Colorismo | Alessandra Devulsky

O livro Colorismo de Alessandra Devulsky teve lançamento de sua primeira edição em 2021 pela editora Jandaíra (sediada em São Paulo), integrando a coleção Feminismos Plurais coordenada por Djamila Ribeiro. Sua publicação é em formato de brochura, ou seja, livreto (de modo a caber no bolso) com capa e corpo “mole”, pesando cerca de 150 gramas, cujo valor oscila de R$ 5,99 para Kindle a R$ 26,29 em diferentes livrarias físicas e sites. Sendo tais características explicadas como pactuação norteador da coletânea, dentro da lógica de preço e escrita acessível a diferentes leitores, visto se compreender os códigos de escrita e fala enquanto “mecanismos de poder”, daí justificar o comprometimento a difusão da informação com padronagem impressa de baixo custo e a “linguagem didática” sem esvaziar a potência dos conteúdos.

A autora Alessandra Devulsky da Silva Tisescu possui obras publicadas em português e francês, é natural do Mato Grosso, filha de mãe branca, pai negro e se identifica como mulher negra de pele clara. Graduou-se em 2004 no curso de Direito na Universidade de Cuiabá (Unic) e concluiu três anos depois Especialização de Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável pela mesma instituição, já no 2008 obteve titulação de Mestra em Direito Político e Econômico junto à Universidade Presbiteriana Mackenzie (situada em São Paulo), datando de 2014 a finalização do seu Doutoramento em Direito realizado na USP.

Devulsky foi advogada da Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo de 2008 a 2011, período que também lecionou Direito na Universidade Nove de Junho e exerceu a coordenação do referido curso entre 2011 a 2015. Desde 2017 é docente da Université du Québec à Montréal (UQAM)2. Mas, merecem especiais destaques no seu currículo a atuação de 2006 a 2008 na Universidade Zumbi dos Palmares (UNIPALMARES) que é Instituição Comunitária de Ensino Superior3 e a Diretoria de Assuntos Jurídicos do Instituto Luiz Gama4 , papéis que a nosso ver demonstram a longevidade de sua atuação e militância, bem como as motivações de participação da composição literária em comento na coleção Feminismos Plurais. Essa miscelânea de escritos, de acordo com a apresentação de Djamila Ribeiro feita no livro de Devulsky (2021, p.14-15) tem autorias de:

(…)mulheres negras e indígenas, e homens negros de regiões diversas do país, mostrando a importância de pautarmos como sujeitos as questões que são essenciais para o rompimento das narrativas dominante e não sermos tão somente capítulos em compêndios que ainda pensam a questão racial como recorte.

O prelúdio assinado por Djamila Ribeiro pontua que o objetivo da organização de Feminismos Plurais é levar “ao grande público questões importantes referentes aos mais diversos feminismos de forma didática e acessível”, com enfoque “em produções intelectuais de grupos historicamente marginalizados”, considerando-os “como sujeitos políticos”. Daí, portanto, ter sido o feminismo negro a baliza inicial do conjunto de livros, aportado-o na relação “raça, classe e gênero”, visando a partir disto “pensar projetos, novos marcos civilizatórios, para que pensemos um novo modelo de sociedade” conforme se lê no prefácio feito por Ribeiro de Devulsky (2021, p. 17)

Dentro desta concepção, o empreendimento textual é composto de 224 laudas, nas quais estão dispostos os tradicionais elementos pré e pós textuais, além de quatro capítulos denominados de “Clarear o escuro e escurecer o claro não é um jogo de luz”5; “O colorismo interno: aspectos de introjecção”, “Uma perspectiva estrutural do colorismo” e “As ressignificações possíveis do colorismo.” Devulsky a redigiu sem perder de vista a referência do Colorismo grafada em “If the Present Looks Like the Past, What Does the Future Look Like?” dos escritos de Alice Walker e publicado no livro In Search of Our Mothers’ Gardens: Womanist Prose de 1983, mas, não constam menções a pigmentocracia cunhada por Alejandro Lipschütz em 1944 6. Vale recordar que Walker designou de colorismo o sistema racial e patriarcal na comunidade negra dos Estados Unidos da América, no qual se preza as nuances de peles negras claras em desfavor das escuras. Por sua vez, Alejandro Lipschütz criou a pigmentocracia para demarcar nas sociedades da América Latina os procedimentos de estratificação dos indivíduos conforme seus traços fenotípicos, sobretudo as gradações de pele7. Não obstante a opção pelo conceito feito da observância da sociedade norte-americana, Devulsky aprofunda o debate ao dialogar com nacionais, estadunidenses, canadenses e autores nascidos no continente africano.

Seguindo a perspectiva instrutiva da referida composição textual e considerando nem todos terem familiaridade ao colorismo, é importante dizer que o termo tratar das gradações de peles negras (perpassando das mais claras as retintas) seus usos, interpretações e repercussões, considerando-os carregados de significados políticos, sociais e culturais, resultando em “subproduto rançoso do racismo” (NDIAYE, 2008, p.111 apud Devulsky, 2021, p. 29). Por isso, sendo o colorismo entendido pela autora como “prática” e ao mesmo tempo “ideologia” permissiva da reprodução do racismo, demandando interpretação interseccional ao considerar “seus aspectos múltiplos” devido às origens e ressonâncias, pois é “quadro identitário racial e político que plasma os sujeitos em um arquétipo predefinido.” Lugar a se visualizar “substância dessas existências, tanto negras quanto brancas” restarem enclausuradas em moldes distributivos sem equidade “e injusto, habilidades, tendências, características e estéticas que, definidas de fora para dentro, restringem e disciplinam as variadas negritudes existentes no Brasil.” (DEVULSKY, 2021, p. 17)

E assim, no primeiro capítulo do livro, partindo de uma análise calcada na historicidade de construção da identidade negra no Brasil, esquadrinhando os numerosos “fenótipos negros africanos” desembarcados aqui, busca-se sob o ponto de vista decolonial “um meio de reafirmar a negritude brasileira, mesmo sendo esta constituída da forte miscigenação com brancos e indígenas”(DEVULSKY, 2021, p.18). Interpretação na qual despontam traços gerais do colorismo demarcando as diferentes formas como atingem homens e mulheres, decorrendo da “ideia de supremacia branca”, aplica por brancos sobre negros e também de negros sobre outros negros. Depreendendo-se disto a causa do colorismo estar compreendida pela ótica da posição negra “inferiorizada e subjugada ao branco”, concomitantemente sendo a saída “desde que liberta de sua grade racista.” (DEVULSY, 2021, p.27.) À vista disso, a autora constituiu subitem abarcando o elaborar identitário em face ao antagonista, desaguando no colorismo lido do externo para o interno.

No capítulo seguinte designado de “O Colorismo interno: aspectos da introjeção” alerta que apesar das tonalidades de peles negras mais escuras e claras atribuir distinções entre estes sujeitos, não os iça as esferas de poder costumeiramente ocupadas por personas brancas, constituindo fator de competição interna. Desta feita, acarretando perniciosas implicações em âmbito político e afetivo das pessoas racializadas, tanto quanto na sexualidade e no trabalho, em razão disso fazendo a escritora propor reflexões acerca dos potenciais ressignificações do colorismo, na primeira subdivisão capitular. Já a segunda etapa do segmento associa diretamente o colorismo, racismo e capitalismo.

Em terceiro capítulo, denominado de “Uma perspectiva estrutural do colorismo”, são expostos os seus efeitos no mercado de trabalho dentro da estratificação e das relações de poder. Despontando disto os riscos advindos das ligas identitárias a enredar e segmentar as populações negras nestes espaços, impactando “na seleção e na progressão de carreira de acordo com a maneira como a negritude resta visível” (DEVULSKY, 2021, p. 20). Esse trecho do escrito nos faz recordar da abordagem do pacto da branquitude relatado no recém lançado livro de Cida Bento (2022).

“As ressignificações possíveis do colorismo” se expõe no último capítulo, que particularmente nos parece a mais interessante parcela da obra em comento, porquanto o feminismo negro seja incitador dos deslindes do tema a respeito de seu “aspecto afetivo e político” na feitura da mulher negra, frente as costumeiras incrustações de papeis femininos, bem como as disparidades do feminismo branco em relação a esse. E eis a etapa textual na qual somos lembrados do colorismo enquanto parte das engrenagens de projeto político hierarquizado e desagregador das populações negras, cujo início foi a redução identitária das diversidades do continente africano à condição de escravizados.

Assim, indo da heterogeneidade a uma homogeneidade desumanizante, além de também desconsiderar os encontros entre negros e povos nativos, inobservando-nos como amefricanos nos termos de Lélia Gonzalez a quem alude Devulsky (2021, p.127), mas, que não perde de vista o “capital sociorracial”, ou seja, a leitura social de um indivíduo como negro (DEVULSKY, 2021, p. 130), no mesmo ínterim fazendo recordar da Necropolítica de Mbembe (2018) apesar desta não ser citado.

O quarto capítulo é dividido em “leitura feminista do colorismo”, na “branquitude, branquice ou brancura diante do Colorismo” e “existir sem ser branco e resistir para poder ser negro”. Nele somos conduzidos aos diálogos com a interpretação feminista do colorismo, nos quais a autora enfatiza ser a luta da mulher negra não apenas com o patriarcado, mas, igualmente com as demais mulheres de modo a convencer aquelas “não racializadas de que sua objetividade não é menos vacilante do que a das últimas.” De tal modo, nos fazendo compreender a escolha por Walker ao discutir o papel feminino e o patriarcado em detrimento de Lipschütz.

Afora disto, o colorismo também lança os negros em situação de concorrência, acrescido da invizibilização seja de claros ou de escuros nos lugares de reconhecimento do valor social, político, cultural e econômico. Tal ocultação analisada tem dois caracteres relevantes, que são a perda da perspectiva das pessoas de pele retinta (parecendo um ponto menos significativo apesar de ser costumeiro), acrescido do provimento da representatividade negra com a presença das nuances mais claras de epiderme destas populações, nos fazendo rememorar os projetos de branqueamento do Brasil, decorrendo desta a alusão comparativa do colorismo aqui e no Canadá exposta nas páginas do texto.

Em “branquitude, branquice ou brancura diante do colorismo” a escritora traz a inquietante recordação que a mestiçagem brasileira é produto dos “estupros sistemáticos de mulheres indígenas, e posteriormente de mulheres negras”(DEVULSKY, 2021, p. 155) perpassando ao embranquecimento de Machado de Assis, explicado sua brancura na “licença poética” dada igualmente a uma Cleópatra alba, mas, sem a mesma aceitação do caminho inverso na adaptação dos Brighton de Julia Quinn feita por Shonda Rhimes, porquanto:

Os limites da representatividade nas narrativas evidenciam que, apesar do efeito positivo de ver-se incorporado sem estereotipização nas ficções, a transformação da sociedade passa pela reconstrução do simbólico, mas não parte do imaginário sem um ancoramento profundo nas condições materiais de cada sociabilidade. O espaço do discurso oferece vários portos, mas não é nem ancoradouro, nem destino de chegada da luta antirracusta. Se desejamos o fim do racismo estrutural e do colorismo que perpassa nossas relações, toda e qualquer viabilidade revolucionária depende da introjeção do plano político à luta. (DEVULSKY, 2021, p. 161)

Na existência não sendo branco e resistindo de forma a poder ser negro, que compõe o subtítulo final do quarto capítulo temos a autora se reportando a ideia de “lugar de fala” de Ribeiro. Mas, “lugar de fala” surge enquanto liberação de voz silenciada daqueles que nunca antes haviam se permitido fazê-lo. Contudo, quando isto ocorre, não se percebe os efeitos das falas. Logo, buscando o fortalecimento desses sons, propugna a formação de “pontes” de comunicação entre as lutas indígenas e negras. Enfatizando que o “colorismo ressignificado” deverá funcionar na instrumentalização “de agregação das lutas por dignidade racial e reconhecimento de direitos.” (DEVULSKY, 2021, P. 173).

Em conclusão de sua construção literária, a escritora enfatiza não ser o conceito de colorismo a chave interpretativa ao incremento da história racial do Brasil. E igualmente, afirma a impossibilidade de fechar no colorismo todas e quaisquer matizes e mutabilidades da definição de negritude. Caracterizando a transposição do colorismo não somente como validação das diferenças, outrossim, representando-a enquanto finalização de estratificação.

À guisa de encerramento desta resenha cujo tema foi o livro Colorismo de Alessandra Devulsky, se sugere como alternativa de trabalho para os docentes a explanação das ideias centrais associadas com a apresentação e debate do filme Medida Provisória8 . Isto porque, a película parte da ideia de que em um Brasil “distópico” no qual se cria uma Medida Provisória9 destinada a branqueamento. O enredo adapta o texto da peça “Namíbia, não!” escrita por Aldri Anunciação, consistindo nas discussões de justiça restaurativa ao racismo histórico brasileiro, com a migração obrigatória dos “cidadãos de melanina acentuada” (expressão substitutiva e satírica para denominar negros). Então, face às perseguições empreendidas na trama tem-se a confrontação acerca das gradações de peles negras, nos reportando ao texto de Devulsky e a complexidade do fenômeno e ideologia.


Notas

2 Dados profissionais acessados via Escavador. Disponível em: https://www.escavador.com/sobre/7081079/alessandradevulsky-da-silva-tisescu. Acesso em 20 out. 2022.

3 A instituição, embora seja privada, não tem fins lucrativos e identifica sua missão como inclusiva de “pessoas negras e/ou de baixa renda no ensino superior” que atualmente oferece oito cursos de graduação e se situa em São Paulo. Disponível em: https://zumbidospalmares.edu.br/quem-somos/. Acesso em: 20 out. 2022.

4 Informação obtida junto ao site do Instituto Luiz Gama. Disponível em: https://institutoluizgama.org.br/quem-somos/.Acesso em: 20 out. 2022.

5 As expressões “claro” e “clarear” empregadas na presente resenha e no livro de Devulsky são usadas como marcação da menor intensidade de melanina das peles negras, demarcando aquilo que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística chama de “pardos”.

6 LIPSCHÜTZ, Alejandro. El indoamericanismo y el problema racial en las Américas. Santiago: Nascimento, 1944.

7 A esse respeito, ler: GÓES, J. M. de. Reflexões sobre pigmentocracia e colorismo no Brasil. REVES – Revista Relações Sociais, [S. l.], v. 5, n. 4, p. 14741–01i, 2022. DOI: 10.18540/revesvl5iss4pp14741-01i. Disponível em: https://periodicos.ufv.br/reves/article/view/14741. Acesso em: 20 out. 2022.

8 Lançado em 15 de dezembro de 2021 no Festival do Rio e visto em salas abertas de cinema e streaming em 2022, com direção de Lázaro Ramos. Ironicamente o nome do filme parte de ato unipessoal do presidente da república previsto em nossa legislação, com força de lei em tempo determinado.

9 Medida Provisória é ato jurídico exclusivo do chefe do executivo federal, que tem validade de sessenta dias, passível de renovação por igual período, podendo ou não perder sua validade caso não seja votada no Congresso. A ausência de avaliação congressual implica legalmente em obstar votação de outras pautas, até ser realizada sua análise. Para melhor compreender consulte o Dicionário de Direito Constitucional. Disponível em: https://www.direitonet.com.br/busca?id_area=4&palavras=medida+provis%C3%B3ria. Acesso em 20 de out. 2022.


Referências

BENTO, Cida. O pacto da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022, 152 p.

LIPSCHÜTZ, Alejandro. El indoamericanismo y el problema racial en las Américas. Santiago: Nascimento, 1944.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018, 80 p.

Medida Provisória. Direção: Lázaro Ramos. Produção de Daniel Filho e Tania Rocha. Brasil: Lereby Produções, Lata Filmes, Globo Filmes, Melanina Acentuada, 2021.

RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. São Paulo: Jandaíra, 2019, 128 p


Resenhista

Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque – Professora Doutora em História Social pela USP, Docente do Programa de Pós-Graduação Profissional em Ensino de História da Universidade Federal do Acre (PPGPEH/UFAC), coordenadora do Curso de Bacharelado em História da mesma instituição, pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/UFAC), vice-presidente da Anpuh-AC biênio 2020-2022. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

DEVULSKY, Alessandra. Colorismo. São Paulo: Jandaíra, 2021. Resenha de: ALBUQUERQUE, Nedy Bianca Medeiros de. Lendo Devulsky para entender o colorismo. Das Amazônias. Rio Branco, v.5, n.2, p. 160-165, jul./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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