Reflexões histórico-educativas sobre formação docente: os 130 anos da Escola Normal Catarinense/Linhas/2022

Os contextos históricos e de educação que emergiram nos finais do século XIX e perduraram até o segundo quartil do século XX estiveram no cerne dos eventos que influenciaram as mudanças educativas em diversas partes do mundo. As políticas de educação e a formação docente deambularam entre discursos e ideologias de regimes republicanos, ditaduras, autoritarismos e jovens democracias. Esses cenários histórico-sociais convidam-nos a refletir sobre como diferentes Estados-nações promoveram a circulação de discursos pedagógicos e o acesso ao ensino, bem como que saberes foram selecionados dentro da matriz científica de sua temporalidade e inseridos nos planos de formação de professores. Os dispositivos utilizados para a implementação das Escolas Normais e as políticas públicas que legitimaram tais acessos (considerando aqui as especificidades nacionais) podem ajudar a compreender a circulação de ideias, práticas pedagógicas e imaginário escolar.

A temática deste Dossiê permite um diálogo transdisciplinar no âmbito da Educação, no momento em que se comemoram os 130 anos da fundação da Escola Normal Catarinense, pois segundo Schaffrath (1999, p. 2), “[…] das diversas tentativas de se criar aqui um Curso Normal para habilitar professores para o magistério público, foi a criação da Escola Normal Catarinense de 1892 que ofereceu melhores condições de fazer funcionar o referido curso”. No Brasil ocorreram iniciativas de aberturas de Escolas Normais desde 1835. Ao escrever um inventário sobre as Escolas Normais no Brasil, Araújo, Freitas e Lopes (2008, p. 12) registram que

A criação de cursos normais em Liceus ou Ateneus, portanto agregada à formação secundária, também foi uma característica recorrente. O mesmo ocorre com o fechamento e a reabertura sucessivas de instituições voltadas para a preparação ao magistério.

Observa-se que a história da Escola Normal Catarinense está diretamente relacionada com a existência da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, a qual a Revista Linhas pertence. O primeiro elo dessas instituições consiste na formação de professores/as primários/as em si, pois uma representa a primeira instituição de formação docente do estado, antes da criação do atual curso de Pedagogia, oferecido também pela UDESC. Ainda, a segunda ligação dessas instituições é estabelecida pela utilização das mesmas instalações físicas: o prédio em estilo neoclássico na Rua Saldanha Marinho, que acolheu a Escola Normal Catarinense, abrigou a Faculdade de Educação (FAED) ligada à Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e que, atualmente, sedia o Museu da Escola Catarinense.

A proposta deste Dossiê temático serve de aporte para o fio mestre que interliga as reflexões presentes nos artigos com um olhar para o contexto nacional. Estão reunidas aqui discussões e reflexões sobre: a) Escolas Normais: criação, regulamentos e programas de ensino, práticas didático-pedagógicas e dinâmicas educativas; b) Formação de professores: contextos político-sociais e a circulação de ideias e pedagogias entre os séculos XIX e XX; c) Imprensa pedagógica: manuais, revistas, livros, jornais e impressos relacionados à educação.

O artigo inicial do dossiê é de autoria de Marlete Schaffrath, pesquisadora que realizou uma das primeiras investigações sobre a Escola Normal em Santa Catarina (SCHAFFRATH, 1999). Em Normalistas, ensino público escolar e cultura de elite: o contexto da Escola Normal Catharinense de 1892, a autora revisita sua dissertação de mestrado, tendo como objetivo retomar algumas características de organização da Escola Normal, assim como aspectos do contexto de sua criação. São destacados dois aspectos centrais: os elementos formativos do curso, com as especificidades para o ensino das primeiras letras; e o apego aos conhecimentos gerais como ornamento da cultura das elites e para as elites oferecido pela mesma escola.

Segundo a autora, no Brasil, e no caso particularizado em Santa Catarina, a Escola Normal se movia, na conjuntura das províncias e depois dos estados, entre precárias estruturas e grandes esperanças manifestas nos posicionamentos das elites intelectuais e administrativas e suas aspirações de progresso e ordem pública. Conclui que a Escola Normal contribuía para a manutenção de valores culturais, verdades científicas e renovação dos votos de uma cidadania desejável e controlada em ambiente escolar. A proposta curricular estava em consonância com padrões nacionais e internacionais de escolarização e cultura, e esses padrões se estabeleciam por meio de teorias pedagógicas difundidas e empregadas, dispositivos legais de contratação de professores, criação de escolas elementares, e propriamente a criação das Escolas Normais.

No artigo intitulado Reformas educacionais, formação de professores e escolarização da infância catarinense (1910-1928): “A base é a Escola Normal”, Solange Aparecida de Oliveira Hoeller e Gizele de Souza analisam as proposições de (re)organização para o ensino primário e para a formação de professores pela Escola Normal, destacando obrigatoriedades, atribuições, programas e método de ensino. Entre os elementos considerados essenciais nas reformas implementadas no Estado de Santa Catarina, as autoras indicam desde a criação de jardins de infância, à criação de escolas primárias melhoria das já existentes, investimentos na formação do professorado, com adaptação e reorganização do ensino ou da Escola Normal; a outros, como a indicação da aplicação do método intuitivo de ensino, como elemento formativo dos normalistas e como ideal a ser empregado para a escolarização da infância. As autoras concluem que a necessidade de reorganização da instrução pública catarinense no período de 1910 a 1928 demandou a (re)configuração de uma forma e cultura escolares, por meio das normatizações específicas para as escolas primárias e para o ensino ou Escola Normal públicos, advindas do movimento reformista em nível nacional e adaptadas à realidade particular do Estado de Santa Catarina, evidenciando-se rupturas e permanências nesse processo.

O artigo de Gladys Mary Ghizoni Teive, “Não há reformas sem desgostos”: tensões entre Orestes Guimarães e a Congregação da Escola Normal catarinense por ocasião da Reforma de 1911, apresenta, de forma inédita, os desconfortos decorrentes da reforma curricular de 1911 entre Orestes Guimarães e a Congregação da Escola Normal Catarinense. As inquietações ocorreram inicialmente quando o governador de Santa Catarina, Vidal Ramos, não aprovou os novos programas e horários elaborados pela Congregação, os quais eram uma exigência do Decreto n. 572, de 25 de fevereiro de 1911, elaborado por Orestes Guimarães. Além de vetá-los, o governador ainda delega a Orestes Guimarães a tarefa de elaborá-los.

A autora analisa, a partir das contribuições de Certeau, o novo e o antigo currículo; os relatórios do reformador e do diretor da Escola Normal; os ofícios do diretor da escola, Horácio Nunes Pires, e dos professores da Escola Normal para a Secretaria Geral dos Negócios do Estado de Santa Catarina e verifica as estratégias utilizadas pelo reformador Orestes Guimarães e táticas engendradas pela Congregação da Escola Normal Catarinense, que envolveram modificações, entre as quais estavam o turno de funcionamento da escola, o sistema de avaliação, a cobrança de taxas para a realização da matrícula e de exames, à extinção das disciplinas de Instrução Moral e Cívica, de Latim e Inglês e nas de língua francesa, na ausência da disciplina de Higiene, e na inclusão da língua alemã e de Ginástica, na introdução de discussões sobre as “Noções Indispensáveis de Psicologia” junto à cadeira de “Pedagogia”, por exemplo.

Os projetos formativos do Colégio Coração de Jesus, manifestos na revista Pétalas (1933), e do Instituto de Educação de Florianópolis, presentes na sua revista Estudos Educacionais (1941), durante as décadas de 1930 e 1940, são o foco das discussões de Leziany Silveira Daniel, Elaine Aparecida Teixeira Pereira e Maria das Dores Daros em Projetos de formação para normalistas catarinenses nas décadas de 1930 e 1940. As autoras dedicam-se à análise de textos publicados nesses dois periódicos educacionais, que são fontes essenciais para o entendimento da formação de professores catarinenses, e indicam as diferentes orientações que a constituição docente toma em cada um. Na revista Pétalas, periódico de uma escola confessional feminina, a ênfase dos textos recai sobre o papel de ser professora e ser mãe, bem como na habilidade das mulheres para ambas as funções. Já na revista Estudos Educacionais, publicação de uma instituição pública, estatal e de coeducação, a ênfase recai sobre a formação científica dos professores, sendo publicados textos de intelectuais importantes para o campo educacional da época.

O discurso médico e higienista sobre a infância na formação de professores nas primeiras décadas do século XX em Santa Catarina é o título do artigo das autoras Mônica Teresinha Marçal, Ana Paola Sganderla e Diana Carvalho de Carvalho. O foco das contendas são os programas de ensino da disciplina de Higiene da Escola Normal, no período de 1919 a 1937 e os artigos publicados sobre o tema na revista Estudos Educacionais, periódico do Instituto de Educação de Florianópolis, visando entender como a infância era tratada pelo discurso médico higienista presente nas fontes supracitadas. As análises realizadas pelas autoras indicam que os conhecimentos ensinados aos futuros professores estavam relacionados às questões de moralização e civilidade da população catarinense, seja pelo reforço à higiene corporal e familiar e, mais tarde, pelo acompanhamento do desenvolvimento da criança, com a difusão das ideias das ciências fontes da educação, especialmente da biologia.

Os artigos apresentados em sequência dialogam com a realidade nacional e as propostas de formação de professores. Em Concepções de infância e criança no século XIX: o que orienta o “Manual para os jardins de infância” aos docentes?, a autora Keila Cristina Arruda Villamayor Gonzalez dedica-se à análise do manual escrito pelo médico e educador Dr. Menezes Vieira, datado de 1882 e republicado em 2011 por Maria Helena Câmara Bastos. O Manual se constituia, na época, como um guia para docentes do jardim da infância, o que aconteceu concomitante à criação dessas instituições em terras brasileiras. O texto traz à cena as visões de criança e infância presentes na obra; naquele contexto, as crianças e sua educação tinham como base a ideia de natureza infantil a ser moldada em termos intelectuais, físicos e morais. A defesa da higiene também aparece ligada à moral e às aspirações republicanas em curso no País.

No artigo Uma história de leituras para a formação de professoras e professores paranaenses (1900-1980), Roberlayne de Oliveira Borges Roballo traze uma pesquisa sobre os livros utilizados nos processos de formação de professoras e professores no Estado do Paraná, entre os anos de 1900 a 1980, livros esses que se constituíram numa literatura pedagógica. A autora analisa as obras editadas pela Companhia Editora Nacional, pertencentes à Coleção Atualidades Pedagógicas (CAP), no âmbito do projeto editorial denominado Biblioteca Pedagógica Brasileira (BPB), encontradas na Biblioteca do Instituto de Educação do Paraná Professor Erasmo Pilotto (BIEPPEP), bem como aquelas produzidas por intelectuais paranaenses (professores-autores) e leva em consideração a escrita, o contexto de produção e circulação dos livros como objetos culturais e pedagógicos.

Menciona que a partir de 1850, o livro escolar se tornou o texto impresso de maior circulação, sendo que sua utilização pode ser verificada em todas as etapas de escolarização, seja como “cartilha” para os processos de alfabetização e como “manual” para a profissionalização adulta, principalmente nas Escolas Normais, e que no Brasil, a partir de 1920, a crescente utilização de livros escolares acompanharia a reorganização da instrução pública nos Estados brasileiros. Além disso, os livros escolares se tornariam importantes instrumentos para a modelagem das práticas pedagógicas e dos discursos dos mestres e futuras professoras e professores. A autora registra que a história dos livros, inserida na História Cultural, compõe uma diversidade material importante para a História da Educação, pelo vínculo estabelecido com as diferentes e novas formas do fazer escolar. No desfecho conclui que os livros destinados às professoras e aos professores são artefatos importantes porque se tornaram representações em um determinado período e contexto e proporcionam compreender uma rede de significados produzidos em relação à sociedade, à época e à educação, além de contribuírem para a memória educacional existente na cultura da formação docente.

O dossiê apresenta também a entrevista realizada em setembro de 2022 com a professora titular da Universidade Federal de Santa Catarina, doutora Maria das Dores Daros, pesquisadora que tem uma trajetória científica e profissional dedicada aos estudos sobre a formação de professores no Estado. Na entrevista, a professora Maria das Dores nos contemplou com um relato acerca da sua formação, sua experiência e trajetória docente, além de explicar sobre as principais discussões que estavam presentes nas disciplinas que ministrou, tanto na graduação como na pós-graduação, e explanar sobre as contribuições que as pesquisas que envolvem as instituições escolares apresentam para a compreensão da história da educação brasileira.

O dossiê é finalizado com a resenha Democracia, política e subjetividades: temas em diálogo com a educação e formação docente, de Sara da Silva Böger, que apresenta a obra organizada por Mériti de Souza (2022), cujo título é Democracia em tempos difíceis: interdisciplinaridade, política e subjetividades. A coletânea é composta por 12 capítulos escritos por diferentes autores, com diversidade epistemológica e referenciados em diferentes campos de estudo, mas com um objeto comum: a análise da democracia na sua relação com a produção da subjetividade brasileira. Considerando que a educação e a formação docente foram temáticas em destaque ao longo do século XX e estão sendo problematizadas na atualidade, a autora prioriza os capítulos que abordaram as políticas educacionais, marcos importantes da constituição democrática brasileira. A autora conclui que a formação docente foi um tema que apresentou mudanças no debate educacional ao longo do tempo: era uma aposta do Estado brasileiro para a qualidade da educação até a primeira metade do século XX, sendo paulatinamente o trabalho do professor desvalorizado e os cursos que os formam incorporados cada vez mais pelas instituições particulares de ensino em que, na grande maioria, a qualidade fica em segundo plano em nome da lucratividade.

Esperamos que os textos publicados no dossiê contribuam para elucidar o processo de constituição da escola Normal no Estado de Santa Catarina, bem como possibilitem aprofundar o debate sobre a formação de professores de modo geral.


Referências

ARAÚJO, José Carlos Souza Araújo; FREITAS, Anamaria Gonçalves Bueno de; LOPES, Antônio de Pádua Carvalho (Orgs.). As Escolas Normais no Brasil: do Império à República. Campinas, SP: Alínea, 2008.

BÖGER, Sara da Silva. Resenha do livro “Democracia em tempos difíceis: interdisciplinaridade, política e subjetividades”. Revista Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 392-399, set./dez. 2022.

DANIEL, Leziany Silveira; PEREIRA, Elaine Aparecida Teixeira; DAROS, Maria das Dores. Projetos de formação para normalistas catarinenses nas décadas de 1930 e 1940. Revista Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 87-111, set./dez. 2022.

GONZALEZ, Keila Cristina Arruda Villamayor. Concepções de infância e criança no século XIX: o que orienta o “Manual para os jardins de infância” aos docentes?. Revista Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 139-160, set./dez. 2022.

HOELLER, Solange Aparecida de Oliveira; SOUZA, Gizele de. Reformas educacionais, formação de professores e escolarização da infância catarinense (1910-1928): “a base é a escola normal”. Revista Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 34-59, set./dez. 2022.

MARÇAL, Mônica Teresinha; SGANDERLA, Ana Paola; CARVALHO, Diana Carvalho de. O discurso médico e higienista sobre a infância na formação de professores nas primeiras décadas do século XX em Santa Catarina. Revista Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 112- 138, set./dez. 2022.

ROBALLO, Roberlayne de Oliveira Borges Uma história de leituras para a formação de professoras e professores paranaenses (1900-1980). Revista Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 161-185, set./dez. 2022.

SCHAFFRATH, Marlete dos Anjos Silva. A Escola Normal Catharinense de 1892: profissão e ornamento. 1999. 146f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1999.

SCHAFFRATH, Marlete dos Anjos Silva. Normalistas, ensino público escolar e cultura de elite: o contexto da Escola Normal Catharinense de 1892. Revista Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 12-33, set./dez. 2022.

SOUZA, Mériti de (org). Democracia em tempos difíceis: interdisciplinaridade, política e subjetividades. Curitiba: Appris, 2022. 314p.

TEIVE, Gladys Mary Ghizoni. “Não há reformas sem desgostos”: tensões entre Orestes Guimarães e a Congregação da Escola Normal Catarinense por ocasião da reforma de 1911. Revista Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 60-86, set./dez. 2022.


Organizadores

Mônica Teresinha Marçal – Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: [email protected]

Diana Carvalho de Carvalho – Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. E-mail: [email protected]

Ana Paola Sganderla – Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná – UNICENTRO. E-mail:  [email protected]


Referências desta apresentação

MARÇAL, Mônica Teresinha; CARVALHO, Diana Carvalho de; SGANDERLA, Ana Paola. Apresentação. Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 04-11, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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