Mitologias e história: entre antigos e modernos/Diálogos/2022

Na primeira das palestras transcrita em Mito e significado, Lévi-Strauss destaca a contraposição entre o conhecer científico e o que se poderia denominar pensamento mitológico. Uma linha de separação foi traçada nos séculos XVII e XVIII, por figuras que se destacaram na construção da ciência moderna, Bacon, Descartes, Newton dentre outros. A ciência no ocidente teria emergido como um campo epistemológico de afirmação de um saber oposto às “velhas gerações de pensamento místico e mítico” (LÉVI-STRAUSS, 1977, p.11) Tal cisão fora marcada pela separação entre um mundo dos sentidos e o real. O universo perceptual, capturado e composto pela visão, olfato, paladar e tato seria enganoso. Às distorções causadas pelas limitações sensoriais, somava-se uma memória imaginativa e sem rigor, que deteriorava entre as gerações e no tempo criando um universo mágico. Domínio de um pensamento associativo, em que predominava um paradigma de similitudes, que se manifestava de modo pré-lógico. Mundo governado por forças que agiam por simpatias e antipatias, habitado por monstros, deuses e heróis, em aventuras e metamorfoses. A natureza das coisas, dos processos e dos fenômenos seriam revelados à razão basicamente pelas suas propriedades matemáticas, quantificáveis, e por uma metodologia verificável, passível de reprodutibilidade, ajustes e revisões cada vez mais refinadas. A matéria e a vida deveriam ser observadas através de instrumentos que potencializam os sentidos, superando seus limites e imprecisões, para depois serem testadas em experimentos que simulavam fenômenos previamente circunscritos, na tentativa de surpreender o mecanismo operante e, ao final, verificando hipóteses, extrair as leis. Impôs-se o rigor analítico compulsivo de um método que particularizava e isolava os caracteres elementares para classificá-los, organizá-los, catalogá-los, equacionando-os em suas proporções e grandezas. Assim, se poderia ler o livro da Natureza, dominando suas sintaxes e semânticas.

Promoveu-se, assim, um ideal de separação entre a mente analítica, racional, e o corpo que nos igualava aos animais. Os “homens da ciência”, as diferenças de gênero foram manifestas, deveriam se colocar à parte, como se fora do mundo, por assim dizer, para que pudessem observar, anotar, experimentar e calcular, usando da sagacidade da razão para superar as astúcias da Natureza e escapar aos encantamentos dos sentidos, da imaginação desregrada, da memória falha, dos préjuízos e pré-conceitos. Surpreender a Natureza, retirar-lhe o véu, desvelá-la, descobri-la, submetê-la e resistir a sua sedução foram imagens recorrentes que acompanharam o nascimento desse modo de produção do conhecer. Uma disciplina monástica sobre a mente e o corpo, mantidos sempre sob uma estrita vigilância.1

A ciência marca a modernidade e o desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), para usar a expressão de Max Weber, mas, como em todo processo histórico, as sínteses, por questões econômicas e didáticas, tendem a apagar e borrar as linhas de continuidade, reforçando mais as rupturas e as contraposições. A mitologia contrasta com a história, em princípio porque está associada a narrativas orais compostas por gerações e gerações de comunidades “sem escrita”, distintas e diversas em sua história e geografia. Não é possível datá-las e nem mesmo determinar sua origem com a precisão que se pretende em uma historiografia dependente de cronologias. Há camadas e sedimentos acumulados de narrativas compostas, recompostas e reviradas, elementos que se associaram no curso de um longo tempo e complexo processo. Os contextos subjacentes perdem-se e são atualizados e reconfigurados em um contínuo devir que se estrutura sob detritos, fragmentos, ruínas de passados plurais. Em certos momentos, muitas dessas narrativas foram fixadas e modeladas na e pela escrita. Uma vez transmutadas em textos, as mitologias se tornaram fontes para as diversas áreas das humanidades. Floresceram abordagens filológicas, históricas, filosóficas, psicológicas e psicanalíticas, antropológicas, literárias, linguísticas, econômicas, sociológicas e políticas. Os mitos foram analisados sob múltiplos aspectos pelas diversas áreas de conhecimento legitimadas por práticas e metodologias institucionalizadas. Nesse encontro, ou confronto entre formas de saberes, há sempre uma reedição, ainda que um eco, da querelle des anciens et des modernes.

Respondendo a objeções de filólogos e linguistas sobre o uso de versões traduzidas dos mitos e o descuido em não considerar a diversidade das línguas em que tais mitologias foram elaboradas e enunciadas, Lévi-Strauss argumentaria:

Todo mito é por natureza uma tradução, origina-se em outro mito proveniente de uma população vizinha mas estrangeira, ou num mito anterior da mesma população, ou ainda contemporâneo, mas pertencente a outra subdivisão social (…) que um ouvinte trata de demarcar, traduzindo-o a seu modo, em sua linguagem pessoal ou tribal, ora para apropriar-se dele ora para desmenti-lo, e assim, sempre, deformando-o. Se o estudo filológico dos mitos não constitui condição prévia indispensável, a razão disso se encontra no que poderíamos chamar de sua natureza diacrítica. Cada uma de suas transformações resulta de uma oposição dialética a uma outra transformação, e sua essência reside no fato irredutível da tradução pela e para a oposição. Encarado do ponto de vista empírico, todo mito é ao mesmo tempo primitivo em relação a si mesmo, derivado em relação a outros; não se situa em uma língua ou em uma cultura ou subcultura, mas no ponto de articulação entre elas e outras línguas e outras culturas. O mito não é, consequentemente, jamais de sua língua, é uma perspectiva sobre uma língua outra, e o mitólogo que o apreende através de uma tradução não se sente numa situação muito diferente da do narrador ou de seu ouvinte. (LÉVI-STRAUSS, 2011, p. 578-83)

Tal resposta, necessariamente, levanta outros questionamentos como, por exemplo, quais critérios definem a escolha de uma determinada versão e seleção? Há ouvintes e narradores de diferentes qualidades e que ocupam perspectivas e lugares distintos, assim como traduções, apropriações, deformações, modelagens, decantações passadas por diversas filtragens. Embora a passagem não contemple todo o problema posto, ela é essencial no que diz respeito a uma descrição da natureza das mitologias, e não só. Penso que ela pode traduzir de um modo adequado a natureza da própria história e do conhecimento histórico. Toda história é por natureza uma tradução, origina-se em outra história proveniente de uma população vizinha mas estrangeira, ou numa história anterior da mesma população, ou ainda contemporânea, mas pertencente a outra subdivisão social. A paráfrase poderia continuar seguindo até o final, substituindo mito por história, o que nos levaria a uma série de outras tantas considerações. Basta que tenhamos em mente apenas o enunciado da tese do historiador e geógrafo David Lowenthal: o passado é um país estrangeiro. Uma outra possibilidade ainda seria substituir mito por memória e outras tantas questões se abririam. Mito, memória e história são distintos mas comungam as formas narrativas e uma relação essencial e dinâmica com o tempo e, talvez o mais importante, se estruturam a partir do esquecimento. A impressão é que Lévi-Strauss enuncia uma fórmula oracular que compreende a natureza histórica, dialética e diacrítica, anacrônica, sincrônica e diacrônica. Um ser do ser, um ser de devenires. Essência que identificamos no mito, na memória, na história, expressões da natureza do humano no tempo, algo de simbiótico entre universais e singularidades, individualidades e coletividades, em um fluxo contínuo de territorializações e desterritorializações.

Os artigos aqui reunidos para esse dossiê desenvolvem questões e reflexões pertinentes às relações entre mitologias e histórias, entre antigos e modernos. Contemplam uma diversidade de temas e perspectivas e abrem possibilidades de análises, debates e diálogos transdisciplinares. É com satisfação que os apresento resumidamente com o intuito de destacar alguns dos elementos centrais.

A querela moderna acerca do “escudo de Aquiles”: sobre um capítulo da questão homérica no Século de Luís XIV, de Sertório de Amorim e Silva Neto, analisa parte dos embates sobre a descrição, no décimo oitavo livro da Ilíada, do escudo do filho de Tétis e a sua representação nas páginas da obra renascentista Le vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori, de Giorgio Vasari, reconhecido como dos primeiros historiadores da arte. O dispositivo retórico da écfrase, que transpõe a imagem para a poesia, ganha destaque como gênero nas disputas literárias da França do dezessete. Observamos batalhas sobre questões relativas aos liames entre a poética e a história, que marcaram a moderna Questão Homérica. O autor nos guia por considerações onde ordem, harmonia, simetria, ênfases, disposição dos detalhes, verossimilhança e a representação do real nas artes da poesia e da pintura delineiam uma perspectiva histórica que confronta a sensibilidade do passado homérico ao do século do Rei Sol.

Em O mito das Sereias e as derivas do imaginário, de Thiago de Sousa Brandão e Florence Dravet, a narrativa homérica é também o ponto de partida para a interpretação de algumas obras de arte que reelaboram e ressignificam o mito das sereias. Os autores se debruçam sobre as reverberações no imaginário moderno de elementos da sonosfera original da Odisséia. Partindo da concepção junguiana de mito em seus aspectos constitutivos da psique, exploram releituras visuais do mitologema do feminino aquático na sociedade moderna, propondo uma reflexão sobre seus aspectos simbólicos e históricos. No percurso articulam a concepção do “efeito sereia” proposta por Peter Sloterdijk e a crítica de Adriana Cavarero sobre o silenciamento do canto mítico na modernidade tardia.

Il Rinascimento nella Kunstwissenschaft intorno al Novecento, de Maria Teresa Costa, centra-se sobre questões referentes ao anacronismo e a periodização, elementares na abordagem historiográfica das mitologias e das artes, consideradas suas pretensões universalistas e atemporais. O Renascimento é um período crucial em que tais indagações afloraram. A antiguidade clássica, as mitologias greco-latinas e judaico-cristã foram tema e suporte de releituras nas artes, filosofia e história. No final do século XIX, momento de afirmação da historiografia contemporânea, surge uma nova proposta nos estudos da arte, a Kunstwissenschaft que, em análises sobre o Renascimento, irá se contrapor às abordagens tradicionais. Contrastando modelos lineares e evolutivos a anacrônicos e descontínuos, o artigo expõe detalhes de uma epistemologia historiográfica e suas raízes filológicas e filosóficas.

É possível mensurar a influência de Aristóteles sobre Alexandre, o Grande? Fontes antigas e historiadores modernos entre especulação e crítica histórica, de Henrique Modanez de Sant’Anna, examina as fontes utilizadas por historiadores contemporâneos na composição e construção dos vínculos entre os dois personagens representativos e centrais do período helenístico. A imagem do rei macedônio, cercada de uma aura mítica, por seus grandes feitos nas guerras, conquistas e governo de um vasto império que marcou profundamente a história. Associada ao não menos mítico filósofo Aristóteles, responsável pela educação do jovem e determinante na capacidade e destreza política do futuro rei. Robin Lane Fox e Peter Morris Green são os historiadores britânicos destacados, cujas obras constroem e reforçam uma interpretação apologética de Alexandre e sua condição de discípulo exemplar do estagirita. O artigo analisa e avalia quais das fontes antigas foram usadas e como elas sustentam a argumentação histórica.

Em Psicologia, religião e política em Édipo Tirano, de Sófocles, à luz da interpretação de Hölderlin, Guilherme Marconi Germer confronta as interpretações de Sigmund Freud (1856- 1839) e Friedrich Hölderlin (1770-1843) sobre a peça o Édipo Tirano (Οἰδίπoυς τύραννoς, Oidípūs týrannos), de Sófocles. Observamos a contraposição de uma leitura que privilegia a tragédia do destino, reveladora das forças dos desejos subterrâneos que estruturam o inconsciente psicanalítico, e outra que enfatiza o choque entre aspectos políticos e religiosos que emergiram no universo da pólis grega. No mito transposto à tragédia articulam-se vontade, destino, hybris (desmesura, arrogância), nefas (excesso, presunção), hamartia (erro), polução, mácula, pharmakós e purificação. Na interpretação das palavras opacas e ambíguas do oráculo encontramos a chave de leituras que se abrem a interpretações finitas e infinitas, da psicologia, da política e da religião.

O mito trágico como paradigma ético e experiência estética do vir-a-ser, de Alexander Gonçalves, revisita a tese do jovem Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) sobre a tragédia grega. A análise dos estilos artísticos antagônicos associados a Apolo e Dioniso propõe questões históricas e culturais. No trágico, o artista joga com o sonho (Traum) e a embriaguez (Rausch), entre unidade e dissolução. O surgimento desse novo estilo é sintomático de uma transformação profunda na cultura da pólis grega. Síntese combinatória do apolíneo e do dionisíaco, a tragédia surge como uma nova composição, música executada pela lira e pelo aulos. Uma fuga entre o transe e a racionalidade, que conjuga a estética e a ética na experiência do vir-a-ser.

As tópicas do heroísmo e da religião orientam uma análise comparativa entre perspectivas de compreensão da cultura e fundamentos das sociedades em Motivos religiosos do sedentarismo primitivo em Vico e das migrações dos indígenas Apapocúva-Guarani segundo Nimuendaju, de Vladimir Chaves dos Santos. A interpretação dos mitos da criação e destruição do mundo dos Apapocúva-Guarani proposta na obra de Curt Nimuendajú (1883-1945) é confrontada com as teses de Giambattista Vico (1668-1744). As argumentações do autor da Scienza Nuova sobre o sedentarismo na história são analisadas em paralelo às do etnólogo germano-guarani sobre as migrações dos indígenas que o adotaram. Nas considerações sobre as mitologias e epistemologias indígenas e greco-latinas articulam-se as concepções materialistas de antigos e modernos em um percurso que leva a considerações sobre realidades suprassensíveis, do espiritual e religioso.

O mito e a paisagem do encantado Ataíde na conservação da biodiversidade em Bragança-PA, de Ricardo Costa Amaral e Yvens Ely Martins Cordeiro, analisa o mito do encantado Ataíde, um protetor das florestas de mangues, difuso entre comunidades de pescadores em uma região amazônica, município de Bragança no estado do Pará. As narrativas entorno do personagem limítrofe de origem afro-indígena são abordadas como paisagens compostas a partir dos conhecimentos ecológicos tradicionais, das historicidades e experiências de vida dos sujeitos da comunidade. O mito, em suas dimensões socioambientais, revelam estratégias de resistência e conservação da biodiversidade da cultura local. Uma perspectiva que territorializa o mito, apresentando-o como expressão de uma realidade simbiótica, da qual o humano é uma parte.

Por último, quero deixar os agradecimentos a todos os que colaboraram com esse dossiê, autores e revisores, cujos pareceres foram fundamentais. Agradeço, em especial, a gentileza de Fabio Vincente, da Associazione Culturale “Carlo Vincenti”, que deu a permissão de uso da imagem da obra “Scudo di Achille” di Carlo Vincenti que ilustra a capa deste dossiê.

Boa leitura a todos.


Nota

1 Para as diversas questões aqui mencionadas de passagem que marcaram o período de nascimento da ciência moderna no ocidente ver: FEDERICI, 2019; FOUCAULT, 2016; LINEBAUGH & REDIKER, 2008; ROSSI, 2015.


Referências

FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma Tannus Muchail, 10ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. Trad. António Marques Bessa. Lisboa: Edições 70, 1977.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O homem nu. Trad. Beatrice Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac Naify, 2011. Mitológicas, v. 4.

LINEBAUGH, Peter; REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, escravos, plebeus e a história oculta do Atlântico revolucionário. Trad. Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

LOWENTHAL, David. The past is a foreign country-revisited. Cambridge University Press, 2015.

ROSSI, Paolo. La nascita della scienza moderna in Europa. Gius. Laterza & Figli Spa, 2015.


Organizador

Marco Cícero Cavallini – Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected] https://orcid.org/0000-0002-7185-5888


Referências desta apresentação

CAVALLINI, Marco Cícero. Editorial. Diálogos. Maringá, v. 26, n. 3, p. I-VII, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

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