Patrimônio Cultural da Saúde | Memória em Rede | 2019

Este dossiê temático pretende trazer para o debate a reflexão acerca da identificação de um patrimônio cultural relacionado à área da saúde, a partir de textos elaborados por pesquisadores brasileiros e portugueses especialmente convidados para a Revista Memória em Rede. Os artigos aqui publicados procuram revelar o próprio esforço de trabalhar o tema de forma interdisciplinar e em rede, reunindo historiadores, artistas visuais, arquitetos e urbanistas de diferentes cidades brasileiras, mas também da Capital portuguesa.

A própria definição de saúde vem se ampliando nas últimas décadas, a partir do entendimento de saúde como qualidade de vida, em que aspectos sócios-culturais têm papel substancial. Para a Organização Mundial de Saúde, saúde é “um estado completo de bem-estar físico, mental e social e não apenas ausência de doenças ou enfermidades” (DUHL & SANCHEZ, 1999: 7). Para essa organização o novo paradigma da saúde pública oscila entre o modelo médico, individual, e o modelo social que: “considera a saúde como um resultado das influências e dos efeitos provocados pelo status socioeconômico, pela cultura, condições ambientais, habitação, emprego e pela vida em comunidade” (IDEM).

Por sua vez, com a ampliação do campo do patrimônio, outros bens culturais passaram de percebidos a bens com potencial patrimonial. Essa ampliação, contudo, acabou por confundir patrimonialidade e patrimonialização. Se a patrominialização depende de um processo, que envolve construção de um discurso e seu reconhecimento social e político, a patrimonialidade, conforme definiu Dominique Poulot (2009), refere-se ao potencial patrimonial de qualquer bem. Nesse cenário, os bens relacionados à saúde, de saberes a edificações, embora apresentem patrimonialidade, apenas recentemente vêm sendo considerados patrimônio, tanto no Brasil, quanto em Portugal, ou seja, há não muito tiveram seu reconhecimento social e estatal. O chamado patrimônio cultural da saúde, definição ainda pouco difundida e trabalhada entre os profissionais dedicados ao patrimônio, vem sendo definido como “um conjunto de bens materiais e simbólicos socialmente construídos, que expressam o processo da saúde individual e coletiva nas suas dimensões científica, histórica e cultural” (TERMO DE CONSTITUIÇÃO…, 2005: 5).

A constituição da Rede Latino-americana de História e Patrimônio Cultural da Saúde, reunida na cidade de Salvador em 2005, discutiu pela primeira vez, no Brasil, a definição do termo História e Patrimônio Cultural da Saúde. Esse encontro reuniu, particularmente, grupos de diferentes regiões da América Latina, com destaque para o grupo do Chile, devido à preocupação do Ministério da Saúde deste país, com a destruição do tradicional Hospital San Jose (1872), que até hoje abriga uma unidade de conservação a partir da qual se ainda discute o tema da preservação do patrimôno cultural da saúde, mostrando que esse assunto é atual.

Nesse sentido, como introduzir o tema da saúde nessa discussão mais ampla acerca do patrimônio cultural e como trabalhar a interdisciplinaridade entre esses dois campos do conhecimento?

No texto Patrimônio Cultural da Saúde: uma década de reflexão e atuação sobre o campo, de Gisele Sanglard e Renato da Gama-Rosa Costa, seus autores, se propoem a fazer um balanço dos dez anos em que o patrimônio cultural da saúde se estabeleceu como tema de pesquisa em diversas instituições de ensino e pesquisa no Brasil.

Já o artigo das historiadoras Viviane T. Borges e Daniela Pistorello utilizam a análise da construção de uma exposição para discutir o processo de patrimonialização realizado no Hospital Colônia Santa Teresa, em Santa Catarina.

Sobre a relação Brasil-Portugal, o artigo de Larissa Patron Chaves, recupera aspectos da história das Sociedades Portuguesas de Beneficência do Rio Grande do Sul na segunda metade do século XIX. O estudo analisa como o apoio e a proteção aos imigrantes e população em geral ultrapassava a função hospitalar, agregando questões de identidade e memória lusa.

O artigo de Daniele Borges Bezerra e Juliane C. Primon Serres procura discutir a transmissão do passado através de dispositivos memoriais, investidos de valor patrimonial, tomando a caso do Memorial do Hospital Colônia Itapuã, no Rio Grande do Sul, como eixo de investigação.

Voltando a Portugal, a partir da abordagem de certa forma pioneira no Brasil, a investigação sobre a saúde, do ponto de vista cultural e patrimonial, vem ganhando estudos, como o coordenado pela pesquisadora Ana Tostões e seu projeto Cu_Ca_Re. Seu artigo, fruto de tal projeto, escrito em parceria com Daniela Arnault, sobre o Instituto Português de Oncologia, suscita questionamentos sobre a preservação e o uso de edificações de saúde, em especial, nesse caso, das criadas nas primeiras décadas do século XX.

Portugal, particularmente, vivenciou há não muito tempo uma discussão, comandada pela Seção de História da Medicina da Sociedade de Geografia de Lisboa, cujo resultado foi enviado a Câmara Municipal de Lisboa, entre 2013 e 2014, sobre a proposta de construção do Hospital de Todos os Santos nas cercanias da Capital portuguesa. Tal resolução obrigaria a transferência de todas as funções hospitalares da localidade reconhecida como a Colina da Saúde1, em que, com essa medida, restaria somente o registro das construções mais antigas, como as de uso religioso, ocorrendo, segundo a Seção, “o mais completo ‘branqueamento’ da história hospitalar da Colina de Sant’Ana” (PARECER…, 2014).

Finalmente, também no rol de artigos deste dossiê, temos a apresentação da dissertação de Tarcísio Bastos, defendida no Programa de Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde, sobre o tombamento de um antigo leprosário, na década de 1970 e 1980, no Rio de Janeiro, frente a uma ameaça de demolição, causada por transformações urbanas em sua área de entorno.

Embora o assunto não seja completamente novo, a preocupação com o patrimônio cultural da saúde, seja no Brasil ou em Portugal, ainda suscita importantes debates e impasses, seja em relação a edificações da saúde, que vêm sendo alvo de destruição ou intervenções mal-sucedidas, que colocam em risco a própria memória da saúde, seja em relação a outros bens culturais da saúde, que se relacionam à memória, às práticas, a grupos marginalizados e a patrimonialidade que esses bens engendram, embora muitos ainda estejam à margem de processos patrimoniais.

Nota

1 Essa área da cidade se constitui do Hospital de S. José (1593), Hospital dos Capuchos (1836), Hospital Miguel Bombarda (1851), do Desterro (1857), de Santa Efigênia (1877), dos Arroios (1892) e de Santa Marta (1903), construídos entre os séculos XVI e XX.

Referências

DUHL, L.J & SANCHEZ, A.K. Healthy Cities and The City Planning Process. A Background Document on links between Health and Urban Planning. World Health Organization – 1999.

PARECER da Secção de História da Medicina da Sociedade de Geografia de Lisboa. Salvaguarda do Património Cultural da Colina de Santana. Lisboa, 4 de fevereiro de 2014.

POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII – XXI: do monumento aos valores. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

TERMO de constituição da Rede Latino-Americana de História e Patrimônio da Saúde. História e Patrimônio Cultural da Saúde, 2005. Mimeo.


Organizadores

Juliane C Primon Serres

Renato da Gama-Rosa Costa


Referências desta apresentação

SERRES, Juliane C Primon; COSTA, Renato da Gama-Rosa. Apresentação. Memória em Rede. Pelotas, v.11, n.20, p.1-4, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]

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