Mercados minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890) | Juliana Barreto Farias

O livro de Juliana Barreto Farias sobre os africanos de nação “mina” na praça do mercado da Praia do Peixe (ou da Candelária) apresenta um estudo histórico sistemático sobre o principal mercado público do Rio de Janeiro no século XIX, assim como sobre as famosas quitandeiras que nele e em torno dele se ocupavam da venda de gêneros alimentícios. Em um momento em que diversas pesquisas começam a tratar das praças de mercados e de quitandeiras em outros períodos e regiões, sua publicação se mostra bem vinda, e abre possibilidades de diálogo mais amplo entre tradições historiográficas diferentes.

O termo “mina” referia-se à nomenclatura do comércio e do tráfico atlântico de escravos, designando aqueles que saíam da Costa da Mina, na África Ocidental, e foi reapropriado e ressignificado do outro lado do Atlântico. No Brasil do século XIX os africanos mina, sobretudo as mulheres, ficaram conhecidos como exímios comerciantes. Esse aspecto foi registrado em textos e imagens de viajantes. Embora fossem minoria com relação às mulheres de origem banto, as minas têm se tornado o foco das pesquisas desenvolvidas nos últimos anos, em parte (ou principalmente) pela sua capacidade de comprar a própria alforria e por seu lugar central nas redes de comércio e, portanto, em redes sociais mais amplas entre os diversos grupos de africanos chegados a estas costas. O trabalho de Faria se insere nesta linha.

Além dos temas específicos, apresentados já no título, a pesquisa de Farias é também um denso estudo de história social sobre muitas outras coisas: as relações de gênero entre os trabalhadores africanos no âmbito da escravidão urbana; as disputas e estratégias de indivíduos e grupos de mercadores de diferentes pertencimentos étnicos e nacionais para se inserirem no seleto e cheio de possibilidades mercado de circulação de gêneros da capital do Império; e as expectativas de liberdade desses homens e mulheres, vindos de ultramar ou aqui nascidos, que carregavam o estigma da escravidão.

Para dar conta destas muitas questões, Farias realizou intensa pesquisa empírica, na qual se cruzam diferentes fundos documentais, tratados tanto de forma quantitativa quanto qualitativa: documentos sobre o Mercado da Candelária, como licenças, abaixo- assinados, ofícios, relatórios de fiscais, queixas e representações, editais e regulamentos; listas de negociantes publicadas no Almanak Laemmert; processos de divórcio do Arquivo da Cúria e outros processos-crimes e cíveis.

O trabalho de Farias se ancora na pesquisa nominativa e no cruzamento de fontes, tratamento bastante utilizado pela história social da escravidão a partir de trabalhos pioneiros sobre família escrava no Brasil. Assim, a partir dos nomes de arrendatários do mercado, a autora buscou tecer os fios que ligaram as vidas de quitandeiras, pombeiros (intermediários) e pequenos comerciantes da praça em suas relações cotidianas, para saber quem eram os africanos minas locatários de bancas, como trabalhavam, quais suas expectativas sobre a liberdade, por que e com quem se casavam e qual o significado dessas uniões. O mercado é considerado um espaço privilegiado para compreender as possibilidades e estratégias de vida e trabalho daqueles africanos pela acumulação de pecúlio para a compra da alforria. Nesse processo, aqueles homens e mulheres estabeleceram prioritariamente alianças e parcerias em torno da identidade mina, mas estiveram em constante negociação com outros grupos.

Vindos do continente africano ou da Bahia, por serem minoria no Rio de Janeiro os mina assumiam essa identidade para se fortalecer, recriando assim laços de uma família ampliada. Isso teria sido “fundamental para a visibilidade e preeminência que angariaram nos diversos mercados da cidade”. (p. 270) Para explicar a fama dos mina como comerciantes, Farias recorre tanto a aspectos da organização socioeconômica nas sociedades de origem no continente africano como às experiências compartilhadas na cidade do Rio: no primeiro caso, a predominância das mulheres no comércio de alimentos e, no segundo, a possibilidade de maior autonomia através do comércio e da obtenção de cartas de alforria.

Farias transita entre tradições historiográficas consolidadas e se nutre delas, embora nem sempre estabeleça um diálogo explícito ou sistemático com elas: desde a história da escravidão urbana, sua maior referência, passando pela produção que vê a municipalidade não apenas como lugar de regulamentação e controle, mas também de disputas e de reivindicação, até história do cotidiano e da família, incluindo aí a importância das mulheres e de seu trabalho na praça do mercado e na circulação de gêneros. As ocasiões em que estes diálogos historiográficos se explicitam referem-se sobretudo a temas e objetos de pesquisa semelhantes, a respeito das quais a autora chega a conclusões diversas devido à especificidade das características do grupo abordado — os africanos mina da praça do mercado do Rio de Janeiro —, e às perguntas de investigação que coloca.

O exemplo mais evidente deste tipo de diálogo se dá em relação à pesquisa de Sheila de Carvalho Faria sobre as mulheres forras minas em São João Del Rei e no Rio de Janeiro do século XVIII. As mulheres investigadas por Sheila Faria escolhiam formar família com escravas e suas crias ao invés de se casar, como uma estratégia para preservar o patrimônio em mãos femininas. Além disso, também buscavam preparar e treinar essas mulheres, escravas ou livres, dependentes, mas não familiares para o trabalho. Juliana Farias contrasta esta situação com as minas do Mercado da Candelária que, ao contrário, tinham no casamento uma de suas estratégias, e não se preocupavam em ser generosas com suas escravas. Com isso, Juliana Farias ressalta o casamento como forma de potencializar o trabalho os investimentos dos casais de africanos minas que atuam na praça do mercado. O contraste com as formas de organização de outros grupos de mulheres, em outros lugares e momentos, reforçam a particularidade das estratégias das mulheres minas do mercado da Candelária no século XIX.

Ao cotejar os dados sobre os ocupantes das 112 bancas do Mercado da Candelária, construído na década de 1830 e concluído em 1841, Farias identificou a presença de brasileiros, africanos (sobretudo minas) e portugueses. A estratégia comum a todos era a transferência das bancas entre locatários de igual procedência étnica ou nacional, ou entre pessoas da mesma família. Entretanto, apesar de preferirem unir-se aos seus iguais, africanos e portugueses não estavam permanentemente em conflito, mas faziam parcerias (p. 106). Tratava-se de parecerias com certas regras e formas: os homens lusos podiam associar-se com africanas, que eram as únicas arrendatárias das bancas. Não se registra parcerias entre estes homens e mulheres portuguesas, nem de outras nações que não fossem mina. Essa exclusividade das mulheres mina como arrendatárias de bancas do mercado e como parceiras de homens portugueses é destacável.

Após uma incursão na historiografia sobre imigração portuguesa, a autora sugere que a atividade no comércio era considerada masculina entre os imigrantes lusos, muito embora as mulheres certamente auxiliassem seus companheiros. A autora descarta o fator demográfico como único determinante para essa ausência, que estaria relacionada também às formas e arranjos familiares, de trabalho e domesticidade entre os imigrantes lusos. Sugere-se que havia um aspecto normativo mais forte para as portuguesas do que para as minas na relação entre domesticidade e trabalho no comércio urbano. Mas as razões pelas quais a comunidade portuguesa estava mais afinada com essas representações morais e essas normas sociais merecem mais pesquisa com as mesmas perguntas aqui elaboradas para as minas.

Além do gênero e do fator étnico, há um componente racial que também aparece como importante diferenciador nas possibilidades que se abriam ou se fechavam na praça do mercado. Um bom exemplo é o caso do liberto Domingos José Sayão. Com a morte de seu sócio, Sayão deveria “herdar” o direito de ocupar a banca, mas terminou perdendo o lugar para o português José da Costa e Souza. Ao ver-se sem a banca, o liberto Sayão apelou ao Ministério dos Negócios do Império, com o argumento de que era o arrendatário de direito. Embora tivesse apresentado todos os indícios a seu favor, ele não possuía o contrato de sociedade. O contrato de locação existia, e estava no nome de um deles. O que o liberto não tinha era seu nome registrado num contrato de “sociedade”, para provar que tinha direito a herdar lugar na praça. Foi o próprio ministro, Torres Homem, que redigiu o parecer contrário à apelação do liberto. A banca terminou com o português Costa e Souza, graças a uma concessão da municipalidade. Nas palavras de um vereador, tratou-se de um “patronato escandaloso” da municipalidade em favor do português. Todos podiam ter acesso às bancas, que eram concedidas pela municipalidade, exceto escravos. Neste contexto, a exclusão do liberto Sayão é reveladora do funcionamento das hierarquias raciais e relações entre arrendatários e poder imperial.

Segundo Farias, era usual que os africanos não registrassem contratos ou parcerias comerciais em cartório, saindo já de início em desvantagem em relação aos portugueses. Apesar disso, homens e mulheres minas permaneciam longos períodos nas mesmas bancas, transferindo-as, posteriormente, para seus parentes de nação, sua família simbólica, a partir da qual organizavam suas vidas e as de seus descendentes. Como faziam isso? Primeiro, juntavam recursos para a compra da alforria e ajudavam seus parceiros a adquirir as suas, depois, ingressavam numa irmandade e, finalmente, legalizavam suas uniões conjugais preexistentes na Igreja Católica. Em seguida, empenhavam-se na compra de cativos para auxiliá-los nas vendas.

Para compreender os significados do casamento católico para esses africanos minas, Farias utiliza os processos de divórcio. Através de uma sutil análise, a imagem que emerge é a das altivas minas, o que reitera a impressão dos viajantes estrangeiros. A perspectiva aqui apresentada é tributária de uma historiografia já consolidada no uso de processos–crimes como fontes: interessa investigar as versões e os modelos de conduta social para construir a argumentação dos envolvidos. Um exemplo seria o caso das minas libertas Henriqueta e Joaquina, que denunciaram seus maridos por sevícias, maus tratos ou adultério. Os maridos, Rufino e José, como de costume, mobilizaram o argumento da moralidade contra elas — mulheres que não se encaixavam no modelo de domínio patriarcal —, ainda que tão habituados ao constante trânsito delas pelas ruas a trabalhar com suas quitandas. Assim, reconhece a autora, a norma não definia a conduta dessas mulheres, que trabalhavam pela sobrevivência sozinhas ou ao lado de seus companheiros, mas com significativa dose de independência e autonomia.

Apesar disso, as africanas chegavam a enfrentar, no casamento, maridos que podiam se transformar em “réplicas de seus antigos senhores” (p. 206). Segundo os relatos encontrados nos processos, além de espancar e castigar suas companheiras, alguns homens exigiam delas o pagamento de jornais diários. Justamente elas, tão conhecidas como altivas quitandeiras minas nos relatos de viajantes e cronistas da época, não haviam chegado até ali para serem tratadas como escravas novamente, e por isso não hesitavam em submeter seus ex-companheiros à “lei dos brancos.” No Brasil, essas africanas mina, que dominavam o comércio de rua, não aceitariam tão facilmente serem subtraídas de suas conquistas sociais e materiais. Para Farias, o patriarcalismo teria sofrido um duro golpe,

especialmente porque as mulheres passaram a ter primazia e independência na comunidade negra, sobressaindo no controle do pequeno comércio urbano e na aquisição bem-sucedida de suas cartas de alforria. (p. 211)

Como os processos de divórcio foram produzidos em momentos de crise e decepção com o contrato matrimonial, apenas com sutileza e sensibilidade a pesquisadora pôde vislumbrar em seus meandros a importância e os significados do casamento para aqueles que o contraíram. Por que, ao contrário do que mostram pesquisas sobre outros grupos de mulheres minas, era importante para essas africanas casar dentro de seu próprio grupo étnico? Porque, responde a autora,

casar — e, se necessário, descasar — lhes afigurava como fundamental para uma vida de trabalho, segurança, respeito e liberdade. (p. 209)

O próximo passo era adquirir escravos, a principal, praticamente a única forma de investimento dos africanos, segundo a autora, ao menos até 1870. Os portugueses, ao contrário, podiam diversificar mais seus investimentos, sobretudo após 1850, adquirindo imóveis ou ações. Os portugueses também tendiam a contratar caixeiros, além de escravos ou no lugar deles, para a labuta nas bancas. Os africanos libertos aplicavam em cativos os recursos que acumulavam tanto para viver do trabalho deles, como para revendê-los adiante. Para os negociantes libertos, ter escravos não significava parar de trabalhar, pois eles e elas continuavam nas vendas lado a lado com seus cativos. Significava potencializar o trabalho da família e “aumentar a fortuna” (p. 224). Já para seus escravos, significava, por um lado, estar inserido numa rede instrutiva de exímios negociantes, mas também pagar altos preços pela própria alforria pois, segundo a autora, “os pequenos escravistas africanos nem sempre estavam dispostos a ceder facilmente.” (p. 249)

Finalmente, é importante ressaltar que, nas informações fornecidas pelos inventários e testamentos sobre as escravarias dos africanos minas, Farias constatou que poucos chegavam realmente a acumular muitos bens, mesmo após anos de trabalho na praça do mercado (na qual permaneciam, em média, entre 15 e 20 anos). A maioria conseguia apenas o suficiente para subsistir e, sobretudo, manter a vaga no mercado, que era o que legavam para os seus descendentes. A autora encontrou apenas duas pretas minas que acumularam patrimônio significativo. Elas, que chegaram a ter vários cativos e outros bens (prédios, móveis, joias), cobravam preço elevado pela alforria de seus escravos e não lhes legaram nada ao fim da vida. Afinal, conclui a autora, acreditavam que patrimônio tão duramente conquistado tinha que ser partilhado entre filhos e parentes de nação libertos como eles e elas — cônjuges, amigos, compadres e parceiros de trabalho —, sem incluir seu escravos e ex-escravos, ainda que também fossem minas. Assim, Farias conclui que os minas do Mercado da Candelária podiam ser menos generosos com seus cativos do que locatários de outras procedências étnicas e raciais. (p. 237)

Longe de relegar a um capítulo ou parte específica a discussão sobre padrões de gênero, a autora está todo o tempo atenta a como eles definiam os lugares sociais dos indivíduos e os diferenciavam através da combinação entre categorias de gênero e étnico-raciais. Ao observar a ausência das mulheres em documentos oficiais, registros e contratos, Farias aponta para a invisibilização do trabalho que elas desempenhavam e questiona seus significados. Com outras evidências, fora dos contratos feitos na lei dos brancos, mostra que as mulheres trabalhavam ao lado de seus companheiros e parceiros. Segundo a autora, uma diferença fundamental entre os negociantes minas e outros, sobretudo os lusos, era que não havia rigidez na divisão das tarefas por gênero, conforme já aqui apontado.

Farias reforça e aprofunda o que a historiografia vem apontando sobre como a identidade mina assumiu significados de qualificação para o trabalho com o comércio de gêneros nas ruas e no Mercado da Candelária. A quitandeira mina pode ter virado sinônimo de negociante, com credenciais como respeitabilidade e desenvoltura para as vendas, além de astúcia para a negociação. A partir disso, podemos nos indagar sobre a construção no longo prazo de uma imagem dos minas que atribui a eles um papel fundamental nas atividades comerciais e na movimentação de crédito em escala miúda, e sobre qual teria sido o impacto disso sobre outros grupos étnicos.

O livro de Juliana Farias é leitura fundamental para os interessados numa história social dos mercados, da cidade do Rio de Janeiro, da escravidão e do trabalho. Ressaltei aqui especialmente sua contribuição a respeito das relações de gênero que orientavam a ocupação do comércio exercido no espaço público na cidade. A qualidade do livro abre um leque de questões sobre os limites dos lugares sociais que algumas das mulheres minas alcançaram ou que era possível alcançar coletivamente em relação a outros trabalhadores da cidade, em diferentes momentos do século XIX, suas alianças e tensões, levando em conta as implicações de classe imbricadas às relações raciais e de gênero.


Resenhista

Fabiane Popinigis – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: [email protected]


Referências desta Resenha

FARIAS, Juliana Barreto. Mercados minas: africanos ocidentais na Praça do Mercado do Rio de Janeiro (1830-1890). Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade, 2015. Resenha de: POPINIGIS, Fabiane. Relações de gênero e etnicidade no trabalho do mercado. Afro-Ásia, n. 58, p. 241-247, 2018. Acessar publicação original [DR/JF]

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