Os Tempos na (depois da) História: Revoltas, Crise e Guerra/História- Questões & Debates/2023

Revoltas, crise e guerra: três palavras que assombram sobremaneira a modernidade e que, no que diz respeito às formas de pensamento sobre a história, ao menos nos últimos cinquenta anos têm figurado no horizonte de forma imponderável e ameaçadora. Nesse sentido, o tempo normal, este que se figura num processo ideologicamente guiado, pressuposto e, por isso, naturalizado como continuum pontual e teleologicamente direcionado – os anseios de uma modernidade com vocação universalista e forjadora de uma única e grandiosa História –, tal como alertou Walter Benjamin, parece hoje esboroado e arruinado a tal ponto que, por um lado, há o transbordamento de papers adêmicos, críticas, prognósticos, opiniões e, por outro, a sensação de paralisia e impotência imperante.

Se, de certo modo, com irrupções do maio de 1968 as estabilizações proporcionadas nas democracias ocidentais do Atlântico Norte nos chamados Trinta Glóriosos (1945-1973), então permeadas pela roupagem socialdemocrata, foram de em alguma medida questionadas em prol de um desejo voltado para além das possibilidades por elas propostas – no mote “soyez realistes, démandez l’impossible” –, os rearranjos do sociais, econômicos e políticos das duas décadas seguintes culminaram, após duros embates como os do maio de 1977 italiano, num evento sintomático e simbólico para a abertura deste novo tempo do mundo: a queda do muro de Berlim, em 1989. Desde então, com direito a anunciação do fim da História, tais rearranjos se intensificaram com a conflagração de crises cada vez mais constantes, guerras e revoltas em seus mais diversos matizes: do ataque às torres gêmeas, em Nova Iorque, em 2001 (passando pelos ataques ao Afeganistão e Iraque), à explosão da bolha financeira, em 2008; das primaveras árabes, entre 2010 e aproximadamente 2014 (passando pelos protestos mundo afora: Brasil, 2013, Hong Kong, 2014, Gilets Jaunes na França, 2018, etc.), à revolta chilena de outubro de 2019; da guerra da Ucrânia, cujo início remonta a 2014, e a presidência de Donald Trump, entre 2017 e 2021, à pandemia de COVID-19, a partir de 2020; tudo permeado pela cada vez maior cibernetização dos fluxos informacionais e financeiros e pela automatização e precarização sem precedentes das formas e relações de trabalho, a chamada governamentalidade neoliberal contemporânea.

Essa espécie de tempo acelerado impresso pelos circuitos dos fluxos – tanto os de capital e informação quanto os humanos, sobretudo ligados, hoje, às guerras e à crise climática – parece, paradoxalmente, dilatar-se num presente distendido que, por sua vez, está muito longe das demandas realistas do maio de 1968, ou melhor, de quaisquer anseios libertários nos diversos rincões do planeta. Pelo contrário, o suposto fim da história abriu um mundo no qual os anúncios de catástrofes acabam até mesmo aquém ou distantes daquilo que por sua vez se concretiza: do chamado pós-trabalho à recomposição de mitologias identitárias – novos muros, novos inimigos, novas fronteiras à financeirização (da corrida espacial particular aos implantes de chips para memórias cibernéticas) –, das migrações por escassez de recursos e alimentos à intensificação da precarização das condições de vida mesmo nos países do Atlântico Norte, da crise ambiental às persistentes guerras por combustíveis fósseis. Ou seja, em certa medida parece que o contemporâneo, com sua normalidade simulada, está envolto num delírio de onipotência e no desespero da impotência absoluta, como disse Franco Berardi.

Este dossiê compõe o volume 71 da revista “História: Questões & Debates” e tem uma necessária marca de transdisciplinariedade, uma vez que os debates referentes à gama de problemas que envolvem as questões das revoltas, das crises e das guerras, além de ultrapassar problemas de caráter historiográfico, colocam-se ao campo das humanidades – e até a outras áreas como a climatologia, ecologia, biologia, ciências da saúde etc. – como urgências contemporâneas. Daí sua composição heterogênea, com textos especialistas, brasileiros e estrangeiros, das mais diversas áreas: da literatura latino-americana à filosofia política, da teoria literária à história ambiental, das ciências sociais à história da arte e à teoria da história.

Os textos aqui reunidos abordam a temática com olhares distintos que, porém, compõe de certo modo uma sintonia fina capaz de trazer novos influxos também às problemáticas históricas, sejam elas do campo da historiografia ou da teoria da história. Assim, o primeiro texto, de Sergio Villalobos-Ruminott (University of Michigan), procura, por meio de uma historicização do conceito de fascismo elaborar uma crítica da democracia neoliberal com o intuito de relativizar a oposição fascismo/democracia, apontando formas de um fascismo neoliberal contemporâneo. Com isso, o autor pretende explanar diferenças fundamentais entre a noção de revolta e as insurgências dos movimentos reacionários ou ditos neofascistas, de modo a, por fim, apontar as revoltas como práticas emancipatórias de uma vida que busca escapar dos imperativos do capital.

Na sequência, Rodrigo Karmy (Universidad de Chile) aborda, partindo dos trabalhos de Henri Meschonnic e Furio Jesi, como a revolta, enquanto reversão da experiência do tempo, funciona como uma espécie de experiência poética que não abre o flanco para uma estetização da política, mas dá lugar a uma imaginação popular. Isto é, na revolta estaria em jogo um processo múltiplo de formação coletiva que, por fim, pode ser concebido como um lugar em que se expressa uma espécie de devir menor que escaparia ao tempo homogêneo e vazio da dita normalidade em prol de um campo de possibilidades outro, no qual algo como a escuta funcionaria como abertura à imaginação popular e ao coletivo.

O terceiro texto, de Natalia Tacceta (Universidad de Buenos Aires) investiga a questão da revolta a partir, sobretudo, das conceitualizações de Walter Benjamin. Pautando-se no conceito benjaminiano de aura para além da dimensão propriamente estética, o texto procura explorar a presença constante das problemáticas ligadas à imagem em conexões com as noções de revolução e crítica. Por fim, apresenta como o olhar, a constituição da imagem, é fundamental à própria condição da revolta, ao ponto de, exemplificado nas centenas de pessoas cegadas pelas balas de borracha da repressão policiais no Chile, em 2019, ser programática, por parte dos agentes anti-revoltas, a necessidade de impedir o acesso às imagens.

O quarto texto, de Gonzalo Díaz-Letelier (Universidad de Chile) analisa, a partir de Furio Jesi, os paradoxos implicados pelo conceito de anarché nas tensões temporais advindas da revolta – enquanto suspensão do tempo histórico normal – num estado de tempo normal. Este, por sua vez, é um tempo operacionalizado pelas técnicas de governamentalidade do capital que, ademais, articula as experiências do tempo. Por outro lado, o tempo da revolta seria uma tentativa de desvelar esse regime de produção de dívidas ontológicas promovido justamente pela articulação governamental da produção de normalidade, e, com isso, também uma forma de apontar para a anarché como abismo de possibilidades do estar-em-comum.

Na sequência, Eliza Mizrahi Balas (Universidad Iberoamericana e UNAM), inicia seu texto com uma análise da exposição Levantes (Sublevaciones), de Georges Didi-Huberman, e, a partir daí trata de pensar como a montagem carrega uma condição crítica capaz de possibilitar ver como se armam os pressupostos estéticos, políticos e ideológicos nas representações visuais das revoltas. Com isso, outros regimes visuais do político tornam-se passíveis de ser colocados.

Jonnefer Barbosa (PUC-SP), no sexto texto, pensa a questão do caráter essencialmente estatal da política a partir das novas formas – ofensivas – de governamentalidade política, em suas técnicas, estratagemas e agenciamentos. A partir disso, Barbosa analisa as zonas de exclusão para, a partir das políticas de esquadrinhamento e tomada territoriais, elaborar como as dinâmicas do capitalismo contemporâneo coloniza todas as esferas da vida. Por fim, salienta um paradigma oculto dos estados contemporâneos em que ilegalidade e extermínio de populações tornam-se condição constante da própria forma estado, colando impasses às dinâmicas de um impossível retorno à legalidade, mas também às insurgências.

No sétimo texto, Vinícius Nicastro Honesko (UFPR) procura pensar as estruturas constitutivas das formas de realidade no capitalismo contemporâneo, fazendo isso a partir de três eixos: num primeiro momento, com algumas leituras de questões epistemológicas do campo da física quântica, trata da noção de constituição da realidade e chega à confrontação também com o problema do mito. Em seguida, passa à análise da figura do precariado nas formas de justificação e afirmação de uma única realidade possível na governamentalidade neoliberal contemporânea. Por fim, apresenta como essa realidade imperativa muitas vezes se consolida de forma violenta na tentativa de imposição de um sentido para o mundo, algo exemplificado nas dinâmicas da extrema-direita contemporânea.

Em seguida, Alice Fernandes Freyesleben (UNESPAR) analisa como o conceito de Antropoceno impacta as configurações epistemológicas da ciência histórica. Para tanto, parte de questionamentos sobre a neutralidade dos discursos científicos e filosóficos para, na sequência, discorrer sobre os modos de nomear e compreender historicamente a atual crise socioambiental. Por fim, a partir de um diálogo com a geociência e considerando as implicações teóricas da percepção contemporânea acerca da historicidade própria do planeta, investiga como agentividades históricas, temporalidades e a própria noção de historicidade estão no cerne da questão contemporânea da emergência climática.

O próximo texto, de Willy Thayer (Universidad Metropolitana de Ciencias de la Educación, Chile), desenvolve uma leitura que vislumbra na conjuntura contemporânea as possíveis conexões e implicações entre as revoltas e a governamentalidade neoliberal. Para tanto, tomando as revoltas de outubro de 2019 no Chile, percebe como há, nas leituras retrospectivas da revolta, a consideração de que mais do que um limite aos traços neoliberais, a revolta aparece como um reset que propicia um desenvolvimento posterior no âmbito neoliberal. Todavia, aponta como um resíduo a tal reset pode ser considerado como força suplementar não redutível à performatividade neoliberal, isto é, resistiria como uma teoria da performance como pausa absoluta que eventualmente poderia possibilitar delimitar o propriamente revoltoso numa revolta.

No décimo texto, Ana Carolina Cernicchiaro (UNISUL) aborda como arte indígena contemporânea coloca em xeque dispositivos históricos e estéticos referentes à suposta universalidade da história. Ao apontar para o racismo e antropocentrismo desse tipo de suposição – com suas tentativas de dominação da natureza e de invalidação da relação de pertencimento que os povos originários têm com a terra –, a estética cosmopolítica da arte indígena é pensada como um ponto de resistência e se torna capaz de agenciar outras formas possíveis de existência no mundo assolado pela crise ecocida.

Por fim, um texto de Giorgio Agamben sobre a questão da guerra, o jogo e o inimigo, sobretudo numa releitura questionadora das proposições de Carl Schmitt, e uma entrevista sobre a obra de Furio Jesi realizada com Andrea Cavalletti fecham o dossiê. O texto de Agamben foi originalmente publicado em 2018, na Itália, na edição integral de Homo Sacer, como capítulo final de Stasis (e então republicado na segunda edição ampliada de Stasis. A guerra civil como paradigma político. Homo Sacer II, 2, em 2019). Já a entrevista com Cavalletti foi originalmente publicada em francês na revista Lundi Matin, em 04 de maio de 2021 e, na sequência, em italiano na revista Archeologia filosofica, em 12 de maio de 2021. Os dois textos, por questões editoriais, aparecem na seção “Traduções” deste número.


Organizadores

Sergio Villalobos Ruminott – Profesor de Estudios Latinoamericanos en la Universidad de Michigan, Estados Unidos. Realizó estudios de sociología y filosofía en Chile y su doctorado en literatura latinoamericana en la Universidad de Pittsburgh (2003), Estados Unidos. Email: [email protected]

Andrea Cavalletti – Università di Verona.

Vinícius Nicastro Honesko – Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Foi professor visitante na Universidade de Bolonha em 2021, onde também desenvolveu estágio pós-doutoral. E-mail: [email protected]


Referências desta apresentação

RUMINOTT, Sergio Villalobos; CAVALLETTI, Andrea; HONESKO, Vinícius Nicastro. Apresentação. História- Questões & Debates. Curitiba, v. 71, n. 1, p. 7 – 11, jan./jun. 2023. Acessar publicação original [DR/JF]

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