Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam | Juliano Spyer

Juliano Spyer Foto Zanone FraissatFolhapress
Juliano Spyer | Foto: Zanone Fraissat/Folhapress

“Nos anos 1970, evangélicos representavam apenas 5% dos brasileiros, hoje são um terço da população adulta do país, e na próxima década, segundo estatísticas, o número de protestantes superará o de católicos”.II Considerando o crescimento recente que os evangélicos têm tido na sociedade brasileira, Juliano Spyer julga que conhecer quem são esses sujeitos é importante para compreender o Brasil contemporâneo.

Spyer, formado em História pela Universidade de São Paulo e mestre e doutor em Antropologia pela University College London, foi autor do livro Mídias Sociais no Brasil Emergente, publicado em 2018 e que analisava o uso da internet nas camadas populares brasileiras. Estudar o fenômeno evangélico não era seu objetivo no início de sua trajetória, que passou pela morada na casa de uma família batista nos Estados Unidos em um intercâmbio estudantil e pelo trabalho na campanha presidencial da exministra evangélica do Meio Ambiente Marina Silva em 2010. No entanto, em uma pesquisa de campo em um bairro periférico de Salvador, na Bahia, o antropólogo conviveu com várias famílias evangélicas, algo que lhe permitiu ampliar seu conhecimento sobre o assunto.

Com apresentação do cantor e compositor Caetano Veloso e prefácio do antropólogo Gabriel Feltran, Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam, publicado em meio à pandemia da Covid-19, se propõe a quebrar estereótipos atribuídos aos evangélicos e analisar a participação destes na sociedade brasileira, tendo em vista os seguintes aspectos: preconceito de classe e raça; a relação de evangélicos com a mídia, o tráfico e a esquerda; e as consequências positivas que o cristianismo evangélico tem apresentado às camadas mais pobres. O livro apresenta uma leitura acessível e sem notas de rodapé. Isso porque o autor considera que estas atrapalham a fluidez da leitura de pessoas que não estão interessadas em detalhes que despertam a atenção de especialistas. Desta forma, Juliano Spyer inclui comentários e referências na seção de notas ao final do último capítulo. Ao longo da obra, especialistas sobre o assunto são frequentemente citados, em especial sociólogos como David Smilde, Christina Vital, Ricardo Mariano, Ronaldo de Almeida, entre outros.

Uma questão inicial que Spyer aponta é sobre qual é o grupo a que se refere. O termo “evangélico” é muito comumente tomado como sinônimo de “protestante”. O autor, no entanto, diferencia os “protestantes históricos” e os “protestantes evangélicos”. Os primeiros são aqueles que aparecem como desdobramento instantâneo da Reforma Protestante de a partir do século XVI, como as denominações luterana, presbiteriana, batista, metodista, episcopal, entre outros. Ele define os segundos, por sua vez, como aqueles que combinam uma visão conservadora a formas de adoração contemporâneas, e são formados especialmente por pentecostais e neopentecostais. Não há, no entanto, um consenso entre esses termos. Denominações protestantes históricas muitas vezes aceitam o título de evangélico. O sociólogo Paul Freston, em sua tese de doutorado Protestantes e Política no Brasil: da constituinte ao impeachment, utiliza os termos “protestante” e “evangélico” como sinônimos, tendo em vista que a própria mídia cunhou o “evangélico” para se referir aos grupos em questão, fazendo com que o estudo sobre esses grupos deixasse de ser alvo de estudo apenas de acadêmicos.III

Embora Spyer se proponha a dar uma ênfase maior no pentecostalismo, ele diferencia os grupos em termos de liturgia e formação teológica, apontando que, no entanto, tanto os protestantes históricos como os evangélicos pertencem ao cristianismo protestante.

O autor retoma as coberturas midiáticas dos 500 anos da Reforma Protestante no ano de 2017. Destacando matérias do Jornal Nacional, telejornal com maior audiência no país, Spyer constata que nenhum destaque foi dado a pentecostais e neopentecostais, apesar de serem os ramos do protestantismo que mais crescem no país.IV O apelo popular dos evangélicos tem, inclusive, tido efeitos na organização religiosa dos protestantes históricos. Exemplo disso é a forma como igrejas batistas se inspiraram em técnicas e valores de igrejas neopentecostais para atrair pessoas a seus cultos.

Um fenômeno observado ao longo dos anos 1970 foi a queda entre o número de fiéis da Igreja Católica, proporcional ao aumento dos evangélicos. Spyer observa que o último caso está associado à seca que atingiu o Nordeste na segunda metade do século XX, tendo seu boom nos anos 1980 durante a transição do Brasil majoritariamente rural para urbano. Isso se explica também pelo fato de que pastores evangélicos se formam com facilidade maior que católicos, que por sua vez possuem “um padre para cada 7,8 mil habitantes no Brasil”.V

Abrir igrejas evangélicas também é um processo resolvido com registro em cartório, enquanto para as igrejas católicas há um processo mais burocrático. Algo emblemático nesse caso é do pastor neopentecostal Valdomiro Santiago, anteriormente ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, mas que, após desentendimentos com o bispo e empresário Edir Macedo, criou sua própria organização, a Igreja Mundial do Poder de Deus. Nessas duas igrejas, assim como outras neopentecostais, predomina a chamada “teologia da prosperidade”, um pensamento segundo o qual “a conversão e a adoção da prática religiosa são recompensadas por Deus via ascensão financeira”.VI

Sobre a participação de evangélicos nas classes vulneráveis no Brasil, o autor declara que “A relação entre evangélicos e o Brasil popular aparece no cenário de variadas igrejas presentes em bairros periféricos, entre negros e pardos com menos escolaridade e salários menores do que os da média da população”.VII Segundo Spyer, as igrejas evangélicas aparecem como “estado de bem estar informal”VIII para as camadas mais pobres: muitas delas oferecem cursos de alfabetização para adultos que não sabem ler, muitas também acompanham serviços do governo para adoção e até mesmo oferecem atividades voltadas às crianças – como aulas de música, canto e reforço escolar – como uma alternativa às possibilidades de atividades ilícitas com que elas possam se envolver. Como o autor dirige o olhar sobre os cristãos evangélicos, deixa de lado o trabalho que protestantes históricos têm exercido nas periferias, como o caso do pastor presbiteriano Antônio Carlos Costa, presidente da ONG Rio de Paz, que atua em defesa dos direitos humanos nas favelas do Rio de Janeiro.IX

Outro efeito muitas vezes percebido no meio evangélico é a melhoria de vida dos fiéis, a partir de esforços no combate ao alcoolismo (que, por sua vez, reflete na luta contra a violência doméstica), a entrada no mercado de trabalho e a melhora da autoestima dos sujeitos. Sendo o número de mulheres evangélicas 20% maior do que o de homens, a vida conjugal foi uma questão observada: apesar de o autor afirmar que não há unanimidade acadêmica a este respeito, ele observa que a conversão ao cristianismo evangélico “confirma a liderança masculina e, ao mesmo tempo, oferece uma nova base para a autonomia feminina”.X

Tendo sido o pentecostalismo a única corrente protestante criada por um negro, o estadunidense William James Seymour, no Brasil os pentecostais representam a religião mais negra do país, e seu crescimento em áreas periféricas está relacionado ao tráfico de drogas, visto que muitos que buscam se afastar do crime procuram refúgio nas igrejas implantadas na região.XI

A relação de igrejas evangélicas com o tráfico também desperta atenção. Spyer menciona como exemplo a matéria “Gangland”, publicada pelo jornalista Lee Anderson na revista estadunidense The New Yorker, e que conta a história de um traficante convertido ao cristianismo, Fernandinho Guarabu. Para Spyer, as igrejas têm força para chegar a lugares em que o Estado muitas vezes falha em dar assistência, o que inclui as periferias urbanas. Nelas, “pastores muitas vezes se tornam protegidos por líderes do crime quando o trabalho desses religiosos e percebido como genuíno”.XII Sendo o mundo do crime um espaço alvo de evangelização dessas igrejas, pastores chegam a ser alguns dos “poucos com disposição e coragem para se aproximar de traficantes perigosos como parte de seus esforços de evangelização”.XIII Por outro lado, há igrejas que se tornam cúmplices do crime, cooperando com os traficantes e até mesmo empreendendo mobilizações contra religiões concorrentes (em geral católicas ou de matriz afro).

O trabalho com os traficantes aparece também na evangelização nas prisões. Nelas ocorrem reuniões em que os detentos cantam hinos, fazem orações, compartilham testemunhos e levam conforto uns aos outros. Segundo o autor, a religiosidade protestante e geral dá ao detento o sentimento de dignidade que lhe dá força para sustentar a vida no que o autor considera as “condições mais precárias” da conjuntura desigual do Brasil contemporâneo.XIV

O autor considera que há também um preconceito com as igrejas evangélicas por parte de setores da esquerda. Isso foi percebido na campanha do então psolista Marcelo Freixo na disputa da prefeitura do Rio de Janeiro contra o bispo da Igreja Universal Marcelo Crivella. Spyer cita o sociólogo Roberto Dutra, que considera que o erro de Freixo foi não ter dialogado com o eleitor pobre e evangélico. A aproximação de sua campanha foi com setores progressistas de denominações históricas como batistas, metodistas e presbiterianos, mas não de pentecostais e neopentecostais, que representam a camada mais pobre entre os protestantes.

Outro caso apontado foi o das eleições de 2018, especialmente o momento em que o candidato petista Fernando Haddad, em entrevista à TV Aparecida, chama o bispo Edir Macedo de “charlatão”. Estudos mostraram que o efeito dessa declaração foi de mulheres ligadas à Igreja Universal contrárias ao opositor de Haddad, Jair Bolsonaro, terem sido pressionadas pela ideia de que o voto contra Bolsonaro “seria negar a própria identidade religiosa e defender um candidato que perseguia a Universal”.XV Bolsonaro, no entanto, não é evangélico, e sim católico – aliás, o instituto Datafolha demonstra que apenas um em cada quatro fiéis escolhem seus candidatos segundo filiação religiosaXVI – mas sua aproximação com o mundo evangélico é conhecida, por exemplo, pelo seu batismo no Rio Jordão pelo presidente do Partido Social Cristão, o pastor Everaldo Pereira, ou por seu casamento com a batista Michelle Bolsonaro ter sido realizado por um pastor da Assembleia de Deus, Silas Malafaia.

Existe também no Congresso Nacional um grupo chamado de Frente Parlamentar Evangélica, formada por 120 parlamentares protestantes. Segundo levantamento da revista Veja, “o número de parlamentares associados a essa bancada é muito maior do que qualquer partido no Congresso Nacional”.XVII Os membros dessa bancada têm em comum a defesa de valores ligados à pauta de costumes, empenhandose, em geral, na luta contra a legalização das drogas, do aborto e de questões ligadas ao público LGBT. Por outro lado, o autor destaca que há pouco esforço destes na luta contra a corrupção ou na defesas de projetos ligados a saúde, educação, direitos de indígenas ou meio ambiente, por exemplo. É importante declarar que não são todos os parlamentares que se identificam como evangélicos que compõem esse grupo. É o caso de Benedita da Silva e Marina Silva, que iniciaram sua militância política em movimentos populares e que ainda enfrentam embates com o campo progressista pela fé declarada. Por outro lado, nomes ultraconservadores como o do deputado Marco Feliciano ou do pastor Silas Malafaia (que, embora não atue enquanto político, é uma voz ativa e influenciadora nesse meio), apesar de serem conhecidos fora do meio religioso, “estão longe de serem nomes aceitos ou mesmo admirados de maneira absoluta entre evangélicos”.XVIII Juliano Spyer apresenta todos esses contrastes para tornar evidente que há uma diversidade no meio cristão evangélico, diferentemente do estereótipo criado a esse respeito. Por essa importante de avaliação do antropólogo sobre a relação da esquerda com os evangélicos, o livro já repercutiu até mesmo em fotos posadas com o deputado Marcelo Freixo e o ex-presidente Lula.XIX

Por fim, Juliano Spyer, não sendo ele mesmo um especialista em antropologia da religião, traz uma reflexão resumida e acessível sobre o crescimento da população evangélica brasileira. Seu propósito ao escrever o livro não era defender valores tradicionais associados aos evangélicos, mas analisar o crescimento dessa população, em especial em meio às camadas mais pobres. Ao longo da obra, testemunhos pessoais sobre pessoas com as quais conviveu nas periferias de Salvador são trazidas à tona para complementar estudos de grandes nomes da história, da antropologia e da sociologia tanto a nível nacional como internacional sobre o assunto.

Notas

II SPYER, Juliano. Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020. p. 21.

III FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao impeachment. 1993. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993. p. 1.

IV SPYER, Op. Cit., p. 104–106.

V Ibid., p. 70.

VI Ibid. p. 135.

VII Ibid., p. 85.

VIII Ibid. p. 113.

IX COSTA, Antônio Carlos. Rio de Paz: Um pastor na luta contra a violência. Franciscanos. Entrevistador: Érika Augusto. 17 jul. 2018. Disponível em: https://franciscanos.org.br/noticias/rio-de-pazo-pastor-que-luta-contra-a-violencia.html Acesso em: 6 ago. 2021.

X SPYER, Op. Cit., p. 124.

XI Ibid., p. 149–150.

XII Ibid., p. 99.

XIII Ibid.

XIV Ibid., p. 157.

XV Ibid., p. 184.

XVI Ibid., p. 175.

XVII Ibid., p. 196.

XVIII Ibid., p. 176.

XIX JUBÉ, Andréa. A disputa pelo voto do povo de Deus. Valor Econômico. São Paulo, 2021. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/coluna/a-disputa-pelo-voto-do-povo-de-deus.ghtml. Acesso em: 6 ago. 2021.

Referências

COSTA, Antônio Carlos. Rio de Paz: Um pastor na luta contra a violência. Franciscanos. Entrevistador: Érika Augusto. 17 jul. 2018. Disponível em: https://franciscanos.org.br/noticias/rio-de-paz-o-pastor-que-luta-contra-a-violencia.html Acesso em: 6 ago. 2021.

FRESTON, Paul. Protestantes e política no Brasil: da constituinte ao impeachment. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1993.

JUBÉ, Andréa. A disputa pelo voto do povo de Deus. Valor Econômico. São Paulo, 2021. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/coluna/a-disputa-pelo-voto-dopovo-de-deus.ghtml. Acesso em: 6 ago. 2021.

SPYER, Juliano. Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020.


Resenhista

Luca Lima Iacomini – Mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná. Integrante da linha de pesquisa “Intersubjetividade e Pluralidade: reflexão e sentimento na história”. Bolsista pela CAPES. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SPYER, Juliano. Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020. Resenha de: IACOMINI, Luca Lima. Conhecendo os evangélicos para além dos estereótipos. Cadernos do Tempo Presente. São Cristóvão, v. 13, n. 01, p. 114-119, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]

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