Utopias latino-americanas: política, sociedade, cultura | Maria Ligia Coelho Prado

Maria Ligia Coelho Prado Imagem Revista Pesquisa
Maria Ligia Coelho Prado | Imagem: Revista Pesquisa

O livro Utopias latino-americanas: política, sociedade, cultura, publicado pela editora Contexto em 2021, constitui-se não apenas em uma valiosa contribuição aos estudos acadêmicos especializados, mas também em uma obra acessível a um público leitor mais amplo, interessado pela história da nossa região. É organizado pela historiadora Maria Ligia Coelho Prado, professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.2 Prado, que iniciou a docência em História da América em 1975, é também uma das responsáveis por estruturar a área no Brasil, por meio da orientação de gerações de historiadores – hoje professores em diferentes instituições pelo país – e de sua participação na fundação e organização da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas (ANPHLAC), a qual presidiu entre 1998 e 2000.3 Foi coordenadora do Projeto Temático/Fapesp Cultura e Política nas Américas: Circulação de Ideias e Configuração de Identidades (séculos XIX e XX), cujas atividades se estenderam entre 2007 e 2011, e primeira coordenadora do Laboratório de Estudos de História das Américas (LEHA) do Departamento de História da USP, entre 2009 e 2012.4 É autora e coautora de diversos trabalhos, que se tornaram referência dentro da produção historiográfica brasileira acerca das Américas, aos quais se soma esta nova contribuição, idealizada para comemorar seu aniversário de 80 anos.

Percorrendo o sumário do livro, dois aspectos nos surpreendem. Em primeiro lugar, o grande número de pesquisadores que Maria Ligia Prado conseguiu reunir, espalhados por universidades brasileiras e estrangeiras. Em segundo lugar, a variedade de “utopias latino-americanas” contempladas na obra, distribuídas em cinco diferentes seções e em 22 capítulos, que fazem jus ao título escrito no plural. A preocupação com os projetos utópicos que tiveram lugar na América Latina articula os capítulos do livro, dando-lhe um fio condutor que percorre as suas páginas. As múltiplas utopias exploradas nas cinco seções colocam em cena numerosos personagens, conectando espaços e temporalidades, desde o século XIX até o nosso tempo presente. O Brasil aparece em diversos capítulos, seja em perspectiva comparada com outros países, seja dentro das reflexões a respeito dos projetos de integração da região. Leia Mais

Independência do Brasil | João Paulo Pimenta

Joao Paulo Pimenta Imagem Instituto CPFL
João Paulo Pimenta | Imagem: Instituto CPFL

O ano de 2022 acumula condições para se tornar intenso no campo político para o Brasil, pois além da crise institucional pela qual o país passa, teremos eleições para cargos executivos e legislativo em nível estadual e federal, as quais devem movimentar uma campanha eleitoral carregada de informações e narrativas que visam enaltecer ou destruir reputações sem se preocupar com a veracidade dos conteúdos apresentados. Contexto alimentado pelo crescimento de uma onda conservadora global, que ainda se sustenta e é liderada por uma “Nova Direita”1 , que procura se apropriar de eventos históricos para fazer uso ideológico baseados em conceitos, ideias e práticas próprias.

As duas concepções se relacionam neste período através das festividades ligadas ao bicentenário da independência política do Brasil, que ocorrerá em setembro. Fato, entretanto, que motiva também profissionais da área de história, que acabam forçados a revisitar os eventos de 1822 e a ampla bibliografia disponível sobre eles para expor novas conclusões ou reforçar consensos já conhecidos da área. Foi o caso de João Paulo Pimenta (2022)2 , que publicou no último janeiro “Independência do Brasil” pela Editora Contexto. Livro que pode ser consultado por outros pesquisadores da área ou meros curiosos, graças à sua variedade de temas e linguagem acessível. Leia Mais

Direitos humanos e Relações Internacionais | Isabela Garbin

Um guia introdutório sobre direitos humanos para internacionalistas é como poderíamos, em poucas palavras, definir “Direitos Humanos e Relações Internacionais”, da professora Isabela Garbin, professora da Universidade Federal de Uberlândia. O livro compõe a coleção Relações Internacionais, coordenada por Antônio Carlos Lessa, é publicado pela Editora Contexto e chega em importante quadra da história brasileira e mundial. O sofrimento decorrente do quadro de desigualdades, deterioração ambiental, governos de arroubos autoritários e conflitos de diversas ordens exige uma reflexão que aproveite as construções político-jurídicas já elaboradas pela humanidade na esteira dos seus momentos mais dolorosos sem deixar de refletir sobre novos desafios que se apresentam e possíveis soluções a construir. O livro contribui nesse sentido. Leia Mais

Práticas de pesquisa em história | Tania Regina de Luca

Sabe-se que os ofícios dedicados à pesquisa apresentam diversas dificuldades em suas execuções, e o processo de formação do conhecimento histórico e suas investigações não seriam divergentes. Devido a essa adversidade, o grupo PET- História (Programa de Educação Tutorial) da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Unesp, Campus de Franca, teve contato com reflexões elucidadoras por meio da obra Práticas de pesquisa em história (2020) dá Prof.ª. Drª. Tânia Regina de Luca, que além de seus estudos em metodologia da pesquisa histórica, debruça-se também sobre a História do Brasil Republicano, área na qual é Livre Docente desde 2009, na Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Esta referida produção, a qual está contemplada em uma coletânea de textos da editora Contexto que estampa diversos temas da História, tem em seu cerne a intenção de demonstrar os métodos e procedimentos que constituem – de maneira extremamente didática devido aos exemplos presentes na obra – a produção histórica, com a finalidade de impulsionar esta missão disposta aos historiadores.

Já de início pode-se perceber a preocupação da autora ao ressaltar aspectos consagrados para a atual Academia a respeito da História e do discurso historiográfico, como a proposição da reescrita da história, apoiada nas reflexões feitas pela primeira geração da escola francesa dos Annales, principalmente a partir do historiador Marc Bloch (1886-1944). De acordo com De Luca, a História está completamente afastada de ser estática, noção longe da perspectiva de ser o passado sujeito a alterações, e sim interligada à mudança do conhecimento acerca dele, devido às interpretações e sentidos serem variáveis e dependerem da demanda do tempo presente do historiador, que claramente mudam de acordo com as gerações, conferindo assim a mutabilidade do discurso histográfico, também denominada historicidade. Esta ponderação é imprescindível para a prática em pesquisa de história, primordialmente aos discentes no início de suas considerações a respeito de temas para a pesquisa, por demonstrar que, apesar de se ter um grande acervo sobre a suas possíveis reflexões ou próximas a elas, a pertinência de seus projetos é intacta devido o tempo de escrita ser diferente e logo, seus pareceres a respeito do objeto são distintos dos demais. Leia Mais

Estados Unidos. Uma História | Vitor Izecksohn

Vitor Izecksohn é professor do Instituto de História da UFRJ e pesquisador do CNPq e tem tido, nos últimos anos, uma trajetória dupla. De um lado, é autor de vários estudos relacionados à história militar brasileira, especialmente no diálogo com a história social. Destacam-se, nessa produção, seus trabalhos relacionados ao exército imperial: a formação do corpo de oficiais, o recrutamento, a organização das milícias, etc. De outro, ele é um especialista na história dos Estados Unidos, especialmente a história militar, entre a independência e o final da Guerra Civil, ou seja, entre 1776 e 1865. Leia Mais

Práticas de pesquisa em história | Tania Regina de Luca

Scenes de la vie des arrageois au XVIe siecle
Scènes de la vie des arrageois au XVIe siècle – Charles Hoffbauer  (Detalhe de capa de Práticas de pesquisa em História | Imagem: Domínio Público

Como iniciar uma pesquisa em História? Qual a diferença entre documento e fonte? O que é método? Qual enquadramento teórico-conceitual devemos utilizar na pesquisa? Como se define um recorte cronológico? E o recorte temático? Como chegar a um problema de pesquisa? Essas são algumas perguntas, entre muitas outras insondáveis, que todo(a) pesquisador(a) de História se faz no momento em que a realidade da pesquisa científica se avizinha. À tais dúvidas que assomam nossas mentes, e que constituem verdadeiros enigmas, a professora Tânia Regina de Luca procura responder em Práticas de Pesquisa em História.

O livro, cabe destacar, integra o projeto da Editora Contexto intitulado “História na Universidade”. O objetivo da coleção, que aborda períodos históricos que vão da Antiguidade à História Contemporânea, passando pela História da África e da Idade Média, entre outros, é divulgar pesquisas acadêmicas para um público amplo, ultrapassando os muros da universidade. Leia Mais

Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever | Magda Soares

A autora do livro “Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever”, Magda Becker Soares, é professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Fundou o Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (CEALE), que tanto tem contribuído com a alfabetização e leitura no Brasil. O livro é fruto de um grande projeto desenvolvido no município de Lagoa Santa/MG e, disso, pode-se dizer tratar-se de uma imersão nas realidades de escolas públicas, embora especificamente no município mineiro, mas que, com certeza, se expandirá por muitos outros do Brasil, a partir da leitura dessa obra que dele foi gerada, e que carrega/traz como mote principal a certeza de que “toda criança pode aprender a ler e a escrever”! Leia Mais

A guerra do retorno: como resolver o problema dos refugiados e estabelecer a par entre palestinos e israelenses | Adi Schwartz e Einat Wilf

Adi Schwartz e Einat Wilf
Adi Schwartz e Einat Wilf | Foto: [Miriam Alster] (2018)

O livro, publicado em setembro de 2021, traz dois autores israelenses que se propõem a debater a questão dos refugiados palestinos e a estabelecer uma alternativa para a paz entre ambos os grupos. Segundo informações no site da editora de publicação do livro, Adi Schwartz é jornalista e escritor, estudou na Universidade de Tel Aviv e concentra seus estudos no conflito árabe-israelense e na história de Israel II. Já Einat Wilf é PhD em Ciência política pela Universidade de Cambridge e foi membro do Parlamento israelense, tendo escrito outros livros que tratam da sociedade israelense III.

A Guerra do retorno é mais uma publicação sobre um tema que há muito vem sendo debatido nos meios intelectuais, políticos e acadêmicos, pois nos quase setenta anos que se passaram desde o primeiro conflito árabe-israelense diversos artigos e publicações foram escritos. No entanto ainda há muito a ser dito IV. Dividido em cinco capítulos, os autores traçam um panorama que engloba o início da guerra até os dias atuais, focando especificamente na questão dos refugiados: sua origem, o debate acerca do seu direito de retorno, o tratamento dos países árabes e a construção da imagem do palestino enquanto refugiado nos meios internacionais. Leia Mais

As abolições da escravatura: no Brasil e no mundo | Marcel Dorigny

“(…) Os processos que levaram ao ‘fim da escravidão’ são muito menos conhecidos e frequentemente relegados ao final das obras consagradas à escravidão em si” (DORIGNY, 2019, p. 14). Com efeito, a obra As abolições da escravatura no Brasil e no mundo, escrito por Marcel Dorigny, do Departamento de História da Universidade Paris-VIII na França, apresenta aspectos primordiais que influenciaram as manifestações contrárias à escravidão, instituída por vários séculos no mundo. Não obstante àquilo que a maioria das pessoas aprenderam e consideram como movimentos que proporcionaram o fim da escravidão, como o desenvolvimento da indústria, a ampliação do mercado consumidor ou a influência dos ideais do Iluminismo, o autor enfatiza que estes não foram únicos. Os movimentos realizados pelos próprios escravos, chamados por ele de resistências e revoltas, ainda nos oceanos, também contribuíram para o processo abolicionista. Leia Mais

Práticas de pesquisa em história | Tania Regina de Luca

Este livro, de autoria de Tania Regina de Luca, foi publicado pela Editora Contexto em 2020, fazendo parte da coleção História na Universidade, que traz uma visão geral e didática sobre pontos-chave da disciplina. A autora é mestre e doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de cursos de graduação e pós-graduação em História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Diante do desafio que é elaborar pesquisas em História, a pesquisadora se propõe a traçar os caminhos da produção do conhecimento historiográfico, norteando estudantes de graduação e demais interessados na área.

Com uma abordagem elucidativa, o universo da investigação em História é conduzido através da interlocução com renomados pensadores. Em cada capítulo, há uma epígrafe que convida o leitor a refletir sobre o tema abordado. Assim, de Marc Bloch a Marte Mangset e Emmanuelle Picard, é possível conhecer ou reencontrar os notáveis intelectuais do campo. Leia Mais

Práticas de pesquisa em história | Tania Regina de Luca

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Tania Regina de Luca – 2016 | Foto: Memória do Pão de Santo Antônio

Tania Regina de Luca, professora do Departamento de História da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita, é conhecida historiadora da imprensa nacional e estrangeira. No livro Práticas de pesquisa em história (2020), parte da sua experiência de pesquisadora é compartilhada, “especialmente”, com “estudantes de graduação”. Trata-se de um clássico livro propedêutico de investigação histórica e de metodologia científica.

1 Praticas de Pesquisa em HistoriaO texto é estruturado em seis capítulos que exploram o fazer do historiador, a ideia de fonte histórica e os passos para a concretização de uma pesquisa acadêmica em história: recorte do objeto, seleção de fontes, construção do texto e do projeto de pesquisa. Segundo a autora, o objetivo da obra é “apresentar, de forma didática, procedimentos e métodos que distinguem a produção do conhecimento historiográfico e, desse modo, incentivá-lo a participar ativamente desse instigante desafio que é escrever História, elaborando e executando o seu próprio projeto de pesquisa.” (p.10-11). Leia Mais

Utopias latino-americanas: políticas, sociedade e cultura | Maria Ligia Prado

A obra organizada por uma das maiores referências nos estudos de História da América Latina, a Profª Dra. Maria Ligia Prado, é a celebração de uma carreira exitosa e comprometida com a educação e a pesquisa histórica, que tem no continente americano seu objeto de investigação, afeto e também de militância.

Ainda que pareça desnecessária a apresentação de Maria Ligia Prado a muitos (as) estudiosos (as) de História das Américas, sua trajetória merece destaque, sobretudo no contexto de lançamento do livro em tela: a comemoração do seu octogésimo aniversário. Prado desenvolveu os seus estudos de graduação, mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e ali atuou como professora e pesquisadora por mais de quatro décadas. Sua dedicação pode ser medida pela dimensão da sua produção intelectual – foram dezenas de artigos científicos, capítulos de livros, organização e autoria de livros e obras coletivas (como essa), entre outras dezenas de produções bibliográficas e técnicas. Leia Mais

Novos combates pela história: desafios, ensino | Carla Bassanezi Pinsky e Jaime Pinsky

[…] nossos adolescentes detestam a História. Votam-lhe ódio entranhado e dela se vingam como podem, ou decorando o mínimo de conhecimento que o “ponto” exige ou se valendo lestamente da “cola” para passar nos exames. Demos absolvição à juventude. A História que lhes é ensinada é, realmente, odiosa. (MENDES apud NADAI, 1992/1993, p. 143)

Ensinar História no Brasil é um ato desafiador. Perspectivas eurocêntricas e narrativas que se distanciam da realidade da maioria de nossos alunos pautam os conteúdos propostos nos currículos e materiais didáticos. Soma-se aos impasses mencionados, a desvalorização da carreira docente, os bombardeios negacionistas, relativistas e anticientíficos proferidos nas falas de tantas autoridades do meio político. A História, tida por muitos estudiosos como ciência das revoluções, hoje se encontra ferida no meio acadêmico, nas escolas e no cotidiano. Leia Mais

Memórias e narrativas: história oral aplicada | José Carlos S. B. Meihy e Leandro Seawright

O livro “Memórias e narrativas” dos historiadores José Carlos Meihy e Leandro Seawright é por um lado uma introdução ao campo da história oral, escrito para pesquisadores iniciantes – acadêmicos ou não – que se veem envolvidos nos desafios de estudar e trabalhar com a memória de expressão oral; mas por outro lado, ele é também uma sistematização dos conceitos, reflexões e teorias desenvolvidos pelos autores ao longo de suas trajetórias acadêmicas e de atuação, sobretudo como integrantes do Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHOUSP). A generosidade do livro está justamente aí: ao apresentar a complexidade do campo da história oral, os autores explicitam seus posicionamentos frente a esse cipoal, desembaraçando os caminhos a serem percorridos pelos neófitos pesquisadores que se debruçam sobre a memória e a história.

O perfil didático do livro – reafirmado pelos boxes que destacam partes do texto ao longo de todos os capítulos – incorre por diversas vezes em um esquematismo que, embora evite simplificações, no mínimo atalha os debates e as contradições das abordagens sobre história oral. Considerando que não são objetivos dos autores desenvolver essas reflexões nem se aprofundar no estado da questão da história oral, eles apresentam os contrapontos apenas à medida que chamam atenção para riscos e erros a que o historiador oral está sujeito. É o que se verifica, por exemplo, na Leitura Complementar do primeiro capítulo, denominada “Memória de expressão oral: em busca de um estatuto”, sobre a famigerada querela entre os que “professam a manutenção da história oral como complemento e outros [que] propugnam a sua independência e autonomia” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p. 52). Os autores demarcam sua defesa por esta última definição como característica do campo da história oral e a caracterizam, para além disso, como uma metodologia que possui “procedimento procedente organizado de investigação, de comprometimento doutrinário e filosófico, orientado para a obtenção de resultados a partir de um núcleo documental específico” (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020, p.56). Leia Mais

Escravidão contemporânea | Leonardo Sakamoto

No Brasil, desde os anos 1990, nos acostumamos a ver na TV, nos jornais e posteriormente na internet, notícias de trabalhadores encontrados pelo Estado em condições de extrema exploração, que incluem alojamentos compartilhados com animais e seus excrementos, insuficiência de alimentação, jornadas incompatíveis com a resistência do corpo humano, dentre outras situações que chocam qualquer observador minimamente empático. Inicialmente, esses fatos pareciam circunscritos a locais distantes e de difícil acesso, particularmente em zonas rurais e no norte do país. Com o passar do tempo, começamos a assistir esses episódios nas grandes cidades e nos mais diferentes setores econômicos. Leia Mais

Colonos do Café | Maria Sílvia Beozzo Bassanezi

A leitura do livro Colonos do Café é fluida e agradável. De imediato, é como se o leitor entrasse num túnel do tempo e espiasse a vida de trabalhadores e trabalhadoras na faina do café em uma fazenda paulista no tempo de dantes, parafraseando Maria Paes de Barros (1998).

O trabalho em uma propriedade rural modelo, a fazenda Santa Gertrudes, é o eixo central da obra. Os números e valores referentes ao montante de trabalhadores e à produção cafeeira da fazenda são significativos e justificam, por si só, uma análise pormenorizada. No entanto, o que nos deparamos é com uma pesquisa acurada e meticulosa dos trabalhadores que formaram o complexo e diverso universo da fazenda. À dura labuta de sol a sol de muitos homens e mulheres envolvidos na produção cafeeira, é possível vislumbrar, ademais, a história e as particularidades da fazenda, informações sobre a produção cafeeira e as múltiplas experiências cotidianas de seus colonos. Leia Mais

História medieval – SILVA (S-RH)

SILVA, Marcelo Cândido da. História medieval. São Paulo: Contexto, 2019, 160p.  Resenha de: SILVA, Kléber Clementino da. SÆCULUM – Revista de História, João Pessoa, v. 24, n. 41, p. 453-463, jul./dez. 2019.

A vinda a lume do novo livro do professor da USP Marcelo Cândido da Silva, História medieval, pela editora Contexto, deve sem dúvida dar motivo a comemorações por parte de estudantes e professores de história, bem como do mais público interessado. Apesar dos recentes avanços da medievalística em terras tupiniquins, por mérito de pesquisadores como Neri de Barros Almeida, Renato Viana Boy, Johnni Langer, entre outros, sem excluir o próprio autor ora resenhado – que já publicou sua tese doutoral sobre a monarquia franca, um conhecido livro discutindo a “queda” do Império Romano do Ocidente e outro sobre o crime no Medievo – sínteses atualizadas e de qualidade, ao alcance do leitor brasileiro, sobre os dez séculos em que, na periodização tradicional, se alonga a Idade Média são ainda produtos raros.  E é precisamente esta a lacuna que a recente publicação procura preencher: uma obra de pequena extensão e linguagem simples, tecida com sólida erudição e rigor acadêmico, revisitando tópicos julgados basilares para o primeiro contato com o campo da medievalística: o debate sobre as migrações germânicas e a “queda” do Império Romano do Ocidente; a dominação senhorial; a Reforma da Igreja; a crise dos séculos XIV e XV, entre outros. A opção pela exposição que combina capítulos temáticos com um discernível encadeamento cronológico, ademais, diferencia o novo texto do já clássico Idade Média: o nascimento do Ocidente, de Hilário Franco Jr., publicado em 1986, cujos blocos temáticos pensam o tempo medieval a partir de “estruturas” (políticas, econômicas, sociais, culturais, etc.), faceta teórico-metodológica recorrente nos estudos daquele professor. Este, aliás, como veremos, não é o único elemento que aparta ambos os estudos. Leia Mais

História do Brasil Império / Miriam Dolhnikoff

  1. A Autora

Miriam Dolhnikoff é atualmente uma das historiadoras mais atuantes no campo das pesquisas sobre o Oitocentos, direcionando sua produção em torno de temas sobre o Brasil Império como organização institucional do Estado, representação política, entre outros aspectos da história do Brasil voltados para a política nacional e o processo de organização do Estado Nacional. Também possui análises sobre elites regionais, atuação dos partidos e o processo eleitoral no período. Professora do Departamento de História na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, graduou-se no ano de 1986 em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, concluiu o Mestrado em História Econômica pela Universidade de São Paulo em 1993 e no ano 2000 finalizou o Doutorado na mesma universidade e programa.

É autora de importantes obras, como: O Pacto Imperial: origens do federalismo no Brasil, lançado em 2005; José Bonifácio, de 2012; e, em coautoria com Flávio Campos, o livro Atlas de História do Brasil, de 2002. Além desses, tem várias colaborações com artigos em coletâneas sobre o Brasil Império, como o texto Elites Regionais e a construção do Estado nacional, publicado na importante coletânea Brasil – Formação do Estado e da Nação (2003), e São Paulo na Independência, na coletânea Independência: História e Historiografia (2005), ambas organizadas por István Jancsó. Oferecendo uma formatação mais didática em História do Brasil Império (2017), Dolhnikoff mergulha mais uma vez no universo do Brasil oitocentista, buscando, através de temas conhecidos sobre o período, agregar seu olhar experiente e sua análise apurada.

  1. A Coleção História na Universidade

A obra História do Brasil Império é parte integrante da coleção História na Universidade da editora Contexto, que tem por objetivo oferecer discussões historiográficas realizadas por grandes pesquisadores em um formato didático. A coleção conta com 8 (oito) obras: História Antiga, por Norberto Luiz Guarinello; História da África, por José Rivair Macedo; História da América Latina, por Maria Lígia Prado e Gabriela Pellegrino; História do Brasil Colônia, por Laima Mesgravis; História do Brasil Contemporâneo, por Carlos Fico; História do Brasil República, por Marcos Napolitano, História Moderna, por Paulo Miceli e, por fim, História do Brasil Império, de Miriam Dolhnikoff, objeto de análise desta resenha.

A proposta da coleção História na Universidade parte do princípio de trazer para a discussão do público geral momentos importantes da História, oferecendo formatação próxima dos livros didáticos, sem perder a objetividade e credibilidade das obras historiográficas. Com linguagem acessível, abrindo mão da configuração típica da produção historiográfica atual permeada por citações, referências, notas bibliográficas e/ou explicativas e por discussões teóricas, a coleção perpassa as análises, não se valendo diretamente desses expedientes. Como exemplo aqui eleito para o exercício de análise, História do Brasil Império, de Miriam Dolhnikoff, adequa-se bem ao modelo proposto e de forma eficiente, debate, analisa e traz novas perspectivas para os temas eleitos pela autora para discutir o período imperial brasileiro.

  1. A obra

Em História do Brasil Império, a historiadora Miriam Dolhnikoff parte do marco cronológico da Independência em 1822, explorando, por meio de uma introdução e mais 8 (oito) capítulos, 67 anos da história imperial brasileira, elegendo, para tanto, temas caros à historiografia sobre o período. Da Independência à República, os capítulos receberam como títulos: “Independência: deixar de ser português e tornar-se brasileiro”; “Uma nova nação, um novo Estado”; “Os tumultuados anos da Regência”; “A invenção do Brasil: a vida cultural no Império”; “Conflitos e negociação”; “O fim da escravidão”; “A Monarquia e seus vizinhos”; “Abaixo a monarquia, viva a República”. Todos os capítulos possuem subtópicos, em que são explorados aspectos mais específicos aos temas trabalhados nos capítulos, também compostos por boxes, responsáveis por analisar algum tema em destaque e/ou não aprofundado no corpo do texto.

Destaca-se em torno da estrutura dos capítulos a opção pelo não uso de referências completas ou notas americanas para citar as fontes utilizadas, o que cria certa dificuldade caso algum pesquisador profissional se interesse em localizar as fontes consultadas. Entretanto, como a coleção é voltada para um público mais abrangente que inclui estudantes do ensino básico e universitários no início da vida acadêmica, é perfeitamente compreensível a ausência das indicações das fontes, o que torna, por sua vez, a leitura mais dinâmica. Muito embora suas referências estejam ausentes, as fontes são bem exploradas e variadas: de obras literárias, jornais, correspondências íntimas e oficiais a iconografias, elas dão base para as discussões desenvolvidas na obra, assim como ensejam o cuidado e o minucioso trabalho de pesquisa da autora. O livro é completado com uma sessão intitulada “Sugestões de Leitura”, onde constam, além de algumas obras utilizadas ao longo dos capítulos, outras referências para pesquisas futuras e que comtemplam/exploram os temas abordados ao longo dos capítulos.

Para ilustrar as discussões dos capítulos, Dolhnikoff traz na introdução da obra, como abertura das discussões em torno do tema do livro, o debate sobre o contexto anterior à Independência. Discutindo antecedentes da emancipação política brasileira, a autora destaca na introdução os diversos projetos de construção do Brasil, as diferenças econômicas regionais, além da heterogeneidade social em torno da qual o projeto emancipacionista gravitava. Esse processo, segundo Dolhnikoff, não contou com uma posição consensual das elites, que estavam envoltas em suas divergências e objetivos variados. No entanto, destaca pontos em comum que convergiam em torno do projeto nacional: “a continuidade da escravidão, a preservação da economia agrárias voltada prioritariamente para a exportação, a manutenção da ordem interna, em uma sociedade profundamente hierarquizada”2. Assim, para caracterizar a transição do Brasil colônia de Portugal para nação independente, Dolhnikoff enfatiza o caráter de uma (em suas palavras) “continuidade relativa”.

A autora destaca ainda, na introdução, conceitos e definições essenciais para a análise desenvolvida ao longo dos capítulos. Em primeiro ângulo, aborda a questão do liberalismo, seus princípios e doutrinas essencialmente baseados nos modelos norte-americano e europeu. Tendo como base o liberalismo, cita a questão dos direitos civis, o princípio da representação, como foram tratados no Brasil e o que significou naquele momento um governo representativo. Fazendo uma contraposição ao conceito de democracia na contemporaneidade, Dolhnikoff enfatiza o sentido de “democracia restrita” do período, fechando, então, a introdução da obra com a questão sobre a identidade nacional, tão importante para a constituição do Estado ao longo do século XIX.

  1. Os capítulos

No primeiro capítulo, “Independência: deixar de ser português e tornar-se brasileiro”, a autora inicia a argumentação buscando os antecedentes de 1808, a chegada da Família Real Portuguesa a então colônia e as medidas que principiaram o processo que culminou na Independência. Entre as medidas, enumera o fim do exclusivo comercial, tratados com a Inglaterra, a chegada de viajantes de outras nacionalidades, entre outras. Dolhnikoff mostra ainda duas razões para a permanência da Corte na América: primeiro, “o enraizamento dos interesses de membros da nobreza da burocracia reinol nas terras de além-mar”3; segundo, observa que “havia ainda as motivações de natureza política”4.

Destacando as tensões do outro lado do Atlântico, a autora traça o perfil dos embates que culminaram com a Revolução do Porto de 1820, a Reunião das Cortes em 1821 e as consequências geradas na então colônia como o questionamento sobre a autonomia do reino em terras americanas, a desobediência do Brasil a respeito das determinações das Cortes e a união de paulistas, fluminenses e mineiros em defesa de D. Pedro. No tópico “As disputas se intensificam”, há a análise do desdobramento dos acontecimentos que culminaram na ruptura como a aliança (provisória) de D. Pedro com as elites locais, a participação das elites nacionais no processo, a autonomia para os governos locais, as disputas entre José Bonifácio e Gonçalves Ledo e a recusa dos brasileiros em jurar a Constituição portuguesa.

O processo de ruptura é analisado partindo das recusas, tendo o Pará e o Maranhão como exemplos de não adesão imediata à causa independentista. A autora busca, então, as premissas do 7 de setembro, como o Manifesto de 6 de agosto de 1822, já vislumbrando a intencionalidade da emancipação de Portugal. Nesse aspecto, cabe ressaltar que Dolhnikoff explora um documento importante e ainda pouco explorado no que se refere aos acontecimentos relativos à Independência. O Manifesto de 6 de agosto de 1822 é, segundo a autora, o “primeiro registro formal da decretação da Independência do Brasil”5.

Com base na análise dos discursos, em um interessante trecho do capítulo, a autora percebe a inversão de valores feita por D. Pedro e José Bonifácio como justificativa para o fim da relação metrópole-colônia entre Brasil e Portugal. Para ambos, “o pacto colonial era apontado como um dos instrumentos de opressão e exploração, ao impor o monopólio do comércio colonial pela metrópole”6. E continua:

Curiosa inversão, essa forma de contar a história da América lusitana era assinada pelo príncipe herdeiro da Coroa portuguesa e redigida por um homem que vivera a maior parte da vida em Portugal, integrando a burocracia lusitana e dedicando todos seus esforços para salvar o Império português da decadência7.

O capítulo encerra-se com um boxe chamado “Os habitantes do novo Império”, que resumidamente se encarrega de explorar os aspectos mais gerais da sociedade imperial, em específico, uma rápida análise sobre escravos, índios e livres pobres.

O capítulo 2, “Uma nova nação, um novo Estado”, discute o processo de organização, construção, consolidação e expansão do novo Estado nacional. Aqui a autora explora os debates do período sobre a preocupação das elites provinciais sobre a possibilidade de fragmentação do território e as razões para a manutenção da unidade territorial. Uma das razões para a manutenção dessa unidade era justamente a peça fundamental da economia colonial: a escravidão. Havia um consenso dentro das elites políticas e econômicas no pós-Independência de que a manutenção da escravidão era essencial para o sucesso do projeto de nação que estava em andamento. Outra questão era sobre o modelo de Estado a ser adotado para a recém-emancipada nação. A opção pela monarquia constitucional foi o caminho mais seguro, pois “o regime prevalecente no mundo ocidental era o representativo”8 e significou o que Dolhnikoff chamou de “transição dentro da ordem”9.

No tópico “Assembleia Constituinte” são abordadas questões que gravitaram em torno do processo de organização do governo representativo como a adoção de um modelo federativo que atribuísse autonomia provincial sem desarticular as conexões e preponderância decisória do governo central. Outro tema debatido foi a questão da cidadania e da nacionalidade, além dos critérios eleitorais para a participação da vida política do Império. Cidadania, nacionalidade e a participação no sistema eleitoral eram, assim, espécies de crivos que definiam quem de fato seria considerado brasileiro. A autora traça a diferença fundamental entre cidadania e nacionalidade para evocar o peso que o uso desses termos pelos operadores das leis teve na exclusão de parcelas importantes da sociedade de direitos fundamentais.

Ao trabalhar o processo de montagem do sistema de representação política, Dolhnikoff detalha e analisa com bastante competência os entremeios da organização política do século XIX, esmiuçando o processo eleitoral e fazendo a diferenciação entre cidadania política, cidadania civil e cidadania escrava. Traça ainda a natureza dos cargos políticos e o processo de criação do Conselho de Estado.

Sobre as atribuições e medidas do parlamento, o capítulo analisa as leis criadas no contexto da organização das premissas legais do Estado, como a Lei de Responsabilidade e a lei que criava o Juizado de Paz, ambas em 1827; o Código Criminal de 1830 e a lei de 1828 que regulamentava o funcionamento das Câmaras Municipais.

O capítulo é concluído com o tópico “Oposição ao Imperador”, dando destaque aos acontecimentos que culminaram com sua abdicação ao trono, como as divergências com as elites provinciais, a questão do tráfico negreiro e a Guerra da Cisplatina, resultando em seu retorno a Portugal em abril de 1831.

Em “Os tumultuados anos da Regência”, os anos que se seguiram à abdicação de D. Pedro são caracterizados a partir da nova organização político-administrativa estabelecida pela série de governos provisórios. Ensejados pelas reformas liberais, que discutiram a autonomia provincial, estabeleceram-se na Regência a criação da Guarda Nacional e o Ato Adicional que, dentre outras coisas, estabelecia uma série de reformas na letra constitucional de 1824. No judiciário, a maior reforma foi o Código de Processo Criminal de 1832.

O período Regencial foi caracterizado também pelos levantes populares em várias províncias, para o que Dolhnikoff apresenta dois motivos principais: o monopólio português do pequeno comércio e a imposição do recrutamento forçado. A Balaiada, Cabanagem, Revolta dos Malês e Farroupilha são apresentadas em seus contextos gerais, motivações e conclusões.

Sobre as reformas legais, são colocadas em destaque a Reforma do Código de Processo Criminal de 1841 e a Interpretação do Ato Adicional, aprovada em 1840.

Explorando a questão da política partidária no período, Dolhnikoff estabelece uma ótima contextualização e caracterização dos partidos do século XIX, definindo as diferenças entre as organizações partidárias surgidas naquele contexto e as formas partidárias contemporâneas. As definições e análises lançadas sobre o tema são, inclusive, sensivelmente elaboradas e pouco vistas nas obras historiográficas atuais dedicadas a esse aspecto da organização político-administrativa imperial. Sobre os partidos políticos, em especial os partidos Conservador e Liberal, Dolhnikoff define:

Os partidos do século XIX não tinham as mesmas características que os partidos contemporâneos. Embora cada um dos dois estivesse organizado em todo país, não havia coesão interna, programas claramente definidos, filiações oficialmente formalizadas, enfim, não tinha a organicidade dos partidos atuais. Em cada província, tanto o partido Liberal como o partido Conservador adquiriam feições específicas relacionadas às particularidades locais. Não havia diferença de origem social entre as pessoas que compunham cada um dos partidos10.

Conclui o capítulo com os episódios que culminaram com a maioridade de D. Pedro de Alcântara e um boxe que explora a questão da expansão cafeeira.

A vida cultural brasileira no Oitocentos é explorada no capítulo “A invenção do Brasil: a vida cultural no Império”, abordando a vida cultural como parte do projeto de construção do Estado através da busca de uma identidade nacional. A fonte de análise desse aspecto da vida imperial brasileira é primordialmente a literatura, a poesia e a produção historiográfica e científica. A busca por essa nacionalidade foi feita através de movimentos literários como o romantismo e o indianismo e esteve permeada pela produção literária de Joaquim Manoel de Macedo e José de Alencar, cujo tema principal de seus escritos era a questão da escravidão.

A História como disciplina subsidiada com a criação do IHGB e o pioneirismo de Adolfo Varnhagen, a Geografia, a Etnologia e suas contribuições para a busca da identidade nacional brasileira, são temas ligeiramente investigados no capítulo. Estão presentes na análise também a questão do embate entre ciência e costumes, as práticas populares africanas, a atuação das irmandades e a renovação cultural experimentada a partir da década de 1870, com as contribuições de uma literatura menos romântica de Machado de Assis e o naturalismo-realismo de Aluísio Azevedo. Uma necessária discussão sobre a participação da imprensa na época e sua influência na opinião pública foi eleita para compor o boxe, fechando o capítulo.

“Conflitos e Negociação” discute as disputas entre grupos das elites provincial e o poder central durante o Segundo Reinado. Dolhnikoff traz a caracterização da monarquia constitucional e as especificidades do Brasil. As eleições e todo seu processo representava uma preocupação para os grupos das elites, uma vez que manter sua representação e não permitir a influência das “paixões populares” era objetivo primordial. Mais uma vez, Dolhnikoff explora as questões políticas com maestria, esmiuçando, analisando e trazendo dados para traçar perfil político do Brasil, agora na segunda metade do século XIX.

Para as elites políticas, a possibilidade da abertura à participação política das classes menos favorecidas era um temor a ser combatido, pois representava uma ameaça ao equilíbrio representado pela monarquia. Como ponto de apoio, D. Pedro II figurava como o árbitro das questões que norteavam o Legislativo por meio do poder moderador. O imperador, por sua vez, não exercia um poder centralizador ao extremo, precisando negociar as vagas para os ministérios com os partidos Liberal e Conservador.

Ao discutir cidadania e eleições, partidos e ministérios, a autora faz um passeio interessante e bem fundamentado sobre as questões que norteavam o processo eleitoral e a participação dos partidos na organização do sistema político brasileiro. Como característica do processo, vigoravam as fraudes eleitorais que geravam o clientelismo e ao mesmo tempo era alimentado por este. Dolhnikoff passa a traçar o perfil do eleitor da segunda metade do século XIX e o problema da participação social no processo, e como o judiciário e o legislativo limitavam o acesso de determinadas classes por meio da restrição do sentido do termo “cidadania”. Em meio a esse processo, desenrolava-se a alternância de poder entre os partidos, a atuação em conjunto de liberais e conservadores no Ministério da Conciliação em 1853 e o aparecimento da Liga Progressista.

Na última parte do capítulo, há uma apurada análise das leis eleitorais durante o Segundo Reinado e a interpretação de sua aplicabilidade pelos partidos, além das incompatibilidades dos projetos dos partidos diante da realidade palpável do Império. Discussão importantíssima e bem elaborada. Fechando o capítulo, há um resumido boxe sobre as revoltas no Segundo Reinado.

O capítulo 6, “O fim da escravidão”, busca as motivações que culminaram na Lei Áurea. Em primeiro plano, a influência e pressão inglesa, seus interesses e todo o processo, desde o Tratado de 1825, o Bill Aberdeen e o fim do tráfico negreiro em 1854. Prosseguindo a análise, relata os primeiros passos do movimento abolicionista e o processo de mudança de mentalidade da sociedade brasileira aliada ao processo de modernização, importantes para o fim da escravidão.

A decisão de uma libertação gradual através das leis e as discussões pró e contra o fim da escravidão contrastavam com a falha na aplicação das leis em uma sociedade cada vez mais preocupada com suas perdas econômicas. Todo esse processo levaria à radicalização do movimento abolicionista em sua luta por uma abolição imediata, a assinatura da Lei Áurea e um novo planejamento, agora em torno da mão de obra de imigrantes europeus, para a substituição dos escravos nos postos de trabalho. Os imigrantes, aliás, são o tema do boxe de encerramento do capítulo.

O penúltimo capítulo, “A monarquia e seus vizinhos”, trata da política externa brasileira como uma das estratégias de consolidação do Brasil como Estado Nacional e sua tentativa de atuação preponderante em relação aos países vizinhos da América Latina.

Os projetos nacionais incluíam as disputas por territórios e pela supremacia brasileira no continente por meio da Guerra da Cisplatina (1825-1828), a Guerra Grande (1839-1852) e a Guerra do Paraguai (1865-1870). A descrição dos fatos que narram as rivalidades entre os países envoltos nos conflitos, a visão diplomática do Brasil sobre os vizinhos e as dificuldades das guerras e suas consequências são o centro da discussão do capítulo. Para o boxe de encerramento, o tema eleito foi a política para o comércio externo.

No último capítulo, “Abaixo a monarquia, viva a República”, Dolhnikoff explora o contexto das décadas finais do século XIX, a crise da monarquia e a ascensão do modelo republicano. A autora apresenta a monarquia como um projeto da elite, símbolo de um projeto nacional benéfico até o momento em que as classes abastadas tinham seus objetivos atendidos e ganhos garantidos. Em um balanço geral da monarquia, resume:

A monarquia criou mecanismos de controle e legitimação, de modo que a sociedade profundamente hierarquizada, com formas de acesso a bens, participação, direitos e privilégios extremamente desiguais, com parte da população na condição de escravos, tivesse algum grau de coesão que permitisse sua transmudação em comunidade nacional. Assim, o regime monárquico mostrou-se eficaz como projeto da elite dirigente para preservar a ordem escravista, a desigualdade social e ao mesmo tempo, criar laços simbólicos e políticos entre os diversos setores sociais que garantissem certa estabilidade11.

A análise volta-se para os fatores que propiciaram a ampliação das ideias republicanas e o questionamento do modelo monárquico, como o crescimento do número de cidades. A urbanização crescente das décadas finais do século XIX não proporcionou uma superação da vida rural, mas trouxe em seu lastro um importante crescimento populacional e a diversificação das atividades desenvolvidas nas províncias mais importantes do Império. A diversificação profissional também proporcionou uma diversidade social que obrigava a coexistir em um mesmo espaço “escravos e livres […] negros, pardos e brancos, membros da elite, inclusive agrária, setores intermediários, livres e pobres habitavam as cidades”12.

A infraestrutura dessas cidades recebeu melhorias, em um processo de modernização do sistema de transporte e mobilidade urbana, com a chegada dos bondes na zona urbana e interligando localidades com as ferrovias; no sistema de iluminação com os lampiões a gás e eletricidade; o fornecimento de água por meio de canos e em domicílio; e a revolução do telégrafo, facilitando a comunicação entre várias cidades dentro do país e localidades no exterior.

Para Dolhnikoff, quanto mais se expandia as possibilidades oferecidas pela cidade, mais diversificava o perfil da população. Assim, como vitrine das mudanças que viam a monarquia como algo aquém da modernidade que se avizinhava, “a diversificação da população urbana, em todos os seus matizes, gerava novas visões, demandas e comportamentos em relação a questões fundamentais como a escravidão, o sistema representativo e a organização política”13.

Somava-se a essas transformações, a fundação do partido Republicano Paulista em 1873 e o descontentamento dos cafeicultores do Vale do Paraíba com a falta de políticas do governo para a expansão do produto mais importante da pauta de exportação do país. Os investimentos em outras províncias também desagradavam os cafeicultores paulistas, que consideravam São Paulo a província mais importante economicamente do Império. Conjeturou-se até em um movimento separatista de São Paulo que, no entanto, não teve tanta força. Então, uniu-se a insatisfação paulista ao movimento republicano que ganhou força a partir de 1870. O partido Liberal aderiu ao movimento no mesmo ano. Durante essa década e na seguinte, clubes republicanos e jornais ligados ao movimento multiplicaram-se. Encerrar a monarquia e instaurar uma república estava na ordem do dia. A partir de então, Miriam Dolhnikoff passa a analisar as estratégias pelas quais se pensou para instaurar a República. Uma delas, a corrente evolucionista, via no processo pacífico e gradual a melhor maneira para a mudança do sistema político, pois, a República:

Viria com o tempo, a partir de um programa reformista a ser encaminhado no Parlamento e por uma política de convencimento gradual dos vários setores sociais, que tornaria a transição pacífica porque desejada por todos. Uma transição dentro da ordem, sem convulsões sociais14.

Uma corrente minoritária, a revolucionária, via pela revolução e violência o método mais eficaz para a instauração do novo regime. Nesse clima de discussões sobre o futuro político do país, um novo elemento é agregado ao conjunto dos fatos. O exército, a partir da década de 1880, passou a buscar a concretização de seus objetivos corporativos, com militares concorrendo a cargos na Câmara dos Deputados e Senado.

Miriam Dolhnikoff faz uma eficiente e detalhada análise do conjunto de fatores que levaram os militares às esferas de poder político-administrativo e, consequentemente, a serem os responsáveis pela Proclamação da República. Com base na narrativa dos acontecimentos que culminaram no 15 de novembro de 1889, encerra o capítulo e suas análises sobre o fim do Império. Um mapa que acompanha o final do capítulo fica responsável por mostrar as mudanças nas unidades administrativas brasileiras ao longo do século XIX, obedecendo também à cronologia eleita pela autora para desenhar o quadro geral do período imperial brasileiro na qual se dedica a obra, ou seja, de 1822 a 1889.

  1. Temas em destaque

Ao fim de cada capítulo, a autora fez a opção por ilustrar subtemas relativos à discussão central por meio de boxes. Seis dos oito capítulos da obra seguem esse padrão de encerramento, exceto os capítulos 2 e 8. Boxes em geral são recursos largamente utilizados em livros didáticos e têm a função de comunicar e dar destaque a respeito de determinados aspectos paralelos ao tema central do capítulo. Dolhnikoff também elege temas transversais na utilização desse recurso, mas que auxiliam, de forma didática, a finalizar o tema proposto pelo capítulo. Os temas enquadram, por outro lado, discussões indispensáveis e recorrentes na historiografia sobre o período, como a sociedade, a economia, a imprensa, as revoltas populares, os imigrantes e o comércio exterior. Talvez tenham sido alternativas à ausência de notas de rodapé explicativas, inexistentes no texto ou por opção da autora ou pelo formato escolhido para o livro. Assim, questões que ficam em suspenso no corpo do texto principal ganham aí espaço e destaque, agregando uma discussão a mais ao tema central.

O primeiro boxe no capítulo 1 ganhou por título “Os habitantes do novo Império” e encarrega-se de discutir a formação da sociedade monárquica brasileira, dando destaque à contribuição dos escravos, homens livres pobres e indígenas. A autora traz informações sobre a função social/econômica de cada um desses estratos sociais, local de atuação/morada, ocupação e a especificação sobre como ou se as leis tratavam desses indivíduos. Ilustrado por uma iconografia de Johann Moritz Rugendas, de 1835, o boxe traz ainda perspectiva percentual desses grupos sociais no Brasil na primeira metade do século XIX.

No capítulo que explora os embates das Regências, ficou em destaque a questão da expansão cafeeira. Adiantado à discussão contida no capítulo sobre a escravidão, a autora enfatiza o crescimento da cultura do café em comparação ao plantio do açúcar e sua importância para a economia nacional. O café foi, dentre outras coisas, uma das razões para alavancar São Paulo como uma das províncias mais importantes do Império em meados do Oitocentos. A produção de café no Vale do Paraíba e em outras regiões da província ajudou a transformar não apenas São Paulo, mas o sudeste no novo eixo econômico do país. A construção de uma infraestrutura com estradas e ferrovias foi realizada quase que exclusivamente para atender a demanda dos cafezais. A questão da mecanização da lavoura e a consequente gênese de sua modernização tiveram como subsídio as necessidades dessa lavoura, em especial pelo fim do tráfico negreiro em 1850. O café não significou grandes mudanças na natureza econômica do Brasil, mas introduziu novos elementos na agricultura praticada no país.

Para ilustrar os principais fatores que contribuíram para a construção cultural do Brasil, o boxe “Imprensa e Opinião Pública” estabelece a imprensa como “uma importante forma de manifestação cultural e política ao longo da monarquia”15. Por ser um dos principais veículos de circulação de ideias, os jornais participavam ativamente dos acontecimentos, ajudando a “difundir cultura e discutir política”16. Não apenas os jornais, mas também revistas tinham o poder de formatar uma opinião pública e foram fundamentais em momentos importantes da história do país. Dolhnikoff define seus redatores a partir de suas ocupações: eram além de jornalistas, padres, romancistas, advogados.

A autora sinaliza uma informação importante: “a imprensa brasileira no século XIX teve seu conteúdo e formato vinculado às concepções políticas do liberalismo, no sentido de construir uma nova ordem que se distinguia em muitos aspectos do Antigo Regime”17. Certamente, ela se refere especificamente à imprensa atuando no pós-Independência. Os jornais ocupavam, por isso, um espaço precioso na vida da sociedade em geral. Era, dessa forma, “parte da constituição dos espaços públicos”18, formadores da opinião pública nacional.

Dito isso, Dolhnikoff parte para analisar a importância desses periódicos para os partidos políticos do período. Desse modo, enfatiza a questão da parcialidade jornalística, uma vez que cada partido possuía seus próprios periódicos, um grande contraste com a suposta imparcialidade do jornalismo na atualidade. Trazendo uma definição geral sobre o papel da imprensa, a autora enumera:

Os jornais eram meio de angariar apoios e expressar repúdios, além de fazer circular ideias e fatos políticos, atos e decisões governamentais. A função de jornais e a edição de panfletos, a publicação de artigos e a realização de debates, sob novo regime, integraram o cotidiano da nova nação.

Ilustrando o boxe com a imagem de Francisco de Paula Brito, editor do jornal O Homem de Cor, publicado em 1833, há o destaque para a imprensa voltada para as questões que norteavam a escravidão negra. Os escritores/editores negros não eram presença maciça nos periódicos que circulavam à época, mas o tema da escravidão, do preconceito e a situação dos negros no Brasil eram discutidos em jornais como O Brasileiro Pardo e O Crioulinho, que Dohnikoff define como “imprensa negra”.

A função de entretenimento da imprensa fica por conta da publicação de romances, folhetins e contos, assim como artes em forma de imagens e caricaturas que ilustraram desde um momento satírico a uma crítica política.

Para o capítulo “Conflitos e Negociação”, o boxe dedica-se a discutir as revoltas no Segundo Reinado. Aqui se desfaz a ideia de pacificidade do pós-período Regencial. O texto principal menciona como uma das principais revoltas do período a Praieira, fica a cargo do boxe evidenciar outras manifestações de bases populares que ocorreram nas províncias.

Entre elas, a revolta contra a Lei do Registro Civil, conhecida como Guerra dos Marimbondos, em Pernambuco, e Ronco da Abelha, na Paraíba, mas que atingiu também lugares como Alagoas, Sergipe e Ceará. Contra a alta dos preços de gêneros de subsistência, eclodiu ainda a revolta do Quebra-Quilos, que atingiu as províncias da Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Rio Grande do Norte, de outubro de 1874 a fevereiro de 1875. Essas revoltas evidenciaram as tensões entre povo e Estado e mostraram um lado não tão pacífico do reinado de D. Pedro II.

“Imigrantes para substituir escravos na cafeicultura” retoma a discussão final do capítulo sobre o fim da escravidão e introduz um resumo sobre a mão de obra de emigrantes europeus no Brasil. O fim do tráfico negreiro em 1850, a insuficiência do tráfico interprovincial, a dificuldade de contar com a mão de obra de pobres livres e a mentalidade sobre o trabalho manual exigiam outra saída para a questão do trabalho nos cafezais.

Assim, partindo do princípio de que a lógica do trabalho assalariado não era a vigente/aceitável no Brasil naquele momento, os cafeicultores do Oeste Paulista fizeram vir imigrantes de vários países europeus para trabalhar sob um sistema de contrato. Para tanto, eram oferecidos aos imigrantes como uma forma de atrativo, “50% dos lucros obtidos com a venda do café produzido por ele”19 e empréstimos para pagar despesas da viagem e demais gastos. Dolhnikoff registra o fracasso da iniciativa nas primeiras tentativas. A impossibilidade de cumprimento imediato do contrato e o tempo de espera entre o plantio e o lucro geravam prejuízos aos imigrantes, provando a ineficácia daquele empreendimento.

Na década de 1880, o financiamento da imigração pelo Estado foi a saída para o logro da iniciativa, responsável, dessa vez, pela chegada de milhares de imigrantes, em grande parte de origem italiana, para trabalhar nos cafezais do Vale do Paraíba.

No último boxe, Miriam Dolhnikoff ocupa-se da política para o comércio externo como encerramento das discussões do capítulo “A Monarquia e seus vizinhos”. Está em destaque aqui os tratados comerciais feitos entre o Brasil e Inglaterra, principal fornecedora de gêneros manufaturados, grande interlocutora diplomática e enfaticamente interessada no mercado consumidor brasileiro. A autora concentra-se na gradual mudança de postura do Brasil em relação às imposições diplomático-comerciais dos ingleses, além das desvantagens na assinatura dos acordos para o Brasil. Enfrentar a hegemonia britânica através da não renovação de tratados e o questionamento do valor das taxas de importação foi uma das maneiras do governo brasileiro sublinhar a soberania nacional. Dentre as medidas protecionistas, o boxe dá destaque à Tarifa Alves Branco, mecanismo utilizado até o final da monarquia para proteger a economia nacional.

  1. Considerações finais

História do Brasil Império é uma obra bem elaborada que cumpre com os objetivos da coleção a qual faz parte. Miriam Dolhnikoff usa de sua experiência e conhecimento para compor uma narrativa acessível e bem elaborada. Os temas que enquadram os capítulos são facilmente identificados por um público leitor leigo ou mesmo para um público mais especializado. Transitar entre os dois universos sem parecer aquém ou além para ambos os leitores pode ser considerada uma tarefa complexa, mas que é bem alcançada pela obra. Considerando que vigora na academia, e para parte considerável dos historiadores, a feitura de uma produção que na maioria dos casos é pouco acessível às mentes não especializadas em análises historiográficas, a obra de Dolhnikoff mostra exatamente o contrário. Dialogar com um público geral e não restrito significa transpor os muros, os preconceitos e as limitações do universo acadêmico. História do Brasil Império tanto pode ser adotada por um professor do ensino superior para discutir questões pontuais sobre o período com seus alunos, como pode ser um excelente auxiliar de um professor do ensino básico interessado em levantar debates para além do conteúdo dos livros didáticos.

Nesse sentido, como historiadora, Miriam Dolhnikoff cumpre uma função social importante ao tornar acessível à sociedade em geral um conhecimento que a ela pertence e que não pode ficar restrito aos muros da universidade. Mais que isso, a obra em questão ensina ultrapassando os limites da simples descrição dos fatos, ainda presente de forma tão insistente nos livros didáticos. A autora narra, analisando os acontecimentos; não se prende a cronologias, mas as utiliza nos momentos necessários e em favor da análise; mostra novos ângulos de temas já cristalizados pela historiografia tradicional, insere as fontes, enriquece o debate. Tudo isso permeado por uma linguagem fácil e bem elaborada.

Sem notas americanas, notas de rodapé explicativas, referências às fontes ou longas teorizações, Dolhnikoff permite o texto fluir, sem abrir mão da objetividade da análise. As fontes, bem escolhidas, variadas e inseridas em momentos pontuais, funcionam como aprofundamento das análises. Assim, uma obra com um viés mais didático, não abre mão das características de uma boa produção historiográfica e apresenta esse importante período da história brasileira com competência.

Notas

  1. DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2017. p. 09.
  2. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 16.
  3. Ibid, p. 17.
  4. Ibid., p. 28.
  5. Ibid, p. 27.
  6. Idem.
  7. Ibid, p. 33.
  8. Ibid.
  9. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 65.
  10. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 153-154.
  11. Ibid., p. 155.
  12. Ibid., p. 156.
  13. Ibid., p. 164.
  14. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 83.
  15. Ibid.
  16. Ibid.
  17. Ibid.
  18. DOLHNIKOFF, op. cit., p. 130.

Edyene Moraes dos Santos – Universidade Federal do Maranhão. Doutoranda UNESP-Assis. São Luís, Maranhão, Brasil. E-mail: [email protected].


DOLHNIKOFF, Miriam. História do Brasil Império. São Paulo: Contexto, 2017. Resenha de: SANTOS, Edyene Moraes dos. Sobre “História do Brasil Império” de Miriam Dolhnikoff: análise e considerações. Outros Tempos, São Luís, v.16, n.27, p.342-357, 2019. Acessar publicação original. [IF].

Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire – ROCHA (SO)

ROCHA, Ronai Pires da. Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire. São Paulo: Contexto, 2017. Resenha de: SECCO, Gisele Dalva. Sofia, Vitória, v.6, n.3, p. 175-191, jul./dez., 2017.

INTRODUÇÃO: UM POUCO DE CONTEXTO

Muitos dos temas e problemas com os quais lida Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire (ROCHA, 2017) são frutos de reflexões germinadas no ainda pouco explorado Ensino de filosofia e currículo (ROCHA, 2008). Exemplarmente constam ali críticas do “princípio do presépio” como critério capital de desenho curricular; da concepção expressivista de currículo; da imagem da desnutrida da escola como mero aparelho de reprodução de desigualdades sociais; das abstrusas caracterizações de interdisciplinaridade mobilizadas em documentos e debates sobre currículo escolar, do populismo pedagógico; das projeções de ferinas disputas universitárias em ambiente escolar.

A Introdução de Quando ninguém educa informa que a motivação final para sua escrita data de fins de 2015, quando da publicação do ofício endereçado ao Conselho Nacional de Educação (CNE) por pesquisadores da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) com o apoio da Associação Brasileira de Currículo (ABdC). Intitulado “Exposição de Motivos sobre a Base Nacional Comum Curricular”,2 o documento apresenta, em nove tópicos, observações desfavoravelmente críticas à forma e ao conteúdo da primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) — naquela ocasião, sujeita à consulta e a debates públicos.

A oferta da BNCC pelo Ministério da Educação (MEC) em 2015 fora prescrita em 1996, no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. O objetivo fulcral do documento sugere-se em sua denominação: servir de alicerce para edificações de currículos nas redes estaduais (caso do Ensino Médio, a partir de agora EM) e municipais (caso do ensino fundamental, a partir de agora EF), e em cada instituição de ensino brasileira. A proposição da BNCC, portanto, configura-se como uma condição de possibilidade do exercício pleno dos direitos garantidos pela lei máxima da educação nacional.

Para além do destaque à reação das entidades representantes da comunidade de pesquisadores em educação frente à proposição da primeira versão da BNCC, vale ressaltar outro elemento do cenário em que se compôs o livro aqui analisado: o fato de que, como se conta no primeiro capítulo (“O currículo e as competições ferozes”), aquela reação foi uma de outras, todas fluindo em peculiar leito midiático:

De um dia para outro a conversa sobre o currículo saiu do círculo dos especialistas, passou para os editoriais dos grandes jornais e dali foi para as redes sociais. A questão da existência ou não de uma base curricular nacional deixou de ser um tema dos especialistas e passou a ser matéria do noticiário cotidiano. (Rocha, 2017, p. 23)

Voltemos ao ofício da ANPEd: em uma passagem, declara-se existir, na base de elaboração da Base, um descolamento entre “as constantes críticas dos especialistas na área” e os alicerces curriculares estipulados na LDB, que deveriam figurar na BNCC. Alega-se ainda, na mesma passagem, que nos anos imediatamente anteriores à publicação da BNCC o MEC operou silenciamentos “sobre os debates, avanços e políticas no sentido de democratização e valorização da diversidade” em prol de um “projeto unificador e mercadológico na direção que apontam as tendências internacionais” (ANPED, Ofício n.º 01/2015/GR, p. 1). Se é fato a ruptura entre o que dizem os especialistas na área (mencionados do ofício da ANPEd) e os especialistas chamados pelo MEC a elaborar a BNCC, perguntar parece propício: o que nos insinua tal fato? Por que a BNCC, parece, teria sido elaborada sem considerar as referidas “críticas constantes”, encarnando um modelo de currículo a elas avesso?

Questão de segunda ordem: seriam tais perguntas respondidas a contento pela via explicativa de mão única que enfatiza as opções políticas desta ou daquela gestão ministerial, e de cada equipe de professores e pesquisadores por elas mobilizadas na confecção da Base? Ou, como acadêmicos dedicados a pensar em como nossa área (a Filosofia) pode contribuir para os debates sobre a construção da Base, nos seria permitido duvidar desta via expressa, buscando compreender as coisas sob outras perspectivas em teorias curriculares? É apostando em respostas positivas a esta última questão, que Quando ninguém educa foi publicado — sem para nada excluir como irrelevantes os elementos de ordem política que compõem o quadro das práticas curriculares no Brasil.

Sobre o momento desta publicação, é trivial lembrar que se trata de um período de padecimento para todos. Vivemos consideráveis perdas de direitos sociais, e ameaças de maiores, mais profundos e variados retrocessos. É inevitável mencionar, nesse contexto, a proposta de revogação do título de Patrono da Educação Nacional, pertencente a Paulo Freire, por parte de mensageiros de “movimentos” “sem partido”, nem ideologia. Um sobreaviso, assim, quase tarda: o livro aqui anotado não seja tratado, por motivo de subtítulo, como gato no saco de desmastreios em que estão metidas iniciativas de similar estirpe. Se é verdade que Quando ninguém educa (QNE) foi publicado em momento turvo e tenso, não é menos verdade que por seus estilo, teor e dicção, visa um público extenso e multiforme, e tem um dilatado potencial para provocar conversas, debates e autocríticas cuja urgência e importância não podemos falhar em reconhecer. Que o mapa que se pode traçar a partir das anotações a seguir possa servir para estimular a leitura deste livro, contracorrente.

1 SOBRE A PRIMEIRA PARTE: A TRAMA E A CRÍTICA

Do ponto de vista morfológico o livro está composto de três partes intercaladas por quatro parábolas, denominadas pelo autor como “fábulas de Zilbra”. O comparecimento de tais historietas não configura aspecto ignorável, pois não somente impõem certo ritmo à leitura das partes principais do livro, como também um tom que pode gerar desconfortos em leitores mais sensíveis às críticas embutidas nesta peculiar eleição retórica. O mesmo se aplica aos primeiros parágrafos do capítulo inaugural, em que, ao modo de pastiche, encontramos uma comparação entre discussões atuais acerca de currículo escolar e debates sobre o valor universal da democracia no Brasil dos anos 1970. Desde o início, portanto, saiba o leitor da possibilidade de estranhamentos diversos no que diz respeito ao modo como são apresentadas as ideias do autor. Quais são elas?

Sigo aqui a ordem da composição. Após a proposição do pastiche como forma de verificarmos semelhanças e diferenças entre o cenário atual e o cenário em que se iniciou o processo de suspensão da tradição de estudos curriculares no Brasil, a primeira parte do livro narra o processo de estabelecimento da teoria curricular hoje hegemônica no país, fortemente calcada em estudos culturais e sociologias do conhecimento (trata-se, portanto, do advento de teorias críticas e teorias pós-críticas do currículo, ocorrido com o abandono das teorias tradicionais). Desde cedo em QNE somos impelidos a pensar que as críticas ao modelo teórico tradicional — o assim chamado currículo por objetivos — resultaram, no Brasil da segunda metade do século passado, em um processo de descarte do abacate junto com o caroço. Vejamos, ainda de que brevemente, quais eram os pontos principais destas críticas.

O primeiro deles indica que teorias como as de Ralph Tyler e Hilda Taba (nomes dos mais conhecidos nos estudos curriculares de então), tal como praticadas no Brasil e a despeito de algum sucesso do ponto de vista de “metas triviais”, não satisfaziam “os fins mais amplos da educação” (ROCHA, 2017, p. 28). Foram, assim, batizadas de tecnicistas. A segunda acusação alegava que a formulação de objetivos de aprendizagem em termos operacionais, válida para o campo empresarial, não valeria para o educacional. Ademais, tal modelo pressionaria em demasia os professores quanto ao planejamento sequencial das fases da aprendizagem, sem espaço para desdobramentos da ordem do imprevisível, que exigiriam menos planejamento e mais capacidade de improviso por parte dos docentes.3 A esta crítica se associa uma quarta, relativa ao privilégio de comportamentos cognitivos enquadráveis em avaliações e mensurações que acabariam por excluir a dimensão humana da experiência escolar — razão pela qual se incriminou o modelo por baixa densidade democrática. Finalmente, dada a padronização da avaliação dos resultados das aprendizagens escolares em termos de mensurações objetivas, artes e ciências humanas não caberiam no espartilho de um tal modelo curricular, cujo descarte estaria, assim, plenamente justificado. Uma sugestão de pesquisa, no livro somente implicada, propõe comparar os cinco pontos das críticas ao modelo tradicional de currículo com os nove pontos de crítica apresentados pela ANPEd no oficio acima descrito: quais diferenças e repetições vigoram entre elas?

O capítulo inicial remete ainda à discussão proposta no segundo capítulo de Ensino de filosofia e currículo (EFC), onde Rocha delineia uma perspectiva sobre educação na qual convivem em paz seu objetivo principal, o da conservação da herança cultural da humanidade — e que será esclarecido adiante no livro, na seção “A educação é conservadora” — e o respeito ao “aspecto essencial de indeterminação, intrínseco à formação educativa” (ROCHA, 2017, p. 29). O capítulo finaliza num duplo movimento: por um lado, e com base nas sugestões de Lawrence Stenhouse, “desempacota” o conceito de educação, como o conceito de um complexo contendo ao menos cinco etapas ou eixos:

Quanto mais nos elevamos nas camadas do processo educativo — habituação, treinamento, instrução, iniciação, indução — mais torna-se complexa a aplicação do modelo de currículo por objetivos. Os problemas mais interessantes ocorrem na área de indução ao conhecimento, pois trata-se de uma tarefa na qual as diferentes camadas da educação estão presentes. De um lado, quando aprendemos a falar colocamos em ação as estruturas conceituais e inferenciais da linguagem, das quais nem sempre temos uma consciência explícita e de cujas potências nem sempre suspeitamos; mas quando aprendemos nossa língua materna não estamos apenas dominando um código, pois ele traz consigo algo que um dia chamaremos, com sorte, de “mundo”. Aqui surge (ou não) a aventura do conhecimento, pois queremos induzir nossos filhos a uma explicitação dos níveis básicos de conhecimento que acompanham a aquisição da língua materna. O nome disso pode ser escola e currículo. (ROCHA, 2017, p. 31).

Por outro lado, o autor sugere que é possível retomar alguns dos bons elementos da tradição de desenhos curriculares calcada no modelo por objetivos, desde que nossa atitude como filósofos e teóricos do currículo não consista na dogmática postura de virar-lhe as costas, sem qualquer empenho de compreensão e subsequente avaliação de seu valor na empreitada de aprimorar a cultura curricular e pedagógica nacional. Além disso, após oferecer — novamente com o apoio de Stenhouse — uma caracterização de currículo como esforço para comunicar as linhas gerais de propósitos educacionais de maneira constitutivamente aberta à crítica, Rocha termina por alinhavar a primeira apreciação mais pungente do espectro hegemônico do campo curricular no Brasil. É neste momento que começamos a entender a função que a análise da opera magna de Paulo Freire tem no livro, pois somos então informados de que

No final dos anos 1970, o giro sociopolítico no campo do currículo consolidou-se e, com ele, os estudos curriculares ligados aos conteúdos e às didáticas foram varridos para baixo do tapete pedagógico. No lugar deles entraram as teorias da ação social aplicadas à educação. O esvaziamento da escola foi de tal ordem que surgiu no início dos anos 1980 um movimento que procurou recuperar o que havia sido sacrificado no altar da crítica. (ROCHA, 2017, p. 33).

Ora, foi justamente o grupo da “Pedagogia histórico-crítica” ou “Pedagogia crítico-social dos conteúdos” o responsável por tecer as primeiras críticas à pedagogia freiriana. Nela não estariam contemplados, de modo adequado, a entrada das crianças e dos jovens no universo dos conhecimentos escolares. De acordo com os primeiros críticos, esta insuficiência se deve, em larga medida, à ênfase desmesurada na valorização da cultura extraescolar na experiência pedagógica. Veremos a seguir, porque o deixa bastante claro o autor, que uma tal desmedida parece se dever um pouco menos à letra do texto de Paulo Freire do que a certas apropriações inadequadamente dogmáticas, derivadas de leituras anacrônicas, de sua Pedagogia do oprimido.

O segundo capítulo segue a narrativa acerca do que chama de extravio da cultura curricular nacional, mobilizando discussões acerca da natureza da escola, uma reflexão sobre as melhores maneiras de conversar sobre currículo, e uma importante crítica à “visão expressivista do currículo” — exposta em documentos oficiais como as Orientações curriculares para o ensino médio . Nesta visão, o currículo é compreendido como um tipo de orientação sem poder de prescrição . A ideia é a de que um currículo que descreva comportamentos esperados de cada ator do teatro educacional não deve desdobrar seu potencial de prescrição das melhores atitudes a esperar de professores e alunos,4 mas tão somente manifestar, revelar, exteriorizar (quiçá sem critério algum?) o que cada sistema e escola entende como o melhor para sua comunidade particular (estaríamos diante de uma sorte especial de relativismo pedagógico?).

Esta primeira e também extensa parte do livro contém ainda cinco capítulos. Antes de expor a crítica a Freire, e a certo freirismo, constante no capítulo “Ninguém educa ninguém”, direi do contexto da crítica no fluxo narrativo-argumentativo de QNE. É que imediatamente antes do estudo de caso crítico, aparece “Formas do conhecimento”. Este capítulo abre com uma máxima de dupla função: de um lado, arrematar o que fora exposto nos capítulos “O currículo como iniciação” e “O currículo como mensagem” (duas perspectivas pouco ou nunca sonhadas pelo grosso da pedagogia nacional) e, de outro, anunciar a tônica de sua crítica: “Conversar sobre currículo sem falar em epistemologia é como pacto sem espada, vira conversa fiada” (ROCHA, 2017, p. 59). Que o modo de adágio desta frase não aligeire o leitor a ignorar a que imediatamente se segue:

Se é verdade que o currículo implica poder e política, pois ele está ligado às formas de distribuição e transmissão de conhecimento, é igualmente verdadeiro que estamos falando exatamente sobre conhecimento .” ( Loc. cit .).

Quem, em são entendimento, poderia desviar-se de tamanha evidência? A quem serviria ler QNE de modo a ignorar sua obstinação na discussão conceitual, filosófica, sobre as relações internas entre categorias epistemológicas e curriculares? Possivelmente somente àqueles sectários afeitos à erística, dessidente do jogo de dar e pedir razões — dos quais temos exemplos de sobra tanto à direita quanto a esquerda do espectro político-ideológico.5 Mas voltemos ao texto.

Antes, no capítulo sobre o currículo como mensagem, o leitor havia sido familiarizado com o vocabulário, algo denso, advindo de uma sociologia da educação epistemologicamente tratada, encarnada na obra de Basil Bernstein. Destaque-se aqui a centralidade da distinção entre conhecimento ou discurso horizontal e vertical , a partir da qual somos a apresentados à crítica do “populismo pedagógico” como fruto de uma confusão entre tais categorias. Registre-se, de modo telegráfico, que se os discursos ou conhecimentos horizontais são da ordem do mostrar — das coisas que aprendemos em nossas comunidades locais, por meio de treino e exemplo (amarrar os sapatos, usar talheres) —, os conhecimentos horizontais são da ordem do dizer : eles operam e se aprendem por meio de “estruturas simbólicas especializadas de tipo explícito, proposicional” (ROCHA, 2017, p. 50). Tais conhecimentos, que Michael Young compreende como efetivamente “empoderadores”,6 demandam ambientes especialmente desenhados, como escolas, para sua aquisição.

Ora, o que em QNE se chama populismo pedagógico se resume num conjunto de práticas curriculares balizadas na polarização entre o conhecimento popular e o conhecimento especializado, frequentemente associadas a uma romantização ou supervalorização do primeiro em detrimento do segundo. Podese neste ponto antecipar os resultados das críticas ao modo hegemônico de ler a Pedagogia do oprimido como uma forma particular de populismo pedagógico: de tanto proteger o aluno de “sustos didáticos”7 (derivados de coisas como aprender a demonstrar um teorema geométrico ou compreender o que é se contradizer), o populismo pedagógico acarreta o abandono de aprendizagens daquele “conhecimento poderoso” de que fala Young (como aprender a demonstrar um teorema geométrico ou ser capaz de reconhecer ou visualizar a relação lógica de contradição no clássico quadro das oposições, ou a aprender a ler mapas, ou uma obra de Clarice Lispector).8

A trama de fundo da crítica a Freire e a seu modo habitual de apropriação e propagação apresentada na seção “Ninguém educa ninguém” envolve ainda a ênfase de Rocha na ideia de que a epistemologia, como investigação sobre as variedades do conhecimento humano, é indispensável para práticas curriculares adequadas aos fins da escola. Aquelas, as variedades, dizem respeito aos distintos critérios para a disposição e ajuste curricular dos conhecimentos, tais como: suas fontes, seus tipos, objetos, as estruturas dos objetos de conhecimento, os tipos de consciência que cada saber mobiliza, seus graus de publicidade, e as não menos relevantes condições sociais e históricas de sua produção e apropriação. Já os fins da escola, por sua vez, tomam corpo na ideia de empoderamento intelectual e humano dos estudantes, e serão ainda tematizados em ao menos três das “séries de lembranças” que compõem a parte final do livro. De todo modo, desta trama praticamente se pode deduzir a pergunta pela epistemologia sobre a qual se erige a referência máxima da pedagogia nacional. Chegamos, assim, ao acontecimento crítico central da primeira parte de QNE.

O capítulo dedicado, ao modo de estudo de caso, a analisar a Pedagogia do oprimido se desdobra em quatro momentos, a começar por um duplo reconhecimento: o da importância histórica da obra, combinado ao do anacronismo de suas leituras mais comuns. Se da primeira não há folga em esquecer, do segundo pouco se diz. As luzes anacrônicas que geralmente se projetam sobre esta obra de Freire, mostra Rocha, se revelam no modo como uma distinção importante como aquela entre educação bancária e educação emancipadora é transportada, do contexto em que foi engendrada — com a finalidade de criticar os modos de relação dos dirigentes políticos da ação revolucionária com as massas, afinal “o tema do livro são as relações de opressão consideradas em um nível de bastante abrangência” (ROCHA, 2017, p. 69) — para contextos de discussão sobre os fins e meios da escola . Não à toa, somos informados, a palavra “escola” aparece em escassas cinco ocasiões ao longo de toda a obra. Mas o problema indicado com as parcas referências à escola não se encerra nesta observação, estendendo-se ao modo como Freire pensa a relação entre lar e escola, fortemente influenciada pelas assim chamadas visões reprodutivistas. Tais perspectivas consideram a escola, prioritariamente, com um aparelho de réplica das desigualdades sociais típicas de instituições como a família (em que os pais mandam e as crianças obedecem, e não pensam) e as prisões (comparação suficientemente desgastada como para exigir alguma explicação aqui).

Que uma distinção tão central para o livro de Freire, como entre “bancário” e “emancipador” seja assim generalizada — do contexto de alfabetização de adultos para o contexto de alfabetização de crianças em idade escolar — explica-se pelo fato de que além de anacrônicas, as leituras mais comuns da Pedagogia do oprimido são também seletivas. De acordo com Rocha, a dificuldade de contextualizar o que Freire diz nos capítulos inicial e final do livro acaba por induzir os leitores contemporâneos a simplesmente ignora-los, para o mal de sua compreensão. Nesses capítulos, aponta Rocha, Freire indica claramente a quem o livro se dirige (os companheiros revolucionários, por quem era acusado de não ser suficientemente comunista, e a quem acusa de agir conforme um sectarismo tão nefasto quanto o de seus efetivos oponentes), e de onde brotam os princípios que orientam, por exemplo, a necessária “reeducação ‘dos profissionais de formação universitária ou não’”, calcada em um alargamento das estratégias dialógicas de ação cultural por parte dos revolucionários. Rocha destaca que

O tema da reeducação dos acadêmicos ocupa quatro páginas no final do livro e é mais uma das formulações freirianas que somente faz sentido quando se tem presente o flerte de muitos intelectuais com o maoísmo da época. Como já antecipei, o livro era um libelo contra o dirigismo revolucionário que contaminava as fileiras da esquerda e a educação bancária a que se o livro se refere pouco tem a ver com os processos de escolarização formal. (ROCHA, 2017, p. 70).

Tendo mostrado suficientemente como a falta de sentido histórico é um aspecto importante na avaliação da atualidade da Pedagogia do oprimido , Rocha se dedica a auscultar a epistemologia sugerida nas considerações de Freire acerca da estruturação do conhecimento. Não se vai longe: citadas algumas passagens, ficamos sabendo que as importantíssimas fontes de saber que são memória e testemunho são ali desprezadas, dando-se a entender “que quando alguém nos conta alguma coisa não há um trabalho de conhecimento” (ROCHA, 2017, p. 71). Do que resulta uma concepção de saber que, aceitas as maneiras de encarar os fenômenos relativos ao conhecimento desde a perspectiva em epistemologia contemporânea aqui adotada, faz pouco sentido — embora se adeque à causa da época.

Ao postular uma educação libertadora que parece não atentar a elementos relevantes para uma descrição minimamente adequada dos processos de conhecimento — como a participação da memória e do testemunho de outros seres humanos na construção de diferentes tipos de saber — engasta-se na obra de Freire a ideia de que “ninguém educa ninguém”. Rocha enfatiza que esta tese foi mobilizada pelo autor no contexto de abordagem da tarefa de alfabetizar adultos. Quer parecer, portanto, que uma reterritorialização da tese para “pensar a escola, o currículo e o conhecimento em outros níveis que não o da alfabetização de adultos” (ROCHA, 2017, p. 72) implicaria alguma mudança no modo de ver a coisa. Deveríamos nos precaver de generalizar teses situadas em contextos específicos. Para que possa o leitor ele mesmo julgar se a concepção sobre o conhecimento humano que encontramos na Pedagogia do oprimido é, como pretende Rocha, demasiadamente restrita, o capítulo “Variedades do conhecimento” mostrará, articuladas, uma gama de distinções conceituais. Vendo este capítulo como uma sorte de “introdução à epistemologia para fins de desenho curricular”, e dado o atual contexto de discussões sobre o que é e como se faz currículo, talvez seja este um dos momentos mais importante de todo o livro. Para Rocha, os critérios de classificação das formas de conhecer, a que já me referi acima e que recebem uma organização gráfica bastante simpática (cf. Rocha, 2017, p. 82), devem ser incorporados ao léxico dos desenhistas de currículos. Isso se justifica na medida em que se aceita a adequação deste gênero de taxonomia diante da tarefa de projeção de distintas e plurais dimensões da formação e das aprendizagens humanas (objeto de estudo da epistemologia aqui mobilizada) nos currículos escolares. A título de amostra da articulação entre epistemologia e currículo escolar proposta por Rocha, ofereço abaixo uma importante passagem deste capítulo final da primeira parte:

A noção de conhecimento precisa de um esclarecimento simples e importante. Não podemos considerar o conhecimento humano apenas como o conjunto das afirmações verdadeiras sobre os diversos aspectos da realidade. O conhecimento tem muitas outras dimensões. As afirmações que encontramos nas diversas áreas de realizações e conhecimentos surgiram a partir do exercício de habilidades e procedimentos duramente conquistados ao longo da história da humanidade. O conhecimento não é apenas produto, é antes de tudo um processo, e a Pedagogia, de modo coerente com essa compreensão, não é um misto de teoria e prática acompanhada de consciência política. A capacidade profissional de intervenção do pedagogo não é adquirida apenas pelo estudo de teorias; ela surge da combinação disso com a formação de uma capacidade de julgamento e avaliação de situações particulares. Essas habilidades surgem no contexto de uma formação por meio de situações de conhecimento por familiaridade, ligadas ao desenvolvimento da capacidade de saber-fazer. (ROCHA, 2017, p. 85)

Além de servir também para que não se acuse o autor de proclamar uma monarquia do conhecimento proposicional, vale destacar que esta passagem participa de um argumento crítico de certas estratégias de estudo sobre currículo de teor sobremaneira sociologizante e descontrutivista, de que a Pedagogia do oprimido é exemplar. Em geral, para Rocha, elas consistem na desidratação de considerações de ordem metateórica que são imprescindíveis para bem situar e realizar o que pretendem — desmantelar as edificações erguidas a partir de nefastas relações de poder e saber, “construções sociais de x ”. Nelas também se encontra um uso “de descrições homogeneizadoras e estereotipadas da ‘ciência’, do ‘ocidental’, da ‘objetividade’, da ‘neutralidade’.” (ROCHA, 2017, p. 85) Isso posto, não é de se espantar a baixa atratividade de muitos debates sobre currículo e pedagogia no Brasil para o público do campo filosófico: enquanto a fenomenologia do conhecimento e da ciência que perpassa as estratégias desconstrucionistas permanecer tão precária como nos apresenta Rocha, parece que nosso destino guarda forte tendência a seguirmos patinando em discursos dotados de tanto sentido quanto a maior parte das experiências escolares cotidianas — sobre as quais, sabemos, incidem elementos que por óbvio ultrapassam os temas de QNE, que afinal não é um livro sobre a dimensão política da escola. Somente leituras tortuosamente motivadas podem esperar deste livro mais do que ele pretende fornecer: uma perspectiva em estudos curriculares que, posicionando o estudioso em primeira, e não mais terceira em pessoa, favoreça o resgate de uma mística mínima para a escola.

2 SOBRE A SEGUNDA PARTE: EPISTEMOLOGIA, CURRÍCULO, E UM CHAMAMENTO

Após noventa páginas de abertura, e precedida por uma parábola que conta sobre o início da derrocada da hierarquização das disciplinas no currículo escolar, a segunda parte de QNE se dedica a fazer o que apontou como ausente nas estratégias anteriormente criticadas: refletir, em perspectiva de segunda ordem, sobre as relações conceituais que mobiliza em seus argumentos. Assim, os dois capítulos desta parte do livro tematizam, o primeiro, as relações entre o campo da epistemologia e o campo do currículo; o segundo, os modos como a noção de interdisciplinaridade floresceu nos documentos e nos debates sobre desenho curricular — como solução algo mágica para o fenômeno do “professor fragmentado”. Vejamos quais os principais pontos de cada capítulo.

Em “Currículo e epistemologia”, Rocha retoma algumas questões já abordadas em outros momentos de sua obra,9 descrevendo os bons frutos que uma interação entre estas duas áreas pode gerar para ambas e, em especial, para as práticas de desenho e realização de currículo. Resgatando as perspectivas sobre currículo apresentadas anteriormente (currículo como iniciação e como mensagem ou narrativa daquilo que valoramos como passível de transmissão às novas gerações), o autor reconhece a evidência de que as práticas curriculares são objeto de disputas que envolvem a tentativa de “chegar a acordos sobre os aspectos centrais de nosso reservatório curricular” (ROCHA, 2017, p. 93). Tal reconhecimento calibra, por meio de um contraste, os aspectos sociológicos dos fenômenos curriculares com os aspectos primordiais, os que implicam “uma teoria do conhecimento, ligada ao papel da escola como uma instituição comprometida com o que temos de melhor.” ( Loc. cit .).

Da parte da epistemologia, Rocha a descreve novamente utilizando a categoria da narração: “é o estudo do conhecimento — daquilo que contamos como conhecimento, sua natureza, fontes, limites, formas etc.” ( Idem , grifos meus), e segue esclarecendo que os problemas da epistemologia são tão polimorfos quanto as variedades já exploradas. Tais problemas e variedades incluem, em um polo, temas ligados ao papel de formalismos de ordem lógica na estruturação de certos conhecimentos e, no oposto, temas vinculados aos aspectos políticos e sociais das diferentes formas de saber. Os dois campos nomeados com as palavras “epistemologia” e “currículo” podem andar juntos sem estranheza:

Isso parece ser cada vez mais necessário, na conjuntura em que vivemos, diante das muitas propostas de intervenção no currículo escolar: as pressões para a introdução de conteúdos sobre criacionismo e ensino religioso, as polêmicas sobre a base curricular nacional e as propostas de mordaças na escola. Nessa hora fala-se sobre muita coisa e pouco sobre os critérios conceituais que devem presidir as decisões de desenho curricular, menos ainda sobre a penúria de nossa cultura pedagógica, curricular e avaliativa. (ROCHA, 2017, p. 94)

Oportuna, a lembrança da aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) que se segue a esta passagem não nos deixa esquecer que, a despeito das rupturas e dificuldades que vivemos, este livro participa do esforço em continuar e qualificar os debates sobre educação no país. O PNE renovou as pressões anteriores para que se pratique interdisciplinaridade nas escolas, o que supõe planejadores “boa noção das características dos domínios da experiência e do conhecimento que serão alvo do currículo” ( Idem ). Ocorre que planejar currículos interdisciplinarmente articulados exige muito mais do que tem sido feito — vide o exemplo das duas primeiras versões da BNCC para o Ensino Médio, claramente confeccionadas sem qualquer sinal de contato entre diferentes interfaces disciplinares. Diante destes fatos, e das sugestões até aqui colocadas em QNE, aparece um conjunto de nove “perguntas singelas”, das quais destaco as que dizem respeito ao tipo de unidade curricular que se pode supor, à organização curricular de diferentes disciplinas ou saberes (ou seja, dadas as disciplinas de que dispomos, pode-se deduzir uma organização implícita do currículo ou qualquer critério organizacional é externo às disciplinas?), à compreensão da estrutura conceitual de cada disciplina , e de suas relações.

Um dos esclarecimentos mais importantes no que diz respeito ao tema da interdisciplinaridade no currículo é elaborado na segunda seção deste capítulo. Trata-se da distinção entre um nível avançado, dito “de pesquisa”, e um nível mais elementar, propriamente escolar. Vale destacar que para Rocha, independentemente da perspectiva assumida, qualquer empreitada interdisciplinar precisa, por manutenção de sentido, reconhecer o respeito pelo conhecimento disciplinar. A não ser que se retorne a algum ideal absolutista de unificação dos saberes, parece que a famigerada fragmentação dos conhecimentos precisa ser recolocada, e avaliada, em seu devido lugar.

Enquanto a interdisciplinaridade à serviço da pesquisa tem a ver com o desenvolvimento de explicações de fenômenos tão complexos a ponto de exigir a associação de disciplinas existentes (e às vezes mesmo a criação de novos campos de saber, como observa Olga Pombo)10, a interdisciplinaridade a serviço da escola “é uma tarefa curricular e didático-pedagógica”:

É curricular porque pode ser antecipada nas fases de macroplanejamento, é didático-pedagógica porque sua realização efetiva na escola depende da mobilização de vontades particulares, da sensibilidade aos contextos de aprendizagem e da subordinação aos objetivos formacionais. Pense aqui, como exemplo, nas relações de dependência conceitual entre a matemática e a física, ou entre habilidades de argumentação e domínio da língua: não aprendemos a argumentar adequadamente no vazio conceitual. O interdisciplinar escolar não entra em conflito com as disciplinas e tampouco é uma panaceia contra a falta de unidade do saber e a fragmentação dos conhecimentos. Por vezes a gente esquece que “disciplina” também quer dizer “ter cuidado”. (ROCHA, 2017, p. 95)

A última observação, associada ao reconhecimento de um fato conhecido por quase todos os educadores do Brasil — o que de não somos habituados a trabalhar como equipes — o que se segue até o final do capítulo é uma reflexão instigante acerca do conceito de transmissão (lembra-se aqui do desprezo de Freire pela narração como transmissão), posto que as disciplinas escolares passam e ser vistas como “rizomas de realizações e curiosidades humanas” (ROCHA, 2017, p. 96) que merecem e devem ser transmitidas, ou traduzidas,11 para aqueles que se iniciam no mundo através da escola. Reconhecendo que os processos de transmissão de tais rizomas culturais não são passíveis de formulações canônicas satisfatórias, Rocha termina por considerar o currículo como sendo “para a educação, como um roteiro ou guião, com a diferença importante de que temos que contar a história” (ROCHA, 2017, p. 97). Este, por assim dizer, “dever curricular” deriva, na perspectiva de Rocha, de sua concordância com a filósofa que tão bem abordou o tema do caráter conservador da educação — Hannah Arendt.

O capítulo seguinte, segundo e final desta parte do livro, nos conta como e por quais motivações os documentos oficiais trazem à tona a demanda por ações curriculares interdisciplinares e contextualizadas. A história é complicada e repleta de matizes, os quais apenas insinuarei aqui. Em primeiro lugar, cabe destacar como um exemplo de complicação (por vagueza) conceitual o texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), de acordo com o qual as disciplinas escolares figuram no currículo como passos a serem superados por uma esperada — e entretanto jamais circunscrita ou positivamente caracterizadas — interdisciplinaridade. Em seu “segundo afloramento”, nas Orientações Curriculares Nacionais (OCN), a questão da integração e da articulação no currículo passa a ser tratada, mostra-nos a análise de Rocha, por meio de verbos como relacionar, conectar, vincular, sem no entanto diferenciarem-se os modos como propostas de inter, trans, e outros gêneros curriculares se diferenciam entre si com relação a tais ações. “As expressões surgem como um rol de reis assírios, sonoras, belas, mas magras” (ROCHA, 2017, pp. 103-4). A imagem sugerida nesta passagem certamente faz referência ao princípio de organização curricular já criticado em EFC, o princípio do presépio . De acordo com este princípio, que por inércia seguimos quase todos, cada professor, em cada escola, traz para o currículo aquilo que consegue, sem jamais se perguntar pelo que trazem os demais como contribuição para as aprendizagens dos estudantes. Após seis páginas de uma detalhada análise do modo como se compreende a interdisciplinaridade nas OCN (“O mistério da multiplicação das áreas do conhecimento”), Rocha aborda o desejo de “Resgate do uno” — exemplificado num documento de orientação curricular do estado do Rio Grande do Sul. O capítulo termina com a sugestão de que uma das melhores maneiras de evidenciar a penúria de nossos debates sobre o assunto é a defesa da tendência, autorizada por documentos como o que por último foi analisado, a uma eventual democracia epistemológico-curricular (a postulação radical de uma igualdade de direitos entre todas as disciplinas escolares, refletida na distribuição igual de horas semanais). Para sustentar a legitimidade desta evidência, o autor retoma pontos já trabalhados, como a necessidade de escrutínio de importantes pressuposições conceituais das nossas conversas sobre currículo:

Tal crença na igualdade democrática das disciplinas implicaria um conjunto adicional de crenças sobre a natureza e o papel delas no crescimento e na formação humanas. Ora, estaríamos aí no núcleo duro de uma discussão de epistemologia e currículo, no início de uma longa conversa sobre a natureza dos conhecimentos, habilidades e competências que queremos promover na escola. (ROCHA, 2017, p. 110).

Nesse ponto o leitor poderia com razão reclamar do caráter algo evasivo da sugestão de discussão sobre as relações entre epistemologia e currículo. Gostaríamos de ver como elas se refletiriam ou desdobrariam, por exemplo, em negociações sobre distribuição de horários de diferentes disciplinas, ou em discussões sobre a presença compulsória de distintas disciplinas no currículo escolar — discussão de relevância fundamental após a publicação da Lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, que modifica substancialmente a estrutura curricular do Ensino Médio e seus meios de financiamento.12

Aproveitando a referência à situação atual, é oportuno ressalvar as perguntas inicialmente propostas nestas notas, relativas a um fato reconhecido no documento da ANPEd: a falta de diálogo entre gestores, formuladores de currículo (mais especificamente a BNCC — que, não custa lembrar, não é um currículo ) e os especialistas que constantemente criticam os moldes e conteúdos das iniciativas propostas em distintos documentos oficiais. Propus, então, uma leitura de acordo com a qual QNE é um esforço, eminentemente acadêmico , em responder à pergunta pela possibilidade de explicar esta falta de diálogo de modo crítico e positivo. O livro de Rocha poderia, e talvez mesmo deveria, ser lido como proposição de caminhos, alternativos ao hegemônico na academia brasileira, de diálogo entre os que tomam decisões políticas acerca da educação, os professores e gestores no chão da escola e os pesquisadores em educação. Em tempos de rupturas como as que vivemos, esta não é uma tarefa de pouca valia — embora possa ser entendida por alguns como inadequada concessão ao campo inimigo. Foi em razão desta possibilidade interpretativa — além, é claro, do que se pode identificar como estrito caroço da proposta — que, também nas notas introdutórias a este texto, caracterizei QNE como um livro contracorrente. Se o leitor com nada mais concordar, fica ao menos um chamamento para a continuidade da prosa, que se adverte cedo ou tarde inevitável: precisamos falar sobre currículo.

3 SOBRE A TERCEIRA PARTE: POR OUTRA CULTURA CURRICULAR

Feita álbum, a reunião de lembranças de que é composta a parte final de QNE organiza-se em cinco partes, ou variações, sobre os principais temas abordados anteriormente. Como explicitação de pressupostos, o final do livro atesta a legitimidade da descrição fornecida ainda na em sua Introdução, como “caderneta de campo muito pessoal” do professor Ronai.

Autorizada pela consideração de que o que foi dito até aqui serve suficientemente como descrição do contexto e da estrutura do livro — e também por julgar que estas descrições funcionam como chamado à leitura do texto aqui anotado — não apresentarei com o mesmo detalhamento os capítulos de sua parte final. O que ofereço ao leitor, a partir de agora, é uma avaliação do livro, condensada em algumas perguntas que incidem menos sobre o que nele é dito, e mais no que ele pode nos mostrar.

Começo pelo que está posto no capítulo “Quarta série de lembranças”, em que se discute com mais fôlego o tema da interdisciplinaridade escolar a partir da postura de respeito às disciplinas. Para Rocha, vivemos em um clima conceitual pautado por muitos especialistas do esfarelamento curricular, no qual ocorre um “triplo jogo de faz de conta”. Nele, manter as disciplinas implica fragmentações já insuportáveis; a escola deve visar a unificação destes fragmentos; e as áreas de saber são, ainda assim, unidades pedagogicamente operacionais. Juntos, estes três elementos tornam a situação conceitualmente insustentável, pelo seguinte:

Em primeiro lugar, a diversidade de disciplinas não é o resultado de caprichos burocráticos. Ela expressa apenas o fato trivial que cada uma das disciplinas tradicionais é uma faceta peculiar da curiosidade humana, com suas características e nuances. Em segundo lugar, não podemos confundir os anseios por um sentimento de unidade na vida de cada um de nós com a fantasia de uma unidade do conhecimento. O que isso significaria: uma mesma metodologia operacional aplicada a todas as ciências? Por fim, a pesquisa sobre a integração das disciplinas em áreas, se existe, não chega nem às escolas nem aos livros. A prática usual de uma escola é a do “cada um por si”, mas isso nada tem a ver com uma suposta falta de unidade do conhecimento humano, é apenas uma falha no trabalho de formação pedagógica. (ROCHA, 2017, p. 132)

Quadro que, reconhecido, impõe a questão sobre o que fazer — especialmente com relação à formação docente nas universidades brasileiras.13 Quanto a isto, para o autor (e para esta autora), é um fato que não podemos decidir como seguir se não entendermos como chegamos até onde estamos. Nossas principais dificuldades envolvem fatores ligados à democratização do acesso à escola pública sem a devida atenção em termos de políticas de acolhimento do “novo público”, e à consequente queda de qualidade do ensino e das aprendizagens; à ênfase desmedida em leituras sociológicas e políticas das relações educacionais, em detrimento de estudos curriculares epistemologicamente tratados; mas passam também pelo fato de que, para profissionais da filosofia, é claro que a pesquisa pedagógica prática é melhor em áreas que se dedicam há mais tempo (Ciências Naturais e Matemática, por exemplo).

Além disso, a tão falada “bacharelização” dos cursos de licenciatura em filosofia constitui um dos elementos chaves neste processo, e tarda muito em ser discutida de maneira adequada entre nós — especialmente no momento em que todos os cursos de licenciatura do Brasil estão em vias de modificar seus currículos para adequar-se à já referida Lei 13.415, à Resolução nº 02, de 1º de julho de 2015 do CNE14 e à proposta, no momento ainda não divulgada, da versão final da BNCC do Ensino Médio. Sobre “As licenciaturas”, seu futuro, Rocha afirma o predomínio do ceticismo:

A formação docente que ocorre no interior das universidades ainda não encontrou um formato adequado, mas isso pouco tem a ver com boas ou más vontades . Há fatores objetivos que concorrem para isso. O principal deles é que o ciclo de afirmação dos departamentos de conhecimento básico, que são essenciais para as licenciaturas, ainda está em curso. As melhores energias institucionais ainda se concentram na fixação da identidade profissional de cada disciplina e na construção de uma rede de pós-graduação. (ROCHA, 2017, p. 137, grifos meus)

Sublinhando as ricas experiências de formação docente (inicial e continuada) possibilitadas por importantes iniciativas dos governos anteriores (seja o PIBID, Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência, agora ameaçado de extinção, o exemplo), não pareceria, ao contrário, haver muita má vontade distribuída em nossos departamentos no que tange à tarefa de formar bons professores para as escolas de nosso país?

Encerro este texto de modo um pouco abrupto, alinhavando uma avaliação do livro que pretende pensar menos o que ele faz e mais o que ele ainda pode fazer , com as seguintes perguntas:

  1. Quanto ao tipo de pesquisa que nos permitiria avaliar melhor a plausibilidade da ideia e da instauração de currículos “epistemologicamente democráticos”: o que podemos somente com os conceitos destacados neste livro?
  2. Quanto ao comprometimento dos Departamentos, em especial os de Filosofia, nas discussões sobre educação: é pouco mesmo o papel das vontades, e maior o das questões “objetivas” (consolidação das identidades dos cursos de graduação e da rede de Pós-Graduação)?
  3. Nas reformas curriculares das licenciaturas, agora em curso: como podemos aplicar o que em QNE é pensado na direção da relação com a escola? Quais adaptações são necessárias para que apliquemos as críticas feitas no livro aos departamentos alheios (de Educação) sobre nós mesmos (do campo da Filosofia)?

Comentando Tolstoi, Wittgenstein disse que a compreensibilidade geral de um tópico é, no mais das vezes, dificultada pelo que “a maioria das pessoas quer ver”. Por causa disso, seguiu, “as coisas mais óbvias podem se tornar as mais difíceis de compreender. Não é relacionada ao entendimento que uma dificuldade precisa ser superada, senão à vontade” (Wittgenstein, 2000). Dadas certas dificuldades da vontade que mui provavelmente alguns de nós enfrentarão com a leitura de QNE — sejamos ou não do campo da Filosofia — só posso lembrar das palavras de outro excelso escritor, silogizando algumas delas num adágio final: em filosofia da educação, muitas vezes, o que a lida quer da gente é coragem.15

Notas

1 Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

2 Disponível em: <http://www.anped.org.br/sites/default/files/resources/Of_cio_01_2015_CNE_BNCC.pdf>. Acesso em: 09 de novembro de 2017.

3 Valeria perguntar-se aqui pela ideia que fazem os críticos, de ontem e hoje, acerca do improviso na arte, invariavelmente acionada como modelo de prática a ser seguida pela pedagogia, em detrimento de modelos como as práticas científicas.

4 Estranha ideia, sobretudo se pensarmos, por exemplo, no caráter inevitavelmente normativo do uso de dispositivos como mapas, que servem para representar e fornecer orientação (a não ser que se deseje flanar sem rumo, mapas prescrevem os melhores caminhos a seguir dadas certas finalidades: chegar mais rápido ao destino, ou com mais segurança, ou pelo caminho mais agradável etc.).

5 O que, aliás, não só era de conhecimento de Paulo Freire, como foi levado em conta como audiência privilegiada da Pedagogia do oprimido , conforme se conta na seção “Os sectários de esquerda e de direita” (ROCHA, p. 69). A esta altura faz-se imperioso lembrar de “A educação depois de 1968, ou cem anos de ilusão”, ensaio no qual Bento Prado Jr. reflete acerca das transformações nas ideias sobre educação no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Nosso filósofo aborda então o que chamou de “descarrilamento do pensamento progressista”, alinhavando críticas similares às que Rocha concretiza em QNE no que diz respeito a aporias que a filosofia da educação brasileira deveria, já naquela ocasião, enfrentar. Que me seja permitido sugerir ao leitor sugestionado uma visita a este belo e atualíssimo ensaio.

6 Aludo em especial a um dos poucos textos deste sociólogo traduzido do inglês para nossa pátria, “Para que servem as escolas?” (YOUNG, 2007).

7 A expressão foi emprestada de Tiago Irigaray, estudante licenciatura e bolsista do PIBID Filosofia UFRGS que, sob a supervisão da Prof.ª Rúbia Vogt, realiza sua iniciação à docência no Colégio de Aplicação da UFRGS. Tiago batizou assim o efeito de práticas didáticas — atualmente sob experimentação — nas quais os alunos respondem muito positivamente às novidades conceituais que lhes são apresentadas nas aulas de Filosofia.

8 Aprender a demonstrar teoremas, mais do que aprender a calcular, é um modo de alfabetização simbólica, de aprender a manipular diagramas e figuras, usar definições, seguir regras, imaginar movimentos e testar possibilidades de percepção e raciocínio. Somente alguma sorte de cegueira diante dos prazeres estéticos e intelectuais da matemática pode engendrar qualquer desprezo por seu ensino, ou apagar as possibilidades de articulação entre práticas matemáticas e artísticas.

9 Não somente em EFC (em especial no capítulo “Estudos curriculares e filosofia”), mas também em “Qual epistemologia? Qual currículo?” (ROCHA, 2016).

10 Em um texto que serve de excelente complemento bibliográfico a esta seção, “Epistemologia da interdisciplinaridade” (POMBO, 2008). 11 Utilizo o recurso à sinonímia possível entre traduzir e transmitir a partir da constatação de similaridades positivamente relevantes entre QNE e o precioso livrinho, há pouco publicado na França, Transmettre, apprendre (BLAIS, GAUCHET & OTTAVI, 2014).

12 O texto da lei encontra-se em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2017/lei-13415-16fevereiro-2017-784336-publicacaooriginal-152003-pl.html>.

13 De todas as opiniões de especialistas recentemente veiculadas sobre este assunto, destaco uma das mais recentes, de Bernadete Gatti, disponível no link a seguir. (A manchete afirma o óbvio.):  http://epoca.globo.com/educacao/noticia/2016/11/bernardete-gatti-nossas-faculdades-nao-sabemformar-professores.html.

14 Disponível em: http://ced.ufsc.br/files/2015/07/RES-2-2015-CP-CNE-Diretrizes-CurricularesNacionais-para-a-forma%C3%A7%C3%A3o-inicial-em-n%C3%ADvel-superior.pd.

15 Agredeço aos colegas César Santos, Frank Sautter, Elisete Tomazetti, Mitieli Seixas e Rogério Saucedo, pelas diversas análises e críticas que compartilhamos na tarde de debates sobre o QNE organizada pelo Departamento de Filosofia da UFSM — algumas das quais foram incorporadas a este texto.

Referências

BLAIS, Marie-Claude & GAUCHET & OTTAVI, Dominique. Transmettre, apprendre . Paris: Stock, 2014.

POMBO, Olga. Epistemologia da interdisciplinaridade. Revista do Centro de Educação de Letras da Unioeste — Campus de Foz do Iguaçu , vol. 10, n. 1, pp. 940, 2008.

PRADO Jr., Bento. A educação depois de 1968 ou cem anos de ilusão. In: ______. Descaminhos da Educação. Pós — 68. São Paulo: Brasiliense, 1980. pp. 9-30.

ROCHA, Ronai Pires da. Ensino de filosofia e currículo . Petrópolis: Vozes, 2008.

______. Qual epistemologia? Qual currículo?. In: SECCO, Gisele Dalva (Ed.) Epistemologia e currículo: registros do II Workshop de Filosofia e Ensino . Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2008. pp. 95-132.

______. Quando ninguém educa: questionando Paulo Freire . São Paulo: Contexto. 2017.

YOUNG, Michael. Para que servem as escolas?. Educação e Sociedade . Campinas, vol. 28, n. 101, pp. 1287-1302, 2007.

Gisele Dalva Secco1 – Professora no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Brasil. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

História das Guerras – MAGNOLI (MB-P)

MAGNOLI, Demétrio. História das Guerras. São Paulo: Contexto. 2009, 478 p. Resenha de: NUNES, Renata dos Santos. A História das Guerras e Seu Reflexo nos Dias Atuais. Marinha do Brasil/Proleitura, 2016/2017.

Esta obra coordenada por Demétrio Magnoli apresenta a história de várias guerras em ordem cronológica, sob a perspectiva de diversos autores convidados. De acordo com o autor, países e fronteiras não estiveram sempre onde estão e nem sempre existiram. São portanto, reflexos da história humana, reflexos de seus atos e decisões.

O livro apresenta uma linguagem acessível ao abordar quinze dos mais importantes conflitos da história, cada um abordado por um diferente autor, apresentando mapas com as estratégias dos combates, como as guerras napoleônicas, a guerra civil americana, as invasões bárbaras, dentre outras.

Pode-se depreender que ao comparar as guerras da antiguidade com as mais atuais, as estratégias não apresentaram grandes mudanças. É bem verdade que os recursos tecnológicos são outros, porém, a tecnologia não alterou significativamente as estratégias de campo.

A obra porém, não trata apenas dos conflitos. Para trazer um melhor entendimento para o contexto do conflito, há também a análise do contexto histórico, cultural e social da época em questão. Ela traz também com riqueza o perfil dos personagens envolvidos. Ao ler o livro é possível perceber que, ao passar dos anos, o estudo e conclusões sobre um conflito é usado para justificar novas estratégias de guerras, evitando-se cometer os mesmos erros de outrora, embora isso não fosse garantia de vitória.

Após conhecer os quinze capítulos narrados pelos autores, é possível afirmar que a guerra está ligada a história da humanidade, segundo o próprio autor: “Eis o reconhecimento da guerra como componente intrínseco da política, ou seja, como fenômeno normalna vida das sociedades e dos Estados e, portanto, suscetível à análise racional ”.

O livro mostra que os conflitos não implicaram apenas em mortes e sacrifícios. É bem verdade que eles foram responsáveis pelo avanço tecnológico, científico e da própria humanidade. Sendo importante lembrar, ainda, a mistura cultural a que algumas nações viramse obrigadas a vivenciar, como exemplo entre Grécia e Roma, quando os romanos entram em contato com os povos de origem grega, os quais marcaram profundamente sua cultura.

Magnoli sintetiza que a essência do homem não mudou, ao concluir que “é apenas realista reconhecer que não somos muito diferentes dos gregos de 25 séculos atrás ”. A despeito de cada guerra ser um fenômeno singular, elas dialogam umas com as outras e segundo Magnoli “é sempre uma expressão de cultura, uma expressão condensada das formas de pensar, produzir e consumir das sociedades”. Heródoto já disse: “A guerra é o pai de todas as coisas”. Essa afirmativa que antecede a Guerra do Peloponeso é coerente com a atual situação mundial que nos faz desacreditar em paz mundial.

Renata dos Santos Nunes – 1º. Tenente da Marinha do Brasil

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História moderna | Paulo Miceli

Na introdução do livro, Paulo Miceli começa com uma divagação sobre a distância, mencionando a vagareza com a qual as notícias corriam ao longo do século XVI, mesmo que para reportar eventos grandiosos. Na sequência, o autor discorre sobre as grandes navegações, referindo-se à empreitada inicial dos portugueses na conquista de Ceuta, ocorrida em agosto de 1415. Em termos estratégicos, esta conquista implicava a posse de um “miradouro natural”, pois através dele seria possível vigiar a navegação que cruzava o estreito, na direção do Mediterrâneo e do Atlântico. A manutenção do território recém ocupado foi dispendiosa, devido ao estado de guerra constante, tornando-o pouco atrativo aos olhos dos portugueses. Em 1434, Gil Eanes foi responsável por ultrapassar o cabo Bojador, avançado rumo à tão mal afamada Zona Tórrida, que despertou temores na Antiguidade e Idade Média, por tratar-se de um limite a partir do qual as águas do mar ferviam, impossibilitando a manutenção da vida. Como bem lembra Paulo Miceli, a superação destas fronteiras possibilitava o aprimoramento do “desenho da Terra”: as novas rotas oceânicas ofereciam a possibilidade de se desbravar o desconhecido e de vencer antigos temores. Ao ultrapassar o cabo das Tormentas no ano de 1488, Bartolomeu Dias, pressionado pela tripulação que vivia maus bocados, retornou a Portugal, naufragando em sua segunda tentativa de ultrapassá-lo, no ano de 1500, comandando um dos navios da esquadra de Cabral. Leia Mais

A História Refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina – JENKINS (RTF)

JENKINS, Keith. A História Refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina. Tradução de Roberto Cataldo Costa. São Paulo: Contexto, 2014. Resenha de: ASSIS, Gabriella Lima de. Revista Territórios & Fronteiras, Cuiabá, v. 7, n. 1, jan.-jun., 2014.

Depois de publicar ao longo da década de 1990 obras que discutiram as pro-fundas mudanças pelas quais a história passou enquanto disciplina1, o historiador inglês Keith Jenkins, professor emérito da University of Chichester, escreveu uma no-va obra na qual apresentou os seus argumentos em relação ao discurso da pós-modernidade.

Segundo o próprio autor, a sua intenção nesta nova obra recentemente tra-duzida para o português com o título “A História Refigurada”2 foi apresentar para os estudantes de história que estão empenhados em “fazer história” ou prestes a isso, novos argumentos capazes de trazer frescor a uma disciplina tão antiga por meio da tentativa de refigurá-la diante das abordagens sinalizadas pelo pós-modernismo.

Existem muitas definições diferentes acerca do pós-modernismo3, porém nesta obra Keith Jenkins o compreendeu como “a era da aporia” em que o discurso da história deve ser pensado como uma estética “e não como uma epistemologia objetiva, verdadeira ou fundacional”4. Desta maneira, ao longo do desenvolvimen-to dos argumentos concatenados no livro, o autor mencionou que a sua expectativa com a escrita deste livro não foi a de superar a história pós-moderna, na verdade seu objetivo principal foi trabalhar o discurso da história na direção desse tipo de democra-cia radical e aberta, que entende a impossibilidade de instituir um fechamento histórico/historicizante total do passado, ao mesmo tempo que reconhece que suas formas refiguradas de conceber – ou seja, figurar – as coisas “nunca terão sido boas o suficiente” – e que esta é a mais desejável5.

Com uma escrita intencionalmente polêmica e muito provocativa, Keith Jenkins não omitiu que foi muito influenciado por Jacques Derrida, Hayden White e Frank Ankersmit juntamente com seus respectivos postulados teóricos durante a escrita desta obra. Sem esperar a aprovação dos mesmos, Keith Jenkins afirmou que se beneficiou pessoalmente ao ler todos eles e pretendeu de forma clara expres-sar os méritos de cada um nos três capítulos que compõe seu novo livro.

O primeiro capítulo intitulado “Tempo (s) de abertura” apresenta as contri-buições do teórico francês Jacques Derrida para o pensamento histórico. Da manei-ra como Keith Jenkins nos permite entender, a principal contribuição deste autor foi unir “a demonstração da impossibilidade do fechamento linguístico/discursivo a uma promessa emancipatória e política”6.

A idéia central deste capítulo parece ser a de demonstrar que a abertura ine-vitável proporcionada pelas perspectivas pós-modernas que Derrida ajudou a con-solidar, tem permitido releituras e reescritas do passado fazendo surgir uma história sempre refigurada. Nesse sentido, segundo Jenkins, os trabalhos de Derrida tenta-ram “mostrar, entre outras coisas, a impossibilidade de reduzir ao finito ou ao cog-noscível as infinitas possibilidades do pensar sobre o que a história pode ser”7.

Para Keith Jenkins, ser pós-modernista não é simplesmente aceitar perspec-tivas em múltiplos níveis ou crer na multi-interpretação. Na verdade, da maneira como discorreu Keith Kenkins neste capítulo, o que os pós-modernos problemati-zam não é o conteúdo da história, e sim o status de sua forma.

Novamente lançando mão de Derrida, Keith Jenkins explicou que os senti-dos não são constituídos por signos/palavras autossuficientes. Na verdade, E, de fato, é essa natureza aparentemente fixa do sentido que mui-tas vezes faz com que pessoas pensem equivocadamente que há al-go essencial na linguagem… de modo que, por exemplo, alguns historiadores supõem a existência de algo intrínseco no nome da história que a isentaria de receber sentidos e conotações infinita-mente novos, ao invés de ver que a “história”, como todos os con-ceitos, é um “significante vazio”8.

Ainda no primeiro capítulo Keith Jenkins trabalhou as idéias de “indecidibi-lidade da decisão” e de “aporia” de Derrida, cujas implicações na história podem ser compreendidas na medida em que enxergamos que o passado nada contém de valor intrínseco, nada a que tenhamos de ser leais, nenhum fato que tenhamos que encontrar, nenhuma verdade, problema ou tarefa a resolver, na verdade somos nós que decidimos sobre essas coisas9.

No segundo capítulo chamado “Ordem (ns) do dia” Keith Jenkins demons-trou como pode ser libertador para os historiadores a idéia pós-moderna de que não exista um método histórico ou uma epistemologia que não seja problemática.

Partindo dessa vez das contribuições do teórico norte-americano Hayden White, Keith Jenkins explicou que assim como o passado e a história, os fatos tam-bém são construções interpretativas. Para ele, “isso não significa negar a realidade dos acontecimentos passados, mas argumentar que eles não importam até receber significação no discurso”10.

Neste capítulo Keith Jenkins pode explicar o cerne do pensamento de Hayden White que o tornou um adepto dos pressupostos da história pós-moderna. Para ele, White considera axiomático que as hitsórias – especialmente as história narrativas (embora, provavelmente, todas as histórias se-jam narrativas em suas estruturas gerais) – sejam basicamente fictí-cias. Ou seja, embora possam querer dizer a verdade e nada mais que a verdade sobre seus objetos de estudo e sobre o que recolhem do arquivo, os historiadores não têm como narrar suas descobertas sem recorrer ao discurso figurativo11.

Ainda neste capítulo, Keith Jenkins falou sobre como o holandês Frank An-kersmit partiu de algumas idéias elaboradas por Hayden White para formular a noção de história como proposta, como apresentação e não como representação. Do ponto de vista de Jenkins seria possível concluir que para ambos os teóricos, o mais importante na escrita dos historiadores não está no nível do enunciado mas no da apresentação textual proposta, é esta que estimula o debate historiográfico. Des-ta forma a história seria sempre tão inventada (imaginada) quanto encontrada.

Em “Começar de novo: das disposições desobedientes”, o terceiro capítulo apresentado no livro, Keith Jenkins defendeu uma atitude que podemos considerar pós-moderna. Sem oferecer um mapa ou modelo de ação, o autor faz um elogio as análises históricas que celebram o caráter falho do fechamento.

Em sua análise o pós-modernismo pode ser entendido de maneira positiva por parte dos historiadores profissionais. Do modo como Keith Jenkins escreveu neste capítulo, o pós-modernismo não é uma espécie de moda, tão pouco pode ser resumido como uma interpretação pluralista. Para o autor, O pós-modernismo, como se entende positivamente aqui, é a ob-tenção de uma atitude, uma disposição militante, radical, que fra-giliza não apenas o conteúdo, mas também as formas gramaticais das histórias modernistas sem uma pitada de nostalgia, e oferece, em seu lugar, em suas novas gramáticas e atos de atenção, novas formas de mostrar “o antes do agora” ainda não concebido12 Por fim o autor acrescentou ainda o que ele denominou de “Coda”, para di-zer a respeito das principais implicações do seu pensamento histórico apresentado ao longo desses três capítulos que compuseram a sua nova obra. Firmando os seus posicionamentos bem como as idéias das quais partiu para escrever “A História Refigurada”, Keith Jenkins encerra fazendo algumas afirmações não menos polê-micas que certamente servem para aguçar e incentivar novas produções sobre o assunto.

Jenkins concluiu seu texto dizendo que “a ruptura entre as histórias moder-nas e pós-modernas não é uma ruptura epistemológica”13, a modernidade e a pós-modernidade são mundos diferentes, “todas as histórias são, portanto, do tipo esté-tico, que os pós-modernos levam ao nível da consciência”14.

De maneira geral podemos dizer que neste novo livro, Keith Jenkins estabe-leceu uma avaliação das principais questões levantadas pelo conhecimento históri-co nos últimos anos. Ele defendeu que grande parte dessas questões impactantes para a prática histórica permanece em aberto. Por meio de uma escrita instigante, Jenkins tratou da pós-modernidade trazendo à tona novas reflexões que servem tanto para professores quanto para alunos interessados pelas discussões sobre o pensamento histórico.

1 Cf. Rethinking History (1990) [ A História repensada]; On “What is History!” From Carr and Elton to Rorty and White (1995); The Postmodern History Reader (1997) e Why History! Ethics and Postmodernity (1999).

2 O título original da obra é Refiguring History: New Thoughts on an Old Discipline, trata-se de uma pu-blicação da Routledge de 2003.

3 Entre os teóricos que buscaram uma definição da temporalidade pós-moderna podemos citar: LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. 5ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998; JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. 2ºed. São Paulo: Ativa, 2004; BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; MUNS-LOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, 2009.

4 JENKINS, Keith. A História Refigurada: novas reflexões sobre uma antiga disciplina. Tradução de Ro-berto Cataldo Costa. São Paulo: Contexto, 2014, p. 103.

5 Ibidem, p. 14.

6 JENKINS, KEITH. op. cit. p. 48.

7 Ibidem, p. 33.  8 Ibidem, p. 36.

9 Keith Jenkins, op. cit. p. 46.

10 Ibidem, p. 65.

11 Ibidem, p. 67.  12 Keith Jenkins, op. cit. p. 97.

13 Ibidem, p. 100.

14 Ibidem, p. 101.

Gabriella Lima de Assis – Universidade Federal de Mato Grosso. Programa de Pós-graduação em História Av. Fernando Corrêa da Costa, nº 2367 – Bairro Boa Esperança – Cuiabá – MT – 78060-900 E-mail: [email protected].

 

A escravidão no Brasil | Jaime Pinsky

Diversos são os trabalhos que abordam a escravidão imposta aos africanos no Brasil. Tal temática tem sido objeto de estudo tanto dos historiadores como também dos profissionais vinculados a outras áreas como, por exemplo, Sociólogos, Antropólogos e estudiosos de disciplinas afins que, por sua vez, se debruçaram e estão debruçando-se sobre o referido assunto. Com o intuito de trazer uma nova contribuição para o estudo relacionado à escravidão africana no país tropical foi lançada, em 2011, pela editora contexto, a 21ª edição da obra, “A Escravidão no Brasil”, de Jaime Pinsky.

Doutor e livre-docente pela USP e professor titular da UNICAMP, Pinsky revisou a obra em análise e, após sucessivas edições e os mais de cinquenta mil exemplares vendidos, relançou-a incluindo os recentes resultados inerentes às pesquisas feitas sobre o assunto. Além do prefácio à nova edição, o livro é composto por quatro capítulos os quais recebem as seguintes denominações: Ser escravo; O escravo indígena; O escravo negro e Vida de escravo. Sendo que, ao final da obra, o autor oferece algumas sugestões de leituras inerentes ao tema. Leia Mais

História da América Latina / Maria Ligia Prado

O espaço reservado à história da América Latina em editoras de livros didáticos e acadêmicos – assim como da África – tem se ampliado no decorrer dos últimos anos. Parte do resultado deve-se ao empenho de professores-pesquisadores dessa área, que têm empreendido inúmeros esforços para que os brasileiros conheçam melhor os fatos, personagens e processos que compõem a rica narrativa histórica dessa região tão complexa e diversificada em termos tanto geográficos quanto culturais. Embora essa realidade esteja se configurando, ainda é perceptível a ausência de trabalhos que sejam, além de acessíveis a públicos distintos, também, confiáveis, sob o ponto de vista histórico, teórico e metodológico.

A obra História da América Latina é parte integrante da Coleção “História na Universidade”. A larga experiência de pesquisa e de ensino na área de História da América de suas autoras, Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino Soares, ambas, docentes-pesquisadoras da Universidade de São Paulo, confere legitimidade ao trabalho. Dividido em doze capítulos a publicação é composta por um panorama amplo de temas, privilegiando aqueles mais recorrentes nos cursos de graduação de História, na disciplina de América Latina.

Respeitando os protocolos próprios do ofício do historiador – leitura crítica das fontes, conhecimento sólido da bibliografia e emprego das ferramentas teóricas e metodológicas (p.9) –, as pesquisadoras demonstram cautelas necessárias na análise das conjunturas históricas e ações dos múltiplos sujeitos ali tratados. Distanciam-se, por exemplo, de armadilhas traiçoeiras, como dividir personagens em dois campos opostos e simplistas, que oscilam entre a “heroicização” e a “demonização”.

O leitor não encontrará análises e discussões metodológicas sobre as múltiplas fontes citadas – não é a proposta. Contudo, ao tratarem sobre os temas, fazem frequentes referências a romances, textos de imprensa, filmes, ensaios, memórias, cartas, imagens (pinturas, fotos), músicas e filmes que foram explorados – de forma crítica e aprofundada – por elas e/ou outros historiadores, noutros trabalhos nos quais se debruçaram sobre grandes questões da América Latina, analisando tais documentações. Algumas dessas pesquisas são relacionadas, no fim da obra, como indicações de leituras.

Prado e Soares fazem questão de ressaltar a dificuldade e, ao mesmo tempo, a urgência da ênfase às especificidades no trato das histórias dos países latino-americanos. Dessa forma, ao tratarem das temáticas, embora busquem estabelecer conexões entre os respectivos contextos históricos, contemplando experiências que transcenderam fronteiras nacionais, demonstram sérias preocupações em marcar as diferenças que caracterizaram a história de cada Estado nacional. Frente à impossibilidade de abordarem todos os temas e países de forma equânime, optaram por alguns enfoques com o formato “box”, de modo que certos temas e trajetórias biográficas foram analisados separadamente. Alguns deles: as independências do Haiti, do México e de Cuba; Reforma Universitária de Córdoba, de 1918; escravidão na América Espanhola; os conflitos políticos na região do Rio da Prata; a guerra entre México e Estados Unidos, a Guerra no Pacífico e suas implicações e um recorte biográfico de Eva Perón.

Sobre o Brasil, “parte da América Latina” – como gostam de sublinhar –, pode-se afirmar que não foi tomado como alvo de reflexões específicas. No entanto, as pesquisadoras traçaram uma narrativa paralela, travando aproximações com os demais países, desde o processo de colonização ibérica, as lutas por independências políticas, a formação dos Estados nacionais, chegando até o século XX, com assuntos ligados às Ditaduras Civis-Militares.

Optaram por iniciar o texto historicizando a denominação “América Latina”. Ali, já fica evidenciado o quanto a origem e difusão do termo trouxeram, no seu bojo, variados interesses – externos e internos – que estiveram presentes no tabuleiro das pelejas políticas e ideológicas. São colocadas em discussão as apropriações e manipulações do conceito bem como as disputas envolvendo interesses expansionistas, considerando os campos de atuação e influência por parte da Europa – naquele momento, França, em especial. Merece atenção a vertente mais recente, que considera que “[…] a denominação não foi imposta, mas cunhada e adotada conscientemente pelos latino-americanos, a partir de suas próprias reivindicações […].” (p. 9)

Ao abrirem o livro com o tema das identidades, tão caro aos pesquisadores da área, a América Latina é apresentada como um cenário marcado por complexas estratégias da parte de atores e interesses em disputa que se travaram (e se travam) no cenário geopolítico e cultural. Textos ensaísticos clássicos, bastante conhecidos por estudiosos da área são mencionados, com o intuito de dar uma dimensão do quanto a região tem uma história vibrante, além de mostrar os embates identitários em jogo. Entre outros, Nuestra América, do cubano José Martí, Carta de Jamaica, do venezuelano Simon Bolívar ou Ariel, do uruguaio Enrique Rodó.

As Independências Latino-americanas, um dos “grandes temas” de América, mereceu destaque e a análise considerou as dificuldades inerentes à difícil arte da conciliação de interesses, as disputas e visões divergentes de líderes políticos e grupos sociais que compuseram a trama que marcou o longo e complexo trajeto de luta. Não foi omitido o registro dos sentimentos díspares de líderes que, como Simón Bolívar ou Bernardo de Monteagudo conviveram com esperanças e desencantos ao longo do processo.

A “guerra” de símbolos, a construção de representações e discursos identitários, em disputa pelos sujeitos históricos, também estiveram presentes no momento da formação dos Estados nacionais, processo longo, marcado por inúmeros avanços e recuos na história de cada um dos povos da região. Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino Soares deixam evidenciado, na escrita, o quanto o processo envolveu embates de forças antagônicas que evidenciaram dissensos regionais articulados em torno de duas forças principais: Liberais e Conservadores ou, no caso argentino, “Unitários” e “Federalistas”. Cada um dos grupos é bem examinado, de forma que o leitor possa entender os seus horizontes políticos e as razões de suas disputas.

O tema da “Modernidade” perpassa alguns capítulos, sendo entrelaçado, especialmente, com a temática da identidade nacional. Ao abordarem-no, não negligenciam as necessárias distinções entre conceitos relacionados (modernização e modernismos). No campo da Educação, enfatizam projetos culturais colocados em prática pelos governantes, em associação com artistas e intelectuais. Com campanhas de alfabetização e outras ações, eles buscavam “elevar” o nível cultural e técnico de grupos subalternos, preparando-os para as necessidades e exigências da “modernidade”. A leitura de artistas e intelectuais frente aos esforços de governantes e elites econômicas para engendrarem a modernização, não passou ao largo da análise. Seja quando esses artistas se referiam às mudanças, dando conotações positivas ou quando se manifestaram, denunciando os custos sociais e humanos que as inovações técnicas, o “desenvolvimento” alteraram as relações de grupos com a terra e com o trabalho.

Sobre o papel da Igreja Católica no imbricado jogo das questões políticas, em vez de simplesmente reforçarem a atuação da instituição ao lado de grupos conservadores que desejaram, desde a Colonização, a manutenção do status quo de grupos dominantes, bem como de antigos privilégios e prerrogativas assegurados a ela (educação, posse de terras), Maria Ligia Prado e Gabriela Pellegrino exploraram as complexidades do papel desempenhado pela instituição, no contexto latino-americano. Ressaltam, claro, que sendo a Igreja altamente hierarquizada esteve, em inúmeros contextos, ao lado de grupos dominantes, usando de ideologias religiosas para dissuadir os rebeldes. No entanto, lembram que figuras atreladas ao universo religioso nem sempre estiveram do lado conservador, mas se destacaram em momentos importantes, como nas lutas pela Independência, atuando ao lado dos “rebeldes”, abraçando causas sociais de movimentos populares. Casos emblemáticos foram os curas Miguel Hidalgo e José María Morelos, que lideraram o primeiro movimento pró-emancipação do México em relação à Espanha, em 1810. A rebelião alimentou esperanças, ao proclamar o fim da escravidão negra, o fim do pagamento de tributos indígenas e propor a distribuição de terras – inclusive da Igreja –, contando, assim, com a adesão de indígenas e camponeses. Pela radicalidade contida no movimento, nessa fase inicial, logo foi sufocado e seus líderes executados.

Ao contemplarem numerosos temas, explorando um amplo recorte cronológico que foi do século XVI – marco do processo colonizador – até o século XX, incluíram múltiplos atores sociais que participaram dos eventos citados e narrados. Além dos “grandes vultos”, que se tornaram conhecidos pela liderança exercida nos movimentos políticos, outros sujeitos e suas formas de ações foram contempladas pelas autoras: soldados anônimos, intelectuais, negros, mulheres, indígenas, camponeses e operários. Vale ressaltar que não foram esquecidas as diversas formas com as quais aqueles que ocuparam o poder – no plano interno e externo –, em fases distintas da História, lidaram com as demandas dos grupos reivindicantes. Assim como em determinados momentos esses grupos não se privaram de usar a força para reprimirem duramente as demandas, em outras circunstâncias, viram-se obrigados a ceder, fazendo uso do diálogo e das negociações, desenhando, assim, novas configurações nas relações de poder.

Conceitos como “caudilhos” e “populismo”, usualmente utilizados erroneamente em determinados textos e contextos relacionados à América Latina, não compõem o repertório da escrita da obra. Este último, por exemplo, tão recorrente em segmentos da imprensa quando se referem a algumas lideranças latino-americanas, foi evitado pelas autoras, por entenderem-no “demasiadamente genérico, eclipsando as particularidades nacionais” (p. 131). Em vez disso, optaram por tratar de “políticas de massas”, discutindo ações de lideranças carismáticas de alguns países latino-americanos (anos 1940 e 1950), que se mostraram capazes de manter a ordem, num período em que as classes populares lutavam por ganhar espaço no cenário político e exigiam reformas. Sob a égide do Estado, uma série de mudanças ocorreram e as formas de ações desses governantes variaram entre reformas que concederam direitos sociais, propaganda, cooptação e, também, repressões.

Dois movimentos revolucionários ocorridos na América Latina, no século XX, mereceram maior atenção em História da América Latina: a Revolução Mexicana e a Cubana. Em comum, o fato de imprimirem novos contornos na ordem estabelecida, tanto no plano interno, quanto externo. A do México, por ter sido a primeira do século, antes mesmo que a Russa, ocorrida em 1917, quase uma década após a da América. Também, por seus desdobramentos políticos, culturais e sociais, envolvendo novas configurações nas relações de gênero, leis de reforma agrária, nacionalizações de bancos e empresas estrangeiras. A de Cuba, além de alguns desses aspectos, pelas consequências produzidas no cenário latino-americano. Uma delas e a mais crítica, por tornar-se símbolo de luta contra o imperialismo norte-americano. Sob o temor de que outras nações latino-americanas seguissem o “mau” exemplo cubano, redundou no apoio do “irmão do Norte”, os Estados Unidos, na implantação das ditaduras.

A partir dos anos 1960, tempos de “Guerra Fria”, quando duas ideologias dominantes provocavam polarizações no globo, os países da América Latina coincidiram no compartilhamento de experiências políticas de regimes autoritários. Com intervalos maiores ou menores e com distintos graus de repressão, guardam feridas abertas em diversos países, inclusive no Brasil. Não mais são denominadas simplesmente como “militares”, mas “civis-militares”, posto que, sabidamente, contaram com o apoio da parte significativa de forças conservadoras da sociedade civil – empresários, imprensa, Igreja, cidadãos comuns. São apresentadas, na obra, como resposta ao alto grau de mobilização de alguns setores em países latino-americanos naquele momento: sindicatos, partidos de esquerda, ligas camponesas, guerrilhas indígenas ou movimentos estudantis. Chile, Nicarágua, Peru, Paraguai, Argentina, Brasil, Uruguai, Bolívia, El Salvador são contemplados nessa questão, ressaltando-se as especificidades de cada caso.

“Cultura e Política”, além de ser abordagem presente durante todo o livro é, também, o título do último capítulo. A imagem da “Orquestra Sinfônica Simón Bolívar”, composta por 180 músicos venezuelanos que tocaram na Sala São Paulo, em 2013, foi a estratégia utilizada para encerrar a obra, focando a América Latina Contemporânea. O resultado visto na apresentação em São Paulo teve sua origem em 1975, por meio da iniciativa de um musicista-economista que, como outras iniciativas colocadas em prática na América Latina, ao longo do século XX, buscou difundir acesso gratuito à cultura – nesse caso, educação musical – promovendo inclusão social e cultural a jovens e crianças provenientes de meios populacionais carentes.

A música como intervenção social foi motivo para reflexões, colocando a ênfase do capítulo sobre a Nueva Canción, movimento artístico e político que articulou nomes da música de alguns países no engajamento de oposição aos governos militares, nos anos 1960 e 1970. O pano de fundo serviu para evidenciar o quanto, em diversos momentos e contextos, a circulação de ideias e o compartilhamento de experiências contribuíram para que latino-americanos se articulassem em utopias e perspectivas de transformações sociais e políticas.

O contexto latino-americano das últimas décadas, marcado por cenários de ascensão de mulheres ao andar mais alto da política; a chegada ao poder de governos “progressistas” em alguns países, avanços sociais e, por sua vez, numa perspectiva ainda mais recente, as reações de grupos conservadores às mudanças colocadas em prática; a apresentação de possibilidades de recomposição das relações de Cuba com os Estados Unidos são fatos que conferem à obra uma relevância ainda maior, já que os leitores terão condições de compreender melhor o diálogo entre passado e presente.

História da América Latina atende, portanto, às expectativas e necessidades de um público bastante amplo – acadêmico ou não. Aos “iniciantes”, o prazer da leitura de uma obra na qual poderão embarcar no horizonte histórico (político e cultural) latino-americano, conduzidos pela experiência de duas pesquisadoras sérias que decidiram compartilhar parte do seu fascínio por essa região do globo. Aos “iniciados”, a satisfação de terem contato com uma narrativa histórica livre de voluntarismos e anacronismos, comuns a algumas obras que, essencialmente comprometidas com o aspecto comercial, são lançadas no mercado editorial vendendo-se como “guias”, isto é, como promotoras de um suposto e ilusório contato com a “verdadeira” história da América Latina. Sem tais pretensões, a obra resenhada cumpre a função de atender a estudantes e professores que queiram e necessitem acesso a abordagens e interpretações fundamentadas, oferecendo importante contribuição no que concerne à construção do conhecimento histórico crítico.

Romilda Costa Motta – Doutora pela Universidade de São Paulo. Professora do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-SP). São Paulo, Brasil. E-mail: [email protected].


PRADO, Maria Ligia; SOARES, Gabriela Pellegrino. História da América Latina. São Paulo: Contexto, 2014. 206p. Resenha de: MOTTA, Romilda Costa. A História da América Latina sob perspectiva crítica. Outros Tempos, São Luís, v.13, n.21, p.285-290, 2016. Acessar publicação original. [IF].

Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil | José de Souza Martins

Junho de 2015, programas televisivos e notícias na internet trazem as últimas manchetes policiais do dia: polícia “desfila” em carro aberto com suspeitos de matar PM na Paraíba. Nas imagens, a população local se aglomera neste “ato público” de punição aos “delinquentes”. A impressão é que todos se sentem empoderados pela “justiça”. Numa das cenas, um dos participantes, após esboçar uma careta, desfere um “cascudo” em um dos indivíduos já detido e, portanto, sobre a tutela da polícia – e do Estado. Talvez esses “delinquentes” jamais seriam devidamente processados, assim a “justiça popular” precisaria ser minimamente garantida, pelo menos constrangendo o sujeito.

Casos semelhantes, cada vez mais comuns em nosso país, embasaram o estudo do sociólogo José de Souza Martins em sua mais recente obra “Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil” (Editora Contexto, 2015), na qual o autor se debruça sobre relatos de 2028 casos de linchamentos, comprovados ou tentados, nos últimos 60 anos, além do aprofundamento de dois estudos de caso. O livro é dividido em três partes: na primeira oferece uma análise sociológica quantitativa e qualitativa dos dados levantados com riqueza de detalhes; na segunda enfoca a relação dos linchamentos com a simbologia da morte; e na terceira oferece uma visão crítica de sua fonte de dados. Leia Mais

Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil | José de Souza Martins

Junho de 2015, programas televisivos e notícias na internet trazem as últimas manchetes policiais do dia: polícia “desfila” em carro aberto com suspeitos de matar PM na Paraíba. Nas imagens, a população local se aglomera neste “ato público” de punição aos “delinquentes”. A impressão é que todos se sentem empoderados pela “justiça”. Numa das cenas, um dos participantes, após esboçar uma careta, desfere um “cascudo” em um dos indivíduos já detido e, portanto, sobre a tutela da polícia – e do Estado. Talvez esses “delinquentes” jamais seriam devidamente processados, assim a “justiça popular” precisaria ser minimamente garantida, pelo menos constrangendo o sujeito.

Casos semelhantes, cada vez mais comuns em nosso país, embasaram o estudo do sociólogo José de Souza Martins em sua mais recente obra “Linchamentos: a Justiça Popular no Brasil” (Editora Contexto, 2015), na qual o autor se debruça sobre relatos de 2028 casos de linchamentos, comprovados ou tentados, nos últimos 60 anos, além do aprofundamento de dois estudos de caso. O livro é dividido em três partes: na primeira oferece uma análise sociológica quantitativa e qualitativa dos dados levantados com riqueza de detalhes; na segunda enfoca a relação dos linchamentos com a simbologia da morte; e na terceira oferece uma visão crítica de sua fonte de dados. Leia Mais

A Segunda Guerra Mundial: História e estratégias – MASSON (CTP)

MASSON, Philippe. A Segunda Guerra Mundial: História e estratégias. São Paulo: Contexto, 2011. Entre operações e táticas: mais uma história sobre a Segunda Guerra Mundial. Resenha de ASSIS, Raquel Anne Lima. Cadernos do Tempo Presente, São Cristóvão, n. 13, p. 76-78, jul./set. 2013.

Sintaxe para a educação básica. Com sugestões didáticas, exercícios e respostas | Celso Ferrarezi Júnior

Embora intitulado “Sintaxe para a educação básica”, o livro de Ferrarezi Jr. é destinado aos professores e aos demais interessados no conhecimento explícito da gramática da frase do português brasileiro.

O livro é dividido em seis momentos, quais sejam, Introdução, Para começar a jornada, A organização da língua, Os diferentes tipos de sintagmas, Os tipos de frases e Uma conversa final. Além disso, as respostas dos exercícios propostos são apresentadas ao final destas seções. Leia Mais

Os argentinos – PALACIOS (RTA)

PALACIOS, Ariel. Os argentinos. São Paulo: Contexto, 2013. Resenha de: SILVA, Gabriela Resendes. A singularidade do povo argentino na obra de Ariel Palacios. Revista Tempo Amazônico, Macapá, v.1, n.1, p.101-103, jan./jun., 2013.

A obra Os Argentinos de Ariel Palacios apresenta ao leitor traços de um povo e de uma nação, abordando desde assuntos como política e crises econômicas à culinária e aspectos da vida cotidiana do país. O livro, que integra a coleção “Povos e Civilizações”, é um verdadeiro guia para aqueles que gostam ou tem curiosidade de conhecer melhor o nosso vizinho de fronteira.

Jornalista, brasileiro de ascendência argentina, Ariel Palacios teve sua formação inicial na Universidade Estadual de Londrina, em 1987. Fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993, e em 1995, foi para a Argentina para ser correspondente de O Estado de S. Paulo em Buenos Aires. Palacios também é correspondente do canal Globo News desde 1996.

Em Os Argentinos, encontra-se um verdadeiro leque de temas que permitem ao leitor, a partir de sua capacidade imaginária, transporta-se para a Argentina Colonial, a Argentina de Perón e Evita ou para a Argentina do tango. Essa pluralidade de temas faz-se notar no decorrer dos quatorzes capítulos da obra.

No decorrer do livro, Palacios apresenta-nos os argentinos, sem os clichês e estereótipos que costumam marcar presença na grande maioria dos relatos acerca do país. De modo que o autor além de nos apresentar nossos “hermanos”, realiza uma contextualização histórica da Argentina. Esta contextualização nos permite entender os processos ocorridos na sua história, que, por sinal, é marcada por uma forte instabilidade política e econômica.

Em Os Argentinos, o autor descreve a economia argentina como “esquizofrênica”, marcada por altos e baixos. De forma que, no país a economia está muito vinculada à política, que por sua vez, tem à frente representantes que não acreditam totalmente no sucesso econômico do país, passando assim um sentimento de insegurança para a população.

Mas, se há na política atual da Argentina políticos que passam insegurança para a população,  houve no decorrer do século XX figuras que mobilizaram as massas. São citados pelo autor como os “grandes mitos” da História Argentina. Dentre os grandes líderes, Palacios evidencia a figura de Eva Duarte de Perón (1919-1952) no imaginário do povo argentino, como a “mãe dos pobres” e de seu esposo Juan Domingo Perón (1895-1974) como grande líder político – mesmo estando morto, ainda exerce muita influência na política argentina por meio dos discursos dos novos “líderes”, que usam o que foi dito pelo ex-presidente, para legitimar sua forma de governar.

Outro assunto destacado no livro é o posicionamento da Argentina, ou melhor, de políticos argentinos em relação aos criminosos do nazismo. Muitos estudiosos acreditam que criminosos nazistas encontraram refúgio na bela e “europeia” Buenos Aires. Segundo Palacios a política e a afeição de Perón e Evita para com os ideais fascistas, teriam facilitado a entrada e permanência de figuras importantes do III Reich. Palacios destaca o forte sentimento antissemita presente em parte da população argentina, mostrando-nos que mesmo sendo o país que concentra a maior comunidade judaica da América Latina, é também a possuidora do maior número de grupos neonazistas.

O autor em meio a assuntos pesados – política, economia, mortes e torturas –, encontrou, em sua obra, espaço para falar das artes argentinas: do tango de Astor Pantaleón Piazzolla à literatura de Jorge Luis Borges; e também das riquezas gastronômicas do país, que, por sinal, gaba-se de ter inventado o doce de leite e de possuir uma carne de excelente qualidade.

Outro aspecto discorrido no livro é a língua e os diversos e corriqueiros erros cometidos entre os brasileiros ao tentarem falar o espanhol e os erros cometidos pelos argentinos ao tentarem falar com certo “jeitinho brasileiro”. Mas o que surpreende os brasileiros na leitura é o posicionamento dos torcedores argentinos em relação ao futebol e as disputas com seu grande rival, que não é o Brasil, mas sim a Inglaterra.

Assim, Palacios mostra-nos, em seu livro, a importância do futebol para os argentinos, evidenciando no decorrer da leitura, que ao contrário do que muitos pensam, o grande inimigo da Argentina não é o Brasil, mas sim a Inglaterra, por causa da Guerra das Malvinas. Sendo que além de abordar essa relação Brasil-Argentina no que se refere ao futebol, Palacios mostra que no país o futebol, a Copa do Mundo, teve um papel “curioso”, pois em meio ao terror da Ditadura Militar, todos (os contrários e os defensores do Regime) compartilhavam o mesmo sentimento, a torcida pela vitória argentina na Copa de 1978 – confirmando assim o forte sentimento patriótico que as disputas futebolistas causam na população de um país.

Por fim, ao contrário do que dizem as diversas piadas envolvendo os argentinos, e sua relação para com os brasileiros, Ariel Palacios, em sua obra, tem por intuito desfazer esse “mal entendido”, pois segundo o autor, eles nutrem pelo Brasil e por seu povo, um forte sentimento de admiração e respeito. E neste caso, segundo Palacios, a recíproca é verdadeira.

Desta forma, podemos dizer que o livro Os Argentinos, do jornalista Ariel Palacios, contem valiosas informações sobre o nosso vizinho de fronteira. É visível o respeito que o autor tem para com a Argentina e seu povo, sendo cuidadoso ao descrever a realidade do país. Para isto ele baseou-se em obras de historiadores, escritores e reportagens. Assim, a obra é recomendável tanto para o meio acadêmico, como também para um público mais amplo e não especializado, aquele formado por pessoas que simplesmente desejam conhecer melhor o país.

Referência

PALACIOS, Ariel. Os argentinos. São Paulo: Contexto, 2013.

Gabriela Resendes Silva – Graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe. Bolsista do Programa de Educação Tutorial do Curso de História (PET/UFS). E-mail: [email protected].

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Análise e produção de textos | Leonor Werneck Santos e Rosa Cuba Riche

Conhecida por publicar livros de especialistas destinados a orientar e a capacitar professores de línguas e estudantes de Letras e Pedagogia nas recentes inovações de teorias e práticas linguísticas, a coleção LINGUAGEM & ENSINO lançou no ano de 2012 o livro “Análise e produção de textos”, da autoria de Leonor Werneck Santos, Rosa Cuba Riche e Claudia Souza Teixeira. A obra tem como principal objetivo instrumentalizar o professor de Língua Portuguesa (LP) do ensino fundamental (EF) a contemplar as três práticas centrais de linguagem sugeridas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN): leitura, produção textual e análise linguística.

O livro foi escrito por três autoras conceituadas no âmbito da pesquisa sobre ensino de LP e Literatura no Brasil. Leonor Werneck Santos é doutora em LP pela UFRJ, onde leciona desde 1995. Rosa Cuba Riche é doutora em Teoria da Literatura pela UFRJ. É professora de Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Práticas de Ensino desde o ano 2000. Claudia Souza Teixeira é doutora em Língua Portuguesa pela UFRJ. Atualmente é professora de LP, Literatura Infantil e Juvenil e de Metodologia da Pesquisa do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ). Todas têm vasta experiência tanto em sala de aula como professoras de língua, quanto em cursos de formação inicial e continuada de docentes, além de publicações de livros e artigos na área de linguística aplicada ao ensino de LP. Leia Mais

A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX – MARTINS (HH)

Teoria da história; Historiografia; Século XIX.

 

MARTINS, Estevão de Rezende (org.). A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010, 256 p. Resenha de: BENTIVOGLIO, Julio. Entre a história e o cânone: a ciência histórica oitocentista e seus textos fundadores. História da Historiografia. Ouro Preto, n. 8, 175-18, abril 2012.

É deveras conhecida a relação intrínseca entre a produção do conhecimento histórico e sua dimensão narrativa. Desde Aristóteles (1989) esta dimensão tem sido pensada em maior ou menor grau por diferentes teóricos e historiadores, de Luciano de Samósata (2009) a Paul Ricoeur (1994). Muito já se escreveu sobre o fato de que a história além de ciência é arte – tal como no célebre texto de Leopold von Ranke, que integra a coletânea aqui resenhada – visto ser ao mesmo tempo reflexão, pesquisa e método, mas, também, escritura.

O que dá forma e confere sentido a todo e qualquer estudo sobre o passado brota da pena dos historiadores, do modo como refiguram os acontecimentos através de narrativas com começo, meio e fim; cujas ações encontram-se ordenadas em torno de uma intriga. Vista sob este ângulo, a ciência histórica e por conseguinte toda a historiografia integram um vasto e instigante conjunto de textos, dentre os quais alguns se destacam, pela qualidade de suas proposições, por sua abordagem, pelo modo como abarcam seu objeto, enfim por sua natureza distintiva.31 O campo da teoria da história, que reúne reflexões epistemológicas, discussões sobre o método, sobre a história da historiografia ou a respeito das filosofias da história, não é indiferente a isso e dele, frequentemente, emergem textos canônicos. Textos que se tornam modelares no conjunto das obras históricas, que são reconhecidos como tal pelos praticantes do ofício. Assim, também os historiadores, em diferentes épocas, reconhecem a presença de seus textos clássicos. Entenda-se aqui um clássico como uma obra especial, um modelo exemplar, uma narrativa que reúne enorme potência criativa, expressando de maneira particular as possibilidades cognoscitivas e estéticas de seu tempo e que, além disso, torna-se referência obrigatória a exercer, direta e indiretamente o que, parafraseando Harold Bloom, poderíamos chamar de angústia da influência (cf. BLOOM 1995). Como negar o peso da tradição rankeana nos estudos históricos? Como não localizar em Buckle, por exemplo, momento vetorial na historiografia anglo-saxã? Autores como estes provocam e estimulam o debate epistemológico posterior, decisivamente. Em outras palavras, clássico seria todo texto cuja capacidade de produzir reflexão impressiona por sua longevidade, atraindo e desafiando leitores. O século XIX, por ser o século no qual se constituiu a disciplina da historiografia no sentido contemporâneo do termo (MARTINS 2010, p. 4), quando se estabeleceu a ciência histórica autônoma, apartada da filosofia e da literatura, foi, não por acaso, bastante pródigo em nos oferecer obras canônicas que constituíram um primeiro corpo de regras e normas para o ofício do historiador, configurando um momento estratégico para se pensar o surgimento da História como um novo saber (cf. BENTIVOGLIO 2009, p. 8-11). É sobre este momento que se debruça esta obra pioneira no Brasil, organizada pelo professor titular de teoria da história na Universidade de Brasília (UnB), Estevão de Rezende Martins – A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX, publicada em 2010.

Membro da direção da Comissão Internacional de História e Teoria da Historiografia, ao lado de Georg G. Iggers, Charles-Olivier Carbonell, Jörn Rüsen, Hayden White e Frank Ankersmit, o professor Estevão Martins reuniu um pequeno conjunto de renomados pesquisadores brasileiros que se dedicam ao estudo da teoria da história para analisar alguns dos textos fundadores da ciência histórica oitocentista europeia, a maioria deles sem tradução em português e outros que já tinham sido traduzidos, mas jaziam em revistas de difícil acesso e pequena tiragem. Iniciativa pioneira entre nós,2 que repete o êxito de obras similares e inspiradoras como The varieties of history de Fritz Stern (1973), lançada originalmente em 1956 nos Estados Unidos, ou ainda Theories of history lançada em 1959 por Patrick Gardiner (2004), que, como se observa, ilustram uma anterioridade significativa. Em solo brasileiro, deve-se mencionar a pequena coletânea organizada por Maria Beatriz Nizza da Silva, Teoria da história lançada em 1976. De qualquer modo, ao contrário da comunidade anglo-saxã, não havia no Brasil a publicação de coletâneas que integrassem a tradução de textos seminais no campo da teoria da história oitocentista, apresentados e discutidos por especialistas. Só isso bastaria para destacar sua importância e sublinhar o mérito da obra em tela. Mas o caráter representativo, em que pese algumas ausências, dos autores e textos selecionados diz muito sobre o estado do campo naquele período. Nesse sentido, não seria ocioso reconhecer o peso da tradição historiográfica germânica na composição do cânone histórico durante o século XIX, bem como nesta coletânea de Estevão Martins: dos dez textos clássicos reunidos, sete são oriundos daquele universo. À primeira vista, portanto, ressalta-se a virtude incontestável deste livro, ao brindar pesquisadores, estudantes e interessados nos estudos históricos em conhecer momentos altos da reflexão historiográfica ocidental, com textos que constituíram os fundamentos da teoria e da metodologia histórica contemporâneas, tratando-se, portanto de obra essencial e obrigatória. Convite mais que justificado para sua leitura.

Não resta dúvida de que Thomas Carlyle, Johann Gustav Droysen, Ernst Bernheim, Wilhelm von Humboldt, Theodor Mommsen, Karl Lamprecht, George Macaulay Trevelyan, Burckhardt, Leopold von Ranke e Thomas Buckle são altamente representativos do momento de definição de um novo campo do saber, em que ocorreu um verdadeiro renascimento dos estudos sobre o passado, na virada do Iluminismo para o Romantismo, por meio de um diálogo fecundo com o historicismo, no qual a reivindicação da pesquisa e da crítica de fontes originais se coadunou com a formulação de princípios teóricos e métodos de abordagem, que conferiram um caráter científico à história (MARTINS 2010, p. 10).

Embora não seja obra exaustiva na seleção de textos e autores representativos daquele processo, A história pensada vale não somente por reunir alguns textos fundamentais, mas, sobretudo pela qualidade analítica das apresentações que situam e discutem aqueles mesmos textos. Sua leitura permite que se faça a conexão dos progressos vividos pela historiografia durante o século XX tendo em vista o diálogo e os contrastes produzidos face à historiografia do século anterior. Outro aspecto favorável do livro reside no fato de seu organizador ter escolhido fragmentos de obras e determinados textos que estabelecem um claro diálogo entre si, lendo-os vislumbra-se um conjunto de preocupações mais ou menos comuns e constantes que são compartilhadas entre os diferentes historiadores oitocentistas. Primeiro ao indagar sobre o que é e como se faz a história. Segundo ao levantar questões que ainda hoje recebem atenção, referentes ao sentido do passado, sobre a peculiaridade do objeto da investigação histórica, sobre o método histórico e, por fim, sobre a natureza da escrita da história.

Ao se debruçar sobre o século da história, em que ocorreu formação das primeiras escolas históricas, vislumbra-se a possibilidade efetiva de localizar um processo de institucionalização daquele saber, que se consolida e se autonomiza como um lugar no interior dos estudos acadêmicos, através do surgimento de inúmeras cadeiras de história nas universidades europeias.

Institucionalização que é acompanhada por outros elementos fundadores, criando espaços de poder em meio à sociedade, detectados em seu reconhecimento pelos Estados, seja mediante sua adesão aos nacionalismos triunfantes, seja através da ocupação de cargos importantes no interior dos governos – muitos historiadores foram ministros, conselheiros, diretores de academias científicas, administradores dos arquivos e instituições de memória.

Esses lugares são acompanhados por um renovado interesse de publicação e leitura de obras históricas. Ou seja, materializam um processo no qual um tipo de saber se configura como um poder, parafraseando Michel Foucault (2002), ao criar uma nova disciplina acadêmica que efetiva dispositivos de validação de seu discurso científico reconhecidos e acolhidos pelos historiadores, que passam a adotá-los e praticá-los, aderindo a determinados regimes de autoridade e de escrita da história.

os mestres do ofício e que configurarão, através do conjunto de artigos publicados e das diretrizes editoriais impostas, uma verdadeira fisionomia para os estudos históricos, indicando alguns traços que permitem reconhecer linhas de força, características e grupos mais influentes, dentre outros aspectos. Nesse sentido, vale a pena lembrar que o século XIX conheceu importantes escolas históricas: como a escola liberal (whig) inglesa, a escola romântica francesa, a escola histórica alemã e suas multifacetadas subcorrentes, em especial a escola histórica prussiana, além da escola metódica francesa de Gabriel Monod e seus discípulos. Evidentemente, este recurso classificatório não se faz sem dificuldades, haja vista a existência de determinadas escritas da história que se inspiram em outros modelos, como é o caso da historiografia portuguesa e sua adesão ao realismo literário que, de certo modo, inspirou Adolpho Varnhagen no Brasil5 ou ainda de alguns historiadores que não se vinculam, pelo menos sem tensão, àqueles regimes de escrita e modelos de abordagem, como é o caso de Karl Lamprecht, por exemplo.

Destacando-se determinados textos que informam caminhos de leitura e de método, constitui-se uma tradição de leituras de ordem teórico-metodológica, com suas diretrizes e reflexões, que se tornam clássicas. E, como afirma Italo Calvino, um clássico é uma obra que nunca termina aquilo que quis dizer, são livros “que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessam” (CALVINO 2001, p. 15). Eles estabelecem uma linhagem, uma genealogia. E são leituras que nos trazem surpresas, que oferecem descobertas, ou ainda nas palavras daquele autor: O clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes descobrimos nele algo que sempre soubéramos (ou acreditávamos saber), mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro (ou que de algum modo se liga a ele de maneira particular). E mesmo esta é uma surpresa que dá muita satisfação, como sempre dá a descoberta de uma origem, de uma relação, de uma pertinência (CALVINO 2001, p. 12).

Assim, como não reconhecer a linhagem historicista nos textos apresentados nesta coletânea em que se evidencia uma forte tradição germânica, observada desde a agenda proposta por Humboldt e Ranke, passando pelas definições teórico-metodológicas de Droysen e Bernheim que se desdobram de maneira lírica em Burckhardt e agônica em Lamprecht? Como não vislumbrar, tal como as discussões promovidas na obra levam a sentir, ou promover a refutação do mito de uma historiografia positivista tanto nos metódicos alemães, quanto em Buckle, em torno da questão do fato histórico? Estas são constatações que surgem tanto nas apreciações críticas introdutórias dos colaboradores, quanto na leitura dos próprios textos desta coletânea. Elas revelam, entre outras coisas, de que maneira aqueles historiadores relacionavam, em suas obras, de maneira complexa, empiria e pragmatismo. Compreender estas questões torna-se tarefa imprescindível para se compreender as críticas posteriores que lhes são feitas, por exemplo, pelos fundadores dos Annales aos metódicos franceses – como Gabriel Monod ou Victor Seignobos, os quais, infelizmente, não figuraram neste volume.

Renato Lopes, professor na Universidade Federal do Paraná, abre o livro com sua apresentação sobre Thomas Carlyle (1795-1881), historiador escocês marcado pelo recurso à retórica e com um estilo primoroso de escrita, que propunha “uma mistura peculiar entre o histórico e o literário, o biográfico e o heroico, o figural e o literal, o histórico e o mítico” (MARTINS 2010, p. 18). Fato compreensível visto ele ter iniciado sua carreira exercendo a crítica literária. Dos românticos alemães e da literatura passou a redigir obras históricas, devotadas às ações de figuras destacadas como Cromwell, Luis XVI, Goethe, ou seja, preservando a mística em torno dos heróis, considerados como uma encarnação do universal. Segue-lhe a tradução de Sobre a história de 1830 e Sobre a história, outra vez de 1833, onde são feitas digressões inspiradas a respeito da relação entre os fatos e a escrita da história, sobre as ações humanas e seus sentidos possíveis, nas quais aquele autor revela que “o evento mais relevante é talvez o que de todos é o menos comentado” (MARTINS 2010, p. 27). De modo semelhante a Ranke, Carlyle postula a existência de uma história universal que não deve desprezar as existências singulares, a homens “cuja vida heroica fora outrora uma nova revelação e um novo desenvolvimento da própria vida. Homens, cuja vida heroica fora um bem comum” (MARTINS 2010, p. 29).

Arthur Assis nos apresenta Johann Gustav Droysen (1808-1884), cuja tradução do texto de 1868, Arte e método ficou a cargo de Pedro Caldas. Devo salientar que esta feliz junção, reuniu os dois maiores conhecedores daquele historiador alemão no Brasil. Lamentavelmente ainda pouco conhecido entre nós, Droysen foi, ao lado de Ranke, um dos maiores historiadores do século XIX e sua obra representa um ponto de convergência metodológica central para boa parte da historiografia germânica posterior. Nas palavras de Assis, A originalidade da teoria da história de Droysen decorre da sua inusitada síntese de filosofia da história, teoria do conhecimento, metodologia, e teoria da historiografia. Tal síntese foi concebida por Droysen no contexto da autonomização da História enquanto disciplina acadêmica nas universidades alemãs (MARTINS 2010, p. 33).

O mérito maior da Historik, obra fundamental daquele autor, reside na clareza com que postula um método e um objeto específico para a história, contrapondo-a aos estudos filosóficos e às ciências naturais. Essa particularidade seria depois desenvolvida pela análise de Wilhelm Dilthey, quando funda as ciências humanas ou do espírito, propondo-lhes um método específico: a compreensão (Verstehen) (DILTHEY 2010). Em Arte e método, Droysen busca demonstrar as tensões e os limites entre a ciência e o diletantismo, este último muito comum naqueles estudiosos do passado que não haviam recebido formação de historiador.

Estava claro para Droysen que o conhecimento da crítica histórica, desenvolvida em Göttingen e materializada na História romana de Barthold Niebuhr era obrigatório. Ao mesmo tempo, ele criticava a presença dos modelos retóricos estrangeiros, tão apreciados pelos alemães. E acentuava a necessidade de se valorizar o lado científico, metodológico e empírico dos estudos históricos.

Ernst Bernheim (1850-1942) e seu Metodologia da ciência histórica de 1908 são apresentados e traduzidos, novamente, por Arthur Assis. Bernheim é famoso por seu Manual do método histórico, publicado em 1889, que serviu de modelo e inspiração para o famoso manual de Langlois e Seignobos de 1898.6 Valorizando o cultivo à erudição e à crítica histórico-documental, Bernheim foi um dos pioneiros na produção de um livro especificamente devotado ao método histórico, filiado à tradição de Johan M. Chladenius e de Johann G. Droysen.

Nele se esforça para sublinhar a relação entre o método de abordagem e a síntese (Auffassung) analítica dos fatos. Esta conexão, já tinha enlevo nas reflexões de Humboldt e Ranke, afinal, “tudo está conectado”, diz este último (MARTINS 2010, p. 67). Singularidade e universalidade, confiabilidade e incerteza, recurso à comparação, desafio ao ceticismo e ao relativismo são ainda momentos importantes do referido texto, cuja tradução é mais que bem-vinda.

Pedro Caldas apresenta Wilhelm von Humboldt (1767-1835) e traduz sua famosa conferência proferida na Universidade de Berlim em 12 de abril de 1821, Sobre a tarefa do historiador. Um dos pilares do historicismo alemão, Humboldt embora tenha escrito pouco a respeito da história, ofereceu uma verdadeira agenda para a historiografia alemã. Aliás, duplamente. Primeiro ao reorganizar uma universidade que, de periférica, se tornaria um centro de excelência e uma verdadeira referência às congêneres alemãs e também europeias, situando Berlim no coração do pensamento europeu oitocentista, reservando à história um lugar destacado junto aos demais campos do saber cultivados e projetando seus mestres em toda Europa, tais como Ranke, Hegel ou Droysen e, também ao indicar o cerne da operação historiográfica: pesquisar, encontrar nexos, compreender e narrar. Humboldt não foi somente estadista, pensador e escritor, mas, sobretudo, o disseminador de um novo espírito, cujos fundamentos se localizam na pesquisa científica e na formação (Bildung) humana. Ler seu verdadeiro manifesto aos estudiosos do passado dissipa qualquer preconceito ingênuo de que os historiadores alemães apenas se limitavam a narrar os fatos como ocorreram, afinal, após a triagem dos fatos o historiador deveria buscar seus nexos, buscar a parte invisível, recorrendo à imaginação e à criatividade, partes integrantes da análise documental e da exposição do passado através da escrita.

Estevão Martins se encarrega de analisar e apresentar Theodor Mommsen (1817-1903) e seu discurso de posse na Reitoria da Universidade de Berlim em 15 de outubro de 1874, O ofício do historiador. Curiosamente mais uma vez aqui temos a confluência entre história, literatura e narrativa – esta última uma verdadeira cicatriz de origem às primeiras –, visto seu livro sobre a história de Roma ter sido agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1902, consagrando-se, duplamente, como cânone: entre literatos e historiadores. O ponto alto daquela obra é o modo como nela se urde o enredo em torno da ascensão e queda de uma figura singular da história romana: Caio Julio Cesar. E no texto traduzido se destaca, mais uma vez, a relação entre história e arte, no qual Mommsen reconhece que “o historiador pertence talvez mais aos artistas do que aos intelectuais” (MARTINS 2010, p. 109). Conforme entende Estevão Martins, a síntese entre os elementos científicos oriundos da crítica documental e o recurso à erudição com a forma da argumentação conferem à história mommseniana sua principal marca. Ou seja, A erudição se alcança, no entanto, ao longo da disciplina metódica da investigação, como projeto de vida e de inserção social e política, é a que habilita à síntese interpretativa, à narrativa histórica e historicizante, cuja riqueza estilística recorre à beleza estética da escrita para dar forma à rigidez da pesquisa das fontes (MARTINS 2010, p. 109).

Karl Lamprecht (1856-1915) e seu História da cultura e história publicado em 1910 são habilmente esquadrinhados por Luiz Sérgio Duarte, professor de teoria e metodologia da história na Universidade Federal de Goiás, na breve apresentação e respectiva tradução, embora deva ser dito que aquele historiador carece de maiores estudos e traduções, pois, representa uma verdadeira inflexão nas ciências históricas alemãs e na própria trajetória do historicismo germânico, rumo a uma nova fase. Como aponta Duarte, Lamprecht é um dos pivôs do Methodenstreit e eu diria que, ao lado de Dilthey, abriu uma nova seara para os estudos sociais e culturais, aproximando-os da psicologia social e promovendo uma interdisciplinaridade mais radical a fim de propor seu conceito de épocas culturais.

Novamente Estevão Martins aparece apresentando George Macaulay Trevelyan (1876-1962) e o seu Viés na história publicado em 1947 e traduzido por Pedro Caldas. E mais uma vez ressurge, tal como preconizava aquele influente historiador britânico, a imagem da historiografia como uma variante da arte literária, visto reivindicar a satisfação do universo de leitores, especialistas ou não, e alimentar sua desconfiança dos historiadores científicos. À sentença de morte declarada por Lord Acton em 1903, quando diz que a história não é um ramo da literatura, muito semelhante aos esforços de Fustel de Coulanges na França décadas antes, Trevelyan reivindica um retorno ao romantismo e “opera com uma noção restritiva de ciência” (MARTINS 2010, p. 135). Se a história não podia pleitear a certeza tal qual as ciências naturais, seria o caso, concorda Martins, de extrair disso a sua força. Não por acaso, definirá o viés como sendo “toda interpretação pessoal de eventos históricos que não é aceitável por toda a raça humana” (MARTINS 2010, p. 139) e afirmará que “os argumentos de Carlyle têm peso não por causa de seu viés, mas apesar dele” graças à sua à genialidade como escritor (MARTINS 2010, p. 142). Neste texto seminal, Trevelyan discute ainda temas candentes da reflexão historiográfica relacionados à objetividade, à imparcialidade, relacionando-os concretamente a grandes escritores como Gibbon, Burke, Tocqueville, Taine, Treitschke e Mommsen. Sobre estes últimos sentencia: “em vão vocês tentarão encontrar tal imparcialidade em Treitschke e Mommsen”. Ou ainda sua consideração quanto às funções do historiador: a) revelar as consequências e permanências das ações do passado no presente e b) identificar sentimentos e interesses humanos no passado, ou seja, compreender como as pessoas viviam e sentiam. De modo mais categórico: “compreender o passado em todos os seus lados” (MARTINS 2010, p. 153).

Em seguida, Cássio da Silva Fernandes, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, traduz e apresenta a introdução da História da cultura grega publicado em 1872 por Jacob Burckhardt (1818-1897), historiador que teve como aluno o futuro filósofo Friedrich Nietzsche e, em seguida a aula inaugural de seu curso de história da arte na Universidade da Basileia intitulada Sobre a história da arte como objeto de uma cátedra acadêmica publicada em 1874.

Ocioso dizer que Fernandes é o maior conhecedor da obra de Burckhardt no Brasil.7 O esforço distintivo para a narrativa histórica e sobre o melhor modo de empreender a exposição do que foi pesquisado é explicitada da seguinte maneira: Fazer a história dos modos de pensar e das concepções dos gregos é indagar quais forças vitais, construtivas e destrutivas, agem na vida grega.

Então, não em forma narrativa, porém muito mais em forma histórica – já que sua história constitui uma parte da história universal […]. O indivíduo particular e o assim chamado acontecimento serão citados aqui apenas como testemunho do universal, não por si mesmos; porque a realidade de fato que procuramos é constituída pelos modos de pensar, também estes são fatos históricos (MARTINS 2010, p. 168).

Preconizando a necessidade da erudição, de leitura dos clássicos e sem descuidar de outros tipos de fontes documentais, Burckhardt convida a discutir a relação entre particularidade e universalidade, pensando a história da civilização grega como uma seção da história da humanidade (MARTINS 2010, p. 173).

Do mesmo modo, pensa a arte como um objeto específico a ser pesquisado pelos historiadores historicamente e não apenas esteticamente.

Ponto alto da obra é o capítulo sobre Leopold von Ranke (1795-1886) de Sérgio da Mata, bem como sua tradução d´O conceito de história universal de 1831. Ali não somente encontramos o maior historiador do século XIX como também uma das melhores análises já feitas a seu respeito, desde a célebre introdução de Sérgio Buarque de Holanda (1981). Com precisão, Sérgio da Mata esmiúça e investiga aspectos centrais do célebre historiador germânico, desmistificando o mito historiográfico construído em torno de sua figura, indicando o percurso de sua formação, bem como suas principais contribuições à ciência histórica contemporânea. Dada a erudição do ensaio, por sinal o mais extenso na coletânea, seriadifícil sintetizar aqui todas suas virtudes, no entanto, forçoso é sublinhar o modo como discute o suposto apartidarismo rankeano, o problema da objetividade, bem como sua complexa faceta política como editor da Revista Histórico-Política entre 1832 e 1836. No texto traduzido, vemos uma lúcida análise de Ranke sobre o ofício do historiador e a operação historiográfica, inscrita criticamente entre o trabalho com as fontes e a exposição narrativa, entre a filosofia e a poesia, afinal “a História não é uma coisa nem outra”, dirá ele, “ela promove a síntese das forças espirituais atuantes na poesia e na filosofia sob a condição de que tal síntese passe a orientar-se menos pelo ideal – com o qual ambas se ocupam – que pelo real” (MARTINS 2010, p. 202).

Fechando a obra em grande estilo há ainda a análise de Valdei Araújo sobre Buckle (1822-1862) e sua tradução da Introdução geral à história da civilização na Inglaterra de 1857, que, de maneira semelhante a Sérgio da Mata no capítulo sobre Ranke, procura romper com o “j’accuse” de Pierre Bordieu em relação à ilusão biográfica (BORDIEU 2005). Ali vida e obra preservam liames, indicam momentos de pertenças e conexões, pois, nas palavras de Valdei Araújo “as explicações de Buckle permanecem no interior do senso comum historiográfico inglês da era vitoriana” (MARTINS 2010, p. 219), embora manifestasse também contrastes. Assim, apesar de compartilhar com a crença excessiva no evolucionismo progressista, no papel modelar da História, ou com o orgulho nacional dos historiadores escoceses, Buckle demonstra sensíveis divergências metodológicas aproximando-se do pensamento de John S. Mill e de Auguste Comte. De maneira arguta, Araújo sublinha a necessidade de uma reavaliação crítica da historiografia oitocentista e de sua heterogeneidade “encoberta por rótulos ingênuos como “tradicional, não crítica ou positivista” (MARTINS 2010, p. 219). E assevera: mesmo esses rótulos, herança de uma história das ideias muito rígida, deveriam ser substituídos por objetos mais capazes de recuperar a complexidade dos fenômenos que neles se escondem, desde a formação de tradições de linguagens político-intelectuais e de conceitos históricosociais até a montagem de instituições e ideologias. Insistir em uma história intelectual internalista e desencarnada pode ser um passatempo louvável, mas pouco contribuirá para a compreensão efetiva da formação de nosso modo de pensar e escrever a história e, por isso, em nossa capacidade de fazê-la avançar (MARTINS 2010).

Penso que essa avaliação resume o tom geral de A história pensada e confirma seu lugar ímpar dentre os livros recentemente publicados a respeito, ao trazer a lume um momento decisivo da historiografia ocidental, localizando autores e problemas fundamentais que foram transformados em clássicos pela tradição, ao mesmo tempo em que nos convida a problematizá-los e questioná- -los, mobilizando e desmobilizando sua força canônica nos labirintos da temporalidade e de sua própria historicidade, a fim de rever rótulos, mitos historiográficos e sugerir novas linhas interpretativas.

Referências

ARISTÓTELES. A poética. In:_____. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1989.

BENTIVOGLIO, J. A Historische Zeitschrift e a historiografia alemã do século XIX. História da Historiografia, n.6, p.81-101, 2011.

_________________. Apresentação. In: DROYSEN, Johann G. Manual de teoria da história. Trad. Sara Baldus e Julio Bentivoglio. Petrópolis: Vozes, 2009.

BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.

BOURDIEU, Pierre. A Ilusão biográfica. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes; PORTELLI, Alessandro. Usos e abusos da história oral. 6ª ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2005.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos? São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In:_____. A escrita da história.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.

CESAR, Temístocles. Quando um manuscrito torna-se fonte histórica: as marcas da verdade no relato de Gabriel Soares de Souza (1587). Ensaio sobre uma operação historiográfica. História em Revista, v.6, p.37-58, 2000.

DILTHEY, Wilhelm. Introdução às ciências humanas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

FERNANDES, C. S. Biografia e autobiografia na civilização do renascimento na Itália de Jacob Burckhardt. História, questões e debates, v.1, p.155- 198, 2004.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GARDINER, Patrick. Teorias da história. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2004.

HARTOG, François. Regimes d’historicité: presentisme et experience du temps. Paris: Editions du Seuil, 2003.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Ranke. São Paulo: Ática, 1981.

LANGLOIS, C.; SEIGNOBOS, C. Introdução aos estudos históricos. São Paulo: Renascença, 1946.

LUCIANO DE SAMÓSATA. Como se deve escrever a história. Belo Horizonte: Tessitura, 2009.

MALERBA, Jurandir. Lições de história. Rio de Janeiro: Porto Alegre: FGV, Editora PUC-RS, 2010.

MARTINS, Estevão de Rezende. A história pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010.

RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo I. Campinas: Papirus, 1994.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Teoria da história. São Paulo: Cultrix, 1976.

STERN, Fritz. The varieties of history. New York: Vintage Books, 1973.

WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In:_____. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994.

Notas

1 A referência explícita aqui é Hayden White (2004), ao compreender as narrativas históricas como artefatos literários, que podem ser examinadas em sua forma literária, através das modalidades de urdidura de enredo, segundo princípios estilísticos e à luz das figuras de linguagem.

2 Em seguida acompanhada pela publicação de outra coletânea também obrigatória: Lições de história de Jurandir Malerba (2010).

3 Alguns textos começam a ser vistos como modelos e consagram obras de alguns historiadores como referenciais. Naquele momento surgem também as revistas de história como mais um importante instrumento de institucionalização do campo e, consequentemente, das escolas históricas.4 Esse é o caso da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro criada em 1839, da Historische Zeitschrift de 1859, da Revue Historique de 1876 ou da American Historical Review de 1883, dentre outras. São essas revistas que irão consagrar 3 A esse respeito são exemplares as contribuições de Michel de Certeau (2002) e de François Hartog (2003), pensando o aspecto disciplinar em torno da escrita da história.

4 Em que pese a dificuldade de localizar escolas e delimitar seus integrantes a partir da criação e publicação em periódicos, ver a tentativa que fiz em relação à Historische Zeitschrift e a historiografia alemã no século XIX (BENTIVOGLIO 2011).

5 Tal como demonstra Temístocles Cezar (2000) em artigo recente.

6 Trata-se do muito citado, mas pouco lido: Introdução aos estudos históricos.

7 Àqueles que desejam iniciar-se naquele historiador, recomendo o texto pontual publicado em História: questões e debates (FERNANDES 2004).

Julio Bentivoglio – Professor adjunto Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected] Avenida Fernando Ferrari, 514 29075-910 – Vitória – ES Brasil.

História da televisão no Brasil. Do início aos dias de hoje | Ana Paula Goulart Ribeiro, Igor Sacramento e Marco Roxo

História da televisão no Brasil

Do início aos dias de hoje, como o nome diz, trata dos primórdios da televisão no Brasil, dividindo sua trajetória em décadas em seis partes, de 1950 até os anos 2000. A obra, porém, não se prende à ordem cronológica, pois tanto aprofunda temas específicos quanto discute problemas e objetos relativos à televisão pertinentes a período mais largo, tais como as telenovelas, o telejornalismo e sua interpelação pela matriz popular, os formatos híbridos, a relação com outros meios, tais como o rádio e o cinema, a formação do público e o recente processo de digitalização. O leitor pode transitar pelas seis primeiras décadas de nossa relação como esse novo meio de se comunicar, analisando, junto com os autores, a experiência audiovisual televisiva no Brasil.

Organizado pelos professores Ana Paula Goulart Ribeiro, Igor Sacramento e Marco Roxo, a publicação reúne trabalhos de 15 pesquisadores, além da participação dos próprios organizadores em dois dos capítulos. Ao mesmo tempo em que fornece um panorama geral da História da Televisão, o livro abre várias frentes. Ele permite atualizar o leitor de modo rápido, pois mapeia diferentes vertentes de estudo e ainda fornece novas ideias e abordagens para pesquisadores dedicados ao tema. Leia Mais

Formação do professor como agente letrador – BORTONI-RICARDO et al. (REi)

BORTONI-RICARDO, Stella Maris; MACHADO, Veruska Ribeiro; CASTANHEIRA, Salete Flôres. Formação do professor como agente letrador. São Paulo: Contexto, 2010. Resenha de: ARAPIRACA, Mary; BEZERRA, Raquel. Revista Entreideias, Salvador, n. 01, p. 133-137, jan./jun. 2012.

A pesquisa em Educação e Linguagem, no contexto brasileiro, tem sido de modo significativo alimentada por estudos que tematizam a leitura, desde os anos 80 do século passado, período em que se publicaram análises influenciadas pela psicologia e pelosestudos da cognição. (KLEIMAN, 1999; KATO, 1986; SILVA, 1987,1993) Essa perspectiva foi, paulatinamente, assumindo um tom mais sociológico, movimento inevitável, visto que seus corpora são em sua maioria constituídos eminstituição escolar, no cenário específico da aula de português.

Em paralelo a esse movimento, os estudos sociolinguísticos se desenvolviam no Brasil, e as noções de norma e variação linguísticas acabaram por ser considerados como categorias sem as quais não se poderia pensar o ensino-aprendizagem de português materno. Exemplo disso é a antologia de textos de pesquisadores brasileiros, organizada por Bagno, reunindo em 2002 trabalhos antigos (já publicados nas décadas de 60 e 70 do século XX) e outros elaborados em atendimento à convocação do linguista a oferecer reflexões sobre a noção de norma em dimensões variadas: O exame do conceito de norma, mesmo quando seguido do adjetivo lingüística, transpõe os limites dos domínios das ciências da linguagem, obrigando à sempre inevitável e salutar intersecção com outros campos de conhecimento, como a filosofia, a sociologia, a antropologia, a pedagogia, a história, para citar apenas os mais evidentes. Esta coletânea, me parece, mostra isso muito bem, sobretudo quando dela participam, além de uma maioria de lingüistas, pesquisadores das ciências sociais e das ciências da educação.

Nessa obra, dos dezessete artigos reunidos, se tematizam o conceito articulado a algum aspecto da educação brasileira em sua interface com a variação linguística e o ensino da língua materna.

Na reunião desses pesquisadores encontramos Bortoni-Ricardo apresentando “Um modelo para a análise sociolinguística do português do Brasil”, trabalho em que propõe que se considere o que chamou de “contínuos” no tratamento das variedades da língua falada no Brasil: o contínuo rural-urbano, o de oralidade-letramento e o de monitoração estilística. Posteriormente, e tomando por referência de análise esses continua, a autora organiza material didático para o curso Pedagogia para Início de Escolarização (PIE), sediado na Universidade de Brasília e destinado a professores normalistas da Secretaria de Educação do Distrito Federal, publicando-o em 2000 sob o título: Educação em língua materna – a sociolinguística em sala de aula, pela Parábola Editorial. Nessa obra, informa a autora, “fui fazendo uma seleção de conteúdo, principalmente nas searas da sociolinguística variacionista, da sociolinguística interacional e da etnografia da comunicação”.(BORTONI-RICARDO, 2005, p. 11) Revela-se com clareza a opção metodológica da pesquisa:

“eventos” ou “episódios” de interação linguística com falantes/informantes, registrados e transcritos, em clássico procedimento etnográfico, indicando adesão a uma vertente metodológica cuja aceitação no contexto dos estudos linguísticos não é pacífica: “a influência dos métodos etnográficos na coleta de dados para os estudos sociolinguísticos não se deu de imediato, nem tampouco é prática universal no âmbito da sociolinguística variacionista”. (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 214)

Essa decisão metodológica parece-nos indício de uma trajetória de pesquisa que, considerando o já mencionado contínuo oralidade- -letramento, tem no cenário escolar um contexto privilegiado de coleta de dados: convém salientar que o processo de urbanização no Brasil resultou em fenômeno que interessa igualmente à pesquisa sociolinguística variacionista e em educação. Bortoni-Ricardo (2005), em análise da contribuição de sua área ao desenvolvimento da educação, informa que desde a década de 70 do último século a sociolinguística assumiu a vanguarda entre as ciências sociais que tomam a questão educacional como reflexão, notadamente a vertente etnográfica de estudos sociolinguísticos educacionais e, a propósito disso, cita Cook-Gumperz (1987, apud BORTONI- -RICARDO, 2005, p. 119): O estudo de fenômenos linguísticos no ambiente escolar deve buscar responder a questões educacionais. Estamos interessados em formas linguísticas somente na medida em que, por meio delas, podemos obter uma compreensão dos eventos de sala de aula e, assim, da compreensão que os alunos atingem. interesse reside no contexto social da cognição, em que a fala une o cognitivo e o social.

É, pois, na perspectiva dos procedimentos etnográficos que analisamos Formação do professor como agente letrador, obra de Bortoni-Ricardo em parceria com Machado (mestre e doutora em educação e professora da Educação Básica) e Castanheira (pedagoga, atuante na formação de professores do ensino fundamental). A publicação se destaca por convergir práticas de pesquisa linguística etnográfica, princípios teóricos do sociointeracionismo discursivo, uma metodologia de ensino da leitura e análise de procedimentos didáticos que a tradição escolar trata como disciplinas. A proposição fundamental do trabalho é que a leitura é uma arquicompetência e que, por conseguinte, todo professor é um agente de letramento, de modo que lhe cumpre a tarefa de desenvolver as competências relativas à compreensão textual.

Parece fácil postular esse princípio do lugar epistemológico dos estudos linguísticos. É necessário considerar, no entanto, que a atuação docente na educação básica é um trabalho em que as fronteiras disciplinares precisam dissolver, recíproca e solidariamente, seus limites. O ensino da leitura é indício do que se afirma aqui.
Precisamente por essa razão, Formação do professor como agente letrador se inicia propondo uma “pedagogia da leitura”, ao tempo em que apresenta uma análise cuidadosa dos dados estatísticos revelados pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), instrumento oficial do governo cuja série histórica se inicia em 1990,e do Indicador de Alfabetismo Funcional, o INAF, do Instituto Paulo Montenegro. Os dados analisados resultam de procedimentos de avaliação que não concernem a conhecimentos de uma disciplina, mas de uma competência interdisciplinar por princípio.

A obra apresenta, no segundo capítulo, o que chama de matrizes de referência para a formação e o trabalho do professor como agente de letramento (p. 19 e seguintes), com dois conjuntos de descritores: o primeiro, elaborado pelas autoras na perspectiva da sociolinguística educacional, detalha competências relativas ao exercício docente das séries iniciais do ensino fundamental, com ênfase em alfabetização e letramento, mas preservando caráter multidisciplinar, uma vez que não se confinam práticas de letramento em compartimentos disciplinares; o segundo conjunto, baseando-se no Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA), descreve habilidades cognitivas relativas ao “ler para aprender”, e enumera procedimentos do trabalho de compreensão leitora de textos que apresentam diferentes formas de conhecimento – considerando-se a classificação adotada por Schneuwlye Dolz (2004), o “ler para aprender” identifica-se ao domínio social da transmissão e construção de saberes – preservando o princípio da leitura como arquicompetência interdisciplinar.

Para o agenciamento do letramento que cabe ao professor de toda e qualquer disciplina, as autoras apresentam, no terceiro capítulo, a noção de mediação pedagógica na compreensão leitora.

A essa altura, vêm à cena os protocolos de leitura, isto é, descrição minuciosa e microanálise de episódios de interação verbal entre professor e aluno(s), cujos turnos de fala são integralmente transcritos (marcados em sequência numérica, na ordem em que ocorrem) e pontualmente interrompidos por comentários analíticos feitos pelas autoras-pesquisadoras. Na base dessas análises está a noção de andaimagem (de “andaime”), do inglês scaffolding, “conceito metafórico que se refere a um auxílio visível ou audível que um membro mais experiente de uma cultura pode dar a um aprendiz”, evidentemente apoiada em Vygotsky, mas igualmente referenciada na sociolinguística interacional. (BORTONI-RICARDO; MACHADO; CASTANHEIRA, 2010, p. 26) O quarto capítulo expõe princípios de procedimento pedagógico muito semelhante ao do capítulo terceiro, mas sob a designação “leitura tutorial”, e provoca certo estranhamento, visto ser essencialmente uma repetição do anterior, na perspectiva da interação professor/aluno, mas acionando outras noções, como as de níveis de proficiência leitora e estratégias de leitura. Os capítulos cinco, seis e sete, designados “Aplicação da proposta de leitura tutorial como estratégia de mediação” e numerados de um a três, tem modo de exposição do procedimento distinto dos protocolos de leitura, isto é, são mais descritivos e injuntivos que analíticos.

O capítulo oito retoma a metodologia etnográfica primeiramente apresentada e, introduzidas as noções de letramento científico (“maneira de o sujeito raciocinar sobre os fatos científicos e as práticas sociais de conhecimento científico”) e alfabetização científica (“aprendizagem dos conteúdos, domínio da linguagem científica, memorização de terminologias”), passa a sistematizar alguns resultados de pesquisa que investigou contribuições da sociolinguística à introdução ao letramento científico em séries iniciais da escolarização básica. Os quatro capítulos restantes são protocolos de aula transcritos como o protocolo de leitura do capítulo terceiro, e são designados “Etnografia de uma prática de letramento científico”, numerados de 1 a 4.

A obra não apresenta nenhum comentário ou esclarecimento ao leitor sobre as diferenças entre os procedimentos de análise que apresenta, provavelmente porque tenha em vista mais ser uma referência didática para o trabalho de leitura em qualquer conteúdo curricular que um tratado sobre pesquisa sociolinguística e seus métodos. De qualquer modo, é um exemplo bem sucedido do caráter multidisciplinar e da vocação etnográfica da pesquisa em Educação, que tem na instituição escolar pública um cenário capaz de fornecer dados valiosos e úteis à compreensão da sociedade brasileira e sua transformação.

Referências

BAGNO, Marcos. Lingüística da norma.São Paulo: Edições Loyola, 2004.

BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolingüística na sala de aula. São Paulo: Parábola editorial, 2004.

_____. Nós cheguemu na escola, e agora? Sociolingüística e educação.

2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

KATO, Mary. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

KLEIMAN, Ângela. Oficina de Leitura: teoria e prática. Campinas, SP: Pontes Editora da Unicamp, 1989.

SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquim. Gêneros orais e escritos na escola. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.

SILVA, Ezequiel Theodoro da. Elementos de Pedagogia da leitura.

São Paulo: Martins Fontes, 1993. ______. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova Pedagogia da leitura. São Paulo: Cortez, 1987.

Mary Arapiraca – Universidade Federal da Bahia. E- mail: [email protected]

Raquel Bezerra – Universidade Federal da Bahia. E- mail: [email protected]

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A história escrita. Teoria e história da historiografia | Jurandir Malerba

A teoria da história é mais do que apenas um pensamento sistemático sobre a História e sua escrita; a narrativa história se mostra, cada vez mais, complexa, por suas tensões entre fatos e ficções, verdade e imaginação, objetividade e subjetividade, fontes documentais e as retóricas do discurso; a historiografia não é apenas o discurso circunstanciado sobre as obras históricas, mas fixa-se, cada vez mais, em todo discurso sobre o passado. O que a coletânea de textos organizados por Jurandir Malerba nos mostra, em resumo, é um ‘fazer história’ mais denso e articulado, com as questões de nosso tempo.

Ao reunir as contribuições de Horst Walter Blanke, Massimo Mastrogregori, Frank Ankersmit, Jörn Rüsen, Angelika Epple, Masayuki Sato, Arno Wehling, Hayden White e Carlo Ginzburg, nos oferece uma mostra do resultado dos debates das últimas décadas a respeito da história da historiografia, da teoria da história, da epistemologia histórica, quanto ao princípio de realidade, ao gênero, a comparação e a narrativa. Para ele:

O critério principal para a seleção dos textos que constituem a presente obra foi a intenção de compor um painel, o mais amplo possível, dos campos problemáticos presentes na construção de uma teoria da historiografia, com vistas ao aprimoramento prático de uma revigorada história da historiografia. Nesse sentido, os textos […] reunidos oscilam da reflexão teórica acerca do conceito de historiografia para a reflexão crítica de uma epistemologia da história, passando necessariamente pelas potencialidades e limites metodológicos que cada caminho apresenta. Tratam-se, como é notório, de autores consagrados do pensamento histórico contemporâneo, provenientes das mais distintas tradições nacionais e simpatias teóricas.[1]

Para articular tais textos, o autor os posicionou em quatro blocos, a saber: a) os de que “o foco recai primordialmente sobre o conceito de historiografia e o estatuto teórico do texto historiográfico”, como se vê no texto de Blanke, Mastrogregori e de Arkersmit; b) “por ensaios com propostas mais teórico-metodológicas para o campo da história da historiografia propriamente dita”, como nos casos de Rüsen, Sato e de Epple; c) “discussão teórica da prática historiográfica para o campo da epistemologia”, em que se apresentam Wehling; d) e, no último “seria quase um exemplo das implicações políticas do exercício historiográfico, que tomamos propositadamente no exemplo-limite da história do Holocausto”, por meio do debate entre os textos de White e Ginzburg.

Além dos textos ora indicados, a coletânea ainda é enriquecida com o capitulo de Malerba, que indica os principais eixos das discussões sobre teoria e história da historiografia ocorridas no século passado. Para ele, haveria, sem dúvida, uma tensão entre, de um lado, o “anti-realismo epistemológico, que sustenta que o passado não pode ser objeto do conhecimento histórico ou, mais especificamente, que o passado não é e não pode ser o referente das afirmações e representações históricas”[2] , e, de outro, o “narrativismo, que confere aos imperativos da linguagem e aos tropos ou figuras do discurso, inerentes a seu estatuto linguístico, a prioridade na criação das narrativas históricas.”[3] Em ambos os casos, a pesquisa histórica esteve ancorada em matrizes, senão frágeis, ao menos em constante pressão, e com necessidade de justificação perante as outras áreas do saber. Mas, o “caráter auto-reflexivo do conhecimento histórico talvez seja o maior diferenciador da História no conjunto das ciências humanas.”[4]

Para Blanke, a “história da historiografia é uma atividade nova”, que esteve ao lado “do desenvolvimento da história como disciplina independente e com pretensões científicas”, com início “na época do iluminismo.”[5] Suas características estariam balanceadas entre tipos (história dos historiadores, história das obras, balanços gerais, história da disciplina, história das idéias históricas, história dos métodos, história dos problemas, história das funções do pensamento histórico, história social dos historiadores, história da historiografia teoricamente orientada) e funções (afirmativa e crítica). Não por acaso, Mastrogregori ressaltará que as “possibilidades de contato são certamente inúmeras”[6], visto a complexidade da tarefa de se efetuar adequadamente uma história da historiografia. Para Ankermist, tal tensão “nos confronta diretamente com o problema do relativismo resultante da historicização do sujeito histórico.”[7] Como nos indica Rüsen, a “historiografia é uma maneira específica de manifestar a consciência história”, porque “apresenta o passado na forma de uma ordem cronológica de eventos apresentados como ‘factuais’, ou seja, com uma qualidade especial de experiência.”[8] Por isso:

Não há cultura humana sem um elemento constitutivo de memória comum. Ao relembrar, interpretar e representar o passado, as pessoas compreendem sua vida cotidiana e desenvolvem uma perspectiva futura delas próprias e de seu mundo. História, nesse sentido fundamental e antropologicamente universal, é uma reminiscência interpretativa do passado de uma cultura, que serve como um meio de orientar o grupo no presente. Uma teoria que explica esse procedimento fundamental e elementar de dar sentido ao passado consoante à orientação cultural no presente é um ponto de partida para a comparação intercultural. Tal teoria tematiza a memória cultural ou a consciência histórica que define o objeto de comparação em geral. Ela serve como definição categórica do campo cultural no qual a historiografia toma forma. […] [e] a historiografia aparece, na sua estrutura geral da consciência histórica ou memória cultural, como uma forma específica de uma prática cultural básica e universal da vida humana.[9]

Ao levarem a cabo uma intensa discussão sobre o caso do Holocausto, White e Ginzburg promovem uma verdadeira investigação a respeito do lugar do enredo na narrativa histórica e de que maneira se configura o princípio de realidade, que dá forma e modela o discurso histórico.

Em todos esses aspectos, a coletânea em pauta, traz mostras de um panorama rico e denso dos intensos debates que circunstanciaram a produção da história da historiografia no século passado, cujas marcas e implicações ainda vemos nos resultados apresentados pela pesquisa histórica.

Notas

1. MALERBA, op. cit., 2006, p. 8.

2. MALERBA, op. cit., 2006, p. 13.

3. MALERBA, op. cit., 2006, p. 14.

4. MALERBA, op. cit., 2006, p. 15.

5. MALERBA, op. cit., 2006, p. 27.

6. MALERBA, op. cit., 2006, p. 87.

7. MALERBA, op. cit., 2006, p. 98.

8. MALERBA, op. cit., 2006, p. 125.

9. MALERBA, op. cit., 2006, p. 118

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), bolsista do CNPq. Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).


MALERBA, Jurandir. (Org.) A história escrita. Teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto, 2006. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Teoria da história e historiografia. Cordis – Revista Eletrônica de História Social da Cidade. São Paulo, n.6, p.367-371, jan./jun. 2011. Acessar publicação original [DR]

 

A História pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX – MARTINS (PH)

MARTINS, Estevão de Rezende (org.) A História pensada: teoria e método na historiografia europeia do século XIX. São Paulo: Contexto, 2010. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Escrita da história no século XIX. Projeto História n. 41. 662 Dezembro de 2010.

A escrita da história no século XIX, já foi tema de diversas interpretações. Mas, no Brasil ainda carecemos de traduções de textos fundamentais sobre teoria, metodologia e história da historiografia. A iniciativa de Estevão de Rezende Martins, junto a outros historiadores (preocupados com essas questões), apenas por essa razão já deve ser saudada. Contudo, o livro não se limita a tradução de textos de Thomas Carlyle (1795-1881), Johann Gustav Droysen (1808-1884), Ernst Bernheim (1850-1942), Wilhelm von Humboldt (1767-1835), Theodor Mommsen (1817-1903), Karl Lamprecht (1856-1915), George Macaulay Trevelyan (1876-1962), Jacob Burckhardt (1818-1897), Leopold von Ranke (1795- 886) e de Henry Thomas Buckle (1822-1862), agrupados, respectivamente, em três partes: a História faz sentido (os três primeiros), o sentido produzido pela História (os outros quatro), e a História e seus campos (os últimos três).

Há também apresentações didáticas sobre o pensamento e a escolha do texto traduzido, que auxiliam na compreensão. E numa sugestiva introdução ao conjunto, Estevão Martins discorre ainda sobre o renascimento da história como ciência, nas últimas décadas, o que teria favorecido mais o empreendimento, visto que o século XIX foi o momento crucial para sua institucionalização, definição metodológica, organização de fronteiras, corpus documentais, funções na sociedade e, em resumo, o que fez da história também uma ciência, ainda que peculiar.

A perscrutar essas questões, nota que a polissemia do termo ‘história’ permitiria pelo menos quatro usos correntes naquele período: a) “o conjunto (mesmo desconhecido) da existência humana no tempo, ainda que não se saiba quando começou ou quando há de terminar (…) [pois] recobre qualquer ação humana e é nesse contexto que se fala, mais comumente, do ‘curso da história’”; b) “diz respeito à memória consciente daqueles agentes e daquelas ações que qualificam a identidade pessoal e social dos integrantes de uma dada comunidade (…) essa história continua sendo, contudo, um registro amplo do agir no tempo, restrito dessa feita a uma sociedade particular”; c) “enquanto conhecimento controlável e demonstrável, chamada de científica, ou ciência da história”; d) e “para designar as narrativas (de todos os tipos) com que se relata o agir passado dos homens no tempo” (p. 8-9). Nesse sentido, igualmente ao renascimento, senão da ‘história ciência’ tal como pensada no XIX, ao menos nas reflexões recentes sobre História e Literatura, numa redemarcação de fronteiras, funções e procedimentos, pois: A História cujo renascimento se organiza e estrutura na passagem do Iluminismo para o Renascimento e se consolida ao longo do século XIX nos cenários do positivismo, do historicismo, das escolas metódicas – e que orienta a organização deste livro –, é a História como ciência. História como ciência, cujos resultados historiográficos são expressos em narrativas que encerram argumentos demonstrativos articuladores da base empírica da pesquisa e da interpretação do historiador em seu contexto. A historiografia, assim, encerra em si as História, Historiadores, Historiografia. 663 características de ser empiricamente pertinente, argumentativamente plausível e demonstrativamente convincente (p. 10).

Assim, eles procedem a uma reflexão instigante sobre como os letrados do XIX pensaram a História como ciência, e os historiadores contemporâneos, organizadores da coletânea, a interpretam, utilizam e pensam-na nos anos iniciais do século XXI. De início, abordam questões que circunscrevem o questionamento/afirmação de se a História faz sentido. Para isso, Renato Lopes apresenta as principais ideias e o contexto em que surgiria a obra de Carlyle, para dar ensejo a seus textos: ‘Sobre a História’, de 1830, no qual argumentaria que “toda ação é estendida em três direções, e a soma geral da ação humana é todo um universo, com todos os seus limites desconhecidos, somente assim a História se mantém seguindo caminho após caminho, através do instransponível, em diversas direções e intersecções, para nos assegurar uma visão parcial do todo” (p. 25); e ‘Sobre a História, outra vez’, de 1833, em que indica que a “História (…) antes de tornar-se a História universal, necessita primeiramente ser comprimida”, pois, se “não houvesse a glorificação da História, ninguém conseguiria lembrar-se de fatos ocorridos após uma semana” (p. 28).

No mesmo caminho estará à apresentação de Arthur Assis a obra de Droysen, e o texto ‘Arte e método’, de 1868, expressaria um momento singular do debate na Alemanha, onde “enquanto alguns dos grandes poetas e pensadores de nossa nação mergulhavam nas questões teóricas do conhecimento histórico, desenvolvia-se no escopo dos trabalhos históricos a precisão e a solidez da crítica que, qualquer que fosse a área da História em que se a aplicasse, trazia resultados inteiramente novos e surpreendentes” (p.

39), donde sintetizá-los “em pensamentos comuns, desenvolver seu sistema e sua teoria e assim determinar as leis da pesquisa histórica, e não as leis da história: essa é de fato a tarefa da teoria da história” (p. 46), a que Droysen se propunha elaborar, e que este texto demarcaria um de seus esboços.

Igualmente fará ao apresentar Ernst Bernheim, e seu texto ‘Metodologia da ciência histórica’, de 1908, onde entenderá que o método “é o procedimento utilizado por uma ciência para obter resultados cognitivos de um dado material empírico”, mas o “material com que trabalham os historiadores é peculiar”, por isso, o método histórico encontraria dificuldades para agrupar e proceder à análise dos dados sobre o passado, de modo a lhes dar sistematicidade expositiva e lhes tornar confiáveis, uma vez que na “pesquisa histórica, designamos ‘prováveis’ aqueles fatos que consideramos como tendo acontecido porque dispomos de relatos e razões que são mais fiáveis ou plausíveis do que os relatos e razões em contrário, ainda que reconheçamos a possibilidade de que estejamos errados” (p. 66).

Num segundo momento, são apresentados textos que discorrem sobre o sentido produzido pela História. Abre a seção o texto de Humboldt, ‘Sobre a tarefa do historiador’, de 1821, apresentado por Pedro Caldas, no qual discorre que “o historiador será passivo caso se limite a reproduzir os fatos, e, o que seria ainda pior, acredite que nisso consiste sua tarefa”, tendo em vista que o “sentido não está previamente dado, mas é uma construção do historiador” e “tal construção (…) também está longe de se restringir a um arroubo romântico vulgar” (p. 71-2), como notará Caldas. Para Humboldt a “tarefa do historiador consiste na exposição do acontecimento”, mas para fazê-lo adequadamente “o historiador não pode largar o seu domínio sobre a sua exposição ao se limitar a procurar tudo na matéria objetiva; ele precisa, ao menos, deixar espaço para a ação da ideia; mais adiante, ele precisa, com o tempo, deixar a alma receptiva para a ideia e mantê-la viva, intuí-la e reconhecê-la; precisa, acima de tudo, se precaver em não atribuir à realidade suas próprias ideias, ou ainda, em não sacrificar ao longo da pesquisa a riqueza viva das individualidades em prol do contexto totalizante” (p. 100).

Na sequência, o texto de Mommsen, ‘O ofício do historiador’, que foi seu discurso de posse na reitoria da universidade de Berlim, em 15 de outubro de 1874, com apresentação de Estevão Martins, e onde o autor indica que a “História nada mais é do que o conhecimento nítido de acontecimentos efetivos, estabelecidos parte pela descoberta e análise dos testemunhos sobre eles disponíveis, parte pela conexão entre eles, a partir do conhecimento das personalidades atuantes e das circunstâncias existentes, numa narrativa que articule causa e efeito” (p. 117). Por sua vez, Luiz Sérgio Duarte nos História, Historiadores, Historiografia. 665 apresenta Lamprecht, e seu texto ‘História da cultura e História’, de 1910, em que argumenta que para “nós, historiadores, o que resta é o conjunto dos eventos históricos, e se nós queremos compreendê-los e organizá-los procedemos cronologicamente” (p. 129). Encerrando a seção, Estevão Martins apresenta Trevelyan, e seu texto ‘Viés na História’, de 1947, no qual aborda as circunstâncias que definem as escolhas que fazem os historiadores ao elegerem seus objetos de pesquisa, assim como a dos agentes envolvidos nos acontecimentos narrados, visto que a “História não seja uma ciência exata, mas uma interpretação de circunstâncias humanas, a opinião e variedades de opiniões se imiscuem como fatores inevitáveis”, da mesma forma como o “viés interpretativo de um homem sobre um problema histórico pode coincidir com a verdade, mas é bem mais provável que esteja parcialmente correto e parcialmente errado” (p. 138-39).

Na última seção, são reunidos textos que discorrem a História e seus campos. Nos dois primeiros de Burckhardt, ‘História da cultura grega: Introdução’, de 1872, e ‘Sobre a história da arte como objeto de uma cátedra acadêmica’, de 1874, como também sugere a apresentação de Cássio da Silva Fernandes, ele se preocuparia em apresentar um programa de pesquisa, para se proceder ao estudo da história da cultura, com ênfase na história da arte. Mas não apenas isso, também elenca certas vantagens da história da cultura, como a de “proceder por reagrupamentos, e pode dar relevo aos fatos segundo a sua importância proporcional, e não é obrigada a desprezar todo sentido de proporção, como costuma ocorrer nos tratamentos antiquários e histórico-críticos [das abordagens tradicionais da pesquisa histórica]” (p. 170). E demonstra ainda como a história da arte seria promissora para estudar vanguardas, movimentos, transformações socioculturais, e ainda permitir ao pesquisador “não se abandonar cegamente ao mundo das intenções, mas permanecer aberto ao conhecimento objetivo das coisas, quer dizer, não ser um sujeito comum” (p. 184). Já Sérgio da Mata nos apresenta Ranke, e seu texto ‘O conceito de história universal’, de 1831, que de certo modo anteciparia certas constatações de Burckhardt, apesar das diferenças óbvias entre ambos, ao ressaltar que a “História se diferencia das demais ciências porque ela é, simultaneamente, uma arte”, ou seja, ela é “ciência na medida em que recolhe, descobre, analisa em profundidade; e arte na medida em que representa e torna a dar forma ao que é descoberto, ao que é apreendido” (p. 202). Por fim, Valdei Araujo nos apresenta Buckle, e seu texto ‘Introdução geral à História da Civilização na Inglaterra’, de 1857, no qual abordaria outros campos propícios a pesquisa histórica, apesar de uma “grande atenção te[r] sido aplicada à história da legislação, bem como a da religião”, também haveria um “considerável trabalho, embora inferior, [que] tem sido empregado em traçar o progresso da ciência, das literaturas e belas artes, das invenções úteis e, ultimamente, dos costumes e comodidades dos povos” (p. 226).

Vistos em conjunto, portanto, os textos aqui agrupados, traduzidos e apresentados nos revelam um rico painel sobre as várias formas de se escrever a História no século XIX. Ao contrário do que comumente é pensado, os textos nos revelam autores mais complexos, com debates que não se limitaram a circunstanciar a história como ‘ciência’, mas em apresentar também as peculiaridades que a tornam tão híbrida, a ponto de ser um canteiro aberto tanto para a ‘ciência’, quanto para a ‘arte’, e coexistindo entre ambas, não deixar de informar, apresentar e interpretar o processo histórico e o agir humano no tempo.

Diogo da Silva Roiz – Doutor em História. E-mail: [email protected].

Uma Gota de Sangue: história do pensamento racial | Demétrio Magnoli

Certamente, não é fácil comentar um assunto tão polêmico quanto apaixonante como esse. As temáticas raciais já há bastante tempo ganharam a mídia e têm influenciado o senso comum de pessoas dos mais diferentes estratos sociais. Grupos de pesquisa e opinião têm propagado o resultado de suas crenças por todos os meios de comunicação, além do papel (um tanto preocupante) desempenhado pelo Estado na promoção desses ideais. Talvez o maior problema dentro dessa perspectiva seja a tentativa de se recriar uma nova História, um tanto tendenciosa, em que os que pensam diferente assumem o papel de hereges frente aos clérigos que criaram conceitos um tanto dogmáticos. É por esse viés que vejo a obra de Demétrio Magnoli, Uma gota de sangue.

A principal intenção do autor ao longo de seu trabalho é mostrar como foram construídas as principais ideias acerca do conceito de “raça” ao longo dos últimos séculos. Partindo sobretudo do homem europeu, tais conceitos foram usados nos séculos XIX e XX para explicar a suposta superioridade do europeu/eurodescendente frente a outros grupos humanos com pele e traços físicos diferentes ao redor do mundo, como o negro africano, o amarelo asiático e o indígena americano. A maneira como esses conceitos nasceram e se desenvolveram ao longo do tempo é, em minha opinião, denominada corretamente pelo autor como “mito”. Esses mitos tiveram papel fundamental no passado para justificar a dominação de um povo sobre outro. Leia Mais

Sociologia da Fotografia e da Imagem | José de Souza Martins

Neste novo livro, o eminente sociólogo José de Souza Martins se propõe a estudar o documento visual, como um dos instrumentos indispensáveis da leitura sociológica dos fatos e dos fenômenos sociais. Neste sentido, a inserção da imagem nas pesquisas das Ciências Sociais abriu um amplo terreno de indagações, dúvidas e experimentos. A fotografia, por ser flagrante, revelou as insuficiências da palavra como documento da consciência social e como matéria‐prima do conhecimento. “A composição fotográfica é também uma construção imaginária, expressão e momento do ato de conhecer a Sociedade com recursos e horizontes próprios e peculiares” (p.11). Não existem pesquisas no âmbito das Ciências Sociais sem a interação entre o pesquisador e o objeto que estuda. A Sociologia tem como material não a realidade em si, mas a interpretação dessa realidade que o homem simples faz dos processos interativos que vive em confronto com as referências estruturais. A fotografia tem as limitações da visão social do fotógrafo e da invisibilidade de várias dimensões da realidade social. Leia Mais

História, metodologia, memória – MONTENEGRO (HO)

MONTENEGRO, Antonio Torres. História, metodologia, memória. São Paulo: Contexto, 2010. Resenha de: BRITO, Fátima Saionara Leadro. História Oral, v. 12, n. 1-2, p. 285-288, jan.-dez. 2009.

Em seu recente livro intitulado História, metodologia, memória, Antonio Torres Montenegro articula uma escrita que rompe com as formas meramente descritivas, por meio das quais o que menos interessa é a construção de significados instaurados na fabricação histórica. Com um amplo conhecimento nos estudos de relatos orais de memória, o autor articula a fala dos sujeitos históricos que vivenciaram o momento estudado – os períodos anterior e posterior ao golpe de 1964 e sua relação com o comunismo – com questões teórico-metodológicas presentes no campo da história, possibilitando, assim, a abordagem do tema, como uma elaboração construída por uma teia risomática, onde as forças são múltiplas e o poder descentrado e destituído de autoria.

Com uma escrita tecida por fios metodológicos presentes nas questões em torno do tema, e preocupado em desnaturalizar os significados postos por meio dos enunciados, sua análise afasta-se dos grandes temas da história e das narrativas historiográficas subordinadas a uma linearidade temporal, na qual o que importa é a apresentação exaustiva de fatos que se sobrepõem um após o outro através de um tipo de abordagem em que está presente a dupla causa-consequência. Desse modo, por meio de sua abordagem, o autor nos apresenta um fazer histórico (não) natural e (não) teleológico, possibilitando ao leitor ter acesso às histórias de vida que, de maneira diversificada, imprimiram suas marcas na construção do comunismo na sociedade brasileira e, em especial, no estado de Pernambuco.

As fontes trabalhadas na obra não estão alheias ao movimento da história. Desse modo, cordéis, prontuários médicos, registros de batismos, a literatura, a fotografia, os relatos orais, entre outras fontes que vêm sendo abordadas pelos historiadores nas últimas décadas, não se fizeram presentes na produção historiográfica do século XIX. A concepção de verdade presente naquele período era outra e estava, sobretudo, atrelada aos domínios de uma visão científica: o historiador articulava sua escrita por meio dos registros oficiais, nos quais a Verdade saltava aos olhos do pesquisador e, como tal, não necessitava ser questionada, pois esses registros significavam a prova do acontecimento e o historiador, aquele que tinha legitimidade de revelar a verdade neles contida.

Nesse sentido, é apenas no momento em que a história se distancia das ciências ditas positivistas, que se criam condições para a produção de um território teórico-metodológico, no qual os documentos não são mais considerados apenas pelas informações que fornecem, mas, principalmente, pela sua articulação discursiva e pelas suas condições de produção.

É nesse território que as fontes trabalhadas por Montenegro se situam, pois elas não existem em si, tampouco revelam uma verdade sobre os acontecimentos, mas são, sobretudo, resultado de uma elaboração produzida pelo próprio autor, possuindo um caráter provisório e mutável, sempre abertas às novas questões.

Esse trajeto de elaboração das fontes históricas está presente na discussão que perpassa o capítulo intitulado “Rachar as palavras: uma história a contrapelo”. Nele, o autor faz uma análise da física a partir de pensadores como Einstein, Newton e Descartes, para em seguida observar como se situa o campo da história e das demais ciências, pensando a relação da história com seu objeto e problematizando a forte ligação que esta possui com a ideia de verdade. Reconstrói, portanto, o percurso metodológico pelo qual passou a história em meio às ciências do século XVIII e XIX, abordando a construção do lugar do saber histórico. Sua análise caminha no sentido de desconstruir as verdades em torno dos fatos e dos objetos, num contínuo exercício de fazer “rachar as palavras”, desconstruindo a naturalidade de significados existente entre o signo e a coisa.

Montenegro estabelece em seguida uma discussão sobre memória. Para ele a memória está em constante movimento, pois ao mesmo tempo que os sujeitos históricos rememoram, também analisam e reelaboram suas percepções. Nesse sentido, as lembranças não são mimeses, ou seja, não constroem a realidade passada, trazendo-a para o presente tal qual aconteceu, mas como pensava – Marcel Proust – representam um meio de aprendizado. O autor alerta para que jamais se pense a memória ou a percepção como reflexo ou cópia do mundo, mas como atividade e como trabalho ininterrupto de ressignificação do presente ou, ainda, como leitura a partir de um passado que se atualiza.

É por meio dos fios da lembrança que a obra desse autor nos possibilita o acesso às vidas errantes de personagens que ajudaram a construir a imagem, o medo, os anseios e as lutas em torno do comunismo em Pernambuco. Trata-se de um combate, por meio das palavras, que se instaura, a princípio no encontro entre dois sujeitos, o entrevistador e o entrevistado, e é do choque desse encontro que flui uma história singular, uma história entre tantas outras possíveis, pois, como pensava Marc Bloch a história “é feita de combates” e de encontros.

Os narradores produzem uma maquinaria discursiva, na qual as dobras, as fugas, as piruetas, os silêncios contornam as histórias narradas. Desse modo, os relatos orais de memória, postos por meio de histórias de vida, são diluídos pelo autor, que de maneira minuciosa tal qual um artesão, busca juntamente com outras fontes, dar cores e sentidos a essa maquinaria oral. Esse exercício de artesão em muito se distancia do trabalho do psicólogo, que busca encontrar a verdade do sujeito presente de forma oculta em seu relato. Distante disso, o trabalho do artesão-historiador procura dar movimento e fluidez ao relato, não tendo como propósito a busca de uma verdade que se revelaria por meio de sua arguição, mas da elaboração de sentidos de verdades e dos desejos e afetos que são resultados das experiências de vida e do encontro do entrevistador com o entrevistado.

A partir da construção dessas lembranças, muitas delas elaboradas por personagens religiosos oriundos de alguns países da Europa e dos Estados Unidos vindos para o Brasil com a missão de combater o comunismo, o espiritismo e o protestantismo, podemos ter acesso a experiências de vida fortemente ligadas às lutas sociais e políticas no Nordeste. São relatos que possibilitam enriquecer a abordagem feita ao longo do livro, tendo em vista que algumas dessas experiências não deixaram registros escritos, portanto estão situadas nas práticas ordinárias e cotidianas às quais apenas os relatos orais possibilitam o acesso.

No capítulo “Labirintos do medo (1950–1964)”, Montenegro faz um apanhado historiográfico sobre o comunismo, principalmente a discussão sobre 1964 publicada em 2004, 40 anos após o golpe. Analisa ainda ideias, imagens e discursos acerca do medo com base em autores franceses clássicos como Georges Lefebvre e Jean Delemeau, os quais, mesmo situados em outro lugar e em outro tempo, ajudaram a pensar sobre a experiência do medo do comunismo. Nesse momento, o autor mostra como se produziu a ideia do medo. Segundo ele, este se processou através de uma elaboração feita por diversas instituições da sociedade, como alguns setores da Igreja Católica e a imprensa. Trata-se de uma abordagem teórico-metodológica que privilegia a arquitetura discursiva na qual se elabora sentidos de verdade sobre um determinado tema, neste caso o medo do comunismo.

Desse modo, atravessam toda a obra relevantes discussões sobre memória, sobre o tempo – presente/passado –, sobre relatos orais, fontes, a importância da memória para o estudo da vida ordinária, entre outras, que permitem aos pesquisadores dos relatos orais de memória o contato com um trabalho minucioso de elaboração das fontes para a construção do trabalho historiográfico e, sobretudo, o contato com uma importante discussão metodológica a respeito dessas e de outras fontes.

Fátima Saionara Leandro Brito – Mestranda em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

 

 

História da imprensa no Brasil / Ana L. Martins e Tania R. de Luca

O livro “História da imprensa no Brasil”, lançado em 23 de julho de 2008, é organizado pelas doutoras em História Social Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca, ambas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Editado pela Contexto, a obra tem 304 páginas e reúne 11 pesquisas. Cada organizadora escreveu um texto, ao lado de mais nove convidados especialistas, entre eles, jornalistas, professores, sociólogos e historiadores. Os textos estão distribuídos em três grandes partes intitulados: “Primórdios da imprensa no Brasil”, “Tempos eufóricos da Imprensa Republicana” e “De 1950 aos nossos dias”. Todos fazem uma reflexão sobre “o singular e rico fazer histórico da imprensa brasileira2” e buscam “o elaborar uma história sistemática e abrangente do fazer jornalístico no Brasil3”, afirmam as historiadoras já na Introdução: pelos caminhos da imprensa no Brasil.

A diversidade do conteúdo prometida pelas organizadoras é cumprida à risca desde a primeira até a última página. A narrativa da obra cativa o leitor. As histórias relatadas são uma viagem ao longo dos 200 anos de imprensa no Brasil, começando lá nos idos de 1808, quando a corte portuguesa chegou ao Brasil. A partir deste fato histórico o primeiro jornal, o rádio, a televisão, as revistas e o surgimento das novas tecnologias como a internet são contextualizadas com os diferentes momentos políticos, sociais, econômicos e culturais ao quais os brasileiros vivenciaram.

O tempo não precisa estar explícito para se entender a narração. Cada página traz informações contadas de maneiras diferentes para quem já conhece alguns fatos ou para quem desconhece completamente. São detalhes de uma história observada por uma outra perspectiva. Trata-se de uma obra historiográfica para quem deseja conhecer a imprensa no Brasil.

A obra relata a história a partir de registros em documentos e de memórias dos bastidores da imprensa – escrita e falada –, dos personagens poderosos, da promiscuidade dos governos e do poder público com a imprensa, da censura e das relações ambíguas ou coniventes entre os meios de comunicação e os políticos. São muitas informações interessantes e curiosas, não reveladas naquela época e agora nesta obra divulgadas.

A Parte I que leva o título de “Primórdios da imprensa no Brasil” reúne dois textos. O doutor em História, professor do departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e jornalista, Marco Morel, escreve “O surgimento da imprensa periódica: ordenar um espaço complexo”, onde relata sobre o surgimento da imprensa no Brasil em 1808 e a influência da Corte portuguesa para que ocorresse a instalação da tipografia da Impressão Régia. O que não significa que a imprensa tenha surgido de repente, já que redatores brasileiros conviviam, mesmo informalmente, “com a imprensa de outros países. Foi o caso dos estudantes brasileiros em Coimbra que circulavam pela Europa ou de emissários enviados pela Coroa portuguesa aos quatro cantos do mundo (…)4”. Já naquela época, ao lado da impressa, estavam a censura prévia e o oficialismo. Mas, ressalta ele, esse marco não significa que não existiram outras tipografias no país. Afinal, várias obras foram imprensas em diferentes regiões do país. Haviam prelos que faziam esse serviço. E as experiências pioneiras – “Correio Braziliense”, “O Patriota” – são reconstituídas por Morel.

A doutora em História Social Ana Luiza Martins traz o segundo texto “Imprensa em Tempos de Império”. Nele, o envolvimento da imprensa com a crise do Absolutismo, com o Segundo Reinado e com as ideologias políticas que predominavam nesse período. Tem informações sobre a Revolução Liberal, a Revolução Farroupilha, os movimentos entre liberais e conservadores e a história do Jornal do Commercio, considerado a principal voz oficial do Império (1826). Era um elo entre as províncias e o governo central e tinha uma função comercial clara perante seus leitores. Ela também menciona outros jornais que criaram novos padrões estéticos, como O Guarani, O Paulistano e A Província de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo). Cita revistas femininas e folhetins, que conquistavam muitos leitores. “Coube à crônica, porém, exercer papéis múltiplos, ocupando o lugar do artigo de fundo, fazendo às vezes do que hoje se denomina editorial (…)5”. Veremos também descrições da imprensa propagandística, do jornalismo republicano, jornalismo abolicionista e como se comportava a imprensa que era oposição, até chegarmos ao fim do Império e entrarmos para a República, em 1889. A partir daí, o Brasil passa a viver sob um novo regime que se mantém até os dias de hoje.

A Parte II “Tempos Eufóricos da Imprensa Republicana” reúne o trabalho de quatro especialistas. Maria de Lourdes Eleutério, doutora em Sociologia, reconstitui na “Imprensa a serviço do progresso” o período da Primeira República (1889-1930) com diversos exemplos. Foi uma época de inovação tecnológica onde a ilustração com charges, caricaturas e fotografias foram incluídas na imprensa com força total. Um dos marcos é a revista Kosmos. Haviam jornais a favor do Império e outros da República, entre todos haviam jornalistas perseguidos, redações invadidas e a censura era permanente. Foi quando surgiu a Associação de Imprensa, garantindo assistência à classe e aos direitos dos profissionais da comunicação. Entre os diversos jornais que surgiram, permaneceu o Jornal do Brasil (1891). A imprensa também muda seu ritmo de trabalho e para se tornar ágil na transmissão das notícias, investe na cobertura in loco, com o repórter próximo ao fato. A linguagem mais coloquial e a crônica surgem com mais frequência nos jornais e revistas.

No início do século XX existiram milhares de jornais, alguns oficiais, comerciais, diários, semanais, religiosos, infantis. É o que diz Ilka Stern Cohen, doutora em História Social, no capítulo “Diversificação e segmentação dos impressos”. “A variedade de tendências políticas, contudo, não se repetia na aparência material6”, ou seja, mesmo com os avanços técnicos, os jornais eram parecidos. E geralmente o mercado superava o idealismo de alguns impressos. A autora destaca o entrelaçamento do jornalismo e da literatura e cita autores que conquistaram muitos leitores como Olavo Bilac, Monteiro Lobato, Menotti Del Picchia. A Belle Époque só é deixada de lado com o início da Primeira Guerra Mundial, que influencia a economia de diversos países, entre eles, o Brasil. Entre 1916 e 1925, foi a Revista do Brasil, com uma linha editorial voltada para ser um “núcleo de propaganda nacionalista7”, que se destacou na imprensa. Mudou nas mãos de Monteiro Lobato, a partir de 1918, ampliando um espaço para a literatura. Logo vieram as revistas ilustradas, com diversos temas, separados por muitas seções. Podemos destacar A Cigarra e Fon-Fon. O momento também é da Revista Feminina (1914-1936), que ditava as normas mais cabíveis para as mulheres da época. Foi um sucesso de vendagem e de valores. Cohen também dá detalhes sobre a imprensa que predominou nas comunidades, entre a classe operária – A Lanterna, A Vanguarda (1911) e A Plebe (1917) – com conteúdo político. Ao mesmo tempo, existiam revistas e jornais que pretendiam apenas informar com isenção, neutralidade, sem se posicionar a favor ou contra em determinados assuntos, como a Revista Brasileira (1934).

Com o professor titular de Teoria Literária da Unicamp, Antônio Arnoni Prado, conhecemos a relação “Imprensa, Cultura e Anarquismo”. O título abre caminho para sabermos mais a respeito de periódicos produzidos por e para anarquistas, revolucionários, comunistas e tolstoianos. Misturavam-se proletários, escritores profissionais, críticos, intelectuais e sociólogos a favor de uma causa. A história da Kultur, Spártacus, Renovação, A Vanguarda, Na Barricada e A Vida, por exemplo, é relatada das páginas 131 a 148 da obra. Como era o processo intelectual e a produção de cada jornal e qual era a repercussão que provocava na sociedade é registrada pelo autor neste texto.

Coube a doutora em História Social Tânia Regina de Luca escrever sobre a “A Grande Imprensa na primeira metade do século XX”, quando as máquinas modernas ocupam seus espaços e surgem novos meios de comunicação na sociedade: cinema, máquinas fotográficas, máquinas de escrever e fonógrafos. A vida fica mais dinâmica e a imprensa ganha novo impulso. É hora da publicidade e das agências norte-americanas ocuparem seus lugares dentro e ao lado da imprensa escrita. Surgem inúmeros títulos: Diário de Pernambuco (1825), Jornal do Commercio (1827), Correio Paulistano, Diário da Bahia (1853-1957), O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil (1891), Correio do Povo (1885) e Diário de Minas (1899).

E a história ganha contornos mais políticos quando é relatada no trecho que leva o subtítulo “Imprensa e o movimento de 1930”, com a chegada do presidente Getúlio Vargas a presidência da República. Entram em cena princípios liberais e democráticos e o nacionalismo, as disputas entre patrões e empregados, as influências do comunismo e o anticomunismo, e as propostas do Estado Novo para a nação brasileira, por meios de decretos e de uma legislação originada no autoritarismo e nacionalismo getulista. Um regime de censuras, restrições à liberdade de imprensa e abusos de poder que perdurou de 1937 a 1945.

A Parte III “De 1950 aos nossos dias” tem cinco textos, sendo o primeiro deles “Batalhas em letra de forma: Chatô, Wainer e Lacerda”, escrito por Ana Maria de Abreu Laurenza, jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. De forma primorosa, ela descreve a relação entre esses três jornalistas, responsáveis por importantes veículos de comunicação, respectivamente, Diários Associados, que editava a revista O Cruzeiro, Última Hora, e Tribuna da Imprensa. Todos tendo como pano de fundo os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek e muitas histórias políticas, de negociatas feitas nos bastidores e, depois, muitas vezes, estampadas nas páginas da imprensa. O destaque fica para quem eram os donos desses jornais e revistas e como se comportavam no contexto onde estavam inseridos.

A história das revistas é contada no “A era das revistas de consumo” pelo jornalista e vice-presidente do Conselho Editorial do Grupo Abril, Thomaz Souto Corrêa, que narra o surgimento das primeiras magazines da editora Abril, instalada em São Paulo, contrariando todas as demais editoras que preferiam estar no centro da capital federal, no Rio de Janeiro. Começou editando O Pato Donald (1950), Capricho (1952) e Contigo (1963). As duas últimas ainda estão nas bancas, com uma nova roupagem e uma outra linha editorial. A Capricho, por exemplo, que tinha em suas páginas fotonovelas agora é voltada para os jovens. Mas outras revistas surgiram, entre elas, Quatro Rodas (1960), com serviço para o leitor sobre estradas e carros. Em 1961, a Abril lança a Claudia para concorrer com a Jóia, da editora Bloch, que depois se transformou em Desfile (1969). Segundo Corrêa, uma revista voltada para o público feminino e inteligente. Possuía uma redação com ótimos jornalistas como Rubem Braga, Marina Colasanti, Fernando Sabino e Vinicius de Moraes. Para completar, a jornalista Carmem da Silva escrevia artigos sobre temas que nem eram tratados na intimidade, quanto mais numa magazine. Ele cita também a Realidade, lançada em 1966, que concorreu com O Cruzeiro, Manchete e Fatos & Fotos.

Na página 218 começa a história da revista Veja (1968). O objetivo de Victor Civita era oferecer ao leitor informação rápida e mantê-lo bem informado, uma nova forma de encarar a função de uma publicação semanal. Mais tarde chegaram ao mercado outras revistas que também se mantém nas bancas até hoje: Isto É, da Editora Três (1977), e a Época da Editora Globo (1998). Mais adiante, ele explica sobre a segmentação das revistas e cita números. Em junho de 2007, por exemplo, a Abril detinha 41% dos exemplares vendidos no Brasil.

Da página 233 a 247, cabe a Flavio Aguiar, professor e editor-chefe da agência de noticias virtual Carta Maior, relatar os fatos marcantes da imprensa alternativa com os jornais Opinião, Movimento e Em Tempo. Mas, alerta o autor, as imprensas alternativas sempre existiram, desde 1808. Alguns jornais duraram mais, outros menos.

Pretendiam cumprir a sua missão editorial para ser lido por aqueles que desejavam um veículo isento ou pelo diferente dos existentes. Os alternativos vão além do que se convencionava dizer que são jornais que se opõem a “tendência hegemônica na imprensa convencional brasileira8”. O surgimento deles se justifica também pela falta de espaço para os jornalistas e de liberdade para escrever a partir do golpe de 1964. Como a informação era censurada, criaram-se novos espaços para se escrever e dizer o que pensavam grupos de jornalistas. E foi principalmente por causa do Ato Institucional número 5 e da censura mais ferrenha que muitos jornais, cerceados de noticiar determinados fatos, substituíram espaço por receitas de culinária. Segundo o autor, “Censores foram instalados nas redações dos jornais; circulares eram enviadas a elas, dizendo o que se podia dizer e o que não se podia, vetando assuntos, nomes de pessoas e até palavras, como Brizola, Arraes, ‘comunismo’, ‘tortura’, ‘etc’9”. Aguiar descreve as características e linguagens adotadas pelos três jornais, inserindo-os nos momentos marcantes da política brasileira. Dois deles acompanharam de perto o surgimento do Partido dos Trabalhadores e das centrais sindicais dos trabalhadores, na década de 80.

Foi com a nova Constituição de 1988 e a redemocratização do país que a imprensa alternativa perdeu sentido porque sua articulação, seu fortalecimento e sua sobrevivência se deu principalmente por causa da repressão e da ditadura de 1964, explica Aguiar. Hoje, afirma o autor, a imprensa alternativa está nos sites e blogs, novos meios de comunicação que saem fortalecidos com a nova cultura surgida por causa da internacionalização da mídia.

Sobre as novas tecnologias, quem se aprofunda é Luiza Villanéa, jornalista e mestranda em História pela Universidade de São Paulo. No texto “Revolução tecnológica e reviravolta política” ela descreve cenas de quem viveu na década de 1980 numa redação barulhenta, entre máquinas de escrever e muitos papéis, e se deparam, dez anos depois, com o computador. Um equipamento que era para agilizar a produção jornalística mas, às vezes, causava indignação porque sumia com os nossos textos e tudo por causa de problemas técnicos que não tínhamos controle. E logo veio a internet, acesso rápido a um mundo até então distante. Estávamos inseridos num cenário cada vez mais complexo e, ao mesmo tempo, a favor profissional de comunicação. Afinal, esse equipamento agilizava o trânsito de informações e o acesso às fontes.

A chegada da informática, conta Villanéa, começou no jornal Folha de S.Paulo.

Logo outros seguiram essa onda de modernidade como o Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Zero Hora. Nessa Era, também, a cobertura ganhou uma dinâmica diferente e os acontecimentos políticos se destacavam. O Brasil vivia a redemocratização e a imprensa estava na cobertura das Diretas-Já, das eleições diretas (1989) e dos escândalos do governo Collor (1990-1992).

O último texto “O meio é a mensagem: a globalização da mídia”, escrito por Cláudio Camargo, jornalista e sociólogo, recupera o pensamento de um dos principais teóricos da comunicação, Marshall McLuhan (1911-1980). O século XXI tornou-se uma nova aldeia global, como ele havia profetizado, e agora por causa da informatização. “A revolução digital rompeu as fronteiras que antes separavam as três formas tradicionais de comunicação: o som, a escrita e a imagem10”. Estava decretado: a internet era o quarto modo de se comunicar e de se informar. Um dos aspectos negativos dessa nova fase para o Brasil é que a mídia eletrônica fica concentrada com poucos e grandes grupos empresariais da comunicação. Citando Venício A. de Lima, o autor diz que essas mudanças começam a partir dos “anos 1990 quando o Brasil passou a adotar uma agenda agressiva de privatizações e abertura ao capital externo para se integrar ao processo de globalização, as comunicações tornaram-se, a partir de 1995, o paradigma dessa nova política11”. O problema aumenta quando é aprovada a emenda constitucional de número 8 e ocorre a quebra do monopólio estatal das telecomunicações e as “leis que permitem a participação do capital estrangeiro nas áreas de telecomunicações e, principalmente, a Emenda Constitucional n. 36, de 2002, que autoriza a participação de pessoas jurídicas no capital social das empresas jornalísticas e de radiodifusão, inclusive de capital estrangeiro, limitado a 30% do total12”. Por causa disso, informa Camargo, ocorrem mudanças nas empresas tradicionais de jornalismo que afetam o controle acionário desses meios. Alguns grupos familiares que detinham o monopólio da grande mídia, exemplifica ele, são a família Marinho (Organizações Globo), Frias (Grupo Folha) e Sirotsky (Rede Brasil Sul). Em 2000, essas empresas registraram uma queda em suas receitas porque a circulação de jornais e de publicidade também diminuiu.

A partir daí, outras transformações ocorreram nos meios de comunicações.

Camargo registra no artigo quando o Grupo Folha cria o Universo On Line (UOL), marcando assim o ingresso da mídia brasileira na era digital, em 1996. Com Fernando Henrique Cardoso, o país vive seu ápice com a privatização e a imprensa acompanha e estampa tudo nas capas e em páginas e páginas, na imprensa escrita e na internet. Os escândalos pululam e contribuem para alterar a maneira de se fazer coberturas políticas.

O jornalista, apoiado pela grande mídia que percebe ser o quarto poder, acaba se transformando num investigador e estampa nas capas de jornais e revistas reportagens mais sensacionalistas do que investigativas, questionadas pelo leitor mais crítico. E esse fenômeno, explica o autor, não é apenas brasileiro, ocorreu nos Estados Unidos após a Guerra do Vietnã e no escândalo político de Watergate. Mais adiante, Camargo chama atenção para esse fato e cita a banalização e “generalização de matérias comportamentais nas grandes revistas, como Veja, Época e Isto É em detrimento das reportagens investigativas que foram a glória das semanais no passado13”.

A obra “História da imprensa no Brasil”, lançada em 2008, reconstitui e contextualiza as principais fases da imprensa do país, desde 1808 até 2008, e é, sem dúvida, essencial para pesquisadores, principalmente, das áreas das Ciências Humanas e Sociais, e para leitores curiosos que se interessam pelos fatos que marcaram o país. Os onze autores narram os acontecimentos desse período, cada um com suas características, com uma riqueza de detalhes que certamente irão empolgar quem conhece e quem desconhece alguns fatos históricos. Um livro para ser lido, relido, e para consultado e utilizado como referência bibliográfica para diferentes trabalhos acadêmicos.

Notas

1. Mestre em História do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: [email protected] 2 MARTINS, Ana Luiza, e LUCA, Tânia Regina de. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. p. 9.

3. Idem. Ibidem. p. 9.

4. Idem. Ibidem. p. 28.

5. Idem. Ibidem. p. 70.

6. Idem. Ibidem. p. 104.

7. Idem. Ibidem. p. 108.

8. Idem. Ibidem. p. 236.

9. Idem. Ibidem. p. 238.

10. Idem. Ibidem. p. 270.

11. Idem. Ibidem. p. 271.

12. Idem. Ibidem. p. 272.

13. Idem. Ibidem. p. 284.

Izani Mustafá – Mestre em História do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC. E-mail: [email protected].


MARTINS, Ana Luiza; De LUCA, Tania Regina. (orgs.). História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, 304 p. Resenha de: MUSTAFÁ, Izani. Em Tempo de Histórias, Brasília, n.14, p.203-211, jan./jun., 2009. Acessar publicação original. [IF].

Arqueologia | Pedro Paulo Funari

O livro de síntese e divulgação de alto nível é fundamental para o desenvolvimento científico. Por um lado, contém os recortes didáticos dos conteúdos teóricos e metodológicos mais significativos da sua época. Por outro, pode atrair novos adeptos, ajudando a ampliar a comunidade acadêmica. Também é importante para informar o público leigo, contribuindo para disseminar o conhecimento e para reduzir os mal-entendidos e as distorções corriqueiros ao senso comum.

Com a publicação de Arqueologia passamos a ter no Brasil o mais completo e atualizado manual de divulgação da disciplina. Ele preenche uma lacuna importante, pois são raros os manuais em português, sem contar com as dificuldades existentes no país para a tradução/publicação ou para importar de obras similares escritas em outros idiomas. Aliás, em meio século de profissionalização, é apenas o terceiro trabalho do gênero publicado por brasileiros, sendo precedido pelo Manual de Introdução à Arqueologia, de Pedro Augusto Mentz Ribeiro (Sulina, 1977) e pelo Arqueologia, do próprio Pedro Paulo Funari (Ática, 1988). Apesar do mesmo título de 1988, a obra em questão não é uma reedição ou simples ampliação, mas um novo livro com uma seleção de tópicos que se destacam por apontar com precisão qual é o campo mais contemporâneo de atuação do arqueólogo. O sumário, em suas oito partes, logo apresenta os propósitos da obra: 1) O que é arqueologia?; 2) Como pensa o arqueólogo; 3) Como atua o arqueólogo; 4) Formas de pesquisa; 5) A arqueologia e as outras áreas do conhecimento; 6) Arqueologia e poder; 7) Ser arqueólogo no Brasil; 8) Questões profissionais. No fim sugere leituras, filmes, sites e cds. Leia Mais

A história escrita: teoria e história da historiografia – MALERBA (VH)

MALERBA, Jurandir (org.) A história escrita: teoria e história da historiografia. São Paulo: Contexto. 2006. Resenha de: MACHADO, Paulo Pinheiro. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 572-573, jul./dez., 2006.

Do texto viemos, ao texto iremos. Sem querer simplificar o atual debate acerca das diferentes abordagens teóricas sobre a história — seja a história do acontecido ou a escrita sobre o acontecido — é difícil encontrar, em língua portuguesa, livro com um balanço equilibrado e atualizado sobre este debate. A publicação de “A história escrita”, obra de um diversificado grupo de historiadores coordenada por Jurandir Malerba chega para preencher este espaço importante para o debate e a reflexão historiográfica, sendo útil a profissionais, pesquisadores e estudantes. Além da atualidade dos temas e abordagens, os autores não deixam de fazer um abrangente balanço dos impasses, crises e contribuições de importantes historiadores do século XX. As trajetórias intelectuais de Benedetto Croce, Marc Bloch, Lucien Febvre, Le Goff, Arnaldo Momgliano e outros importantes historiadores, são analisadas em diferentes textos, o que dá uma interessante unidade ao conjunto do livro.1

Um dos pontos centrais da discussão é o balanço da contribuição do vendaval pós-estruturalista (ou pós-moderno) sobre a forma de se trabalhar a história. As intervenções dos herdeiros intelectuais de Nietzche, sem dúvida, advertiram a nova geração para as precariedades da ciência e deram sério golpe em noções de finalidade e de progresso da história. A contribuição de Hayden White adverte para a importância das formas narrativas, dos tropos e da grande dose de subjetividade presente na historiografia. No entanto, estas contribuições foram muito pouco férteis no sentido de enfrentar os problemas quotidianos dos historiadores. O debate final da obra, entre White e Ginzburg, sobre uma questão-limite, a “veracidade” do holocausto dos judeus na segunda guerra mundial, acaba por levantar importantes considerações políticas e morais das concepções mais analíticas dos textos e menos inquiridoras de “indícios” e “provas” do que pode ser considerado como “realidade”.

O ponto mais inovador da coletânea é a necessidade de avaliação, comparação e crítica historiográfica. Estamos acostumados a fazer balanços historiográficos sem critérios muito precisos do que deva ser considerado. Além de considerações aleatórias do “gostar” e do “não gostar” de determinados textos, os autores nos chamam a atenção para a avaliação da excelência de nosso ofício. Deverá o historiador, como Heródoto, ser um hábil escritor para cativar seus leitores com a beleza de sua narrativa? Ou devemos, como Tucídides, despreocuparmos com a beleza e atentarmos para a precisão e utilidade de nosso labor? A eleição de critérios para a avaliação e debate historiográfico depende de escolhas teóricas dos autores. Jurandir Malerba, recuperando Benedetto Croce, lembra que, como a crítica poética critica a “poeticidade”, na crítica historiográfica se avalia a “historicidade”, o que abre caminho para considerar a crítica historiográfica como parte integrante da pesquisa histórica. Uma boa discussão sobre termos comparativos na relação entre historiografia ocidental e oriental encontramos no texto do professor Masayuki Sato, da Universidade de Yamanashi, no Japão. Com ele aprendemos que além de considerações teórico-metodológicas este debate precisa incorporar diferenças culturais, já que a história tem especificidades como ofício em diferentes culturas, além de distintos estatutos públicos. Importante discussão neste sentido é levantada por Jörn Rüsen, da Universidade de Bielefeld, Alemanha, no entanto, seu quadro de periodização do pensamento histórico parece algo excessivamente esquemático e contraditório com a proposta original. Angelika Epple, da Universidade de Hamburgo, em texto muito inteligente, propõe um alargamento das fontes para considerar uma história e historiografia das mulheres, além dos limites acadêmicos, ou seja, abrir para admissão de narrativa histórica textos literários, onde sempre houve forte presença feminina.

Enfim, temos a disposição do público uma coletânea com diferentes aspectos das teorias, das metodologias e das fontes historiográficas que procuram criar pontes de discussão e interlocução entre diferentes tradições historiográficas nacionais.

Nota

1 Além de Jurandir Malerba, publicam nesta obra Angelika Epple, Arno Wehling, Carlo Ginzburg, Frank Ankersmit, Hayden White, Horst Walter Blanke, Jörn Rüsen, Masayuki Sato e Massimo Mastrogregori.

Paulo Pinheiro Machado – Doutor em História pela UNICAMP e professor do Departamento de História UFSC. E-mail: [email protected]

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[DR]

 

História das mulheres no Brasil – DEL PRIORI (RIHGB)

DEL PRIORE, Mary (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Érico (Org.). Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade – biográfico e ilustrado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. MOTT, Luiz. Homosexuais da Bahia. Dicionário biográfico, século XVI-XIX. Salvador: Grupo Gay da Bahia, 1999. Resenha de: MARQUES, Teresa Cristina de Novaes. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v.167, n.430, p.319-327, jan./mar., 2005.

Teresa Cristina de Novaes Marques – Doutora em História Social pela UnB. Professora Adjunta pela mesma Universidade.

Acesso apenas pelo link original

[IF]

A História repensada | Keith Jenkins

Até meados do século XX, a História ainda era muito parecida com as estradas do oeste norte-americano imortalizadas por Hollywood: reta, plana e sem vicinais. Essa estrada chamada positivismo era percorrida com segurança pelos historiadores até seu destino, a verdade. No entanto, novos caminhos surgiram para novos pontos de chegada trazidos pelo que conhecemos como pós-modernismo. As estradas também começaram a ser percorridas por novos transeuntes. É nesse emaranhado viário, ou melhor, paradigmático, de tráfego intenso, que muitos historiadores estão perdidos, tanto os mais jovens, que se sentem obrigados a escolher um dentre vários caminhos, como os mais velhos, que têm dificuldades para percorrer as novas estradas. Nessa situação, ainda que apresente algumas imprecisões e lacunas, A História repensada (Rethinking History) do historiador inglês Keith Jenkins permite aos historiadores se localizarem com mais precisão perante as mudanças provocadas pelo pós-modernismo. Apesar de ter sido publicado em 1991 e traduzido em 2001 – primeiro livro de Jenkins no Brasil -, sua discussão continua pertinente e assim promete continuar por muito tempo. Leia Mais

O mundo muçulmano | Peter Demant

Muito se tem escrito sobre o mundo muçulmano e seu relacionamento com o Ocidente. E não poderia ser diferente, uma vez que o chamado “choque de civilizações”, pelo menos na percepção de grande parte da sociedade ocidental, veio para ficar e se aprofundar, ainda que não se entenda muito bem suas raízes e muito menos a sua cultura. No Brasil, no entanto, talvez por nos abrigarmos no mito do cruzamento pacífico de culturas, pouco se publicou sobre o tema.

É no mundo muçulmano que se encontra o maior grau de participação em episódios de violência social no mundo atual: em 2000, a revista The Economist identificou trinta e dois grandes conflitos em andamento no mundo, sendo que dois terços deles envolviam muçulmanos combatendo muçulmanos ou muçulmanos combatendo não-muçulmanos. Ainda que se possa citar alguns dos momentos mais conhecidos de violência desde a Segunda Guerra Mundial – a repartição entre a Índia e o Paquistão, a Crise do Suez de 1956, as guerras árabes-israelenses de 1967 e de 1973, a revolução iraniana, a guerra civil no Líbano e a invasão do país por Israel, a Guerra Irã-Iraque e a Guerra do Golfo – o atentado contra as torres do World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, foi definitivo para que o mundo muçulmano passasse a ser tema de interesse do público em geral. O interesse, que poderia vir se arrefecendo, não decresceu porque as ações espetaculares não param de acontecer: os ataques às estações de Madri, que mataram 190 pessoas e feriram quase 2.000, para não falar, em sentido contrário, o início da guerra liderada pelos Estados Unidos contra o Iraque, em março de 2003. Leia Mais

Bastardos do Império: Família e sociedade em Mato Grosso no século XIX | Maria Adenir Peraro

A publicação de “Bastardos do Império: Família e sociedade em Mato Grosso no século XIX”, de Maria Adenir Peraro, é motivo de honra e orgulho múltiplos, quer por parte do Programa de Pós-Graduação em História, da UFPr, de cujos bancos escolares a obra é resultado de tese de Doutorado, quer para o Programa de Pós-Graduação em História, da UFMT, do qual a pesquisadora é integrante. Não bastasse isto, a obra expressa uma política editorial corajosa e encorajadora no sentido de abrigar publicações ditas “regionais”, conotação esta que tem dificultado a inserção acadêmica de temas e objetos relevantes e pertinentes e que extrapolam o caráter “local”. Particularmente, os centros de pesquisa cujo foco reside nas questões de fronteira, populações, territórios e identidades, foram os grandes beneficiados, pois a obra vem chancelar, não apenas um grandioso esforço na preservação de fontes paroquiais, mas, sobretudo, um importante patrocínio institucional à pesquisa da história da família. Neste sentido, imprescindível reconhecer o apoio da Cúria Metropolitana de Cuiabá, que facilitou o acesso ao seu acervo documental. Leia Mais

Pré-História do Brasil: As origens do homem brasileiro; O Brasil antes de Cabral; Descobertas arqueológicas recentes | Pedro Paulo Funari e Francisco Noelli

Até princípios do século XX, a história das populações pré-históricas aborígenes que habitaram o atual território brasileiro era um tema pouco conhecido e sobre o qual não existia interesse maior. Afortunadamente, estas concepções, que silenciavam a rica e complexa História desses povos, paulatinamente foram ficando para trás. Precisamente, “Pré-história do Brasil…”, escrita por dois importantes arqueólogos brasileiros, resulta ser uma obra clara e simples que permite ao leitor obter uma idéia geral sobre o processo de ocupação humana do território onde hoje está o Brasil. Por sua vez, possui uma linguagem amena, que evita terminologias complexas, próprias do jargão arqueológico, fazendo com que o livro possa chegar a um público amplo e heterogêneo. Leia Mais

The Paraguayan War (1864-1870) | Leslie Bethell || História do Cone Sul | Amado Luiz Cervo e Mário Raport || A guerra contra o Paraguai | Júlio J. Chiavenato || A espada de Dâmocles: O exército/ a guerra do Paraguai e a crise do Império | Wilma Peres Costa || A Guerra do Paraguai | Francisco Doratioto || Guerra do Paraguai: como construímos o conflito | Alfredo da Mota Menezes

Até onde as relações entre os Estados processam-se em virtude do confronto dos interesses independentes de cada um deles? Em que medida a História de um povo ou de um conflito pode ser pensada como um contexto autônomo frente ao contato com outras nações? As respostas para estas perguntas são múltiplas, mas, divergentes ou não, há algo que as torna semelhantes: a cada forma de contar a História das relações internacionais corresponde um projeto – pessoal ou mais comumente coletivo –, de manter ou de transformar a situação atual da convivência entre os povos. Em outras palavras, o conhecimento produzido sobre o mundo não costuma estar desvinculado de um conjunto específico de interesses.

O tema da Guerra do Paraguai é perfeito para explicitar essas questões. Realmente, diversas pesquisas têm sido realizadas recentemente sobre o assunto e isso não é por acaso, já que aquele conflito representa um divisor de águas na história do Cone Sul. Numa época em que a globalização e o Mercosul dão o tom dos debates políticos e acadêmicos envolvendo o relacionamento dos países sul-americanos, discutir as origens da guerra e o real peso de influências externas ao sub-continente nas mesmas torna-se um exercício fundamental. Leia Mais

Guerra do Paraguai: como construímos o conflito | Alfredo da Mota Menezes

Em Guerra do Paraguai: como construímos o conflito, Alfredo Menezes, professor titular de História da América da Universidade Federal de Mato Grosso, promove uma significativa contribuição para a historiografia brasileira com relação a Guerra do Paraguai.

Estudioso do tema há vários anos, o autor traz à discussão sobre a Guerra do Paraguai uma contribuição valiosa ao estudar o contexto regional, em uma abordagem pouco usual na literatura brasileira disponível, dado que chama a atenção para a intrincada conjuntura política dos países envolvidos no conflito nos anos anteriores à guerra. Sua análise parte, portanto, da averiguação das motivações regionais que desembocaram na tragédia platina do século passado. Leia Mais

Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura – FUNARI (VH)

FUNARI, Pedro Paulo. Cultura Popular na Antiguidade Clássica-grafites, arte, erotismo, sensualidade e amor, poesia e cultura. São Paulo: Contexto, 1989. Resenha de: DUARTE, Regina Horta. Varia História, Belo Horizonte, v.9, n.12, p. 154-155, dez., 1993.

Os estudiosos da história vêm, há muito tempo, ampliando sensibilidade em relação aos sinais do passado que chegaram até nós, trazendo seu testemunho acerca de outras organizações sociais.

O historiador francês Lucien Febvre alertou, num texto de 1949, para a 1mportancra dessa abertura da noção do documento histórico: os documentos escritos têm grande utilidade na pesquisa. Porém, sua ausência não deve impossibilitar tal trabalho. Também os signos, as palavras, as paisagens e as formas dos campos, ou seja, tudo o que traga inscrita a ação humana serve como documento ao historiador hábil e perspicaz.

É esta criatividade na busca de fontes que faz da obra de Pedro Paulo Funari um texto essencial para os leitores que s interessam pelas várias possibilidades abertas pela construção do passado histórico. No caso, a Antigüidade Clássica é analisada a partir de um aspecto inédito, o que leva o autor a falar em uma outra Antiguidade. A cultura popular, suas manifestações esquecidas e desprezadas durante tantos séculos- quando só uma parte da cultura clássica fascinou e serviu de modelo à cultura ocidental moderna – é o tema de reflexão da obra.

Na ausência de documentos escritos tradicionais, o autor recupera as pichações nos muros e paredes das cidades antigas. A maior parte da documentação foi levantada em Pompéia, cidade onde uma catástrofe vulcânica Preveniu a destruição desses sinais. A forma de lidar com os grafites mostra-se tão original quanto a sua escolha como documentação: Funari não se reduz a desvendar as palavras, frases e poesias inscritas, mas analisa a expressividade iconográfica dos sinais gráficos, mostrando a excelência artística dos autores anônimos e, talvez o mais importante para o olhar do historiador, a forma através da qual esses pichadores relacionavam-se com as palavras.

No seu intento de fugir a uma história parcial, que privilegia apenas uma versão construída pelas elites dominantes da época, o autor utiliza os grafites como monumentos: são sinais de um assado construídos dentro de situações de conflito, ambiguidades, sonhos e esperanças, protestos e indignações. Entretanto, a obra continua apoiando-se num dos pilares da historiografia tradicional: o que move a pesquisa é, segundo as palavras de Funari, reconhecer-se “nos gregos e nos romanos e perceber como eles têm a ver com a gente”. Historiadores dedicados ao período clássico – como Finley, Vidal-Naquet, Vernant, M. Dettienne e Paul Veyne – renovaram a abordagem historiográfica justamente pela vertente oposta. Destacam a diferença de valores, de mentalidade, de organização social. Ressaltam o caráter diverso dessas sociedades, renunciando-se às categorias eternas e continuidades enganadoras. Como afirma o filósofo C. Castoriadis, o que precisamente nos interessa na história é nossa “alteridade autêntica, os outros possíveis do homem em sua singularidade absoluta”.

Outro aspecto passível de discussão pode ser apontado na visão dicotômica transmitida na separação cultura popular/cultura erudita. A cultura erudita é classificada como “continuadora imóvel da tradição reprodutora de um passado clássico”; a minoria erudita é inativa; a pintura apreciada pela elite caracteriza-se, para o autor, pela ”continuidade na ausência de rupturas, na sensação de imutabilidade”. Funari apresenta o leitor uma cultura clássica erudita completamente estática e desprezível. Por outro lado, a cultura popular é dinâmica, criativa, revestida de caráter multifacetado e contestatório.

Entretanto, não é tão fácil dividir, cultura erudita e popular, já que há um movimento constante de recriações e apropriações, onde pólos aparentemente opostos se interpenetram. Além disso, é inútil negar a riqueza da cultura clássica que o autor classifica como erudita. Como desprezar (só para citar alguns exemplos) Ésquilo, Sófoles, Hesíodo, Heródoto, Virgílio e tantos outros? A nova história precisa exorcisar o perigo da adesão às novidades simplificadoras, como a de que tudo o que foi criado pelos “vencidos” seja “bom”, sob pena d cair no moralismo românico.

Paralelamente à necessidade de debater tais posições contidas no livro, afirma-se o valor de sua leitura. Dedicado a um público Jovem, estimulará, sem margem de dúvida, o fascínio pelo estudo da história. Acreditamos que seu uso, em turmas de jovens estudantes, poderá contribuir imensamente para levar, ao ensino de segundo grau, uma história renovada, simples sem ser simplista, interessante e, finalmente, instigante.

Regina Horta Duarte – Professora do Departamento de História FAFICH·UFMG.

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