Visões da História Chinesa | Locus | 2021

Tendo como motivo o 120º aniversário da imigração chinesa para o Brasil, esta revista convidou famosos sinólogos americanos, europeus e chineses, bem como estudiosos brasileiros engajados no estudo das relações sino-brasileiras para, por meio de uma coletânea de textos acadêmicos, comemorar esta ocasião auspiciosa. Esta publicação possui dois objetivos. O primeiro é parabenizar os chineses que vivem no Brasil e os brasileiros de origem chinesa. Por mais de 100 anos, os chineses vem enriquecendo vários aspectos da vida e cultura brasileiras. Os imigrantes chineses e seus descendentes brasileiros fizeram contribuições extraordinárias em termos de comércio sino-brasileiro, intercâmbios culturais, formação acadêmica e até cooperação política. Por exemplo, como Renata Palandri Sigolo e Luis Fernando Bernardi Junqueira apontam em “Entre agulhas e mãos: a ‘medicina chinesa’ no Brasil da década de 1970”, os imigrantes chineses que vieram para o Brasil desempenharam um papel crucial na divulgação da cultura da medicina chinesa. O segundo objetivo desta publicação é promover o interesse e a compreensão do povo brasileiro pela história, cultura, língua, religião e política chinesas. Embora a China seja o maior parceiro comercial do Brasil, a sinologia brasileira ainda está em sua infância. Diante da ascensão política, econômica e cultura da China, tanto os países ricos da Europa, e da América do Norte quanto o Brasil, que desempenha um papel de liderança na América Latina, precisam produzir um conhecimento acadêmico mais preciso e objetivo sobre a história e a cultura chinesas. Este é, sem dúvida, um conhecimento indispensável para pessoas envolvidas na política, comércio e empreendimentos culturais em alto nível.

A relação entre o Brasil e a China remonta à Dinastia Qing (1644–1912). Durante a Dinastia Ming, o Brasil, como país, ainda não havia aparecido no cenário histórico. Até que, em 22 de abril de 1500 houve um acontecimento na história das navegações ainda muito falado na história oficial do Brasil, nomeadamente, o navegador português Pedro Álvares Cabral descobriu novas terras, que hoje correspondem à República Federativa do Brasil. No calendário chinês, este era o 24º dia do terceiro mês lunar do 13º ano do reino do imperador chinês Hongzhi (1470–1505) que, como de costume, realizava seus afazeres políticos, num dia que pode-se considerar bastante ocupado. Entre as tarefas importantes estavam a promoção, as obséquias e a demoção de altos funcionários da corte. Sem dúvida, aos olhos do imperador Hongzhi o mais importante era o problema da segurança nas áreas costeiras. Muito embora o reino de Hongzhi não esteja muito distante no tempo do reino do imperador Yongle (1360–1424), que foi o período mais glorioso das navegações chinesas, o reino de Hongzhi demonstrou uma evidente tendência da China a se fechar em si mesma, de modo que, como muitos imperadores depois do imperador Yongle, Hongzhi irá ver o mar e seus territórios como uma fonte de desastres, de modo que o imperador “ordenou que se instalasse um Comando contra piratas, para ser renovado a cada cinco anos, com oficiais responsáveis pela fiscalização de patrulhas marítimas realizando patrulhas uma vez a cada três meses, em processo de substituição mútua.” Deste modo, Hongzhi conseguiu realizar o fortalecimento do controle das áreas costeiras e dos possíveis perigos que as mesmas representavam. Tal período, ao qual os livros de história chineses se referem como a “Revitalização do Reino de Hongzhi” é na verdade uma época de gradual fechamento da China em si mesma. Nessa época, a cultura chinesa já possuía um registro escrito de mais de dois mil anos.

Como discutido por Cristiano Barros Barreto em “Fontes da História das Ideias Linguísticas na China: as Dinastias Zhou e Han”, a cultura chinesa é extensa e profunda, e a discussão dos filósofos sobre a linguagem remonta tão cedo quanto a Dinastia Zhou. Da dinastia Zhou à dinastia Han, a China passou por muitas transformações de pensamento e, como afirma Jana S. Rošker em “Filosofia chinesa contemporânea e a importância das relações de parentesco confucionistas: Li Zehou, tradição xamanista e relacionalismo”, embora o pensamento xamanista em voga durante a dinastia Zhou não seja já há muito tempo a principal corrente de pensamento da sociedade, no entanto tal substrato ainda influencia o desenvolvimento do pensamento chinês moderno. No que tange às transformações de pensamento entre as dinastias Zhou e Han, o famoso sinólogo John Lagerwey aponta em “De reino para império para religião da salvação universal: uma história da mudança de paradigmas na China primeva”, o pensamento filosófico centrado no Dao 道 (o Caminho) que aparece durante o período dos Reinos Combatentes não apenas substituiu o xamanismo precedente como, também, forneceu as bases metafísicas para o desenvolvimento do daoismo e do budismo. Além disto, a chegada do budismo teve grande influência no desenvolvimento cultural da China. De uma perspectiva de história mundial comparada, pode-se dizer que o significado do budismo na história cultural da China é equivalente ao do catolicismo na sociedade medieval ocidental. No entanto, além das três religiões do confucionismo, budismo e daoismo, muitos outros grupos religiosos surgiram na China. Por exemplo, Gábor Kósa em “Mānī nas margens: uma breve história do maniqueísmo no sudoesta da China” descreve em detalhe o desenvolvimento histórico do maniqueísmo na China nas dinastias Tang, Song, Yuan e Ming.

A Dinastia Ming na China coincide com o início da história do Brasil. O longo processo histórico que vai do Brasil-colônia sob domínio do império português à República Federativa do Brasil durou um total de 389 anos, tendo como seus mais importantes eventos o 7 de setembro de 1882 (segundo ano do Imperador Xuanzong, dinastia Qing) e o dia 15 de novembro de 1889 (15º ano do Imperador Guangxu, dinastia Qing) que correspondem respectivamente à implantação do Império do Brasil e à criação da República do Brasil. O interesse dos brasileiros pela China remonta ao período do Império do Brasil. Naquela época, as elites brasileiras, levavando em conta as necessidades de mão de obra agrícola, voltaram suas atenções para os países asiáticos, e a China, com sua enorme população, foi obviamente um dos primeiros países considerados por tais elites. No entanto, como escreve o historiador brasileiro Silvio Cesar de Sousa Lima em “Para que nos servem os súditos do filho do céu? Raça, miscigenação e branqueamento nos debates sobre a Imigração Chinesa (1850–1890)”, as elites brasileiras do século XIX apresentavam um alto grau de eurocentrismo. Naquela época, algumas elites brasileiras se opunham à imigração chinesa para o Brasil. Essa parte da classe alta da sociedade tinha uma atitude negativa em relação à cultura chinesa. Tal parcela das elites acreditava que o Brasil deveria adotar uma política de embranquecimento da população brasileira, a fim de reprimir ainda mais a população brasileira de ascendência africana. Esta é, sem dúvida, uma história que o Brasil não pode repetir.

Naquele momento, a dinastia Qing estava em um estado de turbulência social. Ao mesmo tempo em que propunham a Reforma dos Cem Dias, alguns intelectuais acreditavam que o budismo e o daoismo chineses eram as raízes do declínio do regime político. Portanto, tal como apontado por Vincent Goossaert – famoso sinológo e maior autoridade de religião chinesa na França – em “1898: O início do fim para a religião chinesa?”, em 1898 Kang Youwei (1858–1927), ministro da dinastia Qing, apresentou um memorial ao imperador Guangxu propondo políticas de reforma centradas na abolição de templos para criação de escolas e o estabelecimento de um confucionismo ortodoxo. Vincent Goossaert aponta que estudos anteriores ignoram os fatores religiosos da Reforma de Cem Dias, ou seja, para a sociedade da dinastia Qing, a nova política proposta por Kang Youwei não é tão representativa da tendência da China em direção a uma sociedade secular moderna, mas sim de uma iniciativa no sentido de realizar-se uma reforma religiosa na China. Vincent Goossaert prova que a reforma religiosa desempenhou um papel importante no processo de modernização da China e que as questões religiosas ainda são uma das questões mais importantes com as quais as elites políticas chinesas devem lidar. Como apontado pelo famoso scholar da religião de Hong Kong Lai Pan-chiu em “Subordinação, separação e autonomia: abordagens protestantes chinesas para a relação entre Religião e Estado”, nos tempos modernos, os grupos protestantes constituem um dos maiores desafios de gestão enfrentados pelo governo chinês. Os conflitos entre o governo e os protestantes chineses derivam de muitos fatores históricos. Ao realizar a análise desses fatores, Lai Pan-chiu apresenta uma série de sugestões construtivas para a sua resolução.

Todos os manuscritos publicados neste dossier têm a história e a cultura chinesas como tópicos de pesquisa principais, englobando desde os tempos antigos até os tempos modernos. Que a amizade entre o Brasil e a China seja duradoura!


Organizadores

Bony Schachter – Estudou chinês clássico e moderno na Universidade Normal de Nanjing, além de sânscrito, tibetano e história chinesa na Universidade de Fudan. Possui doutorado em Estudos de Religião pela Universidade Chinesa de Hong Kong, onde estudou sob a supervisão do Prof. Dr. Lai Chi-tim 黎志添. Especialista em daoismo, seu interesse acadêmico pela religiosidade chinesa é aliado a pesquisas sobre a história do livro na China, estudos sobre autoria e teorias do ritual. Em confluência com tais interesses, prepara um livro sobre a autoria divina de Zhu Quan, príncipe daoista chinês que viveu durante o século XV. Possui publicações em jornais acadêmicos especializados, incluindo Monumenta Serica, Journal of Chinese Studies, Acta Orientalia, dentre outros. Contribuiu em diversos projetos acadêmicos internacionais, incluindo o Daozang Jiyao Project e o Chinese Religious Text Authority. Atualmente é professor assistente na Academia Yuelu, Universidade de Hunan e pesquisador honorário do Centre for the Study of Religious Ethics and Chinese Culture, the Chinese University of Hong Kong, sob a tutela de Lai Pan-chiu 賴品超. A presente pesquisa recebeu fomento do Fundamental Research Funds for the Central Universities, project code: 531118010462. E-mail: [email protected]   https://orcid.org/0000-0003-1809-0959

André Bueno – Professor adjunto de História Oriental na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tendo experiência na área de História e Filosofia, com ênfase em Sinologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Pensamento chinês, Confucionismo, História e Filosofia antiga, diálogos e interações culturais Oriente-Ocidente, e Ensino de História. É coordenador do Projeto Orientalismo, para difusão de fontes e materiais sobre história e cultura da China e Índia antigas, membro da Associação Europeia de Estudos Chineses, da Associação Europeia de Filosofia Chinesa, da Rede Iberoamericana de Sinologia e da Rede Brasileira de Estudos Chineses. E-mail: [email protected]  http://orcid.org/0000-0003-4479-4407


Referências desta apresentação

SCHACHTER, Bony; BUENO, André. Apresentação. Locus – Revista de História. Juiz de Fora, v.27, n.1, p.3-6, 2021. Acessar publicação original [DR]

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