Russia – Lost in transition – The Yeltsin and Putin legacies | Lilia Shevtsova

Países distantes e que pouco ainda se conhecem em sua história e política, Brasil e Rússia vem buscando nos últimos anos intensificar sua parceria estratégica como nações emergentes e que buscam seu reposicionamento global no sistema internacional diante das pressões da unipolaridade e da multipolaridade em transição. Ao lado de China, Índia e África do Sul, a Rússia e o Brasil consistem-se no novo chamado “Segundo Mundo”, combinando tendências de potencialidade e vulnerabilidade. E, no caso da Rússia, está-se diante de uma nação que completa, em 2009, vinte anos do início de sua transformação mais recente, que engloba desde o fim da Guerra Fria em 1989 até a desagregação da União Soviética em 1991.

Afinal, após o desgaste e a queda da ideologia comunista, a Rússia se viu diante de grandes desafios, como o de ter que alterar radicalmente seus princípios de Estado e Sociedade, romper com um projeto e modo de vida adotados previamente, além de lidar com a desintegração do seu imenso território. Desde então, o país vivencia um período de transição política e econômica, bem como a busca incansável por um novo caminho de desenvolvimento, o que tem representado desafios internos e externos a sua agenda.

Diante do contexto apresentado, Lilia Shevtsova em Russia – Lost in transition – The Yeltsin and Putin legacies analisa as profundas mudanças e contradições do período pós-soviético sob o prisma de dois líderes, Bóris Yeltsin e Vladimir Putin, demonstrando as semelhanças e, sobretudo, as diferenças e contradições em suas gestões. A obra é dividida em 27 capítulos, os quais reconstituem a História e tradições do Império, seu declínio e heranças deixadas por líderes soviéticos, seguidas pelo Período Yeltsin (1991/1999) e o Período Putin (1999/2007). Nos capítulos subseqüentes, a obra contará de forma ampla com um leque de assuntos, tais como o regime político vigente, as dificuldades do espaço pós-soviético, as semelhanças e desavenças Rússia- Ocidente, contradições de um modelo capitalista burocrático, segurança energética, entre outros. Percorrendo a trajetória da Federação Russa ao longo de sua transição pós Império, a autora demonstra a situação atual do país na busca por sua afirmação no cenário internacional, bem como por uma política externa assertiva e suas conseqüentes ambições no antigo espaço soviético. Os lideres, contraditoriamente, rompem com um passado soviético e buscam traços desse mesmo passado, o que evidencia a dualidade de sua política externa, ou seja, a busca por uma nova forma de atuação e a utilização de práticas antigas.

Os capítulos iniciais são dedicados ao Governo Yeltsin, primeiro líder da Rússia pós URSS. Este ordenou o país a um alinhamento com o Ocidente, rompeu com o parlamento num primeiro instante, editou sua própria constituição e estabeleceu uma hiperpresidência, consolidando seu poder pessoal, privilegiando interesses de grandes grupos e descentralizando o poder. Quando Putin assumiu o Kremlin em meio a um cenário caótico, a nação necessitava de um líder forte que voltasse às atenções para forças de segurança, conforme explicitado no Capítulo The coming of Vladimir Putin: A new regime to preserve an old system – “Putin foi o homem certo, no lugar certo e na hora certa” (p.38). Ele criou sua própria base de poder, fortaleceu as regras e burocracias do Estado, bem como redefiniu estratégias de inserção russa no palco internacional, adotando uma nova postura da Política Externa – o pragmatismo. Guiou-se, portanto, na construção de uma “pirâmide de poder”.

Shevtsova demonstra que a modernização e democratização russa devem contemplar uma dinâmica própria, isto é, devem respeitar aspectos de sua historia e cultura e optar por um “caminho especial”. Os padrões e valores ocidentais tem se mostrado ineficientes à realidade da Rússia. O caminho futuro do país ainda não está claramente definido, constando em sua nova ordem, fragmentos da velha e nova cultura, o que evidencia as contradições entre o que é “aparente” e o que é “real”. A autora dedica um capítulo inteiro para discorrer sobre o regime autoritário-burocrático vigente na Rússia, a qual intitula “Imitation Democracy”, onde partidos políticos, canais de TV nacionais, o parlamento, assim como outros órgãos e instituições, estão subordinados à administração executiva. A esse sistema de imitações e ilusões, ela dá o nome de jogo “Let’s Pretend” (p.51).

Lilia se debruça sobre visões de analistas internos e externos, recorre a pesquisas de opinião pública sobre diversos temas como posição da Rússia frente a parcerias com o Ocidente, demonstrados nos capítulos Russia and the United States: in search of a new paradigm ou The Putin-Bush Legacy. Também descreve a diversificação do espaço pós-soviético – sobretudo no capítulo How can we learn to be neighbors – o qual é contemplado por uma variedade de regimes políticos, democracias não-consolidadas, representando um desafio aos intentos de Moscou de estabelecer seu poder na região, acarretando em constantes conflitos políticos e aproximação de instituições ocidentais como a OTAN e a União Européia nessas áreas.

A autora explora a natureza ambígua, contraditória e complexa do cenário russo, analisa os paradoxos de sua Política, o que faz com que o país fique preso a um aparente e, talvez enganoso, quadro de mudanças, reforçando a idéia de que a Rússia não pode ser mudada de cima para baixo. Para uma efetiva transformação, a Rússia necessita de parcerias e assistências externas, não somente cooperação em desafios comuns com o Ocidente, como proliferação nuclear e terrorismo global, mas sim cooperação no que Lilia chama em seu último capítulo Paradoxes and Hopes de “valores compartilhados” (p.328). Assim poder- se- à falar em uma Nova Rússia.

Ainda que busque demonstrar uma posição equilibrada entre Ocidente e a Rússia, Shevtsova por vezes indica uma postura mais crítica com relação à Putin do que Yeltsin, em debate que muito se assemelha ao já enfrentado pelo Brasil nos anos 1990 no que se refere ao nível de autonomia da política externa e sua agenda. Desta forma, a própria autora parece tender a uma posição pró-Ocidente e a busca de modelos fechados de democracia e economia liberal para Rússia, a despeito de suas especificidades, do que um caminho mais próprio, em debate característico deste país desde 1991.

Apesar desta relativa parcialidade, a leitura de Russia: Lost in Transition – The Yeltsin and Putin legacies é essencial por contribuir de forma eficaz com debates e entendimentos da realidade russa, assuntos, como indicado, ainda tão pouco conhecidos e estudados no Brasil, principalmente a partir da análise de uma especialista renomada em Política Russa. A obra de Shevtsova se destina, portanto, aos interessados em conhecer as peculiaridades da política externa e interna desse país que por quase quatro décadas separou o mundo – com os Estados Unidos – em sistemas e modos de vida distintos. Além disso, é um livro que trata de explorar os múltiplos cenários para o futuro da Federação, que atualmente desponta como uma das parcerias estratégicas em aprofundamento das Relações Internacionais brasileiras.


Resenhistas

Cristina Soreanu Pecequilo – Professora de Relações Internacionais da Universidade Estadual Paulista – UNESP (Campus Marília), e Pesquisadora Associada ao Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail:  [email protected]

Alessandra Aparecida Luque -Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista – UNESP. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SHEVTSOVA, Lilia. Russia – Lost in transition – The Yeltsin and Putin legacies. Washington: Carnegie Endowment for International Peace, 2007. Resenha de: PECEQUILO, Cristina Soreanu; LUQUE, Alessandra Aparecida. Meridiano 47, v.10, n.104, p.28-29, mar. 2009. Acessar publicação original [DR]

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