Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet | Mateus Henrique de Faria Pereira

Para lidar com a finitude, os homens atribuíram sentido, em diferentes circunstâncias históricas, ao tempo e à ausência dele: inventariaram virtudes capazes de proporcionar uma vida feliz; filosofaram sobre os sentidos da existência; compuseram cosmogonias ou mitos originários; poetizaram sobre as relações entre deuses e mortais; figuraram o além; articularam premissas sobre a transubstanciação da alma; relataram experiências xamânicas; elaboraram regimentos para validar o ritual da apoteose ou da divinização dos reis. Conceber o tempo significa refletir sobre a existência mundana e a morte; forjar elos entre mundo físico e plano metafísico, muitos deles amparados em sacrifícios e libações; constituir vínculos entre memória e esquecimento, entre ser e não-ser. Assim, faraós redivivos, imperadores deificados, almas danadas, indivíduos beatificados são produzidos conforme interesses datados e imaginários, uma vez que os agentes históricos conferem sentido ao sagrado e ao profano, aos ritos fúnebres, aos cultos à memória, gestos ancestrais cujo sentido depende de aparatos técnicos, dinâmicas sociais, saberes e estruturas simbólicas; componentes que participam da historicidade do tempo e organizam sua (in)coerência por intermédio da narrativa.

O tempo não constitui uma unidade coerente, distribuída de forma regular/linear com sentido pré-fixado. É a narrativa que proporciona esse efeito ao arranjar porções temporais, mais ou menos duradouras, e condicionar sujeitos, naturalizando teleologias e paradigmas evolutivos, psicológicos, românticos, progressistas, niilistas, utópicos, autoritários, que elaboram a (in)consistência das relações, sempre mutáveis e tensas, entre passado, presente e futuro.

O livro de Mateus Henrique de Faria Pereira, Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet, publicado em 2022, se aventura em terreno íngreme e, ao longo de quatro capítulos/ensaios, escritos com clareza e precisão, propõe uma “reflexão sobre uma problemática fugidia: as possibilidades de temporalização experimentadas em nosso tempo presente” (Pereira, 2022, p. 14). Como antecipa o subtítulo da obra, as reflexões são situadas na “era da internet”, mais precisamente, nas últimas duas décadas. O primeiro ensaio, por sinal, com o intuito de conceder ao leitor suporte teórico e conceitual, se detém na historicização da “história do tempo presente” que, desde a década de 1970, na França, tem suscitado debates e controvérsias. O autor poderia ter retomado Homero, para mencionar o pranto de Ulisses na corte dos feácios e a dolorosa “experimentação” da temporalidade; ou Tucídides, que valorizou o testemunho como critério nuclear da historiografia. Mas seu propósito não foi o de proporcionar um apanhado erudito que afugenta leitores, ou um repertório de digressões escrito para autopromoção. O caráter didático dos capítulos, a escassez de notas longas e citações, a linguagem acessível e a concisão dos ensaios indicam uma preocupação com o leitor contemporâneo e com suas condições de recepção, sempre entregues à urgência, à impaciência e à objetividade, atributos amplificados pelo mundo virtual.

No segundo ensaio, quando aborda as guerras de memória e a maneira como elas alimentam autoritarismos e criam obstáculos contra os direitos humanos, Mateus Pereira destaca o aumento do negacionismo, a fragilidade das inscrições da memória e, claro, a dificuldade do perdão, especialmente em se tratando do legado, sempre latente, da ditadura militar brasileira. A internet, nesse sentido, acomoda novos processos de armazenamento, divulgação, esquecimento, e outras formas de experimentação da (in)sensibilidade, do (des)apego e da experiência do tempo, repletas de lacunas, fantasmas e imprecisões.

Não existem enunciados que surgem do vazio ou argumentos atemporais cuja validação prescinda de relações de poder e regimes de saber. Os autores e leitores são sempre sujeitos empíricos, históricos, que adquirem bagagem cultural, posição política, crenças, costumes, opiniões; o que, de certa maneira, é negligenciado pelo “atualismo”, termo que designa um presente repleto de novidades e vazio de eventos. Aliás, a sanha por novidades é uma criação romântica, quando os letrados buscaram superar, de vez, os modelos e as tradições para, no seu lugar, alçarem a figura do gênio e o pressuposto da originalidade.

Ao homogeneizar a verdade com ardis variados, o atualismo oculta, no seu bojo, outras historicidades capazes de despertar o senso crítico e resistir à naturalização do status quo. Como demonstra Mateus Pereira, o mapeamento de rumores e ecos virtuais ajuda a compreender a promoção da verdade única, que intenta apagar a temporalidade da própria narrativa, ocultando autoria e propagando negações, negacionismos e revisionismos, muitos deles formulados a partir de sentenças enviesadas. Embora reconheça as contribuições de Freud, Pereira tenta avançar para além do campo do inconsciente, notando a maneira como a imposição do silêncio e o falseamento das verdades torna improvável o perdão e faz perdurar as tópicas da Guerra Fria, como a ideia do anticomunismo. Como reitera no desfecho do capítulo,

[…] a negação, o negacionismo e algumas formas de revisionismo são formas radicais e perigosas de fundamentalismos (diverso, portanto, do relativismo cultural, que é inclusivo e reconhece o valor da diversidade), pois coloca em questão o fato histórico e a verdade factual com base em lógicas de justificação e dissimulação que pretendem extrapolar, estender, manipular e, no limite, negar o poder de veto das fontes históricas. Desse modo, além da refutação e da desconstrução factual, é preciso criar espaço de diálogo, de liberdade e de pluralidade para que se estabeleçam os limites das narrações, interpretações e representações (Pereira, 2022, p. 68).

No tempo presente, inúmeras vozes se entrecruzam, se intercalam, se confrontam, se contradizem; para dar conta desse pandemônio, especialmente em meio a uma pandemia (foi nessas condições que o livro de Mateus Pereira surgiu), é preciso reconhecer que os enunciados são modulados por artifícios, isto é, não são meros desdobramentos de sinceridade psicológica ou crise identitária; em outras palavras, são produtos de artefatos culturais que reúnem esquemas de argumentação tributários de outros discursos, pessoas, contextos, e não prescindem de protocolos, normas e regras que condicionam as possibilidades históricas do pensar, do dizer e do fazer. Formulações autoritárias, narcísicas, autorreferenciais; falas medíocres, especializadas e neoliberais; todas essas ferramentas, amparadas em evidente conotação política, são leituras de mundo e, ao mesmo tempo, frutos de silêncios, escolhas, apagamentos. Logo, são iniciativas restritas, precárias, provisórias, particulares, mesmo quando ostentam ares de universalidade, amparam teleologias, sistematizam imperativos categóricos ou alicerçam as pretensões de exatidão das ciências. Os efeitos das narrativas e do confronto entre elas estão sempre sujeitos aos limites temporais da interpretação e aos autoritarismos de seu presente, que (des)valoriza passado e/ou futuro conforme regimes de poder mais ou menos sutis, que funcionam como engrenagens sociais.

No terceiro ensaio, por sinal, Mateus Pereira reflete sobre as possibilidades de escrita da história (historiografia) por meio de questões envolvendo a Wikipédia. A certa altura, assinala que os historiadores deveriam contribuir com esse mecanismo, de modo a aprimorarem seu conteúdo, sempre sujeito a revisões e a novos olhares. Em se tratando de um espaço de experimentação, mesmo que possa divulgar informações enviesadas, distorcidas e falseadas, a Wikipédia é uma fonte e um meio de divulgação de amplo alcance. Por isso mesmo, o autor fala de uma “mutação” da função autor, muitas vezes oculta, imprecisa, obscurecida ou ofuscada pela ausência ou pelo excesso de agentes que participam da produção de conhecimento.

A chamada “textualidade digital” acaba secundando a fonte que, como sabemos, é fundamental. A própria origem do termo “autoria” revela uma preocupação com a autoridade, auctoritas, relativa àquele que, no passado, integrava a tradição, o chamado “cânone”, em diferentes gêneros discursivos. Para escrever, há 450 anos, Os Lusíadas, Camões recorreu às autoridades de Homero e Virgílio, mas também à ética aristotélica, à filosofia escolástica, à poética de Horácio, o que torna seu “século” muito mais amplo do que os cem anos convencionais. Isso quer dizer que o enunciado poético manuseia vários tempos e, na conjunção deles, irrompe uma nova autoridade épica.

A autoria deixa de ser a “autoridade” protocolada pelo costume e pelas prescrições para se tornar exercício do indivíduo burguês, detentor de direitos autorais e comerciante das letras. Por intermédio, sobretudo, dos jornais, principal difusor da literatura do século XIX, inventaram novos mecanismos de circulação. Estratégias de escrita e a transformação da literatura em mercadoria redundam em um novo sentido de autoria, que busca a originalidade, a autenticidade, o imperativo nacional.

Logo, é de se esperar que a internet, com suas conexões globais e encadeamento de informações, incida em novos protocolos de autenticação da figura do autor, especialmente, quando se considera a opinião um critério validador da verdade enunciada, como se democracia significasse liberdade para proferir palavras autênticas e incontestáveis. Mateus Pereira sugere que a Wikipédia “pode ser entendida como fonte, expressão, metáfora e símbolo das mutações contemporâneas da memória, da escrita da História e da experiência do tempo” (Pereira, 2022, p. 89). Seus mecanismos não invalidam o saber historiográfico, contanto que pautados em “uma relação ética, política e existencial comprometida com o mundo, com a verdade, com interpretações complexas e com a fundamentação do conhecimento produzido” (Pereira, 2022, p. 92). Não por acaso, no último capítulo, ao trabalhar com os fundamentos da Operação Lava Jato, o autor estuda questões envolvendo a transparência e a exposição, notando como escândalos e espetáculos manipulam a opinião pública e criam janelas problemáticas, capazes de tornar indistintas as fronteiras entre público e privado, dificultando a promoção de espaços para o debate coletivo.

Os quatro ensaios problematizam o “falso reconhecimento”, que obscurece as repetições e a historicidade das experiências, forjando a ilusão de um automatismo que oculta as motivações das condutas e desincentiva qualquer tipo de atenção à melhoria da vida. A lembrança do presente, como lembra Pereira, leva-nos a “refletir sobre o tempo histórico” (Pereira, 2022, p. 117) e a não encarar o atual como incontornável, incorrigível e etéreo. O “falso reconhecimento”, e a ilusão por ele criada, é o combustível do atualismo; a base dos negacionismos e revisionismos propagados e amplificados pela mídia, pelos recursos digitais e pelos sujeitos que procedem como o indivíduo da capa de Lembrança do presente: fotografa, registra, arquiva, mas não retém, trabalha ou formula o conteúdo arquivado. Isso porque a necessidade de expor é superior à vontade de compreender.

Na apresentação ao livro, Pereira antecipa o “caráter ensaístico” de suas “meditações”. O gênero “ensaio” é facilmente localizado nos capítulos: linguagem desprovida de arrogância; escassez de vocábulos muito rebuscados; adesão a um estilo didático. Mas porque “meditações”? Decerto, a obra é fruto de estudo, pesquisa e inquietações; condensa incômodos, aspectos de uma trajetória particular; mas, conforme tratados antigos, meditações mobilizam sentenças e fórmulas universais, como é o caso da obra do imperador estoico Marco Aurélio. Mateus Pereira, ao contrário, desconstrói os conceitos com pretensões universalistas e as formulações que buscam legitimar verdades absolutas. Meditar é uma conduta filosófica que mira a verossimilhança; que busca desvendar os mecanismos da “natureza humana” e os princípios racionais que se ajustam a ela. No entanto, há no livro algo que o aproxima dessa iniciativa: a vontade de deslindar caminhos que “nos ajudem a compreender e viver melhor a condição histórica na era da internet” (Pereira, 2022, p. 118). Se o primeiro ensaio preceitua a chamada “História do Tempo Presente”, o livro, por inteiro, pratica uma de suas modalidades. Sendo assim, ele atende ao propósito de “intensificar a conexão entre teoria e empiria, entre reflexão e prática historiográfica” (Pereira, 2022, p. 18).

Em meio ao fatídico cenário de uma pandemia; perante uma conjuntura bélica iniciada no Leste Europeu; no interior de um governo que avaliza os negacionismos e abastece iniciativas autoritárias; diante desse contexto inglório é louvável saber que existem estudiosos engajados que escrutinam as ruínas (geralmente acompanhadas do prefixo “pós”) do nosso presente e encontram, no seu âmago, a possibilidade de uma história carregada de esperança e escorada por propósitos éticos. As várias fissuras do presente; as inúmeras historicidades do tempo; as múltiplas narrativas da história; as incontáveis formulações da verdade… a internet avoluma essa pluralidade e demanda investimento teórico. Lembrança do presente é convite ao leitor que queira refletir sobre a própria existência e meditar sobre a vida que é possível nas dobras de um tempo repleto de temporalidades.


Referência

PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. Belo Horizonte: Autêntica, 2022.


Resenhista

Cleber Vinicius do Amaral Felipe – Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, MG, Brasil. E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0002-3930-3936


Referências desta Resenha

PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Lembrança do presente: ensaios sobre a condição histórica na era da internet. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. Resenha de: FELIPE, Cleber Vinicius do Amaral. Atualismo e historicidade do tempo presente. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 42, n. 91, 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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