A perspectiva ficcional: representações literárias do passado/Cadernos de Pesquisa do CDHIS/2017

No dossiê desta edição dos Cadernos de Pesquisa do CDDHIS, revista do Centro de Documentação e Pesquisa de História da Universidade Federal de Uberlândia, o leitor terá contato com textos que tratam das fronteiras entre a narrativa histórica e a narrativa literária, partindo do princípio de que essa é questão fundamental para a delimitação da especificidade dos discursos ficcionais e historiográficos.

Estabelecida como campo autônomo a partir da definição de belas-letras do século XVIII, a Literatura divide com a Historiografia, produto do racionalismo científico do século XIX, o problema da representação da realidade e da narratividade. Debater essa tensão constitutiva que aproxima os dois campos é, portanto, também uma forma de refletir sobre os limites que os diferenciam.

É certo que as fronteiras entre os gêneros literários e a Historiografia nunca foram rígidas. A afirmação da História como disciplina científica a partir de meados do século XIX não incidiu na rejeição do caráter narrativo da História.

Leopold von Ranke, um dos fundadores da Historiografia moderna, afirmava que a História diferia de outras atividades científicas por ser também uma arte. Para Ranke as técnicas literárias são elementos fundamentais para a produção da presença, ou seja, para a visualização dos acontecimentos tal como efetivamente aconteceram.

O diálogo da Historiografia com a Teoria Literária a partir da segunda metade do século XX gerou uma série de questionamentos acerca do estatuto epistemológico da Historiografia. Em textos como “O discurso da história”, de Roland Barthes, Meta-história, de Hayden White, e Como se escreve a história, de Paul Veyne, os autores evidenciaram o caráter poético da construção do texto histórico e problematizaram o princípio de referencialidade do discurso histórico.

Por outro lado, a reaproximação entre os dois campos, separados na passagem do século XIX para o XX pela busca por maior objetividade na análise histórica, possibilitou a ampliação dos repertórios de pesquisa e colocou a Literatura definitivamente no rol de interesse dos historiadores. Ainda que o polêmico debate entre o realismo e a poética da narrativa esteja longe do consenso, se tornou difícil refletir sobre a produção historiográfica sem considerar as formas ficcionais de representação da realidade.

O artigo que abre o dossiê, “A Ciência Nova de Giambattista Vico e o romance histórico oitocentista”, é de Daniel Vecchio, que analisa como a obra de Vico fornece instrumentos para se compreender a Literatura ficcional do século XIX a partir de suas formas de representação do passado e de sua relação com a Historiografia. A aproximação epistemológica entre Literatura e História também é investigada no artigo “‘Só uma palavra háde exprimir’: um estudo da saudade através de princípios e métodos historiográficos”, de Maria Clara Costa Pereira. Nele, a autora sugere a historicização da “saudade” a partir de suas representações literárias.

Em “A união dos opostos: abolicionismo e racismo na obra literária de Celso Magalhães”, Yuri Michael Pereira Costa discute a articulação de teorias racistas com o abolicionismo nos escritos do letrado maranhense. Analisa como na obra de Celso Magalhães as representações do passado africano servem de mote para a defesa de um projeto civilizatório eurocêntrico. Já no artigo “O futuro da nação no ventre feminino: projetos políticos e literários sob a pena de Bernardo Guimarães”, Daniela Magalhães Silveira examina a construção dos tipos femininos na obra literária de Bernardo Guimarães. A articulação de questões raciais e de gênero tencionam o projeto civilizatório que marcou a luta abolicionista do escritor mineiro. Em “‘Here begynnyth a schort tretys’: disputas de poder e de gênero em The book of Margery Kempe (1436)”, Carolina Niedermeier Barreiro discute o agenciamento feminino nos escritos de uma mulher no século XV.

No artigo “Camões e a epopeia lusíada: notas introdutórias”, Cleber Vinicius do Amaral Felipe analisa a importância dos lugares comuns na composição de Os lusíadas, de Luís de Camões. A apresentação e o funcionamento desses dispositivos retóricos dão sentido às representações do passado e dão indícios, portanto, da historicidade do texto do poeta português. Em “Os Lotófagos da Odisseia ou sobre o esquecimento do retorno”, Lorena Lopes da Costa utiliza noções encontradas no poema épico de Homero para propor reflexões acerca das formas de compreensão do passado e da tarefa do historiador. Em diálogo direto com o texto de Costa, no artigo “Ópio e memória ou sobre o retorno do esquecimento”, Rafael Guimarães Tavares da Silva investiga os mesmos problemas referentes à representação do passado, mas com enfoque na obra do poeta romeno Paul Celan.

Na seção Arquivo, Documento e Memória, o artigo “Um punhado de bravos: Operação MED: história, memória e identidades”, de Francielle Aparecida Alves e Sandra Mara Dantas, as autoras investigam a ação coletiva que viabilizou a federalização da Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro no final dos anos 1950. A seção Artigos Livres – “O Regimento Inquisitorial de 1774: modernização e dirigismo cultural nos tribunais de fé no reformismo pombalino”, de Igor Tadeu Camilo da Rocha; “Conter rebeliões: a dinâmica de definição dos poderes dos oficiais do Estado do Brasil e a proibição dos perdões em 1720”, de João Henrique Ferreira de Castro; “O movimento conservador norte-americano: genealogia política, genealogia intelectual”, de Gabriel Romero Lyra Trigueiro e “Perspectivas do golpe 1964: abordagens da grande imprensa no Norte e Sudeste do Brasil”, de Camila Barbosa Monção Miranda – reúne abordagens que tratam de temas de História política a partir de uma ampla variedade de fontes e repertórios conceituais.

A resenha do livro Uma feminista na contramão do colonialismo: Olive Schreiner, literatura e a construção da nação sul-africana, 1880-1902, de Raquel Gomes, encerra a revista, retomando o debate acerca das relações entre a escrita literária e a Historiografia.


Organizador

Lainister de Oliveira Esteves – Doutora em História pela Universidade de Brasília (UnB). Professora no Instituto de História INHIS da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).


Referências desta apresentação

ESTEVES, Lainister de Oliveira. Apresentação. Cadernos de Pesquisa do CDHIS. Uberlândia, v. 30, n. 2, jul./dez. 2017. Acessar publicação original [DR/JF]

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