Tornar-se negro ou índio: a legalização das identidades no Nordeste brasileiro | Jan Hoffman French

O título é autoexplicativo: Tornar-se negro ou índio trata de processos identitários no último terço do século 20, experimentados por moradores das proximidades do Rio São Francisco, em territórios alagoano e sergipano. A pesquisa empreendida pela advogada Jan Hoffman French, que é também antropóloga, na Universidade de Richmon (EUA), foi desenvolvida nos anos 1990 e narra a transição identitária das populações Xocó e Mocambo: de trabalhadores rurais aparentados e próximos em território, a índios e quilombolas, respectivamente, que cultivaram interesses distintos nos anos 2000. Essa é a história substantiva da obra. Em termos metahistóricos, o livro trata do papel positivo do Estado e da globalização nesse processo de empoderamento (reconhecimento identitário e posse da terra) das populações subalternizadas. Mais importante, o livro informa sobre as implicações desta pesquisa para a produção de novo modelo teórico que aborda, conjuntamente, a emergência de identidades indígena e negra, em sociedades sustentadas por Estado democrático de direito: a criação do modelo de “legalização das identidades”. Trata-se de um conjunto de procedimentos e categorias que explicam o processo de construção de identidades no qual “a própria lei e suas interpretações” são modificadas “ao longo do tempo”, à medida em que “as pessoas por ela afetadas utilizam-na de diversas formas e, nesse processo, passam por uma transformação identitária” (p.34). Tais situações envolvem não apenas os agentes clássicos do Estado, mas também a Igreja Católica, ONGs, advogados, antropólogos e procuradores do Ministério Público (governamentalidade).

Os três capítulos iniciais são os mais significativos para entender a construção dessas novas identidades. No primeiro – “A localização das identidades na paisagem religiosa do sertão” –, a autora descreve e situa, literalmente, as povoações de Mocambo e Ilha de São Pedro na paisagem. Em seguida, narra o conflito de ideologias e teologias na Igreja Católica latino-americana e sergipana (Elder Câmara, José Vicente Távora e José Brandão de Castro e Enoque Apolônio), com vitória temporária para a Teologia da Libertação; a crítica aos efeitos perniciosos do Capitalismo no campo; o avanço da pesquisa antropológica na região do Rio São Francisco (Donald Pierson); as metas e os desacertos da política dos governos militares brasileiros em relação aos povos indígenas para a expropriação das terras, principalmente, na Amazônia, e a ingerência desses mesmos governos nos negócios da Igreja Católica. A Igreja local faz o mea-culpa no que diz respeito ao etnocídio praticado durante a colônia e o império, os militares (o Estado) perseguem o suposto comunismo dos religiosos católicos, perdendo, de certo modo, o apoio indireto do clero, e cientistas sociais se engajam na luta por direitos mediante pesquisa histórica e antropológica sobre os, então, trabalhadores excluídos. O resultado dessas combinações insólitas é a mudança de identidade do clero e a mudança de identidade dos ocupantes da Ilha de São Pedro.

Os eventos que constituíram a mutação das identidades estão no capítulo dois e três. No dois – “Podemos não parecer índios, mas somos” –, a transformação de trabalhadores rurais em indígenas, coroada com a invasão, posse e legalização das terras da ilha e do continente, é marcada por conflitos de tipo vário: entre a oligarquia (Família Brito) e a Igreja Católica (D. Brandão e Frei Enoque), entre os trabalhadores rurais (futuros Xocó) e seus patrões (Família Brito), entre as lideranças Xocó, e entre os indígenas reconhecidos (Cariri-Xocó, de Alagoas) e a população em busca de reconhecimento indígena (Xocó, de Sergipe). A mudança identitária é também marcada pelo ativismo de antropólogos e juristas (Beatriz Góis Dantas, Manuela Carneiro da Cunha e Dalmo Dallari, José Alvino Santos Filho), pela pesquisa histórica realizada por Frei Enoque, junto aos, ainda, trabalhadores rurais que ocupavam a Ilha de São Pedro, pela mudança de paradigma na definição de etnicidade (de identidade à diferença relacional) e pelas diferentes estratégias de emprego da legislação: o estado de Sergipe compra a Ilha de São Pedro para fins de reforma agrária, obscurecendo a luta Xocó e a luta Católica por identidade indígena; a Igreja reivindica a terra da Ilha com base no Estatuto do Índio (etnicidade “flexível e contextual”, não ligada à ideia de raça) e os trabalhadores optam pela aquisição da terra, antes da aquisição do reconhecimento étnico, posto que, segundo um chefe Cariri-Xocó, “índio sem terra não é índio” (p.115).

A transição trabalhador/quilombola está descrita no terceiro capítulo – “A construção de fronteiras e a criação de fatos jurídicos: morre um proprietário de terra, nasce um quilombo”. Ali, idênticos grupos profissionais e instituições atuantes na luta em prol dos Xocó têm agência: Padre Isaias, a advogada e freira Mariza Rios, a religiosa leiga Margarette Rocha, a Comissão Pastoral da Terra e as famílias de proprietários rurais, designadas como Dória e Cardoso. Nesta parte do livro, fica mais claro o processo de diferenciação que domina a criação da identidade de indígenas e quilombolas, com os avanços e recuos no estabelecimento de fronteiras (entre um e outro grupo), a partir das estratégias em torno da conquista da terra e estimuladas pela emergência da legislação (no caso dos moradores de Mocambo, o artigo 68 da Constituição de 1988). Fica também clara a tese de que a criação da lei e a sua contínua interpretação (ampliando, restringindo e, novamente, ampliando o a natureza e número de beneficiados) é o motor de várias das contradições deflagradas na passagem de meeiros a posseiros e de posseiros a negros. Com a emergência da lei, militantes e trabalhadores em busca da terra vão adaptando as narrativas e as estratégias de luta, conforme os antropólogos e os membros do movimento negro ressignificam o dispositivo, como também à medida que o Estado vai produzindo políticas públicas inclusivas. Assim, trabalhadores fizeram, efetivamente, escolhas orientadas e interessadas entre se tornarem trabalhadores rurais, descendentes de escravos e remanescentes de quilombolas.

Os três capítulos seguintes, como sugerem os títulos – “Brigas de família e política etnorracial: o que isso tem a ver com a terra?”, “Processos culturais: autenticidade e legalização da diferença” e “Enterrado vivo: a história de uma família torna-se a história de um quilombo” – demonstram em detalhes algumas das teses anunciadas nas quatro seções anteriores, das quais destaco: a relatividade dos demarcadores identitários “raça” e “cor da pele”, diante das intricadas disputas por status social, relações de parentesco e da força da ideologia da democracia racial no país; a explicitação de demarcadores culturais da dança do Toré e da bebida da Jurema, para os índios, e o Samba de coco, para os quilombolas, como evento posterior à legalização das identidades (para usar a expressão-modelo da autora), meses após a obtenção dos direitos; e, por fim, a produção de uma narrativa, transformada em peça teatral pelos alunos de Mocambo, que reapresenta a vida de uma família (a de Antônio do Alto, bisavô do homem-memória do lugar) como memória fundadora do lugar, que incorpora, gradativamente, os demarcadores do escravismo, da negritude e da religião de matriz africana para servir, simultaneamente, como reforçador interno e externo da identidade quilombola recém-adquirida.

O livro de Jan Hoffman French cumpre bem a meta anunciada. Os vícios são residuais: uma falha de revisão aqui, outra lá bem distante. Um deslise acolá, como o emprego de “identidade recém-descoberta” (p.93) depois de ter feito grande elogio à dessessenciaização da ideia de ser índio. Um excesso, no início, também deve ser registrado. Todo o tópico “O Nordeste e o sertão no imaginário brasileiro” é dispensável (para o público nacional). Começar a narrativa substantiva da obra pela etnografia sobre Mocambo e Ilha de São Pedro teria sido melhor alternativa para o plano de redação (tópico 2 do capítulo 1). Além disso, o espaço dessa seção difunde uma discussão pouco aprofundada sobre identidades do Nordeste e do sertanejo nordestino (que não é o objeto do livro), contrastando com a discussão sofisticada sobre identidades indígena e negra. Por fim, todo o tópico soa descrição forçada de contexto, já devidamente contemplado nos capítulos que se seguem: a informação breve sobre relações econômicas, sociais e culturais predominantes em uma vastíssima região, ao longo da primeira metade do século XX.

Por outro lado, sobram virtudes. O conteúdo substantivo do livro é uma lição de método. A autora demonstra como se extrai a relevância acadêmica de um problema de pesquisa: a raridade do fenômeno em determinado contexto teórico-metodológico. Ela explica que a situação era “inimaginável pelos padrões norte-americanos: duas comunidades vizinhas e aparentadas, cujos destinos estiveram completamente imbricados durante gerações, estavam agora separadas do ponto de vista da etnicidade, da raça, da política e da terra” (p.12). É também uma lição de autonomia intelectual/ideológica. Entre as opções identidade de classe e identidade multicultural, opta pela segunda, ao mesmo tempo em que vê agência positiva na ação do Estado e da Globalização.

Penso, por fim, que o maior valor da obra está em ofertar o que prometeu, ou seja, narrar o processo de transformação de dois grupos de trabalhadores rurais aparentados em um grupo quilombola e um grupo indígena, abordados segundo as categorias “governamentalidade” e “legalização das identidades”. Ela apresenta o modelo extraído desses casos de Mocambo e Ilha de São Pedro como exemplo a ser replicado, sobretudo nos processos de reconhecimento identitário nos Estados Unidos da América, onde (diferentemente do Brasil) a ideologia da raça é essencializada, até mesmo, entre povos indígenas, desprezando os componentes de classe (os determinantes biológicos indiferentes aos determinantes econômicos, por exemplo).

Para finalizar, destaco o estímulo que a obra oferece em termos ontológicos e em termos filosófico-especulativos (claro que voltados à minha área de atuação, a formação de professores de História) aos que se aventurarem a transitar pelas 373 páginas. A reflexão ontológica pode ser resumida em uma questão aparentemente absurda: o ser é anterior ou simultâneo ao reconhecer? Dizendo de modo menos abstrato: a identidade indígena é (é sempre ou deve ser sempre) anterior ao seu reconhecimento, sobretudo pelo Estado? As experiências de Mocambo e da Ilha de São Pedro demonstram que o quilombola e o indígena são construídos durante o processo de reconhecimento legal e que essa mudança de compreensão dos fenômenos de construção de identidades é compatível, ideologicamente, com a distribuição de justiça social.

A reflexão especulativa, por outro lado, não está sintetizada numa declaração autoral. É necessário percorrer a obra para capturar a resposta ao sentido da história, inventariando (como tentei fazer nos resumos acima) as séries de contradições intra e entre os agentes envolvidos nessas políticas de identidade. A autora não fez esforço algum para suprimir, por exemplo, (1) o peso da orientação kardecista do promotor em sua decisão de abraçar a causa dos Xocó, (2) a jaboticaba brasileira de pensar a lei como um dispositivo que “às vezes pega e às vezes não pega”, (3) a manifestação de superioridade étnica demonstrada pelo excluído indígena sobre o excluído quilombola, (4) a possibilidade de que uma instituição poderosa como a Igreja Católica possa considerar, em nível micro, a sua responsabilidade e (por determinações metafísicas, jurídicas ou casuísticas) reconhecer que deveria compensar os Xocó do século XX com o apoio à restituição de uma identidade indígena, depois de tê-la suprimido no século XIX. A história da mutação de identidades de trabalhadores rurais em quilombola e indígena é uma narrativa de muitos agentes e nenhum determinante, da parte da autora. Tem sabor de caos. Mas, é claro, os leitores ficam livres para, considerando (sobretudo) as ideias de governamentalidade e legalização das identidades, formular as suas próprias versões sobre o sentido da vida expresso no ocorrido.


Resenhista

Itamar Freitas – Professor do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História, da Universidade Federal de Sergipe, e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras, da Universidade do Estado da Bahia. Publicou “Uma Introdução ao método histórico (2021)” e possui doutorado em Educação, pela Pontifícia Universidade de São Paulo, e em História, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]  orcid.org/0000-0002-0605-7214


Referências desta Resenha

FRENCH, Jan Hoffman. Tornar-se negro ou índio: a legalização das identidades no Nordeste brasileiro. Trad. Iracema Dulley. Rio de Janeiro: FGV, 2021. Resenha de: FREITAS, Itamar. Identidades indígenas e quilombolas entre vizinhos no Rio São Francisco. Crítica Histórica. Maceió, v. 13, n. 26, p. 331-336, dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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