Do fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro | Bruna Klen, Mateus Henrique de Faria Pereira, Valdei Lopes de Araujo

O ano de 2018 é marcado pela eleição que levou Jair Messias Bolsonaro à presidência do Brasil. Contrariando as diversas previsões existentes nos períodos anteriores, o então candidato despontou e conseguiu vencer diversos políticos famosos como Geraldo Alckmin (PSDB), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (REDE) e Fernando Haddad (PT), o candidato que enfrentou no segundo turno. Polêmico, com visões ultraconservadoras, reacionárias de extrema-direita, Bolsonaro foi deputado federal de 1991 até o ano de sua eleição para o executivo. Ficou famoso por suas participações em programas populares como CQC da TV Bandeirantes e por entrevistas, no “Agora é Tarde” – do mesmo canal – e The Noite do SBT, ambos apresentados por Danilo Gentili. Embora sofresse certo descrédito no início, o então candidato acabou sendo eleito. Em uma eleição polêmica, marcada pelo episódio no qual sofreu uma facada, também pela prisão do principal candidato – Luiz Inácio “Lula” da Silva (PT) – e pelo protagonismo dos usos das redes sociais. Após o resultado do segundo turno, pesquisadores, analistas políticos e diversos setores da sociedade começaram a se questionar sobre como um candidato marcado por suas opiniões controversas, preconceituosas, negacionistas – atacando os centros de produção de conhecimento -, com apelo ao discurso contra os Direitos Humanos, de forma geral, contra a Constituição, o regime democrático, e que admitia não entender nada sobre saúde, economia e educação conseguiria ser eleito presidente para o mandato dos anos de 2019 até 2022.

Organizado pela e pelos historiadores Bruna Klem, Mateus Pereira e Valdei Araujo, o livro Do Fake ao Fato: des(atualizando) Bolsonaro (2020) objetiva compreender não apenas a sua eleição em 2018, mas o “efeito Bolsonaro”. Resultado do X Seminário Brasileiro de Teoria da História e da Historiografia (SNHH)2, o trabalho é dividido em uma introdução e mais treze capítulos que se propõem a trabalhar com a história enquanto ela acontece, de forma a discutir sobre a eleição, o período histórico em que se encontra e o primeiro ano do governo do Bolsonaro. Dessa forma, essa obra preza pelo compromisso da pluralidade de ideias existentes em democracias saudáveis, no intuito de se opor ao caráter autoritário dessa figura (KLEM; PEREIRA; ARAUJO, 2020, p.17). Para isso, os autores dos 13 capítulos refletem sobre os problemas em torno da figura do Jair Messias através do campo de estudos da História do Tempo Presente, como apresentado pelos organizadores:

O tempo presente está constantemente atravessado por futuros e passados, por projetos e memórias, como os leitores poderão perceber a partir do complexo caleidoscópio que os textos aqui reunidos formam. Uma historiografia que pretende ser uma ação transformadora precisa navegar entre o atual e o inatual, fugindo à armadilha de reduzir o passado ao obsoleto ou o futuro à fantasia (KLEM; PEREIRA; ARAUJO, 2020, p.17- 18)

Assim, refletir sobre os usos dos passados e as memórias em disputas, que se fazem presentes não apenas no discurso bolsonarista, mas na sociedade como um todo, é o desafio do livro que, por trabalhar com a história do tempo presente, acaba por se encontrar na “[…] pressão dos contemporâneos ou a coação pela verdade, isto é, a possibilidade desse conhecimento histórico ser confrontado pelo testemunho dos que viveram os fenômenos que busca narrar e/ou explicar.” (FICO, 2012, p.44). Essa questão do contemporâneo e choque de testemunhos acaba sendo um dos principais argumentos utilizados por Bolsonaro ao tentar exaltar o período ditatorial, como apresentado em boa parte dos capítulos. Desse modo, a história do tempo presente é central enquanto um ponto de referência na análise histórica, pois essa acaba por analisar as diversas memórias em disputas e como as mesmas têm sido articuladas.

Atentando-se aos capítulos, pode-se dividi-los em dois blocos temáticos: O do negacionismo histórico – principalmente aquele ligado à ditadura militar no Brasil (1964- 1985) – e da presença de religiosos – principalmente das igrejas evangélicas neopentecostais – em torno da figura de Bolsonaro. Em relação ao primeiro tema, os diferentes capítulos abordam a exaltação que Bolsonaro faz do contexto ditatorial, assim, levantando à falsa ideia de que não havia problemas naquele período. A defesa desse período da história do Brasil nos discursos do atual presidente sempre se fez presente. Contudo, isso ficou evidente durante o governo PT (2003-2016), principalmente após a Comissão da Verdade (CNV). Porém, ele não é o único personagem digno de nota nessa questão. Olavo de Carvalho (1947-2022) é outro personagem que se destaca no atual discurso negacionismo. Desenvolvedor de teorias conspiratórias, como a de que há em curso um movimento denominado de “Marxismo Cultural” liderado pelas ideias de Antonio Gramsci (1891-1937) que teria objetivo de levar a esquerda a dominar o mundo através da cultura, o “guru” do presidente acaba sendo um dos principais idealizadores não só de fake news – em relação aos seus adversário e ao passado -, mas, também, de boa parte das ideias do governo (OLIVEIRA, 2020). Juntos, Olavo e Bolsonaro, são entendidos enquanto uma extrema-direita, ultra conservadora e negacionista que vem ganhando cada vez mais espaço sobretudo após as manifestações do ano de 2013.

O segundo ponto de discussão dos capítulos, a presença de grupos evangélicos, apresenta a tese de que o discurso conservador e reacionário de Bolsonaro é um dos motivos que o levou a se aliar com determinadas lideranças evangélicas não apenas nacionais – principalmente dos neopentecostais -, mas também internacionais. Contudo, essa não é uma bandeira que nasceu com Jair. A questão da moral cristã vem ganhando espaço desde o ano de 2010 na eleição que teve como principais candidatos José Serra e Dilma Rousseff e é um ponto de articulação de votos e apoio político. Nos diferentes capítulos, os autores analisam que Bolsonaro soube se aproveitar das pautas desse grupo e, assim, levá-los a buscar uma aliança consigo (MATA, 2020).

Entre esses dois tópicos, as redes sociais se apresentam enquanto um baluarte da sustentação de Bolsonaro. Por ser um espaço com poucas regras e controle, de um lado, ele acaba conseguindo desenvolver uma comunicação mais direta com seus eleitores e, por outro, também por propagar desinformação que acaba por encontrar grande aceitação entre seus eleitores (PEREIRA, ARAUJO, 2020). Logo, em alguns capítulos, os autores apontam a necessidade de os cientistas sociais se direcionarem a esses espaços, no intuito de buscar combater as desinformações e, também, busca divulgar as pesquisas que se desenvolvem no mundo acadêmico. Enfatiza-se aqui, que essa questão já vem sendo notada pelos cientistas das humanidades que buscam cada vez mais ocupar esses espaços digitais e midiáticos com o intuito de ajudar no combate às fake news que vem avançando nos últimos tempos (PEREIRA, et al, 2021).

Todavia, as fake news e seus usos políticos por Bolsonaro são uma questão central que chama muito a atenção de todos aqueles que se dedicam e buscam refletir sobre as eleições de 2018. Não sendo uma questão isolada, as notícias falsas vêm ganhando espaço desde o ano de 2016 com a eleição de Donald Trump e Brexit. Logo, o debate em relação a como combate-las se faz necessária e urgente como apontado na obra. Compartilha-se aqui com a análise de Pereira et al (2020), para quem, no atual

[…] cenário da negação têm se organizado vontades de verdade para as quais é necessário o investimento maciço na desconfiança, na desqualificação de pressupostos já estabelecidos, no ataque a outros sujeitos autorizados a controlar esse dizer verdadeiro, a exemplo do jornalismo e da própria historiografia. Essas novas disputas entre o verdadeiro e o falso ganham profundos enredamentos políticos e, se num primeiro momento, a negação não surge como um projeto pensado ou como estratégia na disposição desses lugares de enunciação, a experiência dos últimos anos tem demonstrado as potencialidades corrosivas da negação. (PEREIRA et al, 2020, p.48-49)

Assim, as fake news têm consequentemente uma função de buscar legitimar opiniões pessoais de determinados setores sociais, por isso, a desqualificação dos profissionais e o ataque aos responsáveis por pesquisar e divulgar as informações. O ataque a esses especialistas, como apontado no livro, é central na narrativa bolsonarista e olavista. Como apresentado por Oliveira (2020), Bolsonaro tem como tática atacar as instituições responsáveis pelas pesquisas no país alegando que essas ou não seguem o “método certo” ou são corrompidas pelo “viés ideológico”. Através de palavras vazias e sem argumento algum para legitimar suas desinformações, Bolsonaro ataca esses espaços da ciência, assim prejudicando a imagem que elas têm perante o seu público. Como resultado, contribui para que seus eleitores e simpatizantes ataquem estas instituições voltadas à pesquisa e a prática científica, de forma a atuar significativamente no processo de sucateamento da ciência brasileira.

Além disso, o negacionismo em torno da Ditadura Militar no Brasil é uma das armas políticas e sociais mais utilizadas por Bolsonaro. Ao longo de sua trajetória política, Bolsonaro ficou marcado por falas esdruxulamente simpatizantes em relação a esse período. Não há como ignorar aqui – assim como no livro em diversos momentos foi tratado – a fala proferida por Bolsonaro, então deputado federal, durante a votação do Impeachment de Dilma Rousseff:

Perderam em 1964. Perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula que o PT nunca teve… Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do Cel. Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas forças armadas, por um Brasil acima de tudo, e por Deus acima de todos, o meu voto é sim. (BOLSONARO, 2016, online apud Silva, 2020, p.222)

Aqui, nesse trecho, nota-se não apenas o negacionismo em si, mas também a violência que ele pode e está gerando. Negar a ditadura é não reconhecer um período na história do Brasil marcado por perseguição, tortura e censura vivenciados por diversos sujeitos. Fazer de conta que isso não aconteceu ou que essas pessoas mereceram passar por essas circunstâncias é de um caráter desumano e agressivo. Assim, nota-se uma das tentativas do negacionismo brasileiro e presente no discurso de Bolsonaro é a busca pela

[…] combinação entre a negação da legitimidade da autoria historiográfica e a afirmação vexatória dos crimes da ditadura, configurando-se a desqualificação dos espaços de fala e de direito de construção de memória sobre os crimes cometidos, assim como das pessoas afetadas direta ou indiretamente (PEREIRA et al, 2020, p.49).

Em seu discurso, o então deputado federal buscou esvaziar o passado violento e de dor da então presidente Dilma através da negação da ditadura Militar, de forma a legitimar o período, acreditando ser graças a ele que o Brasil “não virou comunista”. Desse modo, o livro explora muito bem os principais pontos do negacionismo bolsonarista e o seu uso político. A busca pela construção de uma verdade que agrade aqueles que vivem uma nostalgia em relação à Ditadura Militar é central no eleitorado bolsonarista.

Nesse mesmo trecho, pode-se notar outros pontos de propagação de fake news abordados pelo presidente, como a busca do PT em corromper as crianças, sendo o exemplo mais chamativo o “kit gay” (BENTIVOGLIO, BRITO, 2020). Essa situação além de ser cercada de mentiras, também serve como ponto de diálogo com seus eleitores evangélicos, devido ao suposto caráter moral presente nesta pauta. Junto disso, o lema “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, bordão eleitoral de Bolsonaro, é mais uma marca chamativa e que permite que ele se insira dentro dos evangélicos. Logo, a pauta moral também faz parte da propaganda de mentiras divulgadas pelo entorno bolsonarista, assim aumentando ainda mais as questões morais no debate político, como ressaltado em diversos momentos nos capítulos.

A emergência de se estudar a questão religiosa, as fake news e o efeito das redes sociais é ressaltada em praticamente todos os capítulos. Além disso, o combate às mentiras é uma das principais necessidades apontadas. Aqui, neste texto, concorda-se com Motta (2020) que afirma que a resposta para combater esses movimentos de negacionismo e de extrema direita consiste nos esforços da parte dos historiadores e cientistas da área de humanidades no sentido de ocuparem os espaços públicos midiáticos conjuntamente à academia, de forma a enfatizar que o conhecimento histórico é uma construção científica baseada em métodos de análise empírica, aliado a uma reflexão crítica e que está em constante análise devido ao processo de debate entre os pares e a sociedade. Os historiadores não podem ser omissos no tempo presente diante de tantos ataques não apenas à sua área, mas às ciências humanas como um todo. Junto disso, é preciso reforçar os estudos das ciências religiosas e também investir nos estudos ligados à presença da religião na política, para que se possa compreender melhor o impacto dos movimentos cristãos nas eleições no Brasil, conforme defendido por Mata (2020). Ignorar o estudo dessa temática é ignorar o espaço que os evangélicos vêm ganhando na política e na sociedade nos últimos anos. Logo, para ajudar a compreender esse fenômeno e seus impactos cada vez maiores, torna-se essencial estudar esses grupos, não de forma a desqualificá-los, mas com o intuito de ajudar a compreendê-los e, assim, desenvolver estratégias que auxiliem no desenvolvimento de políticas públicas de modo a levar à valorização e ao respeito com o outro e, desse modo, quebrar a visão etnocentrista que existe em determinados setores entre os evangélicos.

Enfim, a leitura desse livro é uma reflexão sobre os desafios não apenas em torno das pesquisas desenvolvidas nas ciências humanas, mas também para o Brasil como um todo. A eleição de 2018 foi um marco que fez diversos setores repensarem suas atuações na sociedade. Esse livro é um exemplo disso. 2022 é um ano marcado por ser ano eleitoral, e os desafios surgidos em 2018 se fazem presentes também neste ano. Aqui, então, fica o convite para leitura do livro, de forma a ajudar a refletir sobre os desafios que o país vem enfrentando e ainda vai enfrentar nos próximos momentos.


Nota

2 Ocorrido na Universidade Federal de Ouro Preto nas dependências do Instituto de Ciências Humanas e Sociais em Mariana no ano de 2018.


Referências

FICO, Carlos. História do tempo presente: eventos traumáticos e documentos sensíveis – o caso brasileiro. VARIA História: Belo Horizonte, Vol 28, n. 47, jan-jun 2012 p. 43-59.

KLEN, Bruna; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; Araujo, Valdei Lopes de (org). Do fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, 2020.

PEREIRA, Ana Carolina Barbosa; JUNIOR, Edmilson Alves Maia; GUERELLUS, Natália; DAHÁS, Nashla; DE OLIVEIRA, Samuel Silva Rodrigues; WANDERLEY, Sônia Meneses e Sonia. A HISTÓRIA PÚBLICA BRASILEIRA TEM SIDO EFICAZ NO COMBATE AOS NEGACIONISMOS?. In: DE ALMEIDA, Juniele Rabêlo; RODRIGUES, Rogério Rosa. História Pública em Movimento. São Paulo, SP: Letra e Voz, 2021. p.47-59.


Resenhista

André Vinicio Bialeski Vieira – Atua como bolsista de Iniciação Científica no projeto A Guerra do Contestado no ensino de história do Brasil: memória, história e conflitos, sob orientação do professor Dr. Rogério Rosa Rodrigues.


Referências desta Resenha

KLEN, Bruna; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria; ARAUJO, Valdei Lopes de (Orgs.). Do fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, 2020. Resenha de: VIEIRA, André Vinicio Bialeski. Bolsonaro e História do Tempo Presente Bolsonaro. Ofícios de Clio. Pelotas, v. 7, n.12, p. 360- 365, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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