Um mundo sem judeus: da perseguição ao genocídio, a visão do imaginário nazista | Alon Confino

No presente livro, Alon Confino, professor em Universidades nos Estados Unidos e em Israel, apresenta uma interpretação do nazismo e do genocídio judeu baseada, essencialmente, na perspectiva da história cultural e intelectual. O livro se insere, assim, numa tendência historiográfica que busca dar sentido ao Holocausto a partir de uma visão antropológica, que visa entender os sentimentos, as perspectivas e a imaginação que conduziram à formatação de uma política de Estado genocida.

O esforço do autor, nesse sentido, não é o de reconstruir o que aconteceu, mas o que os nazistas pensavam estar acontecendo e que justificava suas ações e atitudes. Ele se propõe, assim, a entrar na mente nazista e investigar de que forma os alemães imaginavam um mundo sem judeus e porque isso seria positivo para a Alemanha e para o mundo.

Essa teria sido, na verdade, uma proposta que perpassou todo o regime, de 1933 a 1945. Os objetivos (expulsão, extermínio ou segregação) e os instrumentos (humilhação, confisco de bens, violência individualizada e, por fim, genocídio de massa) teriam variado no tempo, conforme a conjuntura e os acontecimentos, mas a meta maior teria sido estabelecida em 30 de janeiro de 1933, quando um projeto revolucionário de mudança da sociedade chegou ao poder: um mundo sem judeus era um objetivo desejável, uma meta realizável.

O nazismo, como todas as grandes ideologias modernas, prometia a redenção e um futuro perfeito, utópico, mas sua identificação do mal era mais imediata, física. O comunismo localizava o mal na exploração do trabalho e na luta de classes e prometia a redenção da sociedade sem classes. O liberalismo entendia que o mal estava na tirania política e sua redenção era a salvação individual através da realização pessoal e da busca da felicidade. Já o nazismo identificava o mal nos judeus e esse mal, ao contrário dos outros, podia ser eliminado fisicamente.

Nessa linha, Confino recusa a ideia de que o massacre sistemático dos judeus após 1939 tenha sido inesperado ou improvisado. O antissemitismo do regime teria sido um work in progress, no qual instrumentos, táticas e estratégias foram sendo testados, recusados ou adaptados. Ninguém, obviamente, podia prever Auschwitz em 1933. No entanto, a partir do momento em que se começou a conceber como possível e necessária a extirpação do judaísmo e dos judeus da Alemanha, essa possibilidade já emergia.

Essa seria a radicalidade maior do nazismo: a primeira experiência de criação total de uma nova humanidade, de uma matriz histórica purificada de um passado maléfico através do extermínio de uma parte fundamental desse mesmo passado. Regimes revolucionários sempre tentaram se mostrar como livres do seu passado, como os jacobinos franceses ou os bolcheviques russos. Os nazistas, contudo, elegeram um passado palpável, de pessoas de carne e osso, cuja eliminação física significaria a redenção da própria Humanidade.

Na concepção de Confino, o nazismo era uma proposta revolucionária, nova, que pretendia reescrever a história alemã e europeia e criar uma nova moralidade e um novo sentido para o mundo. Nesse projeto, uma parte essencial da identidade alemã – o cristianismo – teria que ser expurgada e reelaborada para justificar um projeto de poder baseado na perseguição e na dominação sistemática sobre outros povos. E, para que esse expurgo pudesse frutificar, a eliminação da herança judaica seria a primeira e mais fundamental tarefa a dar conta.

Os judeus representavam o tempo, o passado que se queria reescrever. Eles simbolizavam origens maléficas que teriam que ser erradicadas para que a nova civilização nazista pudesse frutificar. Os judeus estariam na origem do cristianismo, do iluminismo e da modernidade e só erradicando completamente a sua influência seria possível eliminar as algemas do passado e abrir os horizontes políticos, históricos e morais para a nova era que se avizinhava. Além disso, os poderes judaicos comandavam o mundo desde sempre e sua aniquilação seria fundamental para abrir o domínio para os novos senhores. Os judeus eram tão poderosos e estavam tão presentes no próprio corpo e história da Alemanha e da Europa que só sua erradicação, completa e total, poderia garantir a vitória da nova ordem.

Os judeus, assim, não foram as vítimas centrais do III Reich por serem algo estranho ao corpo cultural e histórico da Europa. Os que foram vistos dessa forma, como os ciganos, foram atingidos pelos massacres e pela repressão, mas no sentido de “limpeza” de uma raça ou cultura vistas como não europeias. Os judeus, ao contrário, eram uma parte integrante e fundamental da sociedade, da cultura, da religião e da economia europeias desde milênios e vistos como um inimigo formidável, cuja derrota exigiria medidas radicais. Os judeus não teriam sido atacados com especial ênfase, assim, por serem estranhos à cultura alemã e ocidental em geral, mas, pelo contrário, por serem parte integrante e fundamental dessa cultura.

Confino enfatiza, assim, o papel da crença e da ideologia como motivador da perseguição sistemática aos judeus e, posteriormente, do Holocausto. Os judeus não eram uma ameaça econômica ou militar à Alemanha e as motivações para o seu extermínio vieram de crenças, de disputas ao redor de identidades e de visões de mundo. O antissemitismo nazista era pura fantasia, mas uma fantasia que motivava ações individuais e determinou políticas de Estado.

O genocídio dos judeus se inseriria na realidade do colonialismo europeu moderno, no qual a dominação e a eliminação física de povos inteiros tinham se tornado aceitáveis, e também dentro de um projeto maior de reordenação racial do mundo, no qual outros genocídios e massacres, como o dos eslavos, estiveram presentes. Para Confino, o genocídio dos judeus não foi tão único ao ponto de não poder ser comparado a outros, mas tem particularidades que o fazem algo excepcional. Uma delas é o fato de não ter restrições de tempo e espaço e nem seguir motivações sociais ou políticas claras. Os judeus estavam visados para morrer em qualquer lugar e tempo e essa priorização só poderia ser explicada justamente, como mencionado acima, pelo papel especial dos judeus – ou da sua eliminação – na reconstrução civilizacional e moral pretendida pelos nazistas.

Um mundo sem judeus enfatiza justamente o período entre a tomada do poder e a Kristallnacht, ou seja, de 1933 a 1938. Nesse momento, o novo governo alemão trabalhou febrilmente para remover os judeus da vida alemã, sendo exemplar a queima de livros de autores judeus, já que o fogo sempre significou um ritual de purificação. E, mais especialmente, queimaram-se sinagogas, lugares sagrados, e a Torá, que é parte da Bíblia cristã. Para o autor, isso seria um elemento chave para entender a tentativa nazista de rompimento com o passado, de um sacrilégio pensado para garantir a remoção das raízes judias da herança alemã.

Numa primeira fase, os nazistas propunham a emigração dos judeus e, depois, o seu extermínio. Em ambos os casos, os judeus eram um problema a ser removido do corpo alemão de alguma forma. As contingências mudavam os planos e as estratégias, mas o objetivo era o mesmo. A solução final foi uma ruptura radical, mas menos radical do que se imaginaria. O ponto crucial se estabeleceu antes, em 1933 e 1938. Em 1933, os nazistas decidiram que os judeus não tinham lugar na Alemanha; em 1938 que o judaísmo não tinha espaço no Reich; em 1939, que os judeus deviam morrer lentamente no Leste e, a partir de 1941, que eles deveriam ser exterminados de uma vez. Em 1933, se conquistava o presente. Em 1938, o passado. E, a partir de 1941, o futuro e a História.

O trabalho de Confino se insere dentro de uma perspectiva historiográfica mais ampla, especialmente no diálogo com a tese do “antissemitismo redentor” de Saul Friedländer e com outros historiadores da chamada corrente intencionalista, ou seja, aqueles que viram no antissemitismo um real motivador do Holocausto e não mero disfarce para outros objetivos. Alan Confino, contudo, avança numa direção diversa, até por sua formação como historiador da cultura. Ele está menos interessado em relações de causalidade e mais no processo cultural de formação de imaginários. Ou, em outras palavras, ele não afirma que a história antissemita alemã, ou europeia, levou ao extermínio dos judeus, numa relação simples de causa-efeito, mas que a interpretação que os nazistas fizeram dessa história criou um imaginário que permitiu elaborar mentalmente o Holocausto.

A interpretação de Confino é, portanto, esclarecedora, baseada em pesquisa séria em múltiplas fontes, e ajuda a compreender como um povo tão sofisticado e desenvolvido como o alemão cometeu a, provavelmente, maior atrocidade do século XX. Enquanto trabalho de história intelectual e cultural, contudo, ele apresenta seus limites, especialmente no tocante à interação entre a imaginação e o mundo real.

Em primeiro lugar, sua ênfase na questão do antissemitismo talvez nos impeça de compreender com mais exatidão o mundo mental nazista. O darwinismo social nazista e sua ênfase na guerra das raças era, provavelmente, a chave mental maior que conduzia as ações do Reich, sendo o antissemitismo um elemento crucial, mas não a sua essência. Ao enfatizar um ponto, ele talvez tenha perdido o foco no todo. Evidentemente, isso não invalida sua argumentação, que nos ajuda a compreender porque os judeus eram um componente tão crucial dentro dessa luta de raças implacável que dava sentido à vida, mas ela talvez tenha que ser colocada em perspectiva.

Em segundo lugar, ele segue uma linha de raciocínio pela qual o mundo mental nazista era essencialmente o mesmo desde 1933 ou mesmo antes, sendo que apenas estratégias e métodos mudaram conforme as circunstâncias. Isso é questionável. Afinal, não apenas estratégias e táticas se alteraram conforme os acontecimentos, como a própria imaginação e mentalidade nazistas parecem ter, dentro de certo limite, se modificado. Entre 1933 e 1939, por exemplo, o objetivo era eliminar os judeus da Alemanha, especialmente pela emigração. Mesmo posteriormente, a ideia de enviar os judeus para fora da Europa – para a Sibéria ou Madagascar – esteve presente. Esses planos indicam que os nazistas queriam eliminar os judeus da vida alemã e europeia, mas não se coadunam com uma visão de luta cósmica no qual os judeus tinham que ser varridos da face da Terra. Afinal, mesmo confinados a regiões inóspitas onde muitos morreriam (como indica o autor), o judaísmo sobreviveria. Minha interpretação é que os nazistas queriam eliminar o judaísmo e os judeus da vida alemã e, posteriormente, europeia, mas que a ideia apresentada por Confino de uma luta cósmica dentro da qual cada judeu do mundo deveria ser assassinado só se tornou real nos anos 1940. E, além disso, essa abordagem ideológica ampla era aplicada dentro dos limites materiais e práticos de uma situação de guerra.

O antissemitismo nazista, na verdade, oscilava e tinha incoerências, especialmente durante os anos da guerra, o que se refletia no material e também no mental, na imaginação. Os problemas de gerir milhões de judeus nos novos territórios conquistados na Polônia e, depois, na URSS (sem a possibilidade da opção emigratória), as necessidades de mão-de-obra, a escassez de alimentos, a associação dos judeus com a atividade guerrilheira e outros elementos colaboraram para dosar, amplificar ou restringir o alcance dessa luta cósmica identificada por Confino. A análise das ideias e da imaginação é sempre útil, mas desde que articulada com o mundo real onde elas adquirem sentido e coerência.

Dois pontos de especial interesse no livro, além da sua tese central, são quando ele indica que as fronteiras entre o antissemitismo tradicional e o científico e entre o cristianismo e a ideologia nazista são mais fluidas do que parecem num primeiro olhar.

No tocante ao antissemitismo, há uma tendência a fazer uma separação mental entre as definições de raça e cultura e entre um antissemitismo de base religiosa e outro racial. Não que essa separação não exista, mas o autor indica como, no imaginário nazista, ela era mais fluida e menos rígida do que imaginamos. O nazismo procurava construir uma utopia racial, de bases biológicas, e sua identificação dos judeus e do problema judaico seguia parâmetros raciais, pretensamente científicos. Segundo o autor, contudo, essa visão, não isenta de verdade, ignora um fato básico, ou seja, que questões religiosas e de identidade também estavam presentes. Segundo Confino, a teorização científica e racial nazista só pôde adquirir raízes na população alemã porque se articulou e reelaborou outros preconceitos, ideias e hábitos mentais já existentes e particularmente fortes, como as do mito nacional e, especialmente, as religiosas.

O antissemitismo religioso, conservador, era efetivamente diferente do racial, pois o primeiro permitia, ao menos em teoria, a conversão e a salvação. Muitos alemães, contudo, não tiveram problemas em mesclar elementos de ambos os modelos e foi essa mescla que permitiu à propaganda do regime se difundir com tamanha força entre os alemães. Dessa forma, a oposição entre os dois tipos de antissemitismo se desfaria ao menos em parte, pois, sem a preparação mental do primeiro, o segundo não teria sido capaz de criar raízes tão rápido como criou. Ele recorda, assim, como toda a teorização racial nazista, apesar do seu cientificismo, recorria continuamente a elementos antissemitas presentes na tradição, especialmente os religiosos. Menções ao judeu como o mal absoluto que se erguia contra Deus conviviam com outras que enfatizavam sua degeneração racial cientificamente comprovada.

Na verdade, segundo Confino, a ideia de raça para os nazistas estava longe de ser puramente biológica, já que não haveria instrumentos (antes da invenção dos marcadores genéticos, provavelmente) para auferi-la. A raça era comprovada pela burocracia, pela documentação e também pelos traços culturais. Um mestiço entre arianos e judeus que seguisse a religião judaica, por exemplo, era imediatamente classificado como judeu, enquanto um que tivesse lutado no Exército alemão podia – ao menos num certo período – ter um melhor tratamento do que outros. O racismo nazista se propunha científico e exato, mas não o era.

No tocante à raça, a proposta do autor é que o termo era uma metáfora de origem que mesclava atributos nacionais, raciais e religiosos. O racismo nazista era biológico e se pretendia científico, mas também tinha aspectos morais e religiosos. A raça, biologicamente falando, era importante porque determinava o espírito, a cultura. Essa discussão mais pormenorizada das ideias nazistas de raça e sobre o antissemitismo é realmente importante, até para que compreendamos as trocas e os diálogos entre os conservadores e os nazistas.

O nazismo também teria tido uma relação com o cristianismo mais complexa do que uma simples oposição, como se o nazismo tivesse realmente procurado a destruição da herança cristã alemã em favor de propostas neopagãs. No discurso e no pensamento de alguns líderes (como Himmler ou Bormann) isso estaria presente, mas, na prática, o regime encontrou maneiras de permitir aos alemães serem nazistas modelos e, ao mesmo tempo, bons cristãos.

A rejeição total do cristianismo significaria abandonar parte crucial da tradição alemã, um passo que, ao contrário dos bolcheviques, os nazistas não estavam dispostos a dar, até porque sua visão de revolução estava limitada por elementos conservadores como a preservação da propriedade privada e da própria religião. Ao invés disso, eles optaram por um modelo que extirparia as raízes judaicas do cristianismo, vistas como aquelas que enfraqueciam o potencial guerreiro da raça ariana. Um Cristo ariano e conquistador ao invés de um judeu e vencido na cruz.

O genocídio dos judeus, assim, estaria mais imbricado na questão do relacionamento milenar entre eles e os cristãos do que pareceria à primeira vista. Desde o seu início, o cristianismo tem, em relação ao judaísmo, uma relação ambígua, de proximidade e distanciamento, de continuidade e ruptura, expressa na existência do Novo e do Velho Testamento no mesmo livro sagrado. O nazismo teria permitido, com a eliminação dos judeus, o rompimento desse passado e a formulação de um novo cristianismo. Em caso de vitória alemã na guerra, esse teria sido o seu impacto maior na cultura europeia e ocidental, redefinindo o seu elemento central, ou seja, a religião cristã.

A relação do nazismo com o cristianismo, com certeza, foi muito mais complexa do que tradicionalmente se imagina, mas a interpretação de Confino não consegue captar essa complexidade. Eliminar a herança judaica do cristianismo poderia ser uma etapa fundamental na sua reconfiguração, mas provavelmente não bastaria. Criar um novo cristianismo nazista demandaria romper com as mensagens centrais de Cristo, como o amor ao próximo e a igualdade entre os homens, e fica a dúvida se isso seria viável. Isso fica visível quando recordamos como, ao mesmo tempo em que muitos teólogos católicos e, especialmente, protestantes trabalharam com o regime na tarefa de remover a herança judaica do cristianismo, outros consideravam tal tarefa uma impossibilidade e rejeitavam seus princípios. No caso dos protestantes, aliás, o alinhamento com as diretrizes do regime era mais simples – especialmente pelo viés nacionalista – do que no caso católico, pois a Igreja Católica era muito mais transnacional do que as Igrejas protestantes. Isso poderia, inclusive, ter levado a uma cisão maior entre elas na hipótese que o nazismo realmente procurasse recriar a religião cristã em outras bases.

Tudo isso, contudo, fica no campo das especulações. O que é razoável acreditar é que um nazismo vitorioso redefiniria suas relações com o universo cristão, sendo que as opções podiam ser desde um ataque frontal em favor do paganismo, uma total acomodação ou mesmo uma tentativa de expurgo das partes menos aceitáveis da herança cristã. Tal relacionamento, de qualquer modo, seria definido pela imaginação, pelo mental, mas, igualmente, pela relação política, econômica e social entre os vários atores. Pensar em termos abstratos é fundamental, mas pensar apenas neles é reducionista.

Para concluir, a opção teórica de Confino pela história cultural e das ideias é o que dá ao livro a sua originalidade ao abordar o nazismo e o genocídio dos judeus e faz dele uma leitura obrigatória para os interessados no tema. O fato de ele se restringir, em essência, a essa abordagem, contudo, também é a sua grande deficiência.


Resenhista

João Fabio Bertonha – Doutor. Professor Associado. Universidade Estadual de Maringá. E-mail: [email protected]   https://orcid.org/0000-0002-5194-5632


Referências desta Resenha

CONFINO, Alon. Um mundo sem judeus: da perseguição ao genocídio, a visão do imaginário nazista. São Paulo: Cultrix, 2016. Resenha de: BERTONHA, João Fabio. Esboços. Florianópolis, v. 26, n. 41, p. 204-210, jan./abr. 2019. Acessar publicação original [DR]

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