Perspectivas da História Regional / Ágora / 2014

Apresentamos, neste número da Revista Ágora, o dossiê “Perspectivas da História Regional”. Trata-se de um esforço editorial pela reunião de estudiosos dessa abordagem historiográfica que, utilizando de instrumental teórico-metodológico e de escolhas de fontes muito particulares, privilegiam temas ligados a questões e problemas circunscritos, em geral, a locais e territórios específicos que, via de regra, são insuficientemente abordados na “grande” história.

A resposta que tivemos foi amplamente satisfatória, tanto porque o número de trabalhos versando sobre temas do Espírito Santo coloca a Ágora à proa de publicações que, fazendo jus pertencer ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito Santo, consegue atrair o interesse de autores que efetivamente se debruçaram sobre a história dessa parte do Brasil. E porque alinha no mesmo dossiê temas pouco ou nada dominados e nisso cumpre sua função divulgadora da história regional que aqui se produz. Trata-se, portanto, essa edição, de um dossiê capixaba.

A ordem dos trabalhos já demonstra nosso interesse também em pesquisas que extrapolam os liames temporais para os povos primitivos do território brasileiro e suas formas de vida pré-colonial. Em “Vasilhas duplas Aratu (macro-jê) em Sítio Tupiguarani: evidência de contato?” os arqueólogos e historiadores Neide Barrocá Faccio, Henrique Antônio Valadares Costa, Juliana Aparecida Rocha Luz, Diego Barrocá e Eduardo Pereira Matheus ali reunidos atualizam as pesquisas em sítios arqueológicos do norte do estado de São Paulo e apontam para a existência de contato entre os povos indígenas da tradição Aratu-Sapucaí e os da tradição Tupiguarani. A evidenciação de vasilhas duplas, características da Tradição Aratu-Sapucaí, em sítios Guarani, no vale do Rio Paranapanema paulista, reforça a hipótese dos autores de ter havido contato entre indígenas dessas distintas tradições, o que traz luz a pesquisas em arqueologia histórica, também realizadas em outras regiões brasileiras, inclusive no Espírito Santo, onde ocorrem ambas as tradições.

Adentrando diretamente o terreno da história colonial capixaba, a portuguesa Maria José dos Santos Cunha brinda-nos com o artigo “Maracaiaguaçu, O Gato Grande, aliás, Vasco Fernandes, ou o elogio do discurso evangelizador”, originado de seus estudos inéditos sobre patrimônio e riqueza dos jesuítas na capitania do Espírito Santo. A autora destaca, através da versão dos jesuítas que o conheceram, a figura pouco conhecida de Maracaiaguaçu, o chefe temiminó refugiado com a sua tribo, em 1555, na ilha de Santo Antonio. Da leitura dos textos jesuíticos despontam, paralelamente, a figura desse chefe, as alianças políticas, a visão edificante da conquista espiritual que justificava a evangelização. Seu trabalho permite-nos aceder ao espaço negocial entre conquistadores e indígenas, entremeado de mal entendidos e compromissos, cujo final era a integração dos indígenas no mundo colonial.

Na mesma linha elucidativa do mundo colonial, Anna Karoline da S. Fernandes e Luiz Cláudio M. Ribeiro, em “Poderes inferiores e política fiscal na capitania do Espírito Santo no período da monarquia dual (1580-1640)” circulam a contrapé do senso histórico comum que pensa a Monarquia Dual (1580-1640) como um período sem alterações administrativas em Portugal e buscam compreender a influência das formas de poder expressas nos novos órgãos de controle fiscal e da justiça daquele período Filipino na capitania do Espírito Santo. Tais órgãos, inseridos pelas reformas Habsburgo nos domínios portugueses durante a União Ibérica (1581-1640), visavam coibir o descaminho de mercadorias, controlar a arrecadação e aumentar os rendimentos régios. No Espírito Santo, a ação dos agentes desses órgãos de controle acabou por devassar as ilicitudes do provedor e do almoxarife da Alfândega e mercadores da capitania. Todavia, o artigo demonstra que, malgrado o endurecimento do controle, ocorreram alianças que resultaram no fortalecimento dos poderes locais na capitania. Tais alianças de poder econômico e político dividiam, na prática, o poder real que não dispunha de mecanismos para confrontar as ilicitudes cotidianas.

Fechando o período colonial, Helmo Balarini e Luiz Cláudio M. Ribeiro apresentam em “Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo e a economia de mercês nas práticas administrativas da Capitania do Espírito Santo” uma análise da concessão de hábitos de Cristo, relacionando a prática do pedido e concessão de mercês régias à transição da administração de donatários “presentes” para donatários “ausentes”, fator determinante para a consolidação de uma “economia de mercês” na capitania, regendo a contratação de “servidores” para os postos da burocracia nas franjas do Império Português.

Em seguida, Leandro do Carmo Quintão, em “Estrada de ferro e territorialidade no Espírito Santo da Primeira República” enfoca no papel ferrovias construídas no estado do Espírito Santo durante a Primeira República para a configuração de uma territorialidade estruturada no fortalecimento da capital, Vitória, e de seu porto, em relação aos demais terminais portuários do estado. Utilizando-se de conceitos da geografia política, associados à análise histórica, o autor problematiza o papel das vias férreas em sua relação com a economia do café e sua inserção política dentro de um projeto de desenvolvimento regional vitorioso.

Já o artigo “Lutando com “Ordem e Disciplina”: o Sindicato dos Bancários do Espírito Santo (1934-1953)”, produzido por André Ricardo V. V. Pereira, foca as entidades classistas de trabalhadores e a fase inicial da organização sindical no Espírito Santo. Trata do Sindicato dos Bancários entre 1934 e 1953, quando se deu uma transição no comando político para um grupo hegemônico da entidade. Nesse momento, a principal liderança do Sindicato se filiou ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e se elegeu vereador na capital capixaba. O estudo de caso serviu como ilustração para que o autor discutisse as tensões e contradições reveladas naquela fase chamada de “modo de regulação populista sob condições do pós-fordismo periférico” ocorrido em entidades sindicais capixabas.

E para fechar o dossiê proposto, Diones Augusto Ribeiro apresentou seu estudo “Uma perspectiva conservadora do desenvolvimento econômico capixaba no pós-1964: o governo Arthur Gehardt e os Grandes Projetos de Impacto (1971-1975)”. Nele, o autor mergulha na sempre polêmica questão do desenvolvimento regional capixaba através da inserção da economia local no contexto do capitalista monopolista do século XX, em que diversas políticas públicas foram criadas com o objetivo de superar a dependência da cafeicultura através da industrialização e da diversificação da infraestrutura. Os Grandes Projetos de Impacto gestados no governo de Arthur Carlos Gehardt Santos (1971-1974) visavam adequar a economia regional à dinâmica oligopolista internacional, através da associação do capital público com o privado. O autor conclui que o desenvolvimento proposto pelas elites do estado naquele contexto não foram acompanhadas de reformas sociais e estruturais significativas, cujos efeitos atuais são principalmente a miséria e a violência endêmica, o que valida sua tese sobre a perspectiva conservadora do crescimento econômico ocorrido.

Na sessão de artigos livres, publicamos a contribuição de João Carlos Furlani, autor de “Usos do gênero biográfico na Antiguidade Tardia: educação e moral cristã em Vita Olympiadis” em que discute as possibilidades investigativas do gênero biográfico, com enfoque nos estudos da Antiguidade Tardia. O autor aborda a apropriação dos gêneros literários por autores cristãos e a sua produção textual, majoritariamente voltada para a disseminação das crenças cristãs mediante exaltação dos feitos de homens e mulheres. Para tanto, analisa as formas literárias de Vita Olympiadis, e aponta nesse documento o intuito educativo dos gêneros textuais apropriados ou transformados pelos cristãos.

Logo após, o artigo “O espiritismo em julgamento na Primeira República: análise de processo criminal enquadrado no artigo 157”, de Adriana Gomes, remete a uma importante discussão jurídica sobre a liberdade religiosa na Primeira República. Debruçando-se sobre um caso real de tipificação do espiritismo como crime contra a saúde pública, baseada no artigo 157 do Código Penal brasileiro de 1890, a historiadora analisa o julgamento do suposto crime, praticado no Rio de Janeiro, por Francisco José Viveiros de Castro, um dos mais notáveis magistrados brasileiros, que se apropriou de princípios da Nova Escola Penal para absolver os réus. A análise do discurso feito pela autora das argumentações sobre premissas jurídicas com características retóricas do juiz nesse processo criminal nos leva a compreender as motivações da criminalização do espiritismo e o posicionamento do magistrado na defesa da liberdade religiosa e de consciência no Brasil.

O último artigo apresentado é “O Programa Bolsa Família e suas condicionalidades: o que mudou na legislação?”, enviado por Roberta Rezende Oliveira e André Augusto Pereira Brandão, que fazem um interessante mapeamento das mudanças dos programas de transferência de renda que culminaram no Programa Bolsa Família, e focam na formulação de suas condicionalidades. Os autores apreciam a legislação federal que dá concretude ao PBF, entre 2004 e 2013, e verificam, com amplo domínio de dados empíricos, as mudanças na concepção das condicionalidades de acesso ao PBF. Verificam ainda se as condicionalidades impostas pela legislação para as famílias mais necessitadas acessarem os benefícios oferecidos tem caminhado de acordo com a provisão de serviços públicos básicos pelo Estado.

Também incluímos nesta edição uma resenha preparada por Fábio Luiz de Arruda Herrig para o livro Ervais em queda. Transformações no campo no extremo sul de Mato Grosso (1940-1970), de Jocimar Lomba Albanez, editado em 2013 pela Universidade Federal da Grande Dourados/MS. Em “A erva mate e a historiografia de Mato Grosso/Mato Grosso do Sul” Herrig demonstra como o autor da obra em tela analisa o processo de ocupação das terras e o contexto do mundo do trabalho na agropecuária no antigo sul de Mato Grosso e, mais especificamente, o movimento das frentes pioneiras, caracterizadas pelo alto investimento de capital e pela industrialização do campo, o que, em última instância, ocasionou o declínio da produção da erva-mate naquela região.

À conclusão, Júlio Bernardo Machinski traduziu com maestria o segundo capítulo do livro “Modernolatria” et “Simultaneità”: recherches sur deux tendences dans l’avant-garde littéraire en Italie et en France à la veille de la première guerre mondial (Uppsala: Svenska Bökforlaget/Bonniers, 1962), do historiador e tradutor sueco Pär Bergman que, em português, recebeu do tradutor o título “Breve panorama do movimento futurista (desde sua fundação até a Grande Guerra)”. Nessa passagem da obra, Bergman detalha as circunstâncias do surgimento do movimento futurista, investigando a gênese do manifesto publicado no Le Figaro em fevereiro de 1909, além do sentido político e social do termo “futurismo” e o papel das revistas Poesia e Lacerba na divulgação das ações futuristas. O autor aborda também a sujeição dos futuristas à ironia dos jornalistas da época em virtude da aposta desmedida no futuro, as polêmicas que envolveram a fundação do movimento de vanguarda e o caráter militar das iniciativas de recrutamento de novos adeptos. Por fim, Bergman destaca o papel de figuras-chave do movimento e a aproximação do futurismo ao fascismo.

Agradecemos a participação dos autores, a colaboração dos alunos, e também aos colegas professores do Núcleo de Pesquisa e Informação Histórica do PPGHis-Ufes a oportunidade para a organização deste “dossiê capixaba” de história regional. Esperamos que os artigos apresentados nesta edição da Revista Ágora cheguem ao público acadêmico e aos professores de ensino fundamental e médio, e que as amplas possibilidades da história regional se façam cada vez mais atrativas aos jovens pesquisadores brasileiros.

Luiz Cláudio M. Ribeiro –  Organizador.

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Dossiê: História Intelectual, Ética e Política /Ágora/2015

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