Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das Suas Culturas (1924-1939) – PINTO (AN)

PINTO, Alberto Oliveira. Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das Suas Culturas (1924-1939). Lisboa: Fundação para a Ciência e Tecnologia; Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. Resenha de: LIBERATO, Ermelinda. A Construção do “Outro”. Anos 90, Porto Alegre, v. 23, n. 44, p. 355-360, dez. 2016

Nesta obra, que resulta de um trabalho complexo de investigação, Alberto Oliveira Pinto desenvolve um tema peculiar e sensível, expondo inúmeras referências e acontecimentos que reforçam toda a sua investigação. O autor dispõe-se a analisar as Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das suas Culturas, no período compreendido entre 1924 e 1939, recorrendo a um extenso e consistente trabalho de pesquisa em arquivos históricos (legislação, arquivo colonial), bem como à análise de obras literárias editadas no período em questão e que passaram pelo concurso de literatura colonial1.

O exame extremamente cuidadoso e bem fundamentado, não somente do período em análise (1924-1939) como também mais alargado – período de intensificação da política colonial portuguesa (criação do 3ª Império), o mapa cor-de-rosa, a Conferência de Berlim, a implantação da República Portuguesa em 1910 e a instabilidade política e económica que se viveu posteriormente, levando assim ao golpe de estado e à instalação da ditadura militar em 1926 e mais tarde, à instauração do Estado Novo – leva-nos a considerar como obra essencial e um útil instrumento não só para académicos, investigadores, professores, estudantes, como para o público em geral, quer em Angola e em Portugal, quer nos restantes países lusófonos, em particular aqueles que se localizam no continente africano.

A obra encontra-se dividida em quatro partes, cada uma delas dividida em 2 capítulos, perfazendo no total 8 capítulos. Na primeira parte – Representações do “Outro” – o autor disserta sobre os conceitos de cultura, identidade e memória, conceitos-chave para se perceber a “produção do outro” (PINTO, 2013, p. 69), ou seja, os pilares em que assentaram a política colonial portuguesa para os territórios africanos, no caso concreto, Angola. O autor estabelece assim a relação entre cultura e antropologia, cultura e nacionalismo e cultura e colonialismo, em torno do qual se desenrolará toda a sua investigação. Estes conceitos, utilizados para descrever e justificar a exploração do outro constituem a base em que assentou a política colonial portuguesa para os territórios africanos. A exploração do homem africano, o trabalho forçado (com destaque para o Código do Trabalho de 1928), as teorias do darwinismo social defendidas a partir da segunda metade do século XIX e que encontrou o seu expoente máximo em Oliveira Martins, a ascensão de António de Oliveira Salazar e a publicação do Ato Colonial em 1930, são apenas alguns exemplos.

A segunda parte – Angola na escrita e na memória colonial portuguesa: a emergência do território e dos homens angolanos – é dedicada à apresentação de Angola, ou seja, a “outra” parte da história. Para o efeito, e para melhor compreensão, o autor faz uma breve referência aos reinos aí existentes e que deram origem ao nome Angola, a definição das suas fronteiras bem como o percurso de passagem do “reino de Angola” a “Angola colonial” (p. 161) e posteriormente “província de Angola” (PINTO, 2013, p. 172). De seguida o autor disserta sobre as categorias socio-raciais em que assentou a política colonial e que levaram à criação do “outro”, nomeadamente indígenas (os africanos), assimilados, destribalizados, mestiços, cafrealizados, cafuzo, cabrito (PINTO, 2013, p. 193-241), conceitos imprescindíveis para compreensão da sociedade angolana atual.

Na parte III – A Literatura Colonial Portuguesa: Angola e os Angolanos na Década de 1920 e as Memórias Silenciadas – o autor estabelece a relação entre a história, sua área de especialidade, e a literatura, justificado a sua opção de trabalho e reforçando deste modo a importância da interdisciplinaridade quando se trata de produzir conhecimento, no caso presente, a “[…] literatura como modo de produção de história ou veículo de historiografia” (PINTO, 2013, p. 257). Ainda nesta terceira parte, o autor analisa duas dessas obras publicadas antes da aprovação do Ato Colonial (1930), instrumento legislativo que de certa forma serve como demarcação entre dois períodos distintos da política colonial portuguesa, nomeadamente, Ana a Kalunga. Os Filhos do Mar, de Hipólito Raposo (1926) e, A Velha Magra da Ilha de Luanda: Cenas da Vida Colonial, de Emílio de San Bruno (1929). Nestas obras, o território é descrito como se se tratasse de uma atração exótica, que é preciso desbravar, a colonização é romanceada como “missão civilizadora” que só a raça superior (branca) tem capacidade para empreender e o africano é descrito como negro, animal que deve ser domesticado. A literatura colonial funciona como mais um instrumento de propaganda colonial.

As Imagens Fabricadas dos Angolanos ou a Retórica da “Diferença Negativa” depois do Acto Colonial de 1930, constitui o ponto fulcral de análise da parte IV, onde o autor, como o próprio título indica, analisa obras publicadas depois da aprovação do Ato Colonial (1930). Alberto Oliveira Pinto inicia essa quarta parte com a apresentação de Henrique Galvão, eminente figura portuguesa da época, analisando, para o efeito, uma obra publicada antes de 1930, nomeadamente, Em Terras de Pretos. Crónicas de Angola, e duas obras publicadas depois dessa data: O Velo D’Oiro e O Sol dos Trópicos. De seguida, analisa outras duas obras literárias de dois autores distintos e pouco conhecidos pelo público em geral, nomeadamente, Conquista do Sertão, de Guilherme de Ayala Monteiro e Princesa Negra, de Luís Figueira. Em cada uma das obras analisadas, o autor procura essencialmente mostrar como “[…] são vistos os africanos, concretamente os angolanos, na literatura colonial portuguesa que se segue ao Ato Colonial” (PINTO, 2013, p. 447). Na análise de cada uma das obras subjaz essencialmente a “[…] pura linha darwinista, o branco (que) é uma raça que evolui e o negro (que) é uma raça estagnada” (PINTO, 2013, p. 431), daí ser caraterizado como selvagem, primitivo, polígamo, alcoólatra, animal, bicho, preguiçoso, tribalista, supersticioso, cupido, preto, entre outras.

As mais de 600 páginas que constituem a obra levam-nos assim a uma viagem pela história de dois países, um colonizador e outro colonizado, ultrapassando mesmo essa fronteira pois, apesar de abordar em particular a construção de uma cultura ou identidade angolana na sua relação com Portugal, ela pode ser ferramenta de trabalho para moçambicanos, cabo-verdianos, guineenses, são- tomenses e mesmo brasileiros pois descortina uma época histórica para Portugal e que se liga às ex-colônias. Para o caso concreto do Brasil importa sobretudo compreender o período pós-independência daquele país e a sua relação com Angola e Portugal. A excelente descrição dos conceitos rácicos como mestiço (filho de mãe preta e pai branco), indígenas, assimilados, cafuzos, cabritos, entre outros, ajudam-nos a entender ainda no presente, a sociedade angolana uma vez que a sua base socioeconómica continua assente no legado português. A obra conta ainda com um anexo rico em documentação história, bem como uma extensa listagem bibliográfica organizada e que pode servir de ponto de partida para os novos “aventureiros”.

Não obstante, há dois aspetos que merecem um comentário adicional. Em primeiro lugar, esperar-se-ia que o autor desenvolvesse mais este período histórico, que debatesse mais esse conceito de “angolanos e suas culturas”, isto é, quem eram os angolanos na altura, de que cultura estamos a falar e de que forma isso influi na realidade atual do que é ser angolano e da cultura angolana, aspeto que sem dúvida justificaria uma discussão mais aprofundada porque a obra, pela temática analisada e sobretudo pela metodologia de análise, interessa, obviamente, a um público muito mais vasto do que a academia, sobretudo os luso-angolanos. Ao invés disso, disserta sobre conceitos embora importantes e apenas analisados de forma superficial, não são essenciais para compreensão do estudo, como por exemplo: o espaço greco-romano, o Islão, o etnocentrismo, as referências às Mil e Uma Noites e a Thomas More e a sua Utopia.

Concordamos que enriquece a obra e alarga o nosso campo de conhecimento, mas torna-a demasiado extensa e desvia a nossa atenção do objetivo principal.

Um segundo aspeto prende-se com a análise de trabalhos escritos por autores angolanos ou luso-descendentes, não só como comparação de duas perspetivas diferentes – colonizado versus colonizador – como poderia dar-nos uma ideia não do pensamento sobre os “outros”, mas do pensamento dos “outros”. Um paralelismo com autores angolanos certamente que enriqueceria a obra pois, apesar de parte da história angolana ter que ser encontrada na história portuguesa já que Angola era vista como um “prolongamento de Portugal” (PINTO, 2013, p. 535), teria sido muito interessante constatarmos a diferença de discurso entre portugueses, brancos naturais de Angola, mestiços e africanos. Dada a carência de investigação sobre a temática em particular e sobre o período histórico no geral, teria sido uma mais-valia se o autor tivesse aprofundado um pouco mais sobre esse assunto. Fica assim aqui uma pista para dar continuidade à investigação que permita sobretudo caraterizar a cultura angolana e os angolanos.

Certamente que se trata de uma obra de mestre que enriquece a história angolana e portuguesa, e de todas as ex-colônias portuguesas no geral, abrindo novos caminhos e demonstrando o quanto ainda pode ser feito, constituindo de igual forma um eficiente incentivo para um maior intercâmbio entre pesquisadores angolanos, portugueses e luso-descendentes interessados em saber mais sobre as suas origens, bem como pesquisadores interessados em alargar as suas análises sobre os estudos coloniais e o reflexo desse período na atual sociedade quer da ex-colônia, quer da ex-metrópole.

Notas

1 Criado em 1926 por Armando Cortesão e previsto nos artigos 50ª e 64ª do Ato colonial (1930), realizado anualmente pela Agência Geral das Colónias para “[…] propaganda do Império Português, progresso da cultura colonial e desenvolvimento do interesse pelos assuntos respeitantes às colónias” (PINTO, 2013, p. 396).

Referências

PINTO, Alberto Oliveira. Representações Literárias Coloniais de Angola, dos Angolanos e das suas Culturas (1924-1939). Lisboa: Fundação para a Ciência e Tecnologia; Fundação Calouste Gulbenkian, 2013. 689 p.

Ermelinda LiberatoDoutora em Estudos Africanos no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE- -IUL). Professora da Univeresidade Agostinho Neto – UAN – Angola. E-mail: [email protected].

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