Patrimônio e Sociedade: as várias faces de um debate | Revista Historiar | 2019
Liquidação
A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em via de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
seus imponderáveis
por vinte, vinte contos.
Carlos Drummond de Andrade. Boi Tempo.
A casa anunciada no poema de Carlos Drummond de Andrade lido acima, foi vendida por apenas vinte contos. A preço de liquidação. No entanto, algo muito sensível chama nossa atenção: nós não conseguimos dimensionar o tamanho da construção, no entanto, a grandeza da casa parece estar numa dimensão para além da pedra e cal. Porque a casa vendida está cheia de lembranças. Está cheia de móveis, mas também de pesadelos, de pecados do presente e do futuro. A casa não está vazia, certamente, da dimensão humana que a habitou um dia. A casa, pelo que entendemos da poesia, tem um peculiar bater de portas, causa de um vento encanado, mas também abre uma vista para o mundo, sendo, por isso mesma, parte invisível do imponderável de cada dia e de cada existência, e que nesse sentido não pode ser medida apenas pelo preço vendido.
Outra questão no instiga a imaginação com relação a casa vendida: de quem era a casa? Quem possivelmente herdou o imóvel e o pôs à venda? E quem comprou? E ao comprar, o que levou dos antigos donos? Que patrimônio concreto, que bem intangível, imponderável tornou-se parte inseparável da casa vendida? Todas essas questões envolvem sentidos e conceitos em disputa, como patrimônio e herança, ambos relacionados com um dado passado, certa temporalidade e determinada história, memória e espaço. Em D. Lowenthal encontramos importante reflexão sobre modos de esclarecer a relação entre história e patrimônio, a partir de três “modos de acesso” ao passado, segundo o autor: memória, história e “relíquias”.1 A casa do poema de Carlos Drummond pode ser entendida nas três dimensões apontadas por Lowenthal: é memória pessoal, capaz de apreciar o passado, estabelecer certa familiaridade; é história porque subjetiva e retrospectiva, vivida e narrada, mas é também “relíquia”, uma vez que a casa além de ser de pedra e cal, objeto físico, é sentimento, emoção, memória, narrativa, apontando muitas vezes para certa temporalidade sentida e sonhada. Desse modo, “entendemos a ideia de patrimônio como uma construção social indissociável de um regime de historicidade postulado pelos valores que lhe são atribuídos em diferentes momentos e espaços”.2
Portanto, vamos abrir as portas desse número da Historiar – Patrimônio e Sociedade: as várias faces de um debate, postulando reflexões sobre múltiplos patrimônios, cada um deles indissociável de certo regime de historicidade. Cada um deles alimentado por certa ótica e contexto.
O primeiro artigo, Filme como método para a compreensão do patrimônio cultural na periferia de Sobral, de autoria de Nilson Almino de Freitas e Ana Kélia de Sousa, é uma pesquisa videográfica que tem como fundamento entender o patrimônio cultural da periferia da cidade de Sobral a partir da concepção artística das “quebradas”, ampliando assim o sentido patrimonial da cidade. O segundo artigo, O patrimônio cultural como estratégia de interiorização do turismo, de José Ítalo Bezerra Viana, discute a relação entre patrimônio cultural e turismo, dentro do contexto das secretarias estaduais de cultura e turismo nos anos 2000, tendo como lugar a região do Cariri cearense, enfatizando a dimensão mercadológica do patrimônio para a vertente cultural do turismo. Em Patrimônio em disputa: conflitos ocasionados no processo de criação do Parque Nacional da Serra da Capivara no Piauí, de autoria de Clódson dos Santos Silva, temos um debate importante sobre o patrimônio rupestre e vestígios arqueológicos e sua dimensão social, na medida em que com a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, conflitos inerentes ao deslocamento das pessoas da área acabou por gerar profundo descontentamento e alimentar representações negativas a respeito do patrimônio cultural pré-histórico da região.
Com Michel de Certeau podemos pensar que “o patrimônio são todas essas “artes de fazer”, entendidas também como “artes de “fazer com”, em seus “usos polissêmicos dos lugares e das coisas”,3 sendo formas, lugares e coisas em constante movimento e atenção, fazendo parte de sentimentos e representações sobre modos de vida especialmente citadinos, mas não unicamente.
Assim, na sequência, temos o artigo “A Princesa adormecida”: a introdução de Sobral no cenário político do patrimônio cultural nacional, de Neycikele Sotero Araújo, em que se discute exatamente a inserção da cidade de Sobral no cenário amplo do patrimônio nacional com o tombamento de parte significativa de sua região central no ano de 1999, refletindo sobre as discussões em torno do patrimônio que já vinha sendo feita na cidade em anos anteriores. De Ana Paula Gomes Bezerra, temos o saboroso artigo Modos à mesa: sociabilidade e consumo no Ceará (séculos XIX e XX), que se constitui num debate sobre o enquadramento de parte da sociedade cearense em um certo modelo europeu de civilidade e consumo, a partir da análise de artigos de mesa e cozinha, mais especificamente a louça doméstica, priorizando salas de jantar. Em Patrimônio industrial de Sobral: vamos falar sobre isso, de Telma Bessa Sales, temos um artigo que nos traz importante contribuição sobre o patrimônio industrial de Sobral, como espaços fabris reutilizados, maquinarias, oficinas, fábricas, muitos deles transformados em espaços de sociabilidade e trabalho, trazendo assim para as lides acadêmicas e educativas, novos sentidos para o entendimento de outros patrimônios em Sobral.
O último artigo, Uma Igreja modernista na paisagem da cidade: uma análise arquitetônica e patrimonial da Igreja de Tunápolis (SC), de Douglas Orestes Franzen e Marciele Wilbert, analisa a dimensão arquitetônica modernista da Igreja Matriz da Paróquia Santíssima Trindade de Tunápolis (SC), de 1972, nascida dos influxos produzidos pelo Concílio Vaticano II, entendendo assim a sua inserção no espaço urbano da cidade. As discussões abordam a arquitetura como espaço de construção das identidades locais, enfatizando desse modo a importância da arquitetura religiosa do século XX com suas características mais horizontais e menos verticais.
Na seção de artigos que contempla temas livres, temos Vila Varjota: o mito de origem com a autoria de Francisco Magnel Carvalho Rodrigues e Reginaldo Alves de Araújo. O artigo procura problematizar a malha imagético discursiva responsável por forjar uma identidade idealizada no município cearense de Varjota, que em seu poder simbólico se legitima no campo político a partir da crença em ser varjotense.
Apresentados os artigos, podemos voltar a pensar na casa da poesia de Carlos Drummond de Andrade que abriu essa edição da Historiar. A casa liquidada representada nos versos do poeta, foi vendida, mas não foi vendida sozinha, porque sua dimensão existencial ultrapassa em muito a pedra e o cal. Assim, entendemos com Santo Agostinho, e nesse sentido o santo é tributário dos filósofos gregos e romanos, e assim perguntamos se “uma cidade é feita de pedras e de paredes? A cidade são os homens e não as casas!”4
Nesse sentido falamos de patrimônio numa dimensão ampla, plural, material e imaterial, sinalizando para os modos de sentir, viver e pensar as cidades e certas obras artísticas entendidas enquanto patrimônio cultural, como o cinema. Nesse sentido podemos, fazer eco às perguntas mais do que necessárias de François Hartog: “De que regime de historicidade a patrimonialização galopante dos anos 1990, como foi por vezes qualificada, pode ser marca?” Seria de fato esse processo, como aponta o historiador, uma marca clara, mais uma, desse presenteísmo”?5 A resposta para essas questões tem relação direta com o lugar que atribuímos ao presente em nosso tempo, nos diz. Assim, para nós da Historiar, fica dito que o patrimônio e sua dimensão conceitual mais do que polissêmica, é parte integrante do nosso tempo e uma forma de conhecimento fundamental para o entendimento das mudanças e permanências vivenciadas, sentidas ou não por todos nós…Que essas reflexões iluminem a compreensão do nosso tempo. Boa leitura!
Notas
1 D. Lowenthal. The past is a foreign country. Cambridge. Cambridge University Press, 1985, p. 21-23.
2 NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Tempo, patrimônio e políticas de preservação no Brasil. In: História e historiografia. Perspectivas e abordagens. Orgs. NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo. Recife: Editora Universitária -UFPE, 2014. P. 61
3 CERTEAU, Michel de. GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: 2, morar, cozinhar. Petrópolis: Artes de Fazer, 1996.pp. 199-200
4 Santo Agostinho. Sermão sobre a devastação de Roma.
5 HARTOG, François. Regimes de historicidade. Presentismo e experiencia do tempo. Belo Horizonte/São Paulo: Autêntica, 2013.p193
Organizadores
Francisco Dênis Melo – Professor Adjunto do curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e Pós-doutor em História (UFRJ). E-mail: melofranciscodenismelo@yahoo.com.br
Edilberto Florêncio dos Santos – Professor substituto do curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e Mestre em História e Culturas (UECE). E-mail: edilberto_florencio@uvanet.br
Referências desta apresentação
MELO, Francisco Dênis; SANTOS, Edilberto Florêncio dos. Apresentação. Revista Historiar, v.11, n.20, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]