Vísceras da Memória:Uma leitura da obra de Pedro Nava – BUENO (VH)

BUENO, Antônio Sérgio. Vísceras da Memória:Uma leitura da obra de Pedro Nava. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Resenha de: ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Varia História, Belo Horizonte, v.15, n.20, p. 184-186, mar., 1999.

Cada ser humano é único. Esta é uma grande verdade. Cada um de nós guarda em si potencialidades e qualidades que nos tornam singulares. Entretanto existem alguns, entre nós, cuja singularidade e unicidade se tornam por demais significativas. Pedro Nava, certamente, foi um ser humano assim. Médico, desenhista, poeta, escritor-memorialista, revelou – se ao mundo como uma personalidade única e ao mesmo tempo dotado de múltiplas facetas. Conhecê-lo, defini-lo não é uma tarefa muito simples.

Existem uma quantidade expressiva de obras acadêmicas, jornalísticas, literárias, entre outras que analisam a personalidade e a obra de Pedro Nava, entretanto podemos afirmar que o livro recentemente publicado pelo Prof. Antônio Sérgio Bueno nos possibilita mergulhar no universo navaniano e ao menos, enxergar algumas novas centelhas acerca do personagem inquieto e insondável que foi Pedro Nava.

A obra de Bueno é resultado de uma tese de doutorado defendida no ano de 1994 inserida no Programa de Pós – graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

Ao falar de suas pretensões em relação ao trabalho, autor afirma que seu objetivo foi: “( … ) estudar as memórias de Nava através de categorias operacionais como espaço, corpo e figuração, tendo sempre em vista o diálogo da literatura com outras áreas do saber e o diálogo interno entre as próprias obras literárias.( … )” ( p. 19 grifas do autor), entretanto podemos dizer que as questões apontadas por Bueno ao longo de seu texto se abrem para maiores possibilidades de análise e servem como referencial àquele que se interessa não apenas pela trajetória de Pedro Nava, mas para o estudioso da memória, cidades e cultura busca .em fontes alternativas como a Literatura, um apoio para seus estudos e Investigações.

Bueno divide seu texto em três capítulos seguindo a estrutura que gestou ao eleger três categorias como essenciais nas memórias de Pedro Nava. São elas: o espaço, o corpo e a figuração.

No capítulo I, intitulado, “Espaço” irá nos revelar como a noção de espaço, lugar, recriação e restauração foram importantes para Nava ao escrever suas memórias. Segundo ele, ao rememorar, o escritor reconstruía lugares, pontos, ruas, de forma que pudesse recuperar em suas lembranças a essência de suas memórias. A recuperação dos espaços · funcionava como elemento detonador das lembranças. Revela ao leitor um Nava amador de ruínas buscando entre cacos e estilhaços reter e reconstruir aquilo que já não existia mais e através de seu texto restaurava as imagens que haviam se tornado invisíveis ou mutiladas.

No capítulo 11 dedicado ao “Corpo” encontramos a relação clara e intrínseca entre o Nava médico e o Nava escritor que lidava com seu texto e com suas lembranças com uma precisão visceral e a curiosidade de um anatomista. A Anatomia era em verdade, sua grande paixão. A analogia estabelecida entre o médico Frankenstein que desejou dar vida à matéria morta e ao médico Pedro Nava que recuperava o passado não o considerando matéria morta, mas algo vivo e pulsante no qual sempre esteve mergulhado, nos faz refletir sobre o papel do historiador na sociedade como aquele sujeito que mesmo compreendendo a impossibilidade de recuperar o passado integralmente, faz dele seu objeto e referencial no entendimento da sociedade em que vivemos. O historiador reúne características do Dr. Frankenstein e do Dr. Pedro Nava.

Neste capítulo o autor tratará, também, da relação de Pedro Nava com a morte, a presença dos cadáveres em suas descrições, a rememoração das aulas na Faculdade de Medicina e como estas experiências definiram de forma indelével sua personalidade.

No terceiro e último capítulo “Figuração”, Bueno irá tratar de um aspecto fundamental na vida e obra de Nava: a imagem. É sabido por todos que o memorialista possuía conhecimentos artísticos que o dotavam de qualidades plásticas que, caso tivesse persistido na carreira artística, não teria deixado nada a dever ao mundo das artes. Entretanto nos mostra o autor que a imagem nunca esteve afastada do universo criativo de Nava. Nos originais de seus textos elaborava desenhos, caricaturas, colagens, reconstruía e desenhava mapas, lugares, buscava em fotografias sue material de apoio para a recuperação das memórias que escrevia. Rescrever suas memórias era trabalho e um trabalho que envolvia a manipulação de uma linguagem estética.

Bueno encerra sua análise comentando acerca dos originais somados em trinta e seis páginas inéditas do que seria parte do sétimo volume das memórias de Nava intitulado “Cera das Almas”.

Na realidade o texto de Antônio Sérgio Bueno é uma aula de erudição e um convite, prazeroso, à leitura e ao estudo. Ao analisar, visceralmente, a produção de Nava nos aponta algumas de suas influências literárias que se destacam em seu texto, citamos Edgar Allan Poe, Mareei Proust, Stevenson, Rabelais, entre outros, bem como seu infinito conhecimento em relação às artes plásticas e as analogias que invariavelmente estabeleceu entre a produção de artistas como Rembrandt, Michelângelo, Rubens, Monet, Renoir, entre outros como elementos detonadores e referenciais para a construção de suas lembranças.

Por outro lado, embora não trate desta questão diretamente, o autor nos permite refletir acerca da importância da memória como categoria social, cujo compartilhamento permite aos homens reconstruir seu passado através de depoimentos orais ou escritos, reestruturar sua história e muitas vezes recuperar elementos que não poderiam ser recuperados através de outras fontes.

E neste sentido ao mencionarmos as fontes, acrescentamos que as análises implementadas por Sérgio Bueno possibilitam enxergar a Literatura como uma categoria de fonte para os pesquisadores que muito tem contribuído para o enriquecimento de novas abordagens e tem permitido um diálogo mais amplo e profundo entre os homens e a história que é construída por eles. Revela – nos que este fazer não acontece apenas nos espaços e nos meios tradicionais, mas as obras de pensamento, de criação e reflexão muito podem nos contar acerca destes homens. É óbvio que as memórias de Nava já vêm sendo utilizadas por historiadores, arquitetos, sociólogos, entre outros estudiosos como elemento constituinte em suas análises, entretanto o que se ressalta no estudo de Bueno é a interpretação que ele estabelece em relação ao texto navaniano e as possibilidades de verticalização que permite ao leitor e que se encontram nas entrelinhas.

Desta forma, portanto, podemos afirmar que o trabalho realizado pelo Prof. Antônio Sérgio Bueno é uma obra que merece ser lida, analisada, criticada e aproveitada em todos os seus sentidos, explorando todas as possibilidades que nela são apontadas, inclusive o retorno ao texto de Pedro Nava. Bueno através de suas interpretações, nos convida, delicada mas convincentemente, à leitura dos seis volumes das memórias de Nava, para aquele que ainda não teve esta oportunidade e incita à uma releitura, cuidadosa, anatômica, visceral aquele que já teve a chance de mergulhar na escrita navaniana, pois certamente encontrará novas nuanças no depoimento deste personagem ímpar que foi Pedro da Silva Nava.

Marcelina das Graças de Almeida – Mestre em História Professora da Rede Municipal de BH.

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[DR]

 

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