História da África e do Brasil Afrodescendente | Ynaê Lopes dos Santos

Estudar a história da África, ou melhor, algumas histórias desse vasto continente é um dos objetivos do livro História da África e do Brasil Afrodescendente de Ynaê Lopes dos Santos. A autora optou por estruturar a obra de acordo com a clássica divisão da História (Idade Antiga, Média, Moderna e Contemporânea). No decorrer do livro Ynaê procura mostrar como ao longo do tempo o continente africano se interagiu com sociedades de outros continentes, reafirmando a concepção de que havia uma rede de relações comerciais, culturais, religiosas entre os povos da antiguidade.

O segundo objetivo da obra é possibilitar que o leitor compreenda como as histórias africanas ocorreram simultaneamente a acontecimentos experimentados em outras partes do mundo, como na Europa, uma das razões para estruturar a obra de acordo com a divisão quadripartite da História, que privilegia os acontecimentos do mundo ocidental. Explorar um pouco mais sobre os aspectos da vida no continente africano é também uma das formas de compreender o processo de formação do povo brasileiro, segundo a autora.

Na abertura do livro, a autora explora alguns aspectos da geografia do continente com o objetivo de demonstrar a diversidade de línguas faladas, religiões e diferenças étnicas, que influenciam diretamente na organização sociopolítica das sociedades africanas. Toda a diversidade das paisagens, assim como as diferentes culturas que existem atualmente, permite construir não uma, mas várias histórias da África.

No primeiro capítulo Sociedades africanas entre o ano 4.000 A.E.C e o século V E.C (Idade Antiga) a autora discute essencialmente sobre a história das grandes civilizações africanas da antiguidade, Egito Antigo, Núbia, Axum e Cartago. Além de explorar seus principais aspectos, como formação e queda de algumas delas, economia, religião, organização da sociedade, avanços obtidos, assim como buscou estudar as conexões que essas sociedades estabeleciam com outros povos, denunciando complexas redes comerciais, trocas religiosas, culturais e etc.

Ainda nesse capítulo, Ynaê discute sobre o surgimento das sociedades tradicionais africanas. Como é sabido, o continente africano é o terceiro em extensão territorial e é para se esperar que haja diferenças na organização social e política, tendo em vista as diversas etnias que habitam o continente. Embora durante a Idade Antiga a África tenha sido palco da formação de diversos reinos e impérios, como assinalado anteriormente, também existiu povos que se organizaram em pequenas e médias sociedades, no geral, conhecidas como aldeias ou clãs.

Essas sociedades espalhadas ao longo do continente eram muito diferentes entre si, e possuíam um sistema de organização diferenciado dos grandes reinos, que geralmente estava ligada aos laços familiares e grupos de pertencimento.

No segundo capítulo Sociedades africanas entre os séculos V E.C. e XV E. C. (Idade Média) é dado enfoque às dinâmicas internas de muitos povos africanos, além de discutir como esses povos se relacionaram com outras partes do mundo. Para tanto, a autora discorre sobre o reino de Gana, conhecido no Oriente Médio, norte da África e Europa como “país do ouro”. O Império do Mali também é analisado, tendo se formado no século XIII foi um dos estados africanos que mais ganharam notoriedade na África e fora dela. Outro império de destaque no continente e que foi analisado pela autora, é o Império de Songai, que existiu entre os séculos XIV e XVI e dominou um vasto território na África Ocidental.

São analisados também os povos da Guiné, os Ifé, Benim e os Hauçãs, povos que ocuparam a região da África Subsaariana entre os séculos VI e XVIII, quando os hauçãs tiveram seu território invadido e escravizados pelos peul. Na África Oriental se dará a formação do reino de Monomotapa que se ergueu no século XV e iniciou o processo de decadência no século XVI. O litoral do Oceano Índico foi palco da formação de diversos povos. Embora tenha sido habitada em momentos anteriores, foi no século XIII e XV que aí se formou uma população conhecida como suaílis. Os suaílis eram de origem banta e sofreram influência dos árabes, persas e indianos e se organizaram em diferentes formas de estados que variavam de pequenas aldeias até cidades litorâneas com muralhas.

A África Centro-Ocidental também viu florescer uma enorme variedade de povos e organizações sociais, que em sua maioria se estabeleceu ao longo do rio Congo e seus afluentes. Já no século XIII foi formado o reino Luba, no entanto, o mais oponente e conhecido dessa região foi o reino do Congo, fundado no final do século XIII e que possuía um sistema político muito organizado. Entretanto, toda essa organização não foi suficiente para barrar a entrada dos europeus em seu território, assunto que é tratado no próximo capítulo.

No terceiro capítulo Sociedades africanas entre os séculos XV E.C. e XVIII E.C. (Idade Moderna), Ynaê analisa os efeitos que a chegada dos muçulmanos e mais tarde, dos europeus provocou no continente africano, o enfoque recai sobre a escravidão africana, muçulmana e europeia.

Como foi assinalado anteriormente, as relações comerciais entre africanos e outros povos ocorriam desde a antiguidade. Houve também uma aproximação com os muçulmanos que chegaram à África no século VIII. A entrada de alguns povos africanos na rede do comércio transaariano possibilitou a entrada de vários produtos na África Subsaariana. No entanto, foi no século XV que o continente conheceu aqueles que mudariam definitivamente o destino do continente, os europeus. Foi aí que um novo elemento comercial ganhou destaque, o africano escravizado, que passou a ser uma mercadoria valiosíssima e que vendido para o tráfico transatlântico, seria mão de obra essencial para a manutenção dos trabalhos nas colônias nas Américas.

A autora assinala que na África, diversos povos praticavam a escravidão antes da chegada dos muçulmanos e europeus, no geral, a escravidão ocorria quando um grupo guerreava e subjugava outro grupo, era, portanto, por meio das guerras que se escravizava. Porém, a escravidão praticada por grande parte das sociedades africanas possuía características diferentes daquela que os muçulmanos e europeus irão praticar posteriormente. O principal fator que diferencia os tipos de escravidão, é que para os muçulmanos e europeus, os escravos não passavam de uma mercadoria, que poderia ser vendida quando bem quisessem.

Ynaê segue analisando a escravidão muçulmana e especialmente à europeia, que durará mais de trezentos anos. De uma forma bem clara e explicativa a autora descreve todas as etapas do processo de escravização: a penetração dos europeus nos territórios africanos; os confrontos iniciais que se mostraram ineficazes; o estabelecimento de “alianças” com chefes locais; algumas aldeias/povos que saem à procura de africanos para serem vendidos primeiramente aos portugueses e posteriormente a traficantes portugueses, brasileiros e de outras nacionalidades; a chegada desses africanos nos barracões onde são trocados, no geral por armas (para aprisionar mais africanos); a espera desses africanos para serem embarcados, espera que poderia demorar até três meses; a longa travessia nos tumbeiros ou navios negreiros; a chegada ao novo continente (a autora opta por analisar o tráfico entre África e Brasil); o período que passavam nos barracões até se recuperam da travessia, visto que a maioria chegava doente, muito abaixo do peso, e por fim a venda dos africanos, que agora passavam a ser propriedades de outrem.

Esse complexo e lucrativo comércio (para os que vendiam e usufruíam da mão-de-obra) enriqueceu países europeus e muitos traficantes, tendo persistido por cerca de trezentos anos. Isso explica a “preferência” pela mão de obra africana na América Portuguesa. O fato não era que os indígenas não se adaptaram ao ritmo de trabalho, ou que os africanos eram mais preparados, o cerne da questão consistia no fato de que o tráfico transatlântico de escravos rendia avultosos lucros para os traficantes, um comércio extremamente lucrativo.

Na região que inicialmente alimentou esse comércio, a Costa dos Escravos, é possível encontrar algumas sociedades que foram “impactadas” pelo tráfico transatlântico. Em alguns casos esse contato com o tráfico inicialmente foi benéfico para algumas dessas sociedades, no entanto, passados algum tempo elas foram também vítimas desse sistema que elas mesmas “ajudaram” a estruturar. Dentre essas sociedades, podemos citar o Império de Oió, Reino do Daomé e os Axântis.

Para tanto, não é possível acreditar que os africanos escravizados aceitaram a dominação europeia de maneira pacífica, pelo contrário, houve muita resistência, e uma das estratégias mais recorrentes foi a fuga.

Já no capítulo A afrodescendência do Brasil: do século XVI E.C. ao XIX E.C inicialmente a autora realiza um apanhado histórico sobre o processo de colonização e povoamento da América Portuguesa, para posteriormente adentrar na questão da escravidão africana.

Ao longo do capítulo é realizada uma minuciosa descrição sobre as etnias que vieram para a América Portuguesa (atual Brasil), Ynaê descreve as principais atividades que empregaram maior quantidade de escravos ao longo dos trezentos e cinquenta anos de escravidão. Dentre essas atividades constam: o manejo da cana-de-açúcar, mineração e café, entre outras atividades de menor relevância, economicamente falando. Os escravos urbanos também são trabalhados nessa seção.

Um ponto interessante nesse capítulo que a autora levanta, é o conjunto de relações tecidas entre escravos e seus proprietários, para tanto, a autora analisa como o escravo foi capaz de negociar com seu proprietário como meio de obter uma melhor condição de vida, a começar pelo alimento que era distribuído em quantidades insuficientes. Essas negociações também eram interessantes para seu proprietário, pois faziam com que o escravo trabalhasse mais (uma condição para ceder uma faixa de terra para plantio de roças, por exemplo), além de diminuir as fugas dos escravos. Era comum também o incentivo para o estabelecimento de laços matrimoniais como meio de se manter o escravo na propriedade, o que não impedia que numa possível venda, as famílias fossem separadas.

A religião era um dos mecanismos que os africanos escravizados encontraram para manter viva a “África dentro de si”, embora fossem cristianizados e recebessem nomes cristãos, grande parte continuava mesmo de forma escondida, a cultuar suas divindades. A autora analisa também as sociabilidades, as possibilidades de adquirir a liberdade, por meio da carta de alforria e as inúmeras formas de resistências dos escravos, que cotidianamente faziam questão de deixar claro que não eram conformados com a situação em que foram submetidos. As fugas e formação de quilombos no decorrer de todo período escravocrata eram expressões de insatisfação dos escravos.

Finalizando o capítulo, é enfatizada também a atuação do movimento abolicionista, com destaque para alguns personagens, como José do Patrocínio e Luís Gama.

No quinto capítulo do livro Um Afro Brasil: de 1988 aos dias atuais as abordagens são voltadas para a condição do negro pós-abolição e as questões raciais no Brasil, denunciando o fato de que a Lei Áurea de 1888 determinou o fim da escravidão legal, no entanto, nenhuma política de inserção foi pensada para os ex-escravos. Pelo contrário, políticos, intelectuais e elites se uniram na defesa da teoria do embranquecimento da população e passaram a incentivar a vinda de imigrantes europeus e asiáticos.

O destaque nesse capítulo recai também sobre as ações negras, isto é, movimentos de luta contra o racismo e a discriminação racial, como a fundação do Centro Cultural Henrique Dias, Associação Protetora dos Brasileiros Pretos e o Grêmio Dramático Recreativo e Literário “Elite da Liberdade”. Vários periódicos também foram fundados, muitos deles mantidos pelas associações. Em 1931 foi fundada a Frente Negra Brasileira, no estado de São Paulo. Já na década de 1980, foi fundado o Movimento Negro Unificado,

A autora cita alguns personagens negros de destaque, como Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga, Teodoro Sampaio e outros. É dada ênfase também nas influências que os africanos exerceram/exercem sobre a cultura brasileira, como por exemplo, na questão cultural, religiosa, culinária e etc.

No sexto e último capítulo do livro, Breve história da África recente a autora recua ao século XIX no contexto do Imperialismo na África para analisar as sérias consequências das ações europeias no continente. No decorrer do texto, ela discorre sobre como a África teve seu território repartido de acordo com os interesses econômicos de países como França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Bélgica, dentre outros, divisão essa que não levou em consideração as diferenças étnicas, religiosos e culturais das diversas sociedades africanas.

Nesse processo de dominação e exploração, o cristianismo terá um papel importante, visto que várias denominações católicas e protestantes enviaram missionários para diferentes regiões da África com o objetivo de evangelizar os africanos.

Vários países do continente tiveram seus recursos e mão de obra explorados, vilarejos dizimados e milhões de pessoas mortas e tantos outros mutilados. Foram anos de exploração, acarretando numa série de consequências, entre eles o acirramento dos conflitos étnicos, como o Apartheid, a guerra civil entre tutsis e hutus, atraso econômico e tecnológico e etc.

Embora houvesse resistências por parte dos africanos, os europeus dispunham de armamentos mais eficazes, nos constantes confrontos dezenas, centenas, milhares de africanos eram mortos por defenderem terras que eram suas. Apenas dois países não foram dominados por algum país europeu, a Etiópia e a Libéria. Finalizando o texto, a autora destaca os movimentos de independência africanos, como o pan-africanismo e o negritude que partiram na defesa da independência de seus países e na luta contra exploração e discriminação racial.

Com uma linguagem clara e objetiva o livro aborda a história da África e dos afrodescendentes no Brasil, trazendo questões que muitas vezes são relegadas pela historiografia. Vale a pena conferir.


Referência

SANTOS, Ynaê Lopes dos. História da África e do Brasil Afrodescendente. 1. Ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.


Resenhista

Giuslane Francisca da Silva – Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

SANTOS, Ynaê Lopes dos. História da África e do Brasil Afrodescendente. Rio de Janeiro: Pallas, 2017. Resenha de: SILVA, Giuslane Francisca da. Tempos Históricos, v. 22, n.1, p. 508-514, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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