Independência do Brasil | João Paulo Pimenta

Joao Paulo Pimenta Imagem Instituto CPFL
João Paulo Pimenta | Imagem: Instituto CPFL

O ano de 2022 acumula condições para se tornar intenso no campo político para o Brasil, pois além da crise institucional pela qual o país passa, teremos eleições para cargos executivos e legislativo em nível estadual e federal, as quais devem movimentar uma campanha eleitoral carregada de informações e narrativas que visam enaltecer ou destruir reputações sem se preocupar com a veracidade dos conteúdos apresentados. Contexto alimentado pelo crescimento de uma onda conservadora global, que ainda se sustenta e é liderada por uma “Nova Direita”1 , que procura se apropriar de eventos históricos para fazer uso ideológico baseados em conceitos, ideias e práticas próprias.

As duas concepções se relacionam neste período através das festividades ligadas ao bicentenário da independência política do Brasil, que ocorrerá em setembro. Fato, entretanto, que motiva também profissionais da área de história, que acabam forçados a revisitar os eventos de 1822 e a ampla bibliografia disponível sobre eles para expor novas conclusões ou reforçar consensos já conhecidos da área. Foi o caso de João Paulo Pimenta (2022)2 , que publicou no último janeiro “Independência do Brasil” pela Editora Contexto. Livro que pode ser consultado por outros pesquisadores da área ou meros curiosos, graças à sua variedade de temas e linguagem acessível.

A obra está estruturada em seis capítulos não numerados, que podem ser lidos separadamente, já que tem assuntos bem definidos. Logo no primeiro deles, “A atualidade da independência”, o autor se posiciona explicitamente e de maneira contundente diante do debate descrito acima, advogando não só em favor de todas as ciências, mas também do método crítico em geral e adverte os leitores que o processo concluído em 1822 é um tópico que continua repleto de interesses e não pode ser considerado fechado. Para o autor, então, o tema é constantemente revisitado, mas apenas análises com critérios rigorosos têm a credibilidade e o comprometimento com a verdade exigidos (PIMENTA, 2022, p. 7-9).

Ainda na introdução, ele critica a posição do governo federal atual e cita nominalmente o presidente Jair Bolsonaro, que fez uso de narrativas fantasiosas da independência em 2021 para transformar a festa nacional em partidária e tentar influenciar os resultados das já citadas eleições de 2022. Manobra que merece, segundo Pimenta (2022, p. 14-15), atenção e oposição dos historiadores. Ele lembra, na ocasião, das palavras de Marc Bloch (2001 [1949]) na obra Apologia da história, que chamava o método crítico de um “poderoso antídoto às toxinas da mentira e do falso rumor”, que se adaptam e se renovam no combate “às enxurradas de fake news que inundaram a internet nos últimos anos”, problema que ficou ainda mais evidente em tempos de pandemia.

Duas ideias importantes são trabalhadas pelo autor ao longo de toda a obra, a primeira é o que o autor chamou de condições de possibilidades e a segunda é a relação do Brasil com o resto do mundo. No capítulo 2, “O Brasil e o mundo a 200 anos”, Pimenta (2022, p. 17) faz um breve panorama sobre a conjuntura global do início do século XIX e chama a atenção para ambas concepções. Ele lembra e descreve uma série de características do período para ilustrar as grandes diferenças entre aquela sociedade e a nossa e também discorre sobre as inovações que a modernidade começava a apresentar e os impactos que causaram.

É interessante notar no contexto que o mundo moderno chegou ao Brasil por meio dos portugueses, não só através das novidades tecnológicas, mas de todo um conjunto de elementos que, posteriormente, favoreceriam o processo de independência, como o conjunto de ideias do iluminismo e a imprensa régia. O destaque para o primeiro elemento é o Reformismo ilustrado português, especialmente a figura de Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812)3 , que defendeu uma unidade para o império português, conciliando metrópole e colônia e influenciou nomes como o de José Bonifácio (1763-1838), que se tornaria uma figura importante no processo de separação política da colônia (PIMENTA, 2022, p. 29-30).

O sociólogo alemão Jürgen Habermas (2014) apontou para conclusões semelhantes no processo de criação da esfera pública burguesa na Europa. Para ele, é importante notar como a burguesia se aproveitou de estruturas criadas pela própria monarquia para criar gradualmente a sociedade civil, reformando o próprio conceito e os elementos daquilo que era considerado público. A situação atingiu Portugal de maneira semelhante e consequentemente o Brasil, que não deve ser pensado, como mostra Pimenta (2022, p. 31), fora da Era das Revoluções, descrita por Eric Hobsbawm (2014) e citada na obra.

A própria palavra “revolução”, tal qual a “liberdade” tiveram mudanças de conceito tornando o ambiente das colônias americanas cada vez mais instável, confluindo para o processo de independência dos Estados Unidos em 1776, que promoveu uma série de inovações políticas dentro e fora de suas fronteiras, a começar por ser uma colônia que conseguiu se desligar oficialmente de um império e fazê-lo reconhecer sua autonomia (PIMENTA, 2022, p. 35). Não tendo uma família real, se tornaram uma sociedade republicana e por último, muito capaz de se auto gerir sem a tutela de uma metrópole. O exemplo foi seguido pela França que aumentou a intensidade e, logo em seguida, por uma de suas colônias, que ainda mais radical inaugurou um governo civil, antimonárquico, anticolonial e de maneira inédita, antiescravista.

No século XVIII, no Brasil tinha-se conhecimento desses processos revolucionários, mas os movimentos organizados nas colônias portuguesas nunca confrontavam o soberano, atacando, no máximo, representantes reais. A exceção, segundo o historiador, foi a Inconfidência Mineira (1789-1792), que afrontou o poder real através de José Joaquim da Maia (1757-1788). Mesmo assim, para Pimenta (2022, p. 42), é um erro chamar esta revolta de antecessora da independência porque ela não conseguiu formar condições para uma unidade nacional e nem se tornar um centro irradiador de novidades políticas por ela promovidas. Sua contribuição, mesmo assim, é importante porque foi “[…] um sintoma da inserção das colônias da América portuguesa na Era das Revoluções e na experiência política moderna […]”.

A Inconfidência Baiana (1798) foi outro movimento incomum de contestação da realeza e incorporou com mais ênfase os ensinamentos da revolução francesa, foi um movimento que teve menos atenção da historiografia do século XIX e menos utilizado politicamente pelos defensores da separação alguns anos mais tarde. Entre os motivos, o autor cita o racismo e o esforço em se conservar a escravidão, pois era considerada uma insurreição pobre e “negra demais”. O que se pode reforçar, entretanto, é que ambas fracassaram e no início dos oitocentos a emancipação nem aparecia no horizonte brasileiro. Mas um avanço podia ser constatado: a politização das identidades coletivas, ou seja, passaram a existir na colônia formas de identificação e aglutinação social e cultural próprias, distintas das da metrópole, que confrontavam a exclusiva e mais conhecida política imperial de pertencimento, a ideia de que todos súditos do rei eram portugueses (PIMENTA, 2022, p. 46-47).

O capítulo seguinte, “Guerras europeias, conflitos americanos”, segue com as análises do contexto internacional do século XIX, mas tem uma preocupação mais específica com uma linearidade de eventos que contribuíram com a fuga da família real portuguesa para o Brasil em 1808. Pimenta mostra, com detalhes, os processos políticos e diplomáticos europeus e a situação do continente e da metrópole lusitana perante o ímpeto expansionista de Napoleão, que acabou derrotado em 1815, mas o turbilhão revolucionário deixou consequências mais longevas. Para Portugal e o Brasil, consequentemente, uma antiga cidade colonial – o de Janeiro – foi convertida em capital do império, e esta passou por um intenso desenvolvimento econômico e político, dos quais podemos destacar obras urbanas e a inauguração da imprensa régia (PIMENTA, 2022, p. 61-62).

No mesmo período, lembra Pimenta, o restante da América do Sul passou por um período conturbado, que envolvia movimentos emancipacionistas e disputas pelo poder, os quais, por sua vez, começaram a aparecer e incentivar grupos no Brasil. Fato que incomodou D. João VI e a família real, que, incentivados pelo fim da guerra contra as tropas napoleônicas em Portugal, optaram por retornar à antiga metrópole. O Rei, procurando evitar ideias separatistas, assinou uma carta que oficializou a situação de “Reino Unido” ao Brasil, o que não funcionou e as diferenças entre os portugueses dos dois lados do Atlântico se intensificaram. Neste momento efervescente, estourou a Revolução de Pernambuco de 1817, que não chegou a elaborar um projeto de independência, mas teve impacto e marcou profundamente o cenário brasileiro, deixando ecos para além de 1822, pois radicalizou a política cristalizando noções capazes de mobilizar no século XIX um número significativo de pessoas de classes e origens distinta. Tratava-se de uma transformação efetiva nas “condições de possibilidade” revolucionárias (PIMENTA, 2022, p. 70).

Todo o contexto mostrava que a situação interna da colônia era muito favorável à formação de uma nação independente e no capítulo “Preparação e viabilização da independência” João Pimenta (2022, p. 70) reflete sobre como as características externas, na segunda década do século XIX, contribuíram com o movimento definitivo. Começando por Portugal e a Revolução Liberal do Porto de 1820, que marcou o fim definitivo do absolutismo do império e o início de um processo constitucional. Outra medida importante desenvolvida naquele momento foi a liberdade de imprensa para todo território lusitano que, somada à já ativa imprensa régia no Brasil, permitiu a ampliação no alcance e na quantidade das folhas locais.

Em janeiro de 1822 parlamentares portugueses discutiam a carta magna do país em Lisboa e muitas províncias da, ainda, colônia sequer haviam aderido ao movimento do Porto e nem escolhido seus representantes, além disso, boa parte da América Latina já havia conquistado sua independência. Alguns representantes brasileiros que estavam em Portugal se incomodaram com as características centralizadoras da constituinte e retornaram clandestinamente, e sem assinar o documento, para o Rio de Janeiro. A desobediência foi progressivamente defendida na América lusitana e o príncipe com seus ministros começaram a construir uma ideia de Estado e governo próprios. D. Pedro, aos poucos ganhou autonomia e respeito, inclusive por se recusar a acatar ordens de Lisboa, e apresentou, com apoio da imprensa, um projeto de unidade para o Brasil. A independência ia tomando corpo, mas é importante ressaltar que, um movimento abrupto poderia resultar na fragmentação territorial, pois ainda existiam homens poderosos que defendiam a manutenção à sujeição às cortes do além mar, por isso o governo central buscou conciliar vários processos internos (PIMENTA, 2022, p. 81-82).

O dia 7 de setembro de 1822, segundo o historiador, foi assim um dia pouco importante na sequência de eventos que definiram a independência e não chamou atenção porque vários acontecimentos convergiram naquele sentido, tanto que são escassos os vestígios sobre a data. Sabe-se que D. Pedro voltava de uma incursão militar em São Paulo e que montava uma mula e estava com problemas intestinais quando foi informado de medidas da corte que contrariavam seu governo. Teria organizado uma pequena formalidade para declarar à sua comitiva que romperia os laços com Portugal, mas nenhuma carta foi assinada, tão pouco um grito patriótico. Em 12 de outubro ocorreu a aclamação do novo imperador do Brasil, este sim um momento idiossincrático, carregado de pompa e festas, tal qual a coroação em 1 de dezembro (PIMENTA, 2022, p. 96-97).

É interessante assimilar no livro de João Paulo Pimenta que o processo de fundação do Brasil foi essencialmente institucional, que excluiu a maior parte da população brasileira. “A consolidação da independência”, título e tema do capítulo seguinte da obra, trata assim, do esforço para a busca da unidade nacional. Muitos interesses distintos e até contraditórios ainda existiam entre as províncias, mobilizando até guerras contra a separação na Bahia, no Maranhão, no Piauí e no Pará. Mas a solidariedade desenvolvida entre grandes proprietários, senhores de escravos e comerciantes, estruturou as bases da política nacional através da autonomia e da autoridade do Imperador, que por sua vez, retribuiu, favorecendo os interesses daqueles grupos. Para garantir essas preferências ele chegou a fechar a assembleia constituinte convocada em 1823 e terminar o documento assessorado por um conselho de ministros em 25 de março de 1824, o qual foi paulatinamente reformado a partir de então (PIMENTA, 2022, p. 117).

A consolidação do movimento de 1822 precisava também do reconhecimento internacional, em especial das grandes potências como a Inglaterra. A base escravista da economia, entretanto, foi um empecilho, que obrigou o governo a se comprometer, diante de um acordo que envolveu também os portugueses, que eliminaria o tráfico de cativos até 1828. O fato deu alguma paz para o comércio internacional do Brasil, mas a pressão britânica cresceu conforme a resolução não estava sendo cumprida. Pressionado pelos dois lados, D. Pedro I usou sua autoridade para conceder alguns avanços no sentido de controlar a entrada de escravos e gastar montantes volumosos na guerra da Cisplatina, vista mais como um empreendimento pessoal do Imperador e longe dos interesses nacionais, a derrota no conflito e a criação da República Oriental do Uruguai resultaram na sua impopularidade latente. Em 1826 abdicou do trono português e pouco tempo depois não conseguiu se sustentar no trono brasileiro, ele deixou o país em 1831, pondo fim ao primeiro reinado. Para o historiador, entretanto, os primeiros anos da monarquia deixaram um legado, pois foi ali que se estabeleceram as bases para um Estado, uma nação e uma identidade brasileiros, elementos que se relacionaram pela via institucional, que significa afirmar que a ruptura política com a metrópole não envolveu uma luta nacionalista (PIMENTA, 2022, p. 125-127).

Nos dois últimos capítulos do livro: “Historiografia e memória da independência” e “O futuro da Independência” o autor retoma questões apresentadas na introdução e aponta para os perigosos usos políticos de narrativas fantasiosas da independência. Ele aproveita a discussão para mostrar diferenças entre interpretações baseadas em critérios científicos e a memória popular, construída com base em valores seletivos e, muitas vezes, interesses estatais, que nunca precisam de documentos comprobatórios e outros elementos, como o quadro de Pedro Américo, “Independência ou morte” (1888), que criou uma cena fictícia que buscou eliminar características como a “diarreia e a mula de Pedro I” (PIMENTA, 2022, p. 140). É importante ressaltar que, não se tratava de uma falsificação da história, mas sim de um artista buscando fazer seu trabalho.

Para João Paulo Pimenta (2022, p. 154) o bicentenário da independência clama por debates sobre o assunto e acaba criando um momento propício para a criação de discursos e contradiscursos que devem acender o alerta para as possibilidades de uso político do passado. Mais ainda, ele lembra que o evento se trata de um “tema histórico por si só”, pois a natureza desse tipo de conhecimento “impregna o passado de presente” automaticamente, ou seja, a história da independência continuará a ser uma história em construção, seja nos 200, 201 e em todos seus aniversários. Da mesma forma que apontou o citado Eric Hobsbawm (2013, p. 26), o historiador e o método crítico têm uma função social e um compromisso com a verdade, de maneira que seu trabalho é usado para romper mitos, incluindo os nacionais, e questionar tradições. Os interessados devem olhar para o passado sem se inflamar pelas datas cheias e comemorativas: “Que o estudo continue sério, criterioso, rigoroso e verdadeiro” (PIMENTA, 2022, p. 154).

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da história, ou, O Ofício de historiador. prefácio: Jacques Le Goff. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro. Zahar, 2001.

COWAN, Benjamin Arthur. A hemispheric moral majority: Brazil and the transnational construction of the New Right. Revista Brasileira de Política Internacional. 61(2): e004, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7329201800204.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução de Denilson Luís Werle. 1 ed. São Paulo. Editora Unesp, 2014. 565p.

HOBSBAWM, Eric. Dentro e fora da história. In. HOBSBAWM, E. Sobre História. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções (1789 – 1848). 33º Edição. Tradução: Maria Tereza Teixeira e Marcos Penchel. Paz e terra. Rio de Janeiro. 2014.

PIMENTA, João Paulo. Independencia do Brasil. São Paulo. Contexto.

Notas

1 A expressão foi analisada por Benjamin Arthur Cowan (2018, p. 1) e designa um grupo composto pelo casamento entre as reações religiosas, culturais e sociais e renovadas e radicais doutrinas de desregulação, autossuficiência triunfalista e o capitalismo laissez-faire.

2 Doutor em história e professor do departamento de história da USP desde 2004. Especialista em história do Brasil e da América espanhola dos séculos XVIII e XIX.

3 Foi conde de Linhares, era reformista, mas essencialmente conservador, inspirava-se na obra de Adam Smith (1723-1790) (p. 27-29).


Resenhista

Arthur Daltin Carrega – Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Paulista (PPGH/UNESP). Bolsista CNPq. E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

PIMENTA, João Paulo. Independência do Brasil. São Paulo: Contexto, 2022. Resenha de: CARREGA, Arthur Daltin. Revisitando a Independência: o Brasil na era das revoluções. História e Cultura,  v.11, n.1, p. 539-545, jul. 2022. Acessar publicação original [DR]

 

Deixe um Comentário

Você precisa fazer login para publicar um comentário.