Unasp no Tempo: tradições, histórias e transformações | Douglas Menslin

Douglas Menslin Imagem Revista Novo Tempo
Douglas Menslin | Imagem: Revista Novo Tempo

“Consciência histórica” é uma expressão atualmente utilizada para designar a consciência que o ser humano adquire e constrói em sua experiência ao refletir sobre sua vida e posição no fluxo temporal da existência. Como elementos constitutivos, destacam-se a identidade pessoal e a compreensão do conjunto social a que se pertence.

A consciência histórica precisa também da memória individual e coletiva como referência do conteúdo. Portanto, significa que temos uma compreensão do passado e de como nos situamos no tempo, mesmo que existam diferentes maneiras de entendimento dessa condição (Martins, 2019).

O trabalho da pesquisa histórica envolve procedimentos e critérios que aprimoram a consciência histórica das pessoas. Entre esses procedimentos, destacam-se: o uso de métodos de pesquisa e estratégias discursivas da historiografia; objetivação do passado para ser apreendido metodologicamente por meio da análise de fontes; uso das memórias para interpretações reflexivas sobre o passado e sua relação com o presente.

O livro Unasp no Tempo: tradições, histórias e transformações é mais um esforço para trazer reflexões sobre o passado de uma instituição educacional peculiar, instalada nos arredores de São Paulo, cuja história está ligada à expansão do movimento adventista do sétimo dia na América do Sul. Por suas características, essa instituição representou um marco para difundir ideias teológicas, educacionais e de saúde adventistas no País.

Pessoas de vários lugares no Brasil foram atraídas pelo modelo de educação confessional adventista. Uma das marcas do Unasp, em sua trajetória, foi a diversidade cultural, pois muitas pessoas que se empenharam na expansão do adventismo e seus valores tiveram sua formação na instituição. Muitos pais, de diferentes regiões do País, faziam grandes esforços para enviar seus filhos ao internato.

Os autores que escreveram os textos do livro Unasp no Tempo são adventistas do sétimo dia, sendo a maioria ligada ao próprio Unasp. Existem limitações e possibilidades em um trabalho assim. Como limitação, verifica-se a possível dificuldade de tratar de temas ou aspectos possivelmente contraditórios ou conflituosos, como embates em torno de decisões difíceis e disputas entre projetos diferentes.

Já como possibilidade, vê-se o aprofundamento de certas questões a partir de documentação interna e a possibilidade de se levantarem memórias de pessoas que vivenciaram, direta ou indiretamente, o cotidiano da instituição. Além disso, é uma forma de compreender como acadêmicos adventistas que trabalham no Unasp entendem a trajetória e relevância da instituição no que se pode chamar de autocompreensão2 de seus estudiosos.

A respeito da documentação histórica sobre o adventismo, é interessante se verificar um incremento dos estudos com base em novas possibilidades de fontes. Isso inclui o amplo acesso que foi dado a fontes bem como a publicações adventistas nacionais e internacionais, digitalizadas em projetos de popularização da documentação da Igreja. É o caso dos materiais divulgados pelo Office of Archives, Statistics and Research3 e pela Casa Publicadora Brasileira, editora da Igreja no Brasil4.

Muitos materiais trataram de perspectivas diferentes e complementares da trajetória do Unasp desde o período que antecedeu sua formação, em 1915, até questões mais recentes. Há uma narrativa que perpassa muitos trabalhos e começa com as origens do adventismo nos Estados Unidos, na metade do século XIX, passando pelo início das atividades missionárias para outros países, pela chegada à América do Sul, no final do século XIX, e por sua introdução no Brasil por meio de comunidades de origem alemã. Em seguida, trata dos primeiros esforços de formação de escolas adventistas, com destaque para o Sul do País, até chegar ao projeto de construção de um colégio nos arredores de São Paulo.

Essa narrativa aparece na publicação Unasp no Tempo e inclui o pensamento e os pressupostos educacionais do projeto adventista, sobretudo no capítulo 1, escrito pelo teólogo e educador Douglas Menslin. Sempre vale a pena trazer novamente ao leitor essas questões, pois elas serviram de orientação para diretrizes concretas na definição das escolas, e isso foi feito no primeiro capítulo do livro.

Vê-se, no livro, uma preocupação dos autores de tratarem de aspectos ligados ao que se pode chamar de uma “história cultural” da educação adventista e do Unasp. No capítulo 2, além de tratar dos primórdios da educação adventista no Brasil, o educador Renato Gross apresentou como era o edifício que abrigou o primeiro colégio preparatório de missionários da Igreja no Brasil em 1897, em Gaspar Alto (SC), com a funcionalidade da distribuição do espaço. Discutiu também elementos da culinária que influenciaram os internatos adventistas e um personagem pouco conhecido mesmo entre os adventistas, Emil Schenk, considerado o pai da apicultura racional no Sul do Brasil.

A relação do Unasp, em suas várias fases, com os grandes momentos da história do Brasil são articulados no capítulo 3, escrito pelo historiador e filósofo Francisco Carlos Ribeiro. Trata-se de uma interessante síntese dos estudos que trataram de cada etapa, a qual reuniu importantes estudos sobre a história do Unasp. É o caso do trabalho referencial do historiador Elder Hosokawa (2001). Seu trabalho foi além da dissertação: ele se dedicou a reunir fontes, construir cronologias e fazer análises originais sobre episódios, instituições e personalidades adventistas no Brasil.

Aliás, como marco nas pesquisas sobre a história do adventismo, será muito enriquecedora uma pesquisa sobre a trajetória do curso de graduação em História do Unasp (Campus Engenheiro Coelho), que trouxe enormes contribuições para os estudos sobre o adventismo e suas várias nuances, inclusive na área educacional. Trata-se de uma proposta de reflexão interessante.

No Campus São Paulo, outro aspecto positivo na reflexão histórica foi a criação do Centro de Memória do Unasp, em maio de 2019. A coordenadora, produtora e gestora cultural Emily Kruger Bertazzo tem realizado um grande trabalho de divulgação da memória institucional. No mesmo período, foi criado o Lehme – Laboratório de Estudos da História e Memória do Unasp.

O Centro de Memória do Unasp trouxe grandes contribuições, juntando-se aos esforços do Centro Nacional da Memória Adventista, estabelecido em 1987 e localizado no Campus Engenheiro Coelho, sob direção do teólogo e educador Renato Stencel.

Bertazzo foi autora do capítulo 4, que trata de um tema muito relevante no âmbito da história cultural: as tradições gastronômicas do Unasp. A preocupação com a alimentação vegetariana e sua relação com a espiritualidade é um dos marcos do adventismo, e isso se refletiu em práticas peculiares no internato, influenciando as igrejas que surgiam em todo o Brasil, com a presença de ex-alunos do Unasp.

Também foi importante a criação da Fábrica de Produtos Alimentícios (FPA), atual Superbom. Talvez uma interessante pesquisa futura, a partir das memórias de ex-alunos, possa tratar da adaptação dos jovens às práticas alimentares do adventismo no internato, como a alimentação vegetariana e a recusa ao consumo do café, bebida tão popular no Brasil.

Vários aspectos ligados a um tipo de “Patrimônio Imaterial” do Unasp e do adventismo são tratados na obra. É o caso do legado musical da instituição, no capítulo 5, analisado por Ronnye Dias, importante músico na história do Unasp. Assim como outros elementos da rotina escolar e da Igreja, as práticas musicais foram levadas por alunos para todas as regiões nas quais o adventismo era implantado.

Personalidades, influências internas e externas, grupos, corais, cantores e músicos com talentos diversos, que atuaram ao longo do tempo, são destacados, e um estudo interessante poderá ser feito ainda a fim de tratar das representações de membros e líderes da Igreja Adventista sobre a música produzida no âmbito do Unasp.

As pesquisas para o Centro de Memória do Unasp têm se beneficiado com a atuação de uma professora com brilhante formação acadêmica em História e Arte, Gabriela Borges Abraços. O capítulo 6 trata do patrimônio material edificado do Unasp, com espaços que marcam a memória da instituição.

Os primeiros missionários que participaram da instalação do colégio coordenaram os edifícios iniciais, que serviriam para atender às demandas educacionais e receber os alunos que viriam de diversas regiões. É o modelo de internato, com dormitórios, cozinha, lavanderia, salas administrativas e outras instalações, como espaço para uma marcenaria, dentre outros, como estímulo aos trabalhos práticos e manuais, conforme preconiza a filosofia educacional adventista.

A distribuição do espaço e os edifícios auxiliaram na definição de rotinas ao longo do tempo. Quantas pessoas circularam nesses espaços e quantas memórias eles suscitam! Isso não se aplica apenas ao grande número de alunos e funcionários que passaram pela história da instituição, mas também à população do entorno do Unasp, cuja população cresceu ao longo do tempo. Faz muito sentido, portanto, a solicitação de tombamento do conjunto arquitetônico da instituição, realizada por um aluno que teve a vida marcada pelo colégio, destacando as referências culturais e afetivas que as dependências da instituição evocam.

As reflexões sobre os edifícios representam uma grande contribuição para o reconhecimento da marca cultural da instituição, que tanta influência exerceu sobre muitas pessoas em todo o País. Os valores adventistas difundidos no Brasil devem muito à identidade construída ao longo dos anos nesse ambiente escolar.

O texto final, escrito pelo teólogo e educador Francisco Luiz Gomes de Carvalho, trata da influência do seminário do colégio adventista na formação de obreiros, ou seja, na formação de líderes e pastores da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Brasil. Afinal, um dos maiores objetivos do Colégio Adventista era preparar pessoas para expandirem o adventismo, em sua missão de “anunciar a volta de Jesus a todo o mundo”, e assumirem a liderança de igrejas, regiões administrativas e outras instituições resultantes dessa expansão.

Tratava-se de um esforço centralizador para manter certa coesão de pensamento doutrinário e denominacional. O regime de internato colaborava para o afastamento das pessoas do cotidiano nas cidades e as integrava aos ritmos determinados pela liderança do colégio. Para financiar custos dos estudos, estimulava-se a prática da colportagem, que envolvia a venda de livros denominacionais sobre religião e saúde. Jovens dirigiam-se a diferentes regiões, em períodos de férias, para venderem livros, divulgarem a mensagem do adventismo e custearem todo ou parte de seus estudos. De certo modo, isso fazia parte do preparo dos missionários adventistas.

Por fim, retorna-se à questão da consciência histórica e memória institucional, suas possibilidades e seus desafios. Em sua obra clássica A Memória Coletiva, Halbwachs (1990) analisou a “memória” como um processo de reconstrução na qual o sujeito trabalha qualitativamente o passado. A evocação seria, portanto, refazer, reconstruir, repensar com imagens e ideias do presente as experiências do passado.

Por essa concepção, a lembrança é entendida como a construção de imagens a partir do material disponibilizado pelas “representações” que compõem a consciência atual de cada indivíduo. Para Halbwachs, a “memória” está entrelaçada com um grupo social, que, por sua vez, está ligado a uma tradição e a uma “memória” coletiva.

Apesar das críticas que surgiram posteriormente à distinção entre “memória” e “história” na obra de Halbwachs, é interessante que se pense nessa questão da memória que trabalha qualitativamente o passado a partir das ideias, referências e intenções do presente. Entende-se que essa seja uma questão dos centros de memória institucionais, e, no caso do Unasp, envolve a forma de tratar, no âmbito denominacional e institucional, a história a partir dos dilemas e problemas que existiram ao longo do tempo.

Há uma tendência narrativa no tratamento dos progressos, das conquistas e vitórias, mas existem também retrocessos, derrotas e perdas além de disputas. Institucionalmente, entende-se que os centros de memória ganham muito quando se confrontam essas questões com seriedade e abertura. Contudo, se reconhece ser uma dificuldade para qualquer gestor nessa área tomar decisões nesse sentido. Enfim, o dilema está aí para reflexão.

No trabalho para uma consciência histórica a partir de uma reflexão criteriosa e acadêmica da documentação disponível, entendese que os ganhos das descobertas não jogam contra o passado da instituição, até porque esse não deve ser o propósito da pesquisa histórica. Pelo contrário, significa entender a trajetória de diferentes sujeitos que passaram por ela, colaborando, assim, para as reflexões sobre o futuro e os novos contextos.

O livro Unasp no Tempo: tradições, histórias e transformações, traz novos olhares sobre a trajetória da instituição, e entende-se que o destaque dado a questões de patrimônio material e imaterial no âmbito do colégio e do adventismo foi o ponto alto da obra. Isso parece ter sido um pressuposto assumido pelos autores.

Essas temáticas servem de inspiração não apenas para pessoas interessadas na pesquisa acadêmica sobre a história do Unasp e da educação adventista no Brasil, mas também para aqueles que se dedicam a estudos sobre a Zona Sul de São Paulo e sobre a história da educação.

Notas

2 A noção de “autocompreensão” é trabalhada na introdução da obra de Wernet (1987).

3 Disponíveis em: https://documents.adventistarchives.org/default.aspx. Acesso em: 24 jan. 2022.

4 Disponíveis em: https://acervo.cpb.com.br/ra. Acesso em: 24 jan. 2022.

Referências

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HOSOKAWA, Elder. Da colina, rumo ao mar: Colégio Adventista Brasileiro em Santo Amaro (1915-1947). Dissertação (Mestrado em História Social) – FFLCH, Universidade de São Paulo, 2001.

MARTINS, Estevão de Rezende. Verbete: Consciência Histórica. In: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias; FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.) Dicionário de ensino de história. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2019.

WERNET, Augustin. A igreja paulista no século XIX. São Paulo: Editora Ática, 1987.


Resenhista

Ubirajara de Farias Prestes Filho – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e Consultor Técnico Legislativo (História) na Câmara Municipal de São Paulo. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

MENSLIN, Douglas et al. Unasp no Tempo: tradições, histórias e transformações. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2021. Resenha de: PRESTES FILHO, Ubirajara de Farias. Tradição e mudança na história da educação adventista. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, v.1, n.27, p. 232- 241, 2022. Acessar publicação original [DR]

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