Uri e Wãxi: estudos interdisciplinares dos kaingang | Lucio Tadeu Mota

Aponta caminhos é o que se pode dizer de partida sobre o livro Uri e Wãxi: estudos interdisciplinares dos kaingang, organizado pelos professores Lúcio Tadeu Mota (UEM), Francisco Noelli (UEM) e Kimiye Tommasino (UEL).

Trata-se de uma coletânea de artigos diversos, alguns muito maduros, outros ousados; vários, poéticos e inovadores pela garra comum a todos os textos. É um mérito dos organizadores? Não há dúvida de que também o é. Este livro, elaborado a partir do encontro periódico de diversos pesquisadores dos grupos indígenas jê do Sul do Brasil, nasce pelo seu conteúdo e intenções reveladas como um indicador de caminhos de pesquisa. Ele marca a criação do Programa Interdisciplinar de Estudos de Populações – Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etnoistória da Universidade Estadual de Maringá (UEM), congregando pesquisadores de várias áreas, envolvidos com trabalhos de caráter prático e teórico.

No livro, o tema comum a todos – história e cultura de populações indígenas do Sul do Brasil – costura textos muito diferentes, a começar pelo artigo de Francisco Noelli, “Repensando os rótulos e a História dos jê no sul do Brasil a partir de uma interpretação interdisciplinar”. Aqui, o autor desenvolve seu olhar crítico para o que chama de conclusões pronapianas em torno das tradições arqueológicas Itararé, Taquara e Casa de Pedra. Questionando esta abordagem, Noelli contrapõe uma interpretação que une kaingang e xokleng como integrantes do conjunto multicultural que define os povos Jê do Brasil Central. Esta é uma das questões postas nesta coletânea não apenas por Noelli, como também por Lúcio Mota.

As intenções manifestas de Francisco Noelli são as de buscar explicações, De dar às sociedades indígenas uma história, mas para além dela, buscar seu passado remoto. Com isso o autor procura um sentido para a sua arqueologia. O passado iluminando o presente e vice-versa, numa via de mão dupla. Para tal, a palavra é continuidade, contra toda descontinuidade e fragmentação, que os modelos dicotômicos anteriores propunham.

O segundo artigo da coletânea é o de Fabíola Andrea Silva “As cerâmicas dos jê do Sul do Brasil e os seus estilos tecnológicos: elementos para uma etnoarqueologia kaingang e xokleng”. Nele, a autora comenta estilos e técnicas no uso da cerâmica entre os grupos kaingang e xokleng, mostrando similaridades entre essas produções cerâmicas que podem indicar que os dois povos foram historicamente mais próximos do que o atual estado das pesquisas nas áreas de linguística e biologia indica.

Para falar d’“Os índios kaingang e seus territórios nos campos do Brasil meridional na metade do século passado”, Lúcio Tadeu Mota vai usar farta documentação: relatórios da burocracia provincial e de expedições exploratórias, além de relatos de viajantes, onde vai encontrar mapas antigos de John Elliot, norte-americano, mapista, contratado pelo Barão de Antonina, o qual vai desenhar o Paraná e partes de Minas Gerais entre 1840 e 1860, ainda com suas coberturas vegetais. Estas imagens são um achado e Mota faz bom uso delas. O trabalho gráfico da capa do livro em parceria com Aluísio T. Karling é um bom exemplo.

Através de levantamento minucioso, cruzando fontes e debruçado sobre farto material cartográfico, o autor vai registrando as andanças dos povos jê, a partir de seu ponto de origem no Brasil Central:

… eles vieram seguindo um padrão de ocupação semelhante ao que tinham na sua região de origem, isto é, primeiro ocuparam as áreas de cerrados, faxinais e campos de terras mais altas, e depois se espalharam para as áreas de floresta e vales dos médios e grandes rios (p.189).

A entrada dos kaingang nos Campos Gerais do Paraná deu-se pelo Sul de São Paulo e caracterizou-se nesta e em todas as outras áreas por conflitos com a população não indígena. As demais áreas de ocupação estabelecidas por Mota são: 2- Os Koran-bang-rê (Marrecas); 3- Os Kreie-bang-rê (Palmas); 4- Os Xanxe-rê (Xanxerê SC); 5- Os Kampo-rê (Campo Erê); 6- Kavaru-Koya (São Pedro das Missões, Argentina); 7- Os Pahy-ke-rê (oeste de Guarapuava); 8- Min-krin-ia-rê ou Xongu (região de rio das Cobras) 9- Campos do cacique Inhoó (vale do Tibagi) 10- Campos nos municípios de Rolândia e Arapongas.

Este artigo, o mais longo da coletânea, segue um padrão de introdução, desenvolvimento e conclusão, claramente estabelecido em todos eles como para favorecer sua leitura e interpretação.

O que surpreende quando nos debruçamos sobre a produção acadêmica referente ao Sul do Brasil é a quantidade e a qualidade dos trabalhos apresentados. Assim torna-se possível fazer generalizações, mapeamentos amplos, cruzamento de dados para interpretações ou reinterpretações mais abrangentes.

O artigo de Kimiye Tommasino “Território e territorialidade kaingang: resistência cultural e historicidade de um grupo jê” torna claro o título da coletânea. Uri é o espaço/tempo presente: da escassez, da administração de “brancos”. Wãxi é o espaço/tempo passado onde a abundância, o equilíbrio, a harmonia, o prazer eram as notas dominantes.

O texto de Kimiye logo se coloca sob a perspectiva kaingang, revelando a intimidade da autora com sua narrativa. É poético e assim arrasta o leitor para o lugar do sonho, da imaginação e da memória já apontado no título.

Este artigo demarca a metade do livro e, como para unir os dois tempos citados, ele costura a fina rede que dá densidade a todos os outros textos. Tommasino aponta para a permanência do mito. Sob todas as injunções históricas, sociais, políticas, econômicas por que passaram esse povo, o passado está vivo, permanece o espaço/tempo sagrado ab origine onde viviam com seus parentes e afins e onde a metade espiritual kaingang tinha sua livre expressão.

O artigo que segue, “Em que abrigos se alojarão eles?”, é de Janir Simiema e trata do tipo de moradia adequado aos constantes deslocamentos do grupo. Ela recupera o mito fundador kaingang que conta que eles nasceram da terra, vieram de seu interior, são semente.

O texto é ilustrado por mapas e desenhos de moradias descritas por viajantes, como Franz Keller e Bigg-Witter. Em 1941, Loureiro Fernandes fala dos abrigos tradicionais e das casas construídas após o contato: …na maioria dessas casas foi o assoalho arrancado e substituído pelo chão de terra batida (p.244). Vemos assim o espaço tradicional recuperado e então reencontramos o mito que se mantém na emergência do cotidiano.

O artigo revela pesquisa séria e Simiema pode afirmá-lo sem evocar nenhuma autoridade em suas conclusões finais. Sua assinatura já basta.

A seguir, Juracilda Veiga em “A retomada da festa do Kikikoi” defende que o ritual é uma cerimônia de separação entre vivos e mortos, é de fato uma atualização do mito cosmogônico.

Na comunidade de Xapecó (SC), em 1976, houve uma retomada do ritual do Kikiko, que não era realizado havia muito tempo. Nessa comunidade, a maioria converteu-se às religiões pentecostais fundamentalistas que proíbem práticas tradicionais, sobretudo as que envolvem o culto dos espíritos dos mortos. A autora nos conta que dois dos atuais rezadores são da Assembléia de Deus, mas voltaram a rezar o Kiki.

A par das mudanças por que passa a sociedade kaingang, um destaque no artigo é a afirmação de que já há na comunidade de Xapecó, e com certeza em outros locais também, uma jovem intelectualidade que pensa seu futuro com base numa tradição, que pode inclusive ser reinventada, mas não pode desaparecer.

É ainda de Juracilda Veiga o breve artigo que segue “Nome, pintura e descendência entre os kaingang do Xapecó”, onde ela relaciona a nominação às metades rituais Kamé e Kairu. A descendência é patrilinear e filhos e filhas pertencem ao mesmo subgrupo de seu pai, de onde recebem seus nomes. (p.304) Esses vêm de um acervo ancestral.

Essa herança nos faz pensar nas mudanças que vêm ocorrendo entre os kaingang em função dos relacionamentos fora de suas comunidades tradicionais: de que modo elas estão ocorrendo nos padrões culturais e que tipo de adaptações estão sendo feitas.

Já no artigo seguinte, também de Juracilda, agora em parceria com Wilmar da Rocha D’Angelis, “Bilinguismo entre os kaingang: situação atual e pespectivas”, o tom é bem menos formal. Os autores assumem sua prática indigenista marcada por um trabalho iniciado em 1977.

Eles nos relatam que se a população indígena dobrou nos últimos dez anos, o mesmo não aconteceu com a língua nativa. Os autores acreditam que hoje apenas 50%, na média das áreas, fale sua língua materna. Há pressões muito fortes para seu abandono.

No séc. XX, com a aceleração do processo colonizador, o “cerco” sobre as áreas aumenta. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e depois a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e as demais políticas do estado nacional para com os kaingang aumentam as pressões e falar português passa a ser uma necessidade, “… deixar de ser identificado como bugre pelos regionais passa a ser um sonho” (p.311), sobretudo dos mais jovens. É preciso falar português, converter-se e adquirir bens materiais. Essas são etapas para se alcançar a “civilização”.

Vários projetos são elaborados, feitos sempre de fora para dentro, com manipulações políticas de toda ordem, envolvendo missionários das várias religiões que atuam entre eles e a FUNAI. Os autores consideram o projeto de ensino bilíngüe mantido pelo Summer Institute of Linguistics (SIL) problemático, pois valoriza o português em detrimento da língua kaingang.

Este é um artigo de grande fôlego, colocando questões sérias para a educação indígena no país, pois o projeto de ensino bilíngüe liderado por Úrsula Weisemamm do SIL foi um dos primeiros a serem postos em prática no Brasil, tornando-se de certa forma, uma vitrine de práticas envolvendo escolas indígenas.

O que ocorre entre os kaingang, na maior parte dos casos, é o “bilinguismo incipiente”, isto é, as crianças usam o português cotidianamente e apenas compreendem a língua de seus pais e avós. Hoje boa parte dos professores “bilíngües” não fala a língua nativa e com a passagem da educação indígena para a alçada dos estados e municípios, muitas escolas têm hoje dirigentes e professores não-índios que pertencem à rede pública.

Os autores terminam o artigo buscando um projeto de valorização efetiva da língua kaingang e do mundo que a sustenta.

Esse é o tom da coletânea, conjunto de trabalhos diversos, porém muito bem costurados pelos organizadores em suas intenções, não apenas de observação da realidade, mas de participação e envolvimento.

O último artigo é bastante denso e trata da “Dinâmica do sistema cultural de saúde kaingang –aldeia Xapecó, SC”. A autora Maria Conceição de Oliveira mostra a complexidade dos procedimentos de cura e de tratamento de saúde na comunidade de Xapecó. Ela adota uma visão abrangente, questionando “modelos dicotômicos” para falar dos processos de recriação na cultura tradicional, onde atributos, prescrições e trocas ganham re-significação.

Aqui vamos novamente encontrar o espaço do mito. Todo o esforço de Maria Conceição consiste em marcar a presença da tradição ao lado de aquisições culturais mais recentes.

Esta coletânea enfrenta um desafio ao falar da mistura e da contaminação de culturas que estão colocadas para a sociedade brasileira hoje, quando procuramos caminhos de interação mais igualitários.

Os pesquisadores aqui presentes com seus resultados conclusivos ou parciais, como intermediários privilegiados na construção desse diálogo entre culturas, não se omitem, mas estão presentes, seja questionando modelos de interpretação, seja propondo novos olhares e leituras corajosas, do que se coloca como realidade da pesquisa na conjuntura atual das populações kaingang no Sul do Brasil.

Percorrer esse caminho interpretativo vigoroso e exemplar, como já disse no início desta resenha, vale a pena se queremos alargar nossos horizontes acerca da diversidade cultural no Brasil contemporâneo. É também uma forma de participação.


Resenhista

Cláudia Netto do Valle – UEM/DLE/Laboratório de Arqueologia, Etnologia e Etno-História.


Referências desta Resenha

MOTA, Lucio Tadeu; NOELLI, Francisco Silva; TOMMASINO, Kimiye. (Orgs.). . Londrina: Eduel, 2000. Resenha de: VALLE, Cláudia Netto do. Diálogos. Maringá, v.5, n.1, 231-235, 2001. Acessar publicação original [DR]

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