Educação Museal e os projetos de Brasis no ano do bicentenário Anais do Museu Histórico Nacional/2023

Com alegria e renovada esperança entregamos às leitoras e aos leitores dos Anais do Museu Histórico Nacional o dossiê “Educação Museal e os projetos de Brasis no ano do bicentenário”. O produto final não nos deixa esquecer quão desafiadora foi essa empreitada, envolvendo o engajamento de incontáveis pessoas numa expressão de generosidade e de um firme compromisso com o florescimento e o fortalecimento do campo da Educação Museal, em especial, mas não apenas, no âmbito do Grupo de Pesquisa Educação Museal – Conceitos, História e Políticas (GPEM).

Mediante a liderança dinâmica e agregadora de Fernanda Castro, agora à frente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), o GPEM se firmou no diretório de grupos de pesquisa do CNPq a partir de uma linha de investigação desdobrada do grupo “Escritas da história em museus: objetos, narrativas e temporalidades”, do Museu Histórico Nacional, ainda em meados de 2018. Há quatro anos, pessoas educadoras, trabalhadoras de museus, pesquisadoras e estudantes passariam a se reunir mensalmente com o objetivo de trocar experiências, estudar, debater, elaborar conceitos, metodologias e ferramentas com incidência nas práticas educativas em museus.

Nos anos em que a pandemia de covid-19 trouxe, entre tantos outros desafios, o isolamento social, o grupo se manteve aquecido e coeso em reuniões online, que foram abertas e incorporaram colegas de vários estados do Brasil. Espaço diverso, de trocas francas e intensa produção, o GPEM se tornou fonte de resiliência e possibilidade de reexistência, fortalecendo um setor tão duramente afetado pelas múltiplas crises que então se sobrepunham aos museus e à cultura em geral.

No ritmo ágil de sua batuta, Fernanda encorajou integrantes do grupo a propor tarefas e a assumir responsabilidades no desenvolvimento colaborativo do campo da Educação Museal. Uma das necessidades percebidas era, justamente, a configuração de uma publicação especializada para acolher a produção científica do terreno. Em diálogo com a experiente equipe de edição dos Anais do MHN, prevaleceu a ideia de lançar, com alguma regularidade, dossiês focados na temática educativa, a fim de dimensionarmos o fôlego dessa produção. A ocasião do bicentenário da Independência nos propiciou, assim, um mote para provocarmos agentes da Educação Museal a refletir sobre os projetos de Brasis gestados desde o chão em que se efetivam as trocas dos museus, no encontro com e entre os públicos e destes com as nossas matrizes culturais.

Confrontando criticamente a realidade social experimentada em 2022 e as propostas de nação difundidas no século passado, era imperativo reconhecer quantas sementes de exclusão, preconceito e desigualdade haviam prosperado entre nós. Desejávamos, portanto, lançar luz, simultaneamente, sobre as nossas responsabilidades de sujeitos educadores/agentes culturais e sobre os aspectos, conceitos e iniciativas que aqui, agora, anunciam – “profeticamente”, como diria Paulo Freire – a transformação daquele Brasil de desumanização em uma miríade de Brasis mais diversos, inclusivos, democráticos, justos e zelosos de suas heranças culturais. Queríamos, com essas reflexões e relatos, fortalecer nosso esperançar.

É, pois, oportuno e auspicioso que o presente dossiê venha à luz num momento de retomada de diálogos, de reconstrução das políticas públicas e de refortalecimento de instituições, redes e processos museológicos no país. Os artigos aqui publicados vêm corroborar o necessário debate que conecta nossa história e os destinos que estamos a cultivar desde o fazer/pensar cotidiano.

O artigo “As centelhas do passado: a centralidade da educação para transformar o museu e o patrimônio cultural”, de João Lorandi Demarchi, elenca importantes debates sobre as formas pelas quais os museus se presentificam e se constituíram diante da construção da ideia de identidade nacional, ao mesmo tempo em que anuncia o imperativo de uma educação de novo tipo. Algumas constatações e advertências são anunciadas no texto e que chacoalham estruturas e ideias que, infelizmente, insistem em fazer parte do cotidiano museal, emoldurado por um modelo de sociedade que ainda persiste na manutenção do status quodominante. O autor reafirma o papel transformador dos museus, no sentido de desvelar o seu próprio poder ideológico, promovendo a reflexão crítica sobre a história, viabilizando a desconfirmação das narrativas hegemônicas, a fim de possibilitar o retorno dos grupos vencidos. Defende, portanto, que a educação museal se coloque na posição de se contrapor aos silenciamentos do processo de produção histórica, questionando as fontes, os arquivos, as narrativas e a própria história.

Em “Inclusão, representação e pluralidade: uma proposta da Rede de Pessoas Educadoras em Museus de Goiás”, Giovanna Silveira Santos, Karlla Kamylla Passos dos Santos, Leonardo Tavares Alencar, Marina Neiva de Oliveira, Milena de Souza, Natália Dutra Costa e Wynne Borges Carneiro compartilham as discussões e ações empreendidas pela rede goiana – uma das mais antigas e ativas do país – para rever posicionamentos e promover mudanças efetivas num sentido feminista, antirracista e decolonial. Para além dos sentipensares que motivaram a alteração no nome da rede, o coletivo se sustenta sobre um amplo e sólido corpo teórico transdisciplinar, que põe em xeque a relação entre os museus e o poder a partir da suposta neutralidade que exclui e apaga uma diversidade de sujeitos sociais. Refazendo o caminho que levou à criação de algumas das principais instituições museológicas brasileiras, o texto aviva criticamente o debate que conecta os museus à problemática da constituição de uma identidade nacional, na afirmação da nossa independência política. Pode, então, projetar uma mirada renovada, insurgente e amorosa, sintonizada com a vida, nos âmbitos da Museologia e da Educação Museal.

É ainda sobre a centralidade da vida que Tereza Costa, Ana Alencar, Alessandro Batista, Rogerio Fernandes, Marlon Varela, Rita Alcântara, Teresa dos Santos, Tiago de Sousa, Fabio Gouveia, Vanessa Guimarães e Diego Bevilaqua nos farão refletir em “Diversos olhares sobre o fazer da exposição de longa duração Vida e Saúde: relações (in)visíveis”. Mais que com o relato de um programa expositivo, o coletivo nos brinda com um projeto de construção de cidadania por meio da saúde, corroborando um dos pilares da Nova Museologia e da Museologia Social, na qual se referencia. O texto comunica e demonstra um percurso não simplista de leitura de mundo, que não cria oposições entre polaridades, mas estabelece complementaridades entre elementos que compõem a teia fina da existência. Ao revelar essas tramas de inter-relações complexas e não determinadas, nos ensina a descodificar a realidade e pôr-nos em relação com ela, um método válido para muitos campos de atuação. Graças a essa forma de leitura/escrita de mundo, à qual poderíamos chamar cosmopercepção, convida o visitante/usuário a se perceber inserido nessas teias na condição de sujeito, isto é, recriador, protagonista coletivo. Eis, essencialmente, o coração da Museologia. Seu texto traz um projeto de Brasil inclusivo, cidadão, aliado da ciência e da vida.

Os dois artigos que seguem no dossiê contribuem com análises críticas de pesquisadores sobre instituições, visões “externas” – da academia – sobre “ações internas” – de instituições –, chamando as nossas atenções para e reforçando as nossas preocupações com as construções discursivas e narrativas institucionais, como base da função educacional, associada à função social dos e nos museus. O primeiro deles é assinado por Carina Martins Costa, intitulado “Visitas ao Museu Histórico Nacional: registros de memória e ficção”. Interessante recorte sobre a instituição, para “analisar as concepções teórico-metodológicas sobre memória, história e educação”, descrevendo narrativas, discursos e linguagens em fontes escritas destinadas a visitantes, em dois tempos, 1945 e 2010, e trazendo-nos reflexões necessárias no entrelaçamento entre políticas públicas, história institucional e discurso(s) educativo(s). O mesmo entrelaçamento permeia o artigo de David Ribeiro. O título descreve e sintetiza a discussão – “A atuação dos museus e de seus profissionais no combate ao racismo: experiências no Museu das Missões, no Museu Internacional da Escravidão e no AfricaMuseum”. A metodologia do pesquisador-curador-educador nos traz para leitura uma redação descritivo-analítica, argumentativa e didática, evidenciando, a partir dos lugares institucionais estrategicamente escolhidos, discussões relevantes e inevitáveis quando se trata de museus na decolonização.

Agradecemos e abraçamos a todas as pessoas que se envolveram na produção deste dossiê, em meio a circunstâncias diversas e, por vezes, adversas. Esperamos que os debates aqui fomentados cumpram sua dupla função: de evidenciar a riqueza e a relevância da produção de conhecimento no campo da Educação Museal brasileira e de nutrir as leitoras e os leitores com percepções afiadas, desafiadoras e, sobretudo, plurais, tão necessárias neste momento em que nossa Museologia encontra condições de revigorar.


Organizadores

Juliana Siqueira – Doutora em Museologia na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa, Portugal). Atua como agente cultural da Prefeitura Municipal de Campinas e como colaboradora do Laboratório do Bem-Viver e da estruturação do Museu Vivo Cândido Ferreira. Email: [email protected]

Marília Xavier Cury – Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e livre-docente em Museologia na mesma universidade. Atua também como docente no Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE-USP). Email: [email protected]

Ozias de Jesus Soares – Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador e docente do Museu da Vida (Casa de Oswaldo Cruz/ Fiocruz/RJ). Email: [email protected]

Zita Possamai – Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URGS). Atua como docente na mesma instituição. Email: [email protected]


Referências desta apresentação

SIQUEIRA, Juliana; CURY, Marília Xavier; SOARES, Ozias de Jesus; POSSAMAI, Zita. Apresentação. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 57, p. 1-4, 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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