduação em História – licenciatura e bacharelado da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integrante do PET História da UFPR desde 2021. E-mail: [email protected]  Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7022532050657480


Referências desta Resenha

WACHTEL, Nathan. Paradis du Nouveau Monde. Paris: Librairie Arthème Fayard, 2019. Resenha de: TRIPPIA, Heloisa Motelewski. Cadernos de Clio. Curitiba, v.11, n.1, p. 161- 169, 2020. Acessar publicação original [DR]

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