Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos (Volume I) | Antônio Augusto Cançado Trindade

Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos vem se juntar aos mais de 20 livros publicados pelo Professor e Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos Antônio Augusto Cançado Trindade. A nova obra de Cançado Trindade é um trabalho de fôlego que brinda o leitor com análises seguras e claras, capazes de desfazer equívocos e orientar tanto os iniciados quanto aqueles que travam os primeiros contatos com o tema. Resultado de mais de vinte anos de pesquisas e reflexões, o Tratado representa a concretização de um projeto que tem todas as condições de tornar-se um clássico da área dos direitos humanos. Trata-se de obra que confirma a maturidade intelectual do autor, cuja copiosa produção acadêmica, ademais de revelar vocação para a análise crítica, reflete compromisso pessoal com a luta pela realização plena dos direitos humanos.

Ao longo do livro, o autor disserta, entre outros, sobre os seguintes assuntos: a formação e consolidação do direito internacional dos direitos humanos; as Conferências Mundiais sobre Direitos Humanos (Teerã, em 1968, e Viena, em 1993); a convergência entre os direitos humanos, o direito humanitário e o direito dos refugiados; a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais; a interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos. Não obstante a diversidade de assuntos cobertos pelo livro, uma tese essencial parece servir de fio condutor às análises empreendidas nos diferentes capítulos: a da autonomia e especificidade do direito internacional dos direitos humanos. Cançado Trindade defende que o direito internacional dos direitos humanos é um “direito de proteção”, marcado por uma lógica própria, pois busca salvaguardar os direitos dos seres humanos e não dos Estados. Nas palavras do autor, esse ramo do direito não procura “(…) obter um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades na medida em que afetam os direitos humanos. Não se nutre das barganhas da reciprocidade, mas se inspira nas considerações de ordre public em defesa de interesses comuns superiores, da realização da justiça” (pág. 26). É, nesse sentido, um instrumento para a proteção dos mais fracos em toda e qualquer circunstância, tanto no plano interno quanto no plano internacional.

Sempre apoiado em fartas referências jurisprudenciais e na melhor doutrina, Cançado Trindade demonstra que a especificidade do direito internacional dos direitos humanos qua direito de proteção leva à superação da velha e anacrônica polêmica entre dualistas e monistas, uma vez que a primazia, no caso da co-existência de normas de tratados internacionais e normas internas, será a da norma mais favorável à vítima. Isso não significa, porém, que os Estados podem descuidar de suas normas internas, mas, simplesmente, que não há como admitir as obrigações convencionais contraídas por um Estado no plano internacional e ao mesmo tempo negar-lhes vigência no plano do direito interno. Como os tratados de direitos humanos consagram valores comuns superiores, não pode o Estado erigir-se em árbitro do alcance final de suas obrigações, isto é, não cabe a hipótese de um tratado de direitos humanos ser revogado por uma lei doméstica.

A implementação dos tratados de direitos humanos, como ressalta o autor no capítulo dedicado à interação entre o direito internacional e o direito interno, requer o concurso de todos os órgãos do Estado. As obrigações convencionais de proteção vinculam os Estados partes e não somente seus Governos. Ou seja, “o descumprimento das normas convencionais engaja de imediato a responsabilidade internacional do Estado, por ato ou omissão, seja do Poder Executivo, seja do Legislativo, seja do Judiciário” (pág. 442). Assim, não é apenas o Executivo que está obrigado a tomar as medidas para o cumprimento dos tratados de direitos humanos. O Legislativo tem papel central tanto na regulamentação de tais tratados – de modo a dar-lhes eficácia no direito interno – como na harmonização das normas domésticas com o disposto nos instrumentos internacionais. Ao Judiciário, por seu turno, incumbe aplicar efetivamente as normas dos tratados de direitos humanos no plano interno e assegurar que sejam respeitadas.

Ao defender a especificidade do direito internacional dos direitos humanos e a noção de garantia coletiva, subjacente a todos tratados de direitos humanos, Cançado Trindade delimita um campo de batalha contra as concepções que tendem a minimizar a dimensão internacional da proteção. O direito internacional dos direitos humanos se insurge, portanto, contra a visão estática tradicional, reconhecendo que o ser humano é sujeito tanto de direito interno quanto do direito internacional, dotado em ambos de personalidade e capacidade jurídicas próprias. Demonstração dessa tendência reside na consolidação da possibilidade de recurso direto de indivíduos aos mecanismos internacionais de supervisão das obrigações na área dos direitos humanos. Apesar de não substituírem os tribunais internos e tampouco operarem como uma espécie de quarta instância em relação às decisões dos últimos, os tribunais internacionais – tendo em vista o objetivo maior na proteção integral dos indivíduos – podem examinar a conformidade de atos internos com as obrigações internacionais em matéria de direitos humanos.

Uma das muitas qualidades do livro é o cuidado tomado pelo autor de construir em bases sólidas a argumentação, partindo dos fundamentos e chegando às afirmações mais abstratas. Assim, a questão da especificidade do direitos internacional dos direitos humanos não nos é imposta como um fait accompli ou como se não carecesse de explicação e demonstração. Desde os primeiros capítulos, que tratam das fases legislativa e de implementação dos direitos humanos, o texto conduz o leitor a confrontar fatos históricos, argumentos jurídicos concorrentes, e posições adotadas por países em foros multilaterais, logrando, desse modo, reconstruir a complexidade da luta pela afirmação e consolidação dos direitos humanos nos planos internacional e nacional. Nesse sentido, os capítulos referentes à preparação, realização e resultados da Conferência Mundial de Viena sobre Direitos Humanos (junho de 1993) são exemplo do trabalho meticuloso de reconstrução histórica e análise que só poderia ser realizado por quem, além de ter participado ativamente do processo descrito, procurou interpretar os fatos vividos de modo a dotar-lhes de sentido e inteligibilidade.

Do mesmo modo, os demais capítulos se complementam e parecem convergir para o objetivo de demonstrar a necessidade de abandonar posições ultrapassadas que, infelizmente, continuam a impedir um tratamento integral para a questão dos direitos humanos. A título de exemplos – visto que seria impossível apreender aqui todas dimensões dessa obra monumental – valeria uma rápida menção aos capítulos VIII (“As três vertentes da Proteção Internacional da Pessoa Humana”) e IX (“A Proteção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”). Quanto às três vertentes de proteção da pessoa humana – os direitos humanos, o direito humanitário e o direito dos refugiados –, Cançado Trindade demonstra a virtual superação da antiga visão compartimentalizada que marcou o tratamento do tema. Segundo o autor, “a nova dimensão do direito de proteção do ser humano, dotado reconhecidamente de especificidade própria, vem-se erigindo no plano jurisprudencial sobre o binômio das obrigações de ‘respeitar’ e ‘fazer respeitar’, em todas circunstâncias, os tratados do Direito Internacional Humanitário e do Direito Internacional dos Direitos Humanos” (pág. 347). Ou seja, o que se defende, e que inclusive foi consagrado na Conferência Mundial de Viena, é uma visão sistêmica e integrada da proteção internacional da pessoa humana, que implica o reforço mútuo das três vertentes mencionadas. Os três ramos, portanto, são como três pilares de um mesmo edifício, fornecendo instrumental para lidar com situações complexas em que a única forma de oferecer proteção efetiva às vítimas reais e/ou potenciais consiste na aplicação articulada de normas que emanam das diferentes vertentes.

O capítulo relativo à proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais dissipa crenças e falácias que, se corretas, fariam de tais direitos simples letra morta nos tratados de direitos humanos. Com efeito, esses direitos têm sido interpretados como de “natureza programática”, cuja realização ficaria localizada em um futuro tão distante quanto incerto. Cançado Trindade se rebela contra a separação sob muitos aspectos artificial e ideológica entre direitos civis e políticos, de um lado, e direitos econômicos, sociais e culturais, de outro. Como observa o autor, “à integridade do ser humano corresponde em definitivo a integralidade de seus direitos” (pág. 391). Em conseqüência, o autor considera um grande avanço que se tenha dado início à consideração da formação de um núcleo fundamental e de exigibilidade imediata de direitos econômicos, sociais e culturais, em exercício semelhante ao que, no passado, levou à consagração de um núcleo fundamental e inderrogável de direitos civis e políticos. Resta claro que a proteção integral da pessoa humana não pode ficar restrita a um compromisso que se dilui numa perspectiva de longo prazo, mas, ao contrário, exige ação concreta e imediata dos Estados, os quais deverão ter presente que a especificidade do direito internacional dos direitos humanos, na sua condição de garantia da proteção integral da pessoa humana, não admite evasivas diante de situações objetivas que ferem a dignidade humana.

Percorrendo os vários capítulos do livro, o leitor irá perceber que o texto identifica problemas que estão na ordem do dia. Ainda hoje, infelizmente, o direito internacional dos direitos humanos é mal compreendido em muitos círculos – jurídicos ou não –, onde se insiste em encarar a idéia mesma de direitos humanos internacionalmente protegidos e de capacidade processual internacional dos indivíduos como ameaças ou como fontes de intromissões indevidas nos assuntos internos dos Estados. O livro de Cançado Trindade ajuda a desfazer tais equívocos, pois demonstra que a própria ação estatal perde legitimidade se os direitos básicos da pessoa humana não servirem de baliza para as decisões tomadas em nome da coletividade. A força dos argumentos de Cançado Trindade reside não apenas na notória erudição do jurisconsulto reconhecido internacionalmente e na autoridade de quem é, sem sombra de dúvidas, o maior especialista brasileiro no campo do direito internacional dos direitos humanos. A força desse livro e de suas teses decorre também da perspectiva adotada e que, parafraseando Norberto Bobbio, poderia ser qualificada de ex parte populi, por oposição à perspectiva ex parte principis.

Em suma, a defesa da dignidade dos seres humanos – seja na sua condição de indivíduos ou como integrantes de uma coletividade – constitui objetivo central das ações estatais e interestatais, não subsistindo justificativa política, jurídica, moral ou ética nas tentativas de negar a fruição de qualquer categoria de direitos humanos (civis, políticos, econômicos, sociais e culturais) em nome de uma suposta e abstrata “razão de Estado”. Mais do que argumentos lógicos e acadêmicos, o que está em jogo, por trás da luta pela afirmação da especificidade do direito internacional dos direitos humanos, é a própria elevação do ser humano ao patamar de fonte última do exercício do poder. Em vez de aderir a máximas tão amplamente aceitas do tipo “fins que justificam os meios”, que ainda povoam o universo conceitual dos estudiosos das relações internacionais e da ciência política, o direito internacional dos direitos humanos, graças ao empenho de pessoas como Cançado Trindade, envereda por caminhos claramente distintos. A luta pelos direitos humanos permite conferir à busca da transformação social um sentido profundamente democrático, uma vez que o ser humano é alçado à condição de sujeito e beneficiário da mudança, enquanto ao Estado se lhe é negada a possibilidade de agir como se possuísse uma racionalidade própria capaz de justificar o exercício desimpedido do poder.

Para aqueles que compartilham das preocupações de Cançado Trindade e com ele têm aprendido nos últimos anos, a satisfação provocada pela leitura do primeiro volume do Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos só rivaliza em intensidade com a expectativa pela publicação do segundo volume, prevista para o início de 1999. Com certeza, estamos testemunhando o surgimento de uma obra que fará história, um Tratado no sentido tradicional do termo, ou seja, um conjunto de escritos afinado com seu tempo, dotado de unidade e destinado a se tornar referência obrigatória no campo dos direitos humanos.


Resenhista

Benoni Belli


Referências desta Resenha

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos (Volume I). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. Resenha de: BELLI, Benoni. Revista Brasileira de Política Internacional, v.41, n.1, 1998. Acessar publicação original [DR]

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