A casaca do Arlequim | Heliana Angotti-Salgueiro

É uma honra e um prazer ter sido convidado para falar hoje por ocasião da publicação da edição brasileira do grande livro de Heliana Angotti-Salgueiro, A casaca do Arlequim. É difícil acreditar que já se passaram quase vinte e quatro anos desde que o livro de Heliana foi publicado na sua versão francesa (1). Vinte e quatro anos é o tempo de uma geração. É obviamente um desafio formidável para uma obra histórica, que tem necessariamente a marca das teorias, obras e debates da época em que foi escrita, reaparecer em um contexto completamente diferente. No longo prefácio que escreveu para a edição brasileira do seu livro, Heliana Angotti-Salgueiro recorda com maestria e profundidade o contexto em que o livro A casaca do Arlequim foi elaborado. Este contexto é antes de tudo o de uma instituição, a École des Hautes Études en Sciences Sociales, onde brilhantes e diversas personalidades – de Hubert Damisch a Louis Marin e de Marcel Roncayolo a Bernard Lepetit – se cruzavam. Leia Mais

Grande Otelo: um intérprete do cinema e do racismo no Brasil (1917-1993) | Luís Felipe Kojima Hirano

Para a pensadora Lélia González (1984), o racismo é “a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira” (González, 1984, p.224) e “negro” o significante-mestre, aquele que “inaugura a ordem significante de nossa cultura” (González, 1984, p. 237). O livro que ora comento nos brinda com uma excelente análise da trajetória de um personagem emblemático para pensar as relações raciais ao longo do século XX no Brasil. Em especial, para verificar que se o sujeito neurótico sempre oculta o sintoma por meio de sua negação, então há muito a ser descortinado na rede de significantes dessa neurose cultural de que nos fala González (1984).

O movimento metodológico de Hirano (2019) para a análise do seu conjunto de dados, baseado em fontes históricas sobre o cinema, é digno de nota. O autor propõe lançar um olhar com enfoque antropológico a esses dados, baseando-se no descentramento do olhar (Hirano, 2019, p. 71), um dos pilares dessa disciplina. É feito, então, um triplo descentramento, quais sejam: 1) descentrar a interpretação usual do cinema brasileiro pelos cineastas, em sua maioria brancos; 2) analisar os filmes enfocando a performance de seus intérpretes, ainda que não obliterando a trama e a montagem; e 3) discutir as relações raciais no Brasil, em um campo profundamente marcado, conforme fica evidente a partir da leitura, pela presença estadunidense, que toma o branco como norma. Leia Mais

A Profetisa e o Historiador: sobre A Feiticeira de Jules Michelet – TEIXEIRA (A)

TEIXEIRA, Maria Juliana Gambogi. A Profetisa e o Historiador: sobre A Feiticeira de Jules Michelet. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2017. 312p. Resenha de: PEREIRA, Renato Fagundes. Por uma nova leitura de Michelet no Brasil.  Antítese, v. 11, n. 22, 2018.

No século XIX, algumas obras de Jules Michelet foram trazidas ao Brasil, isso se deve, em partes, ao sucesso de L’Oiseau (1857) em Paris, (onde estimava-se a venda de trinta e três mil unidades), embora a recepção de suas ideias tenha ocorrido principalmente na segunda metade do século XX, com as primeiras traduções das obras historiográficas e teóricas do movimento dos Annales (Lucien Febvre nunca negou o legado micheletiano em suas análises). A partir da década de 1970, as ideias de Michelet chegam ou por aqueles que discutiam a história e a metodologia dos Annales ou por aqueles que começavam a refletir sobre a crise dos paradigmas na historiografia -A presença de Jules Michelet é marcante nos livros de Peter Burke e Dosse sobre os Annales, por exemplo, e nos argumentos de Paul Veyne, Michel de Certeau, Jacques Rancierè e Hayden White sobre as ficcionalidades da história.

Muitos estudos foram publicados no Brasil, os quais assinalam a importância de Jules Michelet como precursor dos Annales, da história das mulheres, do povo e da cultura, mas, raros são aqueles que se esforçaram em compreender o historiador no movimento do seu próprio pensamento, no élan-criador do conhecimento histórico e na historicidade do próprio autor. Nesse sentido, não são exageros as palavras Jean-Michel Rey sobre a modéstia do subtítulo, A feiticeira de Jules Michelet, no recém-lançado livro A profetisa e o historiador de Maria Juliana Gambogi Teixeira.

A professora da UFMG retoma sua tese doze anos depois de sua defesa, são quase três décadas dedicadas a finco à pesquisa das ideias micheletianas, e nos proporciona uma leitura singular, inaudita, principalmente, entre nós, brasileiros, acostumados com a recepção do autor da L’Histoire de France, pelos herdeiros dos Annales. Essa distinção se assenta pelo vínculo de Gambogi Teixeira com o grupo formado por Paul Viallaneix e Paule Petitier. Esses dois especialistas na obra micheletiana realizaram nas últimas décadas um trabalho árduo de muita riqueza, descobrindo e publicando textos inéditos de Michelet, organizando coletâneas, bibliotecas e seminários – podemos destacar o seminário Michelet hors fronteires e a bibliothèque Jacques Seebacher, ambos com a coordenação da professora da Universidade Diderot, Paule Petitier.

O livro é dividido em três partes com dois capítulos cada um. A parte um, O Tenebroso Mar de La Sorcière é preciosa para compreender a trama que atravessa todo o livro: A Feiticeira, obra publicada por Michelet, em 1862. Enganar-se-ia quem imaginasse encontrar nessas páginas apenas a história de um livro. Trata-se de um esforço mais profundo, na tentativa de constituir no interior da obra monumental de Jules Michelet o caminho da feitiçaria como objeto, suas inflexões e seus delineamentos, durante mais de meio século de produção do historiador. A análise do próprio texto, A Feiticeira, se apresenta, principalmente, no capítulo dois, no entanto, ela não acontece fora de um solo, como gostava de afirmar o próprio Michelet, e sim dentro de um plano de imanência micheletiano, que só é possível por uma conhecedora dos arquivos e das ideias do século XIX.

A parte dois do livro, História ao Pé da Letra, representa uma contribuição das mais notáveis: a história da historiografia e a teoria da história. Gostaríamos de insistir na novidade dessa análise no Brasil e em textos em língua portuguesa. A autora retoma o vínculo entre Michelet e Vico, explorado desde o século XIX, para romper com ele e demonstrar no contexto das ideias o débito viconiano, enfatizando as rupturas e as criações micheletianas. A questão da lenda e da cultura popular, familiar ao romantismo, emerge no capítulo final dessa parte. Particularmente, os dois capítulos que fazem parte desse recorte são os quais a pesquisadora mais me surpreende pelo gênio de articulação e uma consistência de domínio teórico, cuja finalidade é estabelecer a relação entre o lendário, a história e o ficcional em Jules Michelet.

Na última parte do livro, Verso e Avesso da Narrativa, Gambogi conduz sua reflexão da obra micheletiana no movimento de mão-dupla: da constituição do seu pensamento, no esforço intelectual de escrever história, concentra-se na Feiticeira e no fenômeno da feitiçaria e no interior das questões pessoais, políticas e sociais enfrentadas pelo autor. Não por acaso, a tese da autora sobre La Sorcière passa pela associação de Jules Michelet com a Revolução de 1848, na França: Projetando tal hipótese sobre o cenário aberto por 1848, parece-nos possível pensar que, menos do que um interesse circunscrito em catalogar e diagnosticar o destino pontual dos movimentos revoltosos, o pensamento de Michelet tenha se voltado para, em La Sorcière para o que sempre fora seu centro: a condição de inteligibilidade da história moderna. Já há muito, o historiador fincara essa condição num campo de entendimento em que se conflitam dois princípios diversos, porém imbricados em seu destino: o princípio da Revolução e o princípio do cristianismo (p.203).

Renato Fagundes Pereira – Professor do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás – UEG. -E-mail: [email protected].

Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836) | C. E. C. Lynch

Seria possível conciliar um Estado forte e centralizado ao ideário liberal moderno na prática política oitocentista brasileira? A leitura de Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento do Marquês de Caravelas nos revela que sim. Defensor tanto da soberania do rei quanto do constitucionalismo moderno, José Joaquim Carneiro de Campos – o marquês de Caravelas – foi personagem fundamental, de acordo com Christian Lynch, no processo de recepção e aclimatação do discurso liberal durante o estabelecimento do Estado de direitos no Brasil.

Prevalecente na Constituição de 1824, o projeto monárquico e estatizante dos coimbrãos contou com a participação ativa de José Joaquim Carneiro de Campos. Segundo Lynch, Caravelas foi responsável por aperfeiçoar o projeto constitucional dos Andradas, caracterizado pelo bicameralismo, por uma rigorosa centralização política-administrativa e pelo veto quase absoluto do Imperador. Sua principal contribuição foi a criação do Poder Moderador e a institucionalização de alguma descentralização político-administrativa a partir da criação dos conselhos gerais de províncias. Para ele, esse arranjo seria o ideal pois garantia “uma monarquia sem despotismo e uma liberdade sem anarquia”, expressão definidora do seu pensamento político (p. 53).

Lynch relacionou a teoria das formas de governo de Caravelas com a tradição clássica aristotélica. Segundo esta, as formas de governos existentes – monarquia, aristocracia e a democracia – eram instáveis e oscilavam constantemente entre bons e maus governos, a monarquia corrompida se degeneraria em tirania, a aristocracia em oligarquia e a democracia em demagogia. No entanto, havia uma maneira de evitar a corrupção e estabilizar esses governos: uma composição mista entre monarquia, aristocracia e democracia. Assim como Aristóteles, Carneiro Campos considerava que a melhor maneira de tornar as instituições políticas brasileiras duráveis seria por meio de um governo misto. Em sua opinião, a forma moderna que permitia o equilíbrio entre os elementos governamentais seria a monarquia constitucional representativa temperada ou limitada. Se o fundamento conceitual de Caravelas estava em Aristóteles, sua sociologia política se apoiava em Montesquieu. Isso porque sua principal preocupação, como mostrou o autor, era conciliar o governo constitucional representativo – necessidade dos tempos modernos – com a preservação da ordem e das hierarquias coloniais por meio da criação de uma legislação que respeitasse as tradições e os costumes do povo brasileiro.

O estudo sobre o pensamento político de homens como Caravelas faz parte de um longo debate historiográfico a respeito do lugar do liberalismo no processo de formação do Brasil independente. Debate longo, mas necessário, foi iniciado por obras clássicas – como a de Roberto Schwarz – que defenderam que as ideias estavam fora do lugar. De lá para cá, muito se avançou no tema. Surgiram diversos trabalhos que discutiram, de perspectivas diferentes, a formação do Brasil independente mostrando que as ideias estavam sim no lugar, a exemplo de Maria Sylvia de Carvalho, Alfredo Bosi, Lúcia Maria B. Pereira das Neves, Maria Emilia Prado, Antonio Carlos Peixoto, entre outros.

A análise instigante empreendida por Lynch nos evidenciou que, embora antigo, este debate está longe de ser esgotado. Interessado na história constitucional brasileira – graças à graduação e ao mestrado na área do Direito – bem como no seu desenvolvimento pela perspectiva daquilo que o historiador alemão Reinhart Koselleck chamou de Sattelzeit, Lynch redimensionou o lugar do conservadorismo no Brasil oitocentista por meio do resgate desse importante personagem político da independência brasileira do limbo em que se encontrava.

Nesse sentido, suas reflexões sobre a composição de um campo conservador no Brasil e sobre as construções historiográficas a esse respeito garantem uma análise provocante do processo de formação das instituições políticas brasileiras. Segundo Lynch, o marquês de Caravelas, ao sustentar um projeto liberal que conciliava a implantação de um governo constitucional representativo com a garantia de um Estado monárquico forte, seria o primeiro de uma linhagem de juristas constitucionais, na qual se entronca o visconde de Uruguai, a defender a construção e o fortalecimento do Estado como instância incubadora adequada da Nação.

Embora a obra escrita por Lynch tenha José Carneiro de Campos como objeto de pesquisa, nunca foi preocupação do autor a descrição e o acompanhamento de seus feitos como fazem diversos trabalhos biográficos. Na realidade, todo seu empenho se concentrou na reconstituição do pensamento teórico e sociológico do marquês de Caravelas e sua aplicação prática ao longo dos seus trabalhos enquanto deputado e relator do projeto constitucional de 1824. Tendo em vista esse objetivo, Lynch estruturou seu livro em duas partes: a primeira destinada a um estudo do pensamento político-constitucional do marquês de Caravelas – dividida ainda em cinco capítulos – e uma segunda reservada para a compilação de seus discursos parlamentares mais importantes, fontes que serviram de base para sua pesquisa.

Os discursos parlamentares do marquês de Caravelas foram analisados com base em duas frentes metodológicas: o contextualismo linguístico de John Pocock e a história dos conceitos de Koselleck. Na primeira frente, estes discursos foram entendidos como “atos de fala” elaborados durante a disputa política visando um espaço de atuação e de poder. Na segunda frente, o autor carioca identificou os conceitos presentes nesses discursos examinando os novos significados assumidos por eles de acordo com as circunstâncias, as necessidades e as contingências do Brasil recém-independente.

É em seu primeiro capítulo – “Os desafios da política constitucional oitocentista na Europa e na América ibérica” – que Lynch conseguiu brilhantemente conciliar essas duas frentes metodológicas, procedendo a uma bela análise relacional de texto e contexto. Infelizmente, nos outros capítulos, principalmente os três últimos, nos quais há uma reflexão sobre os elementos constitutivos do pensamento de Caravelas, a análise se concentrou apenas no texto e nos conceitos presentes nele. Apesar disso, suas reflexões sobre o enquadramento ideológico de Carneiro de Campos presentes no primeiro capítulo e as razões historiográficas responsáveis por seu esquecimento, apresentadas no segundo, são de grande relevância para os pesquisadores na área da história política brasileira.

Se a maioria dos trabalhos historiográficos explicam o processo de construção do nosso Estado a partir do liberalismo moderno, Lynch o faz baseado no conservadorismo. Ele defendeu a conservação como elo indispensável tanto para compreensão do pensamento de Caravelas quanto para o entendimento do desenvolvimento das instituições políticas brasileiras das quais ele fez parte. Ao fazer isso, o autor acabou redimensionando o sentido e o papel desempenhado pelo conservadorismo na América Ibérica.

Até hoje relacionamos o conservadorismo a posicionamentos tradicionais e, portanto, contrários a mudanças. De acordo com Lynch, isso acontece devido a conotação negativa que este conceito possuí no Brasil graças ao legado da tradição marxista de intelectuais do século XX, a exemplo de Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré, que relacionaram o conservadorismo a uma visão hierárquica de mundo, defensora de privilégios, contrária à democratização e ao reconhecimento das minorias. Inclusive, o autor associou também o esquecimento historiográfico de Carneiro de Campos, bem como sua associação apressada ao absolutismo, a essa visão negativa dos conservadores.

Depois de realizar uma síntese das principais correntes conservadoras – passando por Hume, Burke e Guizot – Lynch afirmou que elas eram equivalentes no Brasil às reflexões dos conselheiros de Estado de D. Pedro I que, baseados no modelo monarquiano do barão Malouet e de Jean Joseph Mounier, defenderam um projeto de governo constitucional e representativo no qual o rei, não a Assembleia, seria o representante da soberania nacional. A implantação desse sistema permitiu a conciliação entre o ideal modernizador ordeiro do despotismo esclarecido com o estabelecimento de um governo constitucional. Por isso, Lynch afirmou que o conservadorismo é uma espécie de liberalismo de direita, de caráter reformista e antirrevolucionário. Nesse sentido, ao invés de se apresentar em oposição total aos liberais, os conservadores teriam uma postura realista da modernidade, aceitando a inevitabilidade do progresso, embora tentassem guiá-lo de forma prudente e gradual, os adequando a cultura histórica de cada sociedade na tentativa de preservar o tecido social e evitar as rupturas revolucionárias.

No entanto, ao longo de todo o processo de independência, do primeiro reinado e dos anos iniciais das regências, o discurso daqueles que orbitavam em torno de D. Pedro I, a exemplo de Caravelas, foram associados ao absolutismo e ao autoritarismo por seus adversários políticos que desejavam um espaço de atuação e de participação no Estado brasileiro.

Somente com os saquaremas, na segunda metade do século XIX, o termo conservador passa a ser empregado na caracterização de um grupo político, apesar de seus projetos existirem desde a época da independência. De acordo com Lynch, diferentemente do Partido Liberal, que reivindicou o grupo brasiliense como primeiro embrião de seu partido, o mesmo não aconteceu com os conservadores, que preferiram venerar a memória de Bernardo Pereira de Vasconcelos e o Regresso como verdadeiro fundador do partido durante as regências. Logo, a imagem de homens como Caravelas sofreu um desgaste duplo. Ao mesmo tempo em que eram desqualificados pela historiografia luzia que os retratava como absolutistas, não tiveram sua imagem resgatada pela historiografia saquarema e ficaram sem uma posteridade política que os reivindicasse positivamente.

Mais uma vez vemos a influência do historiador inglês J. G. A. Pocock em Monarquia sem despotismo e Liberdade sem anarquia. Baseado em suas ideias, o autor buscou compreender a história como choques de discursos antagônicos. Durante muito tempo, a historiografia brasileira vem comprando a versão de autores saquaremas que localizaram o surgimento do conservadorismo no Brasil no movimento regressista. É importante entender que os saquaremas não queriam ter sua imagem pública associada ao grupo “coimbrão” devido a sua fama negativa ligada ao absolutismo.

Ao longo do livro, Cristian Lynch conseguiu demonstrar que o pensamento político de José Carneiro de Campos não tinha nada de absolutista. Muito pelo contrário, partilhava semelhanças com as doutrinas conservadoras do tempo. Isso implica reconhecer, a despeito das afirmações historiográficas, que o conservadorismo aos moldes regressistas e saquaremas existiam de alguma forma no Brasil muito antes do período regencial, sendo esta ao meu ver a principal contribuição da obra. O resgate do marquês de Caravelas do limbo do esquecimento e sua inserção num campo conservador em formação durante todo o processo de construção do Estado brasileiro nos ajuda a redimensionar a própria concepção do conservadorismo na constituição do Brasil independente.

Referência

Lynch, C. E. C. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

Luaia da Silva Rodrigues – Doutoranda em história pela UFF. E-mail: [email protected]


LYNCH, C. E. C. Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia: o pensamento político do Marquês de Caravelas (1821-1836). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. Resenha de: RODRIGUES, Luaia da Silva. O pensamento conservador do marquês de Caravelas e a construção do Estado Brasileiro. Almanack, Guarulhos, n.18, p. 496-501, jan./abr., 2018. Acessar publicação original [DR]

Ditaduras militares: Brasil, Argentina, Chile e Uruguai | Rodrigo Patto Sá Motta

Rodrigo Patto Sá Motta possui doutorado em História pela Universidade de São Paulo (2000) e atualmente é professor da Universidade Federal de Minas Gerais. Suas pesquisas relacionam-se ao golpe de 1964 e ao regime militar, envolvendo temas como repressão política (DOPS, ASI), anticomunismo, política universitária, memória e atuação da esquerda [2]. O contexto de publicação da obra é bastante especial para o Brasil: no ano de 2014 tem-se a efeméride dos 50 anos do golpe civil-militar e em 2015 os 30 anos da redemocratização. Esses dois acontecimentos contribuíram de maneira a promover uma reflexão sobre o caráter e o legado da ditadura civil-militar frente à sociedade brasileira. Além disso, também contribuíram no sentido da profusão de livros e na organização de eventos sobre o tema “ditaduras”.

A obra é composta de uma série de textos que abordam temas específicos das ditaduras militares no Cone Sul, expondo suas vicissitudes e semelhanças. O livro é estruturado em quinze artigos, escritos por autoras e autores do Brasil, Chile, Argentina e Uruguai que enfatizam principalmente as políticas públicas nos âmbitos social, cultural, educativo e a repressão. Abordam também assuntos que concernem à memória e o ensino nas escolas no período das ditaduras nos países do Cone Sul. A publicação da obra é resultado das atividades do Seminário Internacional “Ditaduras Militares em Enfoque Comparado” ocorrido em 2012, evento organizado pelo Grupo de Pesquisa História Política – Culturas Políticas na História, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Leia Mais

Ángel Rama: um transculturador do futuro | Flávio Aguiar e Joana Rodrigues

Resultado do seminário internacional “Jornadas Latino-Americanas: Ángel Rama, um Transculturador do Futuro”,2 que teve lugar nas dependências do Memorial da América Latina, no mês de novembro de 2009, o livro foi organizado pelos próprios responsáveis pelo evento, os professores Flávio Aguiar e Joana Rodrigues e publicado pela editora UFMG em 2013, inserido na coleção Humanitas.

Realizado ao longo do mês de novembro e organizado em duas mesas redondas bastante concorridas, nele foram distribuídos certificados para aqueles de deles participaram com pelo menos 75%. Somado a isso, também nos é relatado, em sua “Apresentação”, a participação da filha de Ángel Rama, Amparo Rama, que pronunciou um depoimento sobre o pai e fez a leitura de algumas cartas trocadas entre ele e o crítico paulista Antonio Candido, com alguns trechos publicados no livro em questão, retiradas de seus arquivos pessoais.
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Charles Frederick Hartt, um naturalista no império de Pedro II – FREITAS (HCSM)

FREITAS, Marcus Vinicius de. Charles Frederick Hartt, um naturalista no império de Pedro II. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. 282p. Resenha de: TEIXEIRA, Karoline viana. Charles Frederick Hartt: romântico por formação e realista por profissão. História Ciência Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 21 n.2 Apr./June 2014.

Nos últimos anos, pesquisadores de diversas áreas têm-se dedicado à temática dos viajantes naturalistas que esquadrinharam o Brasil ao longo do século XIX. Desde o fim do exclusivismo português, a ex-colônia tornou-se destino estratégico não só para o comércio internacional, cioso de novos mercados, como também para academias e centros de saber que para cá enviavam seus representantes a fim de pesquisar biomas, fauna, flora e minerais até então vedados ao olhar estrangeiro. Um deles foi o geólogo americano Charles Frederick Hartt (1840-1878), cuja trajetória relevante, porém pouco conhecida, é abordada pelo estudo de Marcus Vinicius de Freitas.

Fruto de sua tese de doutorado junto ao Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros da Brown University, o livro analisa as incursões de Hartt no território brasileiro – como assistente de Louis Agassiz na Expedição Thayer; em duas viagens por conta própria, como membro da Expedição Morgan; e, por fim, a convite do Império brasileiro para chefiar a Comissão Geológica. Apesar da pretensão de implantar aqui um serviço de estudos geológicos, esta última comissão foi abreviada por questões políticas e pela morte prematura de Hartt, vítima de febre amarela no Rio de Janeiro. O americano dedicou 13 dos seus 38 anos de vida aos estudos do Brasil, abordando a formação geológica da América do Sul, como também aspectos da etnografia indígena, plantas e animais tropicais, língua tupi, entre outros.

Karen Lisboa (1997) define a viagem científica empreendida no século XIX como uma etapa do processo do conhecimento norteado por um “projeto ilustrado”, em que a atração pelo exótico, a pesquisa naturalista e o gosto pela errância se coadunam com interesses de esfera pública, como o desenvolvimento da ciência, a formação de coleções para museus de história natural e a investigação de recursos potencialmente exploráveis. Hartt vem pela primeira vez ao Brasil em 1865, na fase áurea do Segundo Reinado. O momento de estabilidade política e pujança econômica permitiram a arregimentação de forças em torno de um projeto ideológico de nação. A busca de uma origem indigenista, o estabelecimento de uma imagem harmônica para um país neófito permeado por contradições e o incentivo a instituições científicas e literárias foram balizadores importantes para os naturalistas estrangeiros que vieram para o Brasil nesse período.

Nomes como Eschwege, Martius, Spix, Saint-Hilaire, Agassiz e o próprio Hartt – este em certa medida, como o estudo busca demonstrar –, imbuídos de uma formação idealista que percebia a história natural como uma teologia natural, contribuíram para dar uma feição eminentemente romântica às ciências naturais aqui praticadas. A acepção do romantismo nesse caso vai além de um estilo literário, tratando-se antes de uma visão de mundo estruturante para uma nação que buscava se firmar como um império nos trópicos. Assim, como afirma o autor, “num momento em que uma visão racional e desencantada da natureza se afirmava mundo afora, sobretudo através da revolução darwinista, as ciências naturais ganham impulso na Brasil através de um estatuto romântico, através de uma visão teológica e finalista da natureza” (p.38).

O livro problematiza as matrizes ideológicas de Hartt e a importância do seu legado para a institucionalização das ciências no Brasil. Com texto fluente, que articula fontes escritas e imagéticas de arquivos do Brasil e dos EUA, o trabalho combina capítulos temáticos com uma narrativa cronológica, permitindo a condução de análises e digressões na descrição da trajetória intelectual do naturalista. Após contextualizar no primeiro capítulo o momento social e político acima citado, Marcus Vinicius de Freitas aborda a formação de um naturalista no período – levando em conta as especificidades do meio intelectual norte-americano, uma ex-colônia como o Brasil que à época sequer completara o centenário de independência. O autor faz ainda um paralelo entre as políticas de incentivo cultural e acadêmico no Brasil e nos EUA.

O terceiro capítulo investiga o estatuto dos textos produzidos por Hartt, localizando sua escrita e suas análises do Brasil em uma zona de transição entre as matrizes intelectuais dos fatalistas (entre eles seu mentor, Louis Agassiz) e dos evolucionistas (no esteio do inovador A origem das espécies, de Charles Darwin), tornando Hartt “o último representante de um certo tipo de naturalistas viajantes, e um dos primeiros cientistas da nova estirpe” (p.98). Ainda que com menor fôlego, o quarto capítulo volta-se para a análise do legado pictórico do naturalista, retomando o ritmo nos capítulos finais sobre o estudo das comunidades indígenas e a relação de Hartt com as instituições científicas brasileiras, ao assumir a Seção de Geologia do Museu Nacional em sua derradeira incursão ao Brasil.

A principal conclusão desse estudo é que a obra de Hartt transita entre as duas principais correntes intelectuais do século XIX, no livro personificadas por Agassiz e Darwin. O primeiro era o expoente da tradição romântica nas ciências naturais, que percebia cada espécie viva como uma criação única, sem elos entre si, cujo eventual desaparecimento só poderia ser explicado pela ocorrência de desastres naturais, definidos pelo plano geral da criação. Darwin, por sua vez, percebia a natureza sob um sentido evolutivo, em que os seres passam por processos de transformação e adaptação para sobreviver ao meio, determinando, assim, o surgimento ou o desaparecimento de espécies. Tais modificações não seriam, portanto, comandadas por um desígnio divino, mas seriam parte constituinte da dinâmica da vida na Terra. A própria Expedição Thayer, que permitiu o primeiro contato de Hartt com o Brasil, está no cerne da disputa entre catastrofistas e evolucionistas. Assim como outros cientistas buscavam provas para corroborar a tese evolutiva, Agassiz buscava comprovar a ocorrência de drifts nas formações geológicas brasileiras para suportar sua tese, o que posteriormente se mostrou equivocado.

Hoje sabemos qual concepção prevaleceu, mas é preciso atentar para o fato de que a ciência, em seu “fazer-se”, configura-se em um campo de incertezas, o que torna Hartt um “romântico por formação e realista por profissão”, segundo o autor. Apesar de reconhecer que o campo intelectual na segunda metade do século XIX ainda não era bem delimitado e que as ciências naturais sofriam a influência de outras searas, como a história e a literatura, Freitas constrói sua argumentação de forma anacrônica em vários momentos, como se a corrente catastrofista fosse menos “científica” que a evolucionista, quando na verdade se tratava de matrizes intelectuais distintas e, à época, igualmente válidas. Isso faz com que o autor apresente Hartt como alguém influenciado por uma teoria já defasada na origem, que, mesmo percebendo a falta de evidências sobre a ocorrência de drifts, não conseguia desvencilhar-se completamente da ligação intelectual e pessoal com seu mentor, Agassiz.

É pelo mesmo motivo que o autor adota um tom lamentoso ao analisar a principal obra de Hartt, Geologia e geografia física do Brasil. Ao identificar ali a presença de elementos romantizados, típicos de um relato de viagem, Freitas afirma que tal forma narrativa “encontra-se plenamente justificada na tradição de textos da qual o autor tende a se afastar, mas à qual ainda está ligado de forma indelével” (p.87), como se isso fosse um demérito para seu estudo. Mesmo admitindo que não se pode falar de uma precedência entre ficcionistas e não ficcionistas, é recorrente a visão de que a obra de Hartt não alcançaria a plenitude de um texto científico por conta da formação equivocada do geólogo. É como se ele cobrasse de Hartt uma postura que para nós só é possível diante do distanciamento temporal, fazendo com que seus argumentos se tornem contraditórios diante da tese que defende. Seria de bom alvitre que o autor procedesse a uma revisão desses trechos à luz da historiografia atual, a fim de eliminar tais contradições e preservar a grandeza das contribuições que esse estudo oferece ao leitor.

Referências

LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec. 1997. [ Links ]

Karoline Viana Teixeira – Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em História/Universidade Federal do Ceará. [email protected]

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Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias/práticas e imaginário político no século XVIII | Adriana Romeiro

Resenhista

Rodrigo Leonardo de Sousa Oliveira – Pós graduação em História. Doutorado em História Social da Cultura Universidade Federal de Minas Gerais.


Referências desta Resenha

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. Resenha de: OLIVEIRA, Rodrigo Leonardo de Sousa. Imaginário político e a ação dos emboabas nos sertões das Minas. Escrita da História, v.1, n.1, p.144-149, abr./set. 2014. Acesso apenas pelo link original [DR]

Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823) | José Murilo de Carvalho e Lucia Maria Bastos Pereira das Neves

O recém-lançado Às armas, cidadãos!, organizado por José Murilo de Carvalho, Lúcia Bastos e Marcello Basile, vem se juntar a um conjunto de importantes, ainda que escassos, trabalhos de edição crítica de documentos sobre a independência do Brasil, que resultaram em coletâneas, antologias e coleções de textos fundamentais da época. Tal conjunto a que me refiro é composto tanto pela organização de documentos produzidos pelos órgãos oficiais (das Cortes de Lisboa às juntas governativas provinciais e câmaras municipais, passando pelo reinado de D. João VI e a regência de D. Pedro no Rio de Janeiro), quanto por séries de periódicos e obras reunidas de personalidades envolvidas diretamente no processo de constitucionalização do reino luso- americano e sua subsequente emancipação política. Alguns desses títulos, sobretudo aqueles dedicados a documentos de caráter oficial, foram concebidos no âmbito das comemorações do centenário e sesquicentenário da independência do Brasil, a exemplos da obra Documentos para a História da Independência, publicado pela Biblioteca Nacional em 1923, e dos volumes de As Câmaras Municipais e a Independência e As Juntas Governativas e a Independência, ambos publicados pelo Arquivo Nacional em 1973.

As edições críticas e reuniões de fac-símiles publicadas nos últimos anos destacam-se por acompanharem a urgência da promoção de obras que estimulem o debate historiográfico em torno dos temas da construção do Estado e da nação, assim como do surgimento da imprensa e da gestação da opinião pública no Brasil. Nesse sentido, sobressaem as publicações fac-similadas do Correio Braziliense, coordenada por Alberto Dines (2001), do Revérbero Constitucional Fluminense, organizada por Marcello e Cybelle de Ipanema (2005), d’O Patriota, organizada por Lorelai Kury (2007), bem como a reunião da obra de Cipriano Barata, Sentinela da Liberdade e outros escritos, realizada por Marco Morel (2008). Ainda sobre os periódicos, vale lembrar de uma outra leva de edições críticas ensaiada nos anos quarenta pela editora Zelio Valverde; dentre suas publicações destacam-se as organizações do Tamoyo, por Caio Prado Jr. (1944) e da Malagueta, por Helio Vianna (1945).

Pode-se dizer que Às armas, cidadãos!, – aguardado pelos historiadores dedicados ao tema da independência, desde a divulgação do projeto por seus organizadores nos seminários do CEO/PRONEX – segue a tendência acima esboçada. Embora o livro se restrinja aos panfletos manuscritos – um total de 32, “sem dúvida amostra pequena dos papelinhos que circularam na época” (p.22), admitem os autores no texto de apresentação – não deixa de ser uma iniciativa importante frente a um cenário editorial que pouco investe nesse tipo de publicação. Provavelmente, as editoras entendem que os custos de produção e distribuição não sejam rentáveis para o mercado editorial brasileiro, comprometendo, portanto, o alcance de projetos voltados às obras de referência. Em Às armas cidadãos!, a timidez na seleção dos panfletos, não incluindo no volume os impressos que circularam à época em maior quantidade e com número de páginas bem superior aos “papelinhos” manuscritos, deve ser salientada não em detrimento do trabalho realizado – claro, de altíssimo nível e cujo recorte é bem justificado pelos autores, como veremos mais à frente –, mas pelo fato de os panfletos impressos da independência serem ainda de difícil acesso para historiadores de várias partes do país e também estrangeiros.

Assim, deve ser sublinhado que as historiografias a respeito das independências ibero americanas, incluindo evidentemente o Brasil, passam por uma profunda revisão de seus marcos estritamente nacionais concebendo a realidade dos antigos impérios ibéricos em suas múltiplas identidades, inseridas numa mesma unidade conjuntural revolucionária internacional e em íntima relação com contextos políticos e intelectuais diversificados e em interação entre si. Tal perspectiva tem uma consequência de mão dupla. Se por um lado a independência do Brasil tem sido abordada menos em função de sua suposta excepcionalidade em relação aos demais movimentos políticos do período, por outro lado, o interesse pelos desdobramentos históricos em seus diversos quadrantes regionais motivam perspectivas comparativas e visões de conjunto que ampliam a demanda por acesso às fontes primárias e produção de obras de referência.

Uma boa parte dos panfletos impressos remanescentes, assim como ocorre com os manuscritos selecionados em Às armas cidadãos!, também são originários da Bahia, do Rio de Janeiro e de Portugal. Não obstante, há registros de panfletos publicados em outros lugares onde existiram tipografias no período, como em Pernambuco e na Cisplatina. Quanto aos da Bahia e do Rio de Janeiro, estes se encontram em maior volume no acervo da Seção de Obras Raras da Biblioteca Nacional e, ao que consta, não foram microfilmados ou digitalizados, como no caso dos periódicos da época, já disponíveis, não totalmente, mas em quantidade razoável, para consulta no site da instituição. Os panfletos impressos chamam a atenção por suas formas variadas: cartas, catecismos políticos, diálogos, discursos, manifestos, memórias, projetos, relatos, orações, entre outros. Alguns já foram incluídos em O Debate político no processo da Independência, organizado por Raymundo Faoro em 1972, e outros podem ser encontrados disponíveis em formato PDF nos sites do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e da Biblioteca Nacional de Portugal. Frente a um panorama acanhado, e por não encontrar nenhuma referência explícita no livro de que o projeto de publicação dos panfletos terá continuidade, não poderia deixar de manifestar o incentivo aos organizadores de Às armas, cidadãos! a persistirem com o projeto de publicação dos panfletos da independência estendendo a pesquisa aos impressos e completando, assim, uma lacuna deixada neste volume.

Passadas essas observações iniciais dediquemo-nos à análise do conteúdo do livro propriamente dito. Os 32 panfletos manuscritos transcritos e analisados pelos organizadores no texto de “Introdução” pertencem ao acervo do Arquivo Histórico do Itamaraty sob a classificação Coleções Especiais, “Documentos do Ministério anterior a 1822”, Independência, capitania da Bahia, capitania do Rio de Janeiro e diversos (documentos avulsos) (p.21-22). Os documentos reunidos foram numerados e divididos em quatro partes correspondentes aos locais onde foram produzidos: Bahia, Rio de Janeiro, Portugal e os de origem não identificada. Quanto ao critério de seleção dos manuscritos, os organizadores reafirmam a opção pelos papéis que “contivessem crítica ou sátira política, tivessem ou não sido colados em paredes, postes ou nos muros das igrejas” (p.23), portanto, excluindo os escritos oficiais encontrados nas pastas do arquivo, à exceção de uma proclamação, a qual comentaremos abaixo. Uma “Nota editorial” informa que todos os documentos foram transcritos atualizando-se a ortografia, mantendo-se a pontuação original da época e corrigindo-se a grafia quando necessário. Além do mais, foram inseridas notas explicativas sobre indivíduos, datas, expressões e termos típicos citados nos panfletos, que auxiliam na compreensão da conjuntura e do vocabulário político do período. Por fim, um outro suporte à leitura dos documentos selecionados é a excelente “Cronologia” incluída no final do livro, na qual os eventos ocorridos na Bahia e no Rio de Janeiro ganham maior destaque.

Cada transcrição é antecedida da reprodução do original, de modo a manter no texto “o sabor de época” (p.33) e, assim, convidar o leitor a dimensionar como tais panfletos eram expostos e debatidos pelo público. A esse respeito, destaco dois panfletos da Bahia. O primeiro, de número 14, intitulado Meu Amigo, apesar de não mencionar o ano de redação, possui um registro informando o dia em que foi arrancado, 14 de fevereiro. Tal registro é um sinal explícito de que muitos “folhetos” eram afixados em locais públicos das cidades a fim de dar ampla divulgação aos projetos e ideias surgidas no bojo dos debates sobre a constitucionalização do reino o que, fatalmente, os tornavam alvos do controle dos órgãos de governos locais que temiam as agitações populares. Aqui, percebemos como os espaços de sociabilidades eram invadidos por práticas representativas de uma nova ordem política.

O outro panfleto, de número 12, é o único de caráter oficial incluído no livro, como já dito. Os organizadores justificam sua incorporação pelo fato de ele ter sido divulgado à moda dos bandos do Antigo Regime. Trata-se de uma proclamação redigida em 1823 pelo brigadeiro Inácio Luís Madeira de Melo, governador das armas da Bahia que, ao constatar a “Província revolucionada”, declarava seu estado de sítio, bloqueava a capital transformando-a em “Praça de Guerra” e determinava sob seu nome todas as competências e poderes da Lei. Tudo isso era levado ao público, segundo o brigadeiro, ao “Som de Caixas pelas ruas e praças públicas” da cidade a fim de fazer chegar a notícia a todos, de modo que “ninguém possa alegar ignorância” (p.97). Neste caso, de forma aparentemente contraditória, o uso de uma forma de comunicação, como o som dos bandos, não significa pura e simplesmente a reprodução de práticas políticas típicas do Antigo Regime, mas a sujeição dessa forma às pressões exercidas pela reconfiguração da funcionalidade dos espaços públicos. Portanto, ambos os panfletos são amostras do quanto as formas de interação social e política se transformavam naquele período, sobretudo porque amplas camadas da população eram expostas ao debate público, embora o alcance dessas práticas entre os sujeitos sociais ainda necessite ser melhor investigado, possibilitando a “intervenção do indivíduo comum na condução dos destinos coletivos” (p.9), e assim permitindo que as opiniões ganhassem força.

É sob este aspecto que os organizadores de Às armas, cidadãos! justificam a publicação dos panfletos manuscritos e, ao mesmo tempo, traçam a distinção de linguagem destes em relação aos impressos. Os panfletos, sejam manuscritos ou impressos, “transformaram-se em instrumentos eficazes de promoção do debate e, mais ainda, da ampliação de seu alcance, graças à prática de leitura coletiva em voz alta” (p.9), não obstante o estilo mais simples dos folhetos manuscritos chamem a atenção. Dentre outras coisas, caracterizavam-se por motivações mais imediatas e voltadas a despertar as emoções de uma audiência motivando antipatias em relação a determinadas personalidades ou convocando a população à ação política direta. Um dos alvos prediletos dos panfletários era Tomás Vilanova Portugal, ministro de D. João VI, defensor da manutenção da Corte no Brasil e opositor radical dos revolucionários do Porto. No “Panfleto 23”, o ministro encabeçava a lista de nomes de pessoas que deviam ser presas na intenção dos eleitores do novo governo do Rio de Janeiro que circulou em 1821. E no “Panfleto 24”, num poema sem data, seu autor, “um Amante da Pátria”, recomenda ao ministro que ele fizesse chegar ao rei aquele ultimato em versos: “Assina a Constituição / Não te faças singular, / Olha que a teus vizinhos / Já se tem feito assinar. / Isto não só é bastante, / Deves deixar o Brasil, / Se não virás em breve / A sofrer desgostos mil.” (p.170).

Já os impressos, via de regra, destacam-se por desenvolver argumentos e interpretações mais complexas e buscarem, com certo grau de didatismo político, esclarecer e/ou convencer a opinião pública a se posicionar a favor ou contra determinado princípio ou projeto político em debate. A linguagem dos panfletos manuscritos é, com frequência, mais violenta e contundente, as vezes grosseira, como ocorre no “Panfleto 26”, em que o autor de um poema português relata a entrada em Lisboa, após viagem ao Brasil, de William Carr Beresford, militar britânico que comandou o exército português na luta contra os franceses e que exerceu durante a regência um grande poder. Já no título, o sarcasmo: “Obra nova intitulada entrada do careca pela barra”. E na sequência, insultos direcionados ao militar e aos brasileiros: “Tornastes a voltar filho da Puta / Do País das araras, e coqueiros / Oh mal haja os Bananas Brasileiros / Que vivo te deixaram nessa luta” (p.182). Esse tipo de afronta, em certo sentido, contrasta com a prudência com que falavam e agiam boa parte das vezes os redatores dos periódicos e panfletos impressos, em sua maioria, homens instruídos – negociantes, bacharéis, clérigos e militares. Para os organizadores, esse fato se explica em parte pela origem popular dos papéis manuscritos e pela precária liberdade de imprensa vigente à época, que proibia a veiculação de certas informações nas tipografias oficiais e particulares (p.24).

Nesse sentido, em Às armas, cidadãos! os aspectos formais que distinguem os panfletos também são representativos das assimetrias sociais existentes entre os partícipes do movimento político, pois “se os panfletos impressos da mesma época revelam intenso debate político entre letrados em torno dos grandes problemas do momento, os manuscritos sobressaem pela revelação das ruas na ‘guerra literária’ da constitucionalização e da independência” (p.31). Ao sublinhar tais diferenças o livro abre um diálogo com as pesquisas dedicadas à amplitude social dos envolvidos nesse processo histórico, o que é bastante louvável. Por outro lado, a não inclusão dos panfletos impressos, como ressaltamos ao longo da resenha, prejudica uma visão de conjunto sobre a documentação e a amplitude de outros temas por ela suscitados. De todo modo, Às armas, cidadãos! apresenta resultados já expressivos, mas quiçá pode ser considerado ainda em desenvolvimento.

Rafael Fanni – Mestrando em História pela Universidade de São Paulo (FFLCH/ USP – São Paulo/Brasil) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), E-mail: [email protected]


CARVALHO, José Murilo de; NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das; BASILE, Marcello Otávio de Neri Campos (Orgs.). Às armas, cidadãos! Panfletos manuscritos da Independência do Brasil (1820-1823). São Paulo / Belo Horizonte: Companhia das Letras / Editora UFMG, 2012. FANNI, Rafael. A força da opinião: panfletos manuscritos na independência do Brasil. Almanack, Guarulhos, n.5, p. 199-202, jan./jun., 2013.

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Paulistas e Emboabas no coração das Minas. Idéias, práticas e imaginário político no século XVIII | Adriana Romeiro

Em instigante artigo, António Manuel Hespanha rebate e discorre sobre algumas críticas desferidas ao emprego conceitual de “Antigo Regime” na historiografia luso-brasileira, e apresenta a proposta de substituição dos debates de uma referência geográfica, a separação oceânica e cultural entre colônias e metrópole, por uma questão essencialmente política: “Antigo Regime e Regime Colonial podem coexistir?”2 . Ao propor esta reflexão, o historiador do Direito explicita o cerne dos debates travados entre os pesquisadores que confrontam estes dois “modelos explicativos”. Não devemos avaliar uma realidade histórica problematizando-a unicamente como atrelada a um sistema de acúmulo de riquezas em centros hegemônicos, transferindo recursos para setores decadentes e parasitários. Tampouco, sujeitar e vincular as trajetórias coloniais a uma subordinação e perpetuação do domínio metropolitano. Assim como não podemos privilegiar as economias vinculadas ao mercado externo em detrimento das que não tangenciaram esta órbita. Todavia, não podemos pensar em um estatuto político equitativo entre os colonizados e colonizadores; concebendo um arquétipo sócio-cultural e simbólico característico do Antigo Regime compartilhado pelos indivíduos neste inseridos. Valer-se de uma tática de submissão, amor e serviço incondicional ao rei como um instrumento analítico, reduz o campo de reflexões e possibilidades históricas. Outrossim, tais aspectos se relacionavam a uma lógica e etiqueta empregada para o peticionar, constituindo um artifício retórico acionado para cunhar representações sociais. Neste sentido, refletimos que estes aspectos analíticos não podem prescindir e antever aos fatos empíricos. Tais pressupostos teóricos não devem ser impostos aos procedimentos e produtos do fabrico histórico, uma vez que sua aplicabilidade, tenacidade e essência devem estar em consonância e comunhão. Leia Mais

Desenvolvimento, justiça e meio ambiente | José Augusto de Pádua

O livro Desenvolvimento, justiça e meio ambiente, concebido sob a orientação de Eliezer Batista e do professor Ignacy Sachs, é parte da coleção Humanitas, da Editora UFMG, e foi organizado por José Augusto Pádua, doutor em Ciências Políticas pelo Iuperj e professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde coordena o Laboratório de História e Ecologia. Pádua é ainda autor de O que é ecologia e Ecologia política no Brasil, e de vários artigos em livros, periódicos científicos, revistas e jornais publicados no Brasil e no exterior.

O livro reúne dez artigos de autores de diversas áreas do conhecimento – Economia, Direito, Arquitetura, Pedagogia, Relações Internacionais, Filosofia e Ciências Políticas. Entre os autores, há professores universitários, gestores públicos e diplomatas, além de uma promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e um ativista, sócios do Instituto Socioambiental (ISA). A variedade de perspectivas se adéqua bem ao eixo central do livro – desenvolvimento e sustentabilidade social e ambiental –, que convida a um olhar trans, multi e interdisciplinar e interessa ao conjunto da sociedade, não apenas a uma ou outra especialidade. Esse olhar se reflete no estilo dos artigos, que podem ser compreendidos por qualquer leitor leigo. Leia Mais

A construção social da masculinidade | Pedro Paulo de Oliveira

Focar a masculinidade enquanto objeto de reflexão de gênero, ainda pode ser considerada uma perspectiva inovadora. Esse conceito foi sistematicamente tangenciado na medida em que se fixava a idéia da existência de uma masculinidade hegemônica inquestionável, baseada na irrestrita dominação masculina. Os esforços para pôr em discussão esse conceito antes “despercebido” são bastante recentes na sociologia e ainda mais recentes na historiografia. É visto que uma das mais ricas formas de abordar a masculinidade é através do diálogo teórico-conceitual dentre os diversos campos das ciências humanas, em especial: História, Sociologia, Antropologia, Letras, Filosofia e Psicologia. No intuito de se transitar dentre essas diversas disciplinas se apresenta a obra de Pedro Paulo de Oliveira. Embora “A Construção Social da Masculinidade” (2004) seja fruto de sua tese de doutorado defendida no Departamento de Sociologia da USP, seus diálogos transcendem as fronteiras disciplinares ao passo que o autor realiza as mais diversas incursões teóricas, perpassando inclusive pela historiografia.

É nesse sentido que a presente resenha propõe uma leitura, também por parte de dos historiadores, dessa obra que trilha diversos caminhos das Ciências Humanas, criando um dos mais ricos panoramas teóricos acerca do assunto no Brasil.

Oliveira define, ainda que provisoriamente, masculinidade enquanto “um lugar simbólico\ imaginário de sentido estruturante nos processos de subjetivação […] que aponta para uma ordem de comportamentos socialmente sancionados” (2004, pp. 13). Partindo desse pressuposto, o autor passa a vasculhar os conhecimentos históricos, filosóficos, psicológicos, antropológicos e sociológicos em busca da “construção social da masculinidade”.

No primeiro capítulo intitulado “Macho divinizado” há um diálogo entre as pesquisas do historiador George Mosse e do sociólogo Norbert Elias que estabelece “uma sociogênese moderna” da masculinidade. Oliveira contrasta o ideal masculino do bravo, ousado, destemido, rude e passional cavaleiro da idade média com o comedido e autocontido cavalheiro burguês da idade moderna. Dessa relação eleva-se o ideal moderno de masculinidade, incentivada pelo estado nacional e por diversas instituições sociais, como as religiões, a família nuclear, as leis, os esportes, a psicanálise, a medicina e a própria ciência iluminista.

No segundo capítulo que o autor intitulou “Capitalismo cósmico”, podemos encontrar ampla discussão acerca dos paradigmas norteadores da pós-modernidade. Para Oliveira, a ascensão de tal pós-modernidade proporcionou instabilidade, incertezas e crises da maioria dos valores nacionais e burgueses que amparavam o discurso mitificador da masculinidade. A compreensão da fragmentação e das mudanças promovidas por essa nova configuração social, cultural e econômica seria fundamental para que se pense em uma “crise da masculinidade”, ou seja, uma decadência contemporânea dos fabulosos valores masculinos junto dos ideais modernos que os sustentavam.

Delineada essa suposta crise dos valores masculinos, possibilitou-se questionar ou reafirmar tais valores: destoantes discussões acadêmicas e políticas são delineadas no terceiro capítulo do livro. Os discursos dos conservadores, dos cristãos, do movimento Gay, dos “homens vitimizados”, são indiciados a fim de se mapear os contornos e proporções que essa suposta crise da masculinidade havia tomado. Oliveira tece suas “Críticas Teóricas à Visão Vitimaria” afirmando que as posições teóricas que sustentam a menção de uma crise nos valores masculinos estão baseadas em argumentos “psicologizantes”, desprovidos de uma base empírica sólida. A proposição do autor é a de relativizar ou até mesmo abandonar a perspectiva da crise da masculinidade, pois “Antes de ser vítima, o homem é beneficiário do sistema de gênero vigente” (OLIVEIRA, 2004, pp. 190). A hipótese de que a masculinidade não sofreu, necessariamente, uma crise estrutural desencadeia a arguição do quarto capítulo, no qual Oliveira aborda as permanências da masculinidade sobrevivente a todas as crises do século XX. O argumento é que a interação social é um elemento relativizador da concepção de masculinidade decadente, pois nos baixos estratos sociais mantêmse a visão valorativa dos elementos constitutivos do discurso masculino, diferentemente das crises presentes nos homens das classes médias e altas, freqüentadores de consultórios psicológicos. Oliveira se utiliza do conceito Deleuziano de “falocentrismo” ao argumentar que as relações de gênero apontam para uma cultura supervalorizadora da simbologia do falo e da virilidade, causando um desequilíbrio na balança do poder em que o sujeito enquadrado nas prescrições da masculinidade é beneficiado, em detrimento de todos os sujeitos alheios a tais prescrições.

No quinto e último capítulo, Oliveira dá seqüência à sua argumentação na medida em que traça as relações e vivências intersubjetivas masculinas. Isso abre espaço para a utilização de seu conceito de masculinidade enquanto um “lugar simbólico\imaginário de sentido estruturante” (OLIVEIRA, 2004, pp. 245). A identidade masculina passa a ser uma construção subjetiva baseada em signos de honra, prestígio e dominação, que se afirma através das vivências interacionais e intersubjetivas. Tais vivências são propiciadas através de condutas específicas, muitas vezes violentas, perigosas e excludentes. A legitimação da identidade masculina é reproduzida pela mídia, pelas “fofocas” e por diversas outras formas de comunicação, que por sua vez, funcionam como formas de controle social, a partir do momento em que estabelecem determinados códigos masculinos assumidos como legítimos e adequados. Trata-se de uma opinião compartilhada que deve ser reiterada por todos os agentes a serem considerados estabelecidos [87]. Isso possibilita a satisfação existencial desses, ao passo que categoriza os alheios a tais normas enquanto “outsiders”.

Consecutivamente, Oliveira defende a hipótese de um “inconsciente sexuado” em que todos os homens confiscam um valor positivo em relação aos próprios signos constitutivos da masculinidade, ainda que alguns desses homens não os defendam conscientemente. Isso dá vazão à convergência entre “masculinidade” e “poder simbólico”, reafirmando o argumento da “Dominação Masculina” de Bourdieu (1999).

O autor encerra seu livro discutindo sobre a necessidade de se fugir dos estereótipos e se estudar mais profundamente a masculinidade, enquanto uma perspectiva de gênero. Oliveira reitera sua posição de que há uma disparidade entre os gêneros que ainda não foi superada, sendo necessária ampla reflexão desses a fim de reduzir as disparidades sociais.

Há muitas contribuições apresentadas por essa obra, delimito duas: a primeira, e mais específica, é a argumentação teórica utilizada que proporciona instrumentalização às pesquisas que se pretendam focar no estudo da masculinidade. A segunda contribuição, essa mais ampla, é a própria abordagem acerca da “Construção Social da Masculinidade“, trazendo a compreensão de que a masculinidade não é uma edificação sólida ou um conceito a priori [88] , antes disso, é literalmente uma construção social, passível de questionamentos, de discursos, de desconstruções. Essa abordagem, problematizadora, transporta a masculinidade para o centro das discussões acadêmicas das ciências humanas, uma vez que traz à tona um importante e delicado debate que articula a masculinidade com as construções subjetivas e com as relações de poder intergêneros.

Notas

87 Uso o termo de acordo com a concepção de Norbert Elias (2000), ao passo que os estabelecidos, como o próprio nome já diz, é um grupo identitário que se auto-afirma através da utilização de significações sociais comuns. Tal auto-afirmação serve como uma ferramenta de exclusão dos outsiders, ou seja, dos que não compartilham dos mesmos códigos propostos pelos estabelecidos.

88 Uso o conceito “a priori” em stricto sensu como “independente de qualquer experiência empírica”.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade, Rio de Janeiro: Zahar, 2000. pp.17-50.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala. 20.ed. Rio/Brasília: José Olympio/INL, 1980.

Fernando Bagiotto Botton86 – Bolsista PET\MEC-SESU e graduando do curso de História da Universidade Federal do Paraná.

OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2004. Resenha de: BOTTON, Fernando Bagiotto. Cadernos de Clio. Curitiba, v.1, p.121-123, 2010. Acessar publicação original [DR]

Paulistas e emboabas no coração das Minas: Ideias, práticas e imaginário político no Século XVIII | Adriana Romeiro

A obra recente de Adriana Romeiro, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, vem suprir uma lacuna de estudos recentes sobre o episódio da guerra dos emboabas, conflito que agitou Minas Gerais no início do século XVIII.

O levante dos emboabas é um tema clássico da história do Brasil, já abordado por autores do século XVIII, como Sebastião da Rocha Pitta, Manuel da Fonseca, Pedro Taques Leme e Cláudio Manuel da Costa. O tema foi retomado pelos primeiros historiadores que se propuseram a escrever uma história nacional, originando uma controvérsia sobre quem teria protagonizado um movimento então identificado como nativista, se os paulistas ou os emboabas. Leia Mais

Minas e os fundamentos do Brasil moderno | Ângela de Castro Gomes

Minas e os fundamentos do Brasil moderno é uma obra capitaneada pela Fundação Israel Pinheiro e integra o projeto “Os caminhos do Brasil moderno”, um conjunto de ações promovidas pela própria entidade, que inclui também a edificação do Espaço Israel Pinheiro, na Praça dos Três Poderes, em Brasília, além da criação do Museu Casa de João Pinheiro, na cidade de Caeté (MG). Ou seja, este livro deve ser compreendido como uma obra integrada a uma série de iniciativas que procuram preservar uma dada memória do desenvolvimentismo no Brasil, tendo como foco central a contribuição de João Pinheiro e, mais tarde, de seu filho Israel Pinheiro na política brasileira.

Em síntese, os artigos procuram sustentar a concepção de que a gênese do projeto desenvolvimentista já estava configurada desde o início da República na figura do próprio João Pinheiro, presidente do Estado de Minas Gerais, e que tal ideário teria sido conduzido por seus filhos, parentes e políticos de um círculo de influências que incluiu, entre outros, Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves. Para defender essa hipótese explicativa, o livro conta com um prefácio, uma apresentação, um texto de abertura e 10 capítulos divididos em três partes bem distintas – e bastante desiguais. Leia Mais

A geografia do crime: violência nas Minas Setecentistas – ANASTASIA (VH)

ANASTASIA, Carla Maria Junho. A geografia do crime: violência nas Minas Setecentistas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. Resenha de: JESUS, Alysson Luiz Freitas de. Varia História, Belo Horizonte, v.21, n.34, p. 523-525, jul., 2005.

A obra de Carla Anastasia, publicada pela Editora da UFMG, tem como principal objetivo analisar as relações de violência entre os habitantes da capitania das Minas Gerais, ao longo do século XVIII. A historiadora procura avaliar- a partir de textos em sua maioria já publicados em outras ocasiões- a imprevisibilidade da ordem social setecentista nas Minas, principalmente em regiões onde a administração da Coroa não conseguia penetrar. Nesse sentido, o conceito de violência e a análise das relações sociais no sertão acabam por se constituir o eixo protagonista das discussões da autora.

Na introdução do livro, Anastasia procura esclarecer o papel que os atos violentos tiveram no cotidiano da população das Minas. As autoridades responsáveis pela tentativa de ordenamento acreditavam que os tumultos, desordens e assassinatos eram resultados da ”má qualidade dos povos” que viviam na região. Aliava-se a isso a enorme presença de escravos e forros na região, que, sob a tica dos homens do poder, eram diretamente responsáveis pelos atos violentos e pela desordem. De acordo com as autoridades, esclarece Carla Anastasia, as Áreas mineradoras estavam infestadas de quantidade de negros, forros e mulatos, vagabundos sem oficio, que viviam com demasiada liberdade, prontos a praticarem latrocínios e mortes com graves prejuízos dos povos. (p.15) O cotidiano das Minas convivia, portanto, com uma tentativa de tornar previsível, o imprevisível.

Quanto aos negros, mais especificamente, fica claro para as autoridades o envolvimento constante em situações de violência na capitania. Um componente especial no universo criminoso dos negros eram as práticas mágicas, que, com isso, contribuíram para transformá-los nos principais inimigos dos brancos. Essa situação levava a população a nutrir um forte medo com relação aos negros, que, era tanto maior (o medo) quanto mais se adentrava por paragens desertas, sem lei e sem ordem, onde os desmandos uniam escravos, forros, brancos pobres e, muitas vezes, grandes proprietários e ministros do rei. (p.18)

A autora divide a sua obra em 4 partes. Na primeira, intitulada A construção dos espaços da violência, Anastasia recupera a formação da capitania, dedicando especial atenção a ocupação e (des)organização administrativa. Uma das características do setecentos mineiro foi o baixo grau de institucionalização política na capitania. As tentativas de se controlar os territórios de potentados e de mandos no sertão setecentista não surtiram resultados. Portanto, as estratégias levadas  frente para normatizar a capitania esbarravam principalmente nessas Áreas, uma vez que os criminosos dificilmente eram encontrados. A partir da a autora passa a discutir a estrutura social e política dessas regiões, o que nos leva  segunda parte do texto, intitulada “Terra de ninguém”.

Para Anastasia, a violência dos facinorosos nos sertões constitua zonas de non-droit (termo mantido em francês pela dificuldade de se traduzir com eficácia a expressão, ou seja, zonas nas quais a arbitrariedade era a regra, em que os direitos costumários e a justiça não eram reconhecidos pelos atores sociais, fossem autoridades, fossem vassalos, escravos ou forros.) p.23. Privilegia-se aqui o mandonismo nos sertões do rio das Mortes e do São Francisco. Nesse segundo, em especial, a ausência do poder da Coroa levou á consolidação dos territórios de mando. A violência, nesse sentido, se fazia presente principalmente nos sertões. Isso era propiciado, em grande parte, pelo cárter geográfico da região:

Dos perigos imaginários, contava-se a boca pequena. O sargento de milícias, Romão Fagundes do Amaral, afirmava que a mata do Senhor Bom Jesus dos Perdões, situada nos confins do termo da vila de São José, no sertão da comarca do Rio das Mortes, era bom refúgio para os criminosos, próprio por ser de mata geral com poucas estradas e mal abertas, propícias para mortais emboscadas. (p.20)

Além disso, o componente sobrenatural contribua na formação do imaginário que se fazia da generalização da violência nessas regiões, classificadas como locais “assombrados por criaturas estranhas e superlativas, onde se reproduzem caprichos sobrenaturais e foras malévolas”.

A terceira e quarta partes do livro (intituladas, respectivamente, “Rapina, contrabando e vendeta” e “Joaquim Manoel de Seixas Abranches – um ouvidor bem pouco ortodoxo”) têm como aspecto principal a análise da atuação de determinados bandos de facinorosos da Capitania, entre eles a famosa Quadrilha da Mantiqueira, o bando liderado pelo Mão de Luva e o do Sete Orelhas. Esses homens, criminosos por excelência, faziam da rapina o seu modo de vida. Na quarta parte, a autora examina o comportamento transgressor de uma autoridade, nos fornecendo mais instrumentos para se repensar a questão do público e do privado no Brasil.

Conforme esclarecemos anteriormente, a obra privilegia alguns aspectos que vêm merecendo especial atenção por parte dos estudiosos. No que diz respeito violência, diversos estudos vêm sendo produzidos- muitos deles sob orientação da própria autora, professora titular do Departamento de História da UFMG, contribuindo para um melhor entendimento das relações sociais de ruptura e tentativa de ordenamento das Minas. Por se tratar de uma obra que privilegia o estudo em regiões onde a violência se fazia mais presente, a autora objetiva demonstrar as raízes que possibilitaram essas manifestações, o que levou, nessas áreas, a uma não da legitimidade da violência. Talvez, depois da obra clássica de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens Livres na Ordem Escravocrata, poucos estudiosos no Brasil trataram com tanta competência a temática do cotidiano da violência.

Por fim, um outro aspecto muito abordado na obra é a questão dos direitos costumeiros. Anastasia destaca o caráter das relações entre a Coroa e os seus vassalos, permeado por regras que deveriam ser respeitadas. Determinados limites eram impostos também ao poder metropolitano, assim como aos vassalos. Para a autora, “se é usual afirmar que os colonos várias vezes reagiram exacerbação do poder metropolitano, é menos comum chamar a atenção para o fato de que os mesmos se beneficiaram com os limites colocados a esse poder”. (p.23) Assim, quando essas regras eram desrespeitadas, rompia-se a ordem. Foi o que aconteceu em vários conflitos nas Minas setecentistas, entre os quais os Motins do São Francisco em 1736.

O livro não esgota como não poderia deixar de ser as análises sobre o cotidiano da violência nas Minas Gerais. Antes disso, o livro é uma contribuição fundamental para futuros estudos sobre a história da capitania, principalmente, acreditamos, no que se refere as análises da centúria posterior, o século XIX. Publicações como “A geografia do crime” são um estímulo para uma produção cada vez mais intensa da história das Minas, não apenas sobre o setecentos, mas, em especial, sobre o oitocentos, tão carente de estudos de qualidade como o livro de Carla Maria Junho Anastasia.

Alysson Luiz Freitas de Jesus – Mestrando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. Bolsista CAPES. Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES. E-mail: [email protected]

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Roteiro bibliogáfico do pensamento político-social brasileiro (1870-1965) | Wanderley Guilherme dos Santos

Neste livro estão reunidos dois trabalhos de Wanderley Guilherme dos Santos. Um é o Roteiro bibliográfico do pensamento político-social brasileiro (1870-1965), levantamento das principais obras do pensamento brasileiro, realizado há 36 anos e nunca antes publicado; o outro é uma reflexão sobre nossa história das idéias e já se tornou um texto clássico: Paradigma e história: a ordem burguesa na imaginação social brasileira. O levantamento bibliográfico fala por si mesmo. No entanto, vale a pena ressaltar a originalidade dos critérios de seleção que o orientaram. Concebida originalmente em 1966 para orientar uma pesquisa sobre a Imaginação político-social brasileira, a seleção bibliográfica privilegiou fontes e temas em que se evidenciava a forte relação entre história política e história intelectual e concentrou-se nos estudos cuja ênfase recai sobre questões econômicas e sociais. Aliado a Paradigma e história, trabalho nele baseado, esse Roteiro bibliográfico é ferramenta indispensável para os que se dedicam ao estudo da história do pensamento social brasileiro. Leia Mais

Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA | Lúcia Lippi Oliveira || A conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda | Robert Wegner

Numa passagem de entrevista publicada no número 58 da revista Novos Estudos Cebrap (2000), Roberto Schwarz chama a atenção para o “comparativismo congênito” da história literária brasileira, que localiza invariavelmente a literatura produzida entre nós no interior da tradição ocidental mais ampla, conectando, portanto, produção nacional e matrizes européias. Nos trabalhos realizados nas áreas de sociologia e história, por sua vez, continua o crítico, o Brasil parece se esgotar nele mesmo, “como se o que acontecesse aqui dispensasse a consideração do resto” (p. 54). Se a advertência parece procedente em linhas gerais — as nossas ciências sociais, obcecadas pela compreensão do país, driblaram freqüentemente a empresa comparativa e os nexos com a produção internacional —, ela não se aplica a uma série de trabalhos produzidos nos últimos anos, entre os quais figuram A conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda, de Robert Wegner, e Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA, de Lúcia Lippi Oliveira, ambos cuidadosamente editados pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Apesar de seus diferentes formatos e propósitos, os estudos têm, entre outros, o mérito de desprovincianizar a reflexão sobre o país, situando-a num debate ampliado sobre a(s) América(s).

Nesse sentido, a leitura dos volumes, lado a lado, revela-se extremamente proveitosa. Poderíamos dizer que os ensaios reunidos de Lúcia Lippi esboçam um grande painel sobre as relações Brasil-Estados Unidos no seio da qual o estudo de Robert Wegner se abriga ao focalizar estas mesmas relações através da obra de Sérgio Buarque de Holanda. De modo inverso, e complementar, o retrato minucioso pintado por Wegner permite qualificar processos e dimensionar questões apontadas no vasto e elaborado painel traçado por Lippi. Leia Mais

Vísceras da Memória:Uma leitura da obra de Pedro Nava – BUENO (VH)

BUENO, Antônio Sérgio. Vísceras da Memória:Uma leitura da obra de Pedro Nava. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Resenha de: ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Varia História, Belo Horizonte, v.15, n.20, p. 184-186, mar., 1999.

Cada ser humano é único. Esta é uma grande verdade. Cada um de nós guarda em si potencialidades e qualidades que nos tornam singulares. Entretanto existem alguns, entre nós, cuja singularidade e unicidade se tornam por demais significativas. Pedro Nava, certamente, foi um ser humano assim. Médico, desenhista, poeta, escritor-memorialista, revelou – se ao mundo como uma personalidade única e ao mesmo tempo dotado de múltiplas facetas. Conhecê-lo, defini-lo não é uma tarefa muito simples.

Existem uma quantidade expressiva de obras acadêmicas, jornalísticas, literárias, entre outras que analisam a personalidade e a obra de Pedro Nava, entretanto podemos afirmar que o livro recentemente publicado pelo Prof. Antônio Sérgio Bueno nos possibilita mergulhar no universo navaniano e ao menos, enxergar algumas novas centelhas acerca do personagem inquieto e insondável que foi Pedro Nava.

A obra de Bueno é resultado de uma tese de doutorado defendida no ano de 1994 inserida no Programa de Pós – graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

Ao falar de suas pretensões em relação ao trabalho, autor afirma que seu objetivo foi: “( … ) estudar as memórias de Nava através de categorias operacionais como espaço, corpo e figuração, tendo sempre em vista o diálogo da literatura com outras áreas do saber e o diálogo interno entre as próprias obras literárias.( … )” ( p. 19 grifas do autor), entretanto podemos dizer que as questões apontadas por Bueno ao longo de seu texto se abrem para maiores possibilidades de análise e servem como referencial àquele que se interessa não apenas pela trajetória de Pedro Nava, mas para o estudioso da memória, cidades e cultura busca .em fontes alternativas como a Literatura, um apoio para seus estudos e Investigações.

Bueno divide seu texto em três capítulos seguindo a estrutura que gestou ao eleger três categorias como essenciais nas memórias de Pedro Nava. São elas: o espaço, o corpo e a figuração.

No capítulo I, intitulado, “Espaço” irá nos revelar como a noção de espaço, lugar, recriação e restauração foram importantes para Nava ao escrever suas memórias. Segundo ele, ao rememorar, o escritor reconstruía lugares, pontos, ruas, de forma que pudesse recuperar em suas lembranças a essência de suas memórias. A recuperação dos espaços · funcionava como elemento detonador das lembranças. Revela ao leitor um Nava amador de ruínas buscando entre cacos e estilhaços reter e reconstruir aquilo que já não existia mais e através de seu texto restaurava as imagens que haviam se tornado invisíveis ou mutiladas.

No capítulo 11 dedicado ao “Corpo” encontramos a relação clara e intrínseca entre o Nava médico e o Nava escritor que lidava com seu texto e com suas lembranças com uma precisão visceral e a curiosidade de um anatomista. A Anatomia era em verdade, sua grande paixão. A analogia estabelecida entre o médico Frankenstein que desejou dar vida à matéria morta e ao médico Pedro Nava que recuperava o passado não o considerando matéria morta, mas algo vivo e pulsante no qual sempre esteve mergulhado, nos faz refletir sobre o papel do historiador na sociedade como aquele sujeito que mesmo compreendendo a impossibilidade de recuperar o passado integralmente, faz dele seu objeto e referencial no entendimento da sociedade em que vivemos. O historiador reúne características do Dr. Frankenstein e do Dr. Pedro Nava.

Neste capítulo o autor tratará, também, da relação de Pedro Nava com a morte, a presença dos cadáveres em suas descrições, a rememoração das aulas na Faculdade de Medicina e como estas experiências definiram de forma indelével sua personalidade.

No terceiro e último capítulo “Figuração”, Bueno irá tratar de um aspecto fundamental na vida e obra de Nava: a imagem. É sabido por todos que o memorialista possuía conhecimentos artísticos que o dotavam de qualidades plásticas que, caso tivesse persistido na carreira artística, não teria deixado nada a dever ao mundo das artes. Entretanto nos mostra o autor que a imagem nunca esteve afastada do universo criativo de Nava. Nos originais de seus textos elaborava desenhos, caricaturas, colagens, reconstruía e desenhava mapas, lugares, buscava em fotografias sue material de apoio para a recuperação das memórias que escrevia. Rescrever suas memórias era trabalho e um trabalho que envolvia a manipulação de uma linguagem estética.

Bueno encerra sua análise comentando acerca dos originais somados em trinta e seis páginas inéditas do que seria parte do sétimo volume das memórias de Nava intitulado “Cera das Almas”.

Na realidade o texto de Antônio Sérgio Bueno é uma aula de erudição e um convite, prazeroso, à leitura e ao estudo. Ao analisar, visceralmente, a produção de Nava nos aponta algumas de suas influências literárias que se destacam em seu texto, citamos Edgar Allan Poe, Mareei Proust, Stevenson, Rabelais, entre outros, bem como seu infinito conhecimento em relação às artes plásticas e as analogias que invariavelmente estabeleceu entre a produção de artistas como Rembrandt, Michelângelo, Rubens, Monet, Renoir, entre outros como elementos detonadores e referenciais para a construção de suas lembranças.

Por outro lado, embora não trate desta questão diretamente, o autor nos permite refletir acerca da importância da memória como categoria social, cujo compartilhamento permite aos homens reconstruir seu passado através de depoimentos orais ou escritos, reestruturar sua história e muitas vezes recuperar elementos que não poderiam ser recuperados através de outras fontes.

E neste sentido ao mencionarmos as fontes, acrescentamos que as análises implementadas por Sérgio Bueno possibilitam enxergar a Literatura como uma categoria de fonte para os pesquisadores que muito tem contribuído para o enriquecimento de novas abordagens e tem permitido um diálogo mais amplo e profundo entre os homens e a história que é construída por eles. Revela – nos que este fazer não acontece apenas nos espaços e nos meios tradicionais, mas as obras de pensamento, de criação e reflexão muito podem nos contar acerca destes homens. É óbvio que as memórias de Nava já vêm sendo utilizadas por historiadores, arquitetos, sociólogos, entre outros estudiosos como elemento constituinte em suas análises, entretanto o que se ressalta no estudo de Bueno é a interpretação que ele estabelece em relação ao texto navaniano e as possibilidades de verticalização que permite ao leitor e que se encontram nas entrelinhas.

Desta forma, portanto, podemos afirmar que o trabalho realizado pelo Prof. Antônio Sérgio Bueno é uma obra que merece ser lida, analisada, criticada e aproveitada em todos os seus sentidos, explorando todas as possibilidades que nela são apontadas, inclusive o retorno ao texto de Pedro Nava. Bueno através de suas interpretações, nos convida, delicada mas convincentemente, à leitura dos seis volumes das memórias de Nava, para aquele que ainda não teve esta oportunidade e incita à uma releitura, cuidadosa, anatômica, visceral aquele que já teve a chance de mergulhar na escrita navaniana, pois certamente encontrará novas nuanças no depoimento deste personagem ímpar que foi Pedro da Silva Nava.

Marcelina das Graças de Almeida – Mestre em História Professora da Rede Municipal de BH.

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UFMG: Projeto Intelectual e Político – DIAS (VH)

DIAS, Fernando Correia. UFMG: Projeto Intelectual e Político. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. Resenha de: REIS, José Carlos. Varia História, Belo Horizonte, v.13, n.18, p. 495-500, nov., 1997.

Belo Horizonte faz 100 anos e a UFMG, uma de suas instituições mais importantes, faz 70 anos. A festa dos 70 anos da UFMG integra o conjunto das comemorações do centenário de Belo Horizonte. Nesse ambiente de festa e alegria, o departamento de História da UFMG tomou a iniciativa de criar o projeto integrado de pesquisa UFMG: Memória & História, sob a coordenação das Professoras Maria Efigênia Lage de Resende e Lucília de Almeida Neves Delgado e envolvendo uma ampla equipe de pesquisadores das diversas unidades da UFMG. As pesquisas visam a elaboração de ensaios e estudos sobre as origens e a trajetória da UFMG, o arrolamento de fontes bibliográficas e documentais e a produção de fontes orais, escritas e audiovisuais. O projeto tem o apoio financeiro da FAPEMIG, CNPq, FUNDEP, UFMG e FAFICH. O resultado das pesquisas será apresentado em uma série de 5 volumes. E o primeiro volume acaba de ser oferecido ao público belo-horizonte, mineiro e brasileiro. Trata-se do livro do Professor Fernando Correia Dias UFMG: Projeto Intelectual e Político. Quem o apresenta é o atual Reitor, o Professor Tomaz Aroldo da Mota Santos. A editora da UFMG se esmerou na produção gráfica e artística do livro: uma bela capa que é como a “foto de uma lembrança” do prédio da Faculdade Livre de Direito, o papel de boa qualidade, a impressão bem definida, o texto corretamente tratado e revisado.

O Professor Dias, 71, mineiro de Três Pontas, autor do livro, teve toda a sua formação feita na UFMG: Bacharel em Direito (1951), Bacharel em Sociologia e Política (1957), Doutor em Ciências Sociais (1969). De 1962 a 1969, ele foi professor da FACE e da FAFICH; de 1969 a 1984, foi professor da Universidade Nacional de Brasília. O Professor Dias possui uma obra numerosa, dedicada à sociologia da cultura e à história da cultura. Em suas principais obras, ele tematizou os “caracteres originais” de Minas, a cultura mineira, o barroco, a Inconfidência, a literatura, a educação.

Nesse seu novo livro, o Professor Dias deseja “estudar a mentalidade das elites políticas e intelectuais de Minas nos anos 20, uma quadra de inovação e alvoroço, para compreender o contexto político e intelectual da emergência de projetos coletivos de maior alcance, como a preservação da arte barroca e a construção da primeira universidade do Estado”. E ele atingiu o seu objetivo, cumpriu a sua missão. Ele nos oferece um relato das origens da UFMG, que não pretende ser completo, mas que é uma bem realizada análise da conjuntura política e cultural de Minas na segunda metade da década de 1920, repleta de datas, nomes e episódios. Ele menciona ao final do volume uma vasta e consistente bibliografia. As fontes para o seu livro, ele as encontrou na Biblioteca Central/UFMG, no Arquivo Público Mineiro, na seção Mineiriana da Biblioteca Estadual Prof. “Luis de Bessa”. Ele se apoiou também nos jornais de 20/30.

Eis, portanto, o projeto UFMG: Memória & História e, dentro dele, o livro e o seu autor. Sobre o livro, seria necessário e interessante reter algumas de suas análises e informaçöes. Em 1927, criou-se a UMG. Aurélio Pires, um dos seus maiores defensores e fundadores, divide a “história da idéia da universidade mineira” em três fases: 1789-1925: iniciativa; 1925/27: início da realização; 1927: criação definitiva. Vamos nos apoiar nessa periodização para organizar os dados que nos oferece em seu livro o Professor Dias. A periodização é uma estratégia especificamente historiadora para organizar o vivido, oferecendo dele alguma inteligibilidade. Aurélio Pires considera que a “inteligibilidade da UMG” poderia ser percebida nessas três fases, e o Professor Dias parece concordar, pois a estrutura implícita do seu livro leva em consideração essa periodização.

De 1789 a 1925: iniciativa. A UMG foi sobretudo um “sonho dourado” dos Inconfidentes. Em sua origem, ela já era um “projeto político e intelectual”. Os Inconfidentes eram intelectuais com um projeto político, que marcou profundamente a memória mineira e nacional. A fundação da UMG veio realizar uma espera que não pode ser realizada pelos seus sonhadores do passado. Ela será o resgate de uma dívida com o passado, a realização do sonho dos ilustres antepassados mineiros, os Inconfidentes. A universidade apareceu tardiamente no Brasil; elas apareceram somente no século XX. Durante todo o século XIX foram vários os projetos apresentados e arquivados por inércia e indiferença. Por que? Os governantes, afirma Dias, preferiam manter escolas isoladas tendo em vista a profissionalização das novas gerações. Predominava uma mentalidade pragmática, “naturalista”. A universidade seria um retrocesso, um lugar de retórica e pedantismo literário. Para o Professor Dias, foi a “orientação pragmática” que impediu o surgimento antecipado da universidade brasileira. O positivismo que predominou no final do século XIX reforçou esta atitude ao considerar a universidade elitizante e promotora do saber ornamental. A consequência disso era uma cultura dominada pelo autodidatismo e pela bibliografia estrangeira. A tradição cultural mineira se dividia em duas vertentes: a da “razão humanista” e a da “razão pragmática”. A primeira era orientada pela herança católica e greco-latina; a segunda, pela utilidade prática da informação técnica. As duas vertentes predominaram alternadamente e coexistiram e ambas foram prejudiciais à idéia da universidade.

O ensino superior era feito em escolas isoladas. A primeira escola superior fundada no Brasil foi a de Farmácia, em 1839, em Ouro Preto. A segunda, também em Ouro Preto, foi a Escola de Minas, em 1875. Criou-se uma Escola Livre de Direito também em Ouro Preto, em 1892. Mas, com a fundação de Belo Horizonte, a cultura mineira se deslocou de Ouro Preto para a nova capital. Várias escolas superiores isoladas foram criadas em Belo Horizonte: em 1907, a Escola de Odontologia; em 1911/ 12, a Escola de Medicina; em 1911, a Escola de Engenharia. Antes, em 1898, a Escola Livre de Direito de Ouro Preto transferiu-se para Belo Horizonte. A nova capital passou a ter uma importante rede de escolas superiores isoladas. Eram estabelecimentos livres, particulares e autônomos. Belo Horizonte se consolidou como centro político-administrativo e intelectual de Minas. De Ouro Preto, vieram funcionários, profissionais liberais, professores e, inclusive, costumes e rituais. O autor discorre longa e detalhadamente sobre cada uma das escolas de Ouro Preto e de Belo Horizonte. Ele apresenta listas de nomes dos professores e biografias de alguns deles.

Essas são, portanto, as condições iniciais da UMG: subjetivas, o sonho sagrado dos Inconfidentes, uma sensação de menoridade e inferioridade em relação aos países estrangeiros e vizinhos e ao Rio de Janeiro; objetivas: quatro escolas superiores isoladas, que existiam bem e concretamente, que poderiam ser o núcleo inicial da sonhada universidade. Outros fatores vão se associar a esses: a efervescência política e intelectual dos anos 1920, o projeto político do Presidente do Estado Antônio Carlos Andrada, a aspiração da comunidade mineira e belohorizontina.

1925-1927: início da realização. Um reparo em relação a esse corte temporal: ele parece muito curto! Se é verdade que o movimento pró-Universidade se acentuou na segunda metade da década de 20, ele deve ter começado um pouco antes, pelo menos no início da década. Talvez se obtenha uma maior “inteligibilidade do processo” se se estendesse essas datas para 1920/1927. O Professor Dias afirma que o ambiente político e intelectual da década de 20 era marcado por três fatores que aceleraram a fundação da UMG:

1º) a formação dos intelectuais. Nos anos 20, as escolas isoladas começaram a dar os seus primeiros frutos. Os estudantes de Direito se destacavam na política e no setor literário. A maior parte dos jovens intelectuais modernistas passaram pela escola de Direito. A geração modernista mineira possui uma unidade coletiva real, é um grupo social homogêneo. Ela está interessada em resgatar o regionalismo cultural mineiro, quer retomar a tradição intelectual mineira desde o século XVIII. Há interesse na preservação da arte barroca, da cultura mineira. Os novos têm uma formação Iluminista, assim como os seus antepassados do século XVIII. Eles convivem com os tradicionais, egressos do Caraça e dos Seminários de Mariana e Diamantina, de herança católica e greco-latina.

2º) as condições e consequências da urbanização. Belo Horizonte continuava a ser uma tranquila cidade político-administrativa. Ela simbolizava a unidade mineira e recebia os mineiros vindos de todo o Estado. A sua vida urbana se acelerou. Ela centralizava a vida cultural. A imprensa era mais contínua e estável. A oligarquia política perremista não era tão fechada — ela ouve e acolhe intelectuais e políticos oriundos de outras camadas sociais. O Estado não era controlado exclusivamente por uma oligarquia, mas por “elites autoritário-modernizantes”, cuja expressão maior era o próprio Presidente Antônio Carlos. O Professor Dias tem uma opinião, talvez, muito favorável de Antônio Carlos, que uma citação que faz de Norma de Góes Monteiro ajuda a relativizar: é uma “velha raposa”, autoritário, mas modernizante, com tintas de liberal. O autor parece ter-se deixado seduzir por Antônio Carlos.

3º) o pensamento social vigente: foi um momento de forte expressão do regionalismo cultural e político em Minas. Falou-se em “civilização mineira”, em “mineiridade”, que só hoje se rediscute e se busca restringir, limitar. Minas teria uma “visão de mundo” peculiar, da qual o barroco mineiro seria a maior expressão. Havia, em Minas, nos anos 20, um clima de renovação política e intelectual.

Esses três fatores somados teriam levado à realização do sonho dos Inconfidentes: à fundação da UMG. A elite política andava de mãos dadas com a elite intelectual. Dessa convergência nasceu a UMG.

1927: criação definitiva. Os modernistas não foram os mentores e nem os fundadores da UMG. Mas, situados em postos estratégicos no campo intelectual, eles deram decidido apoio à iniciativa de criá-la e implementá-la. Pedro Nava, por exemplo, foi um modernista que a defendeu e consagrou. O jornal “Diário de Minas”, que era órgão oficial do PRM e onde trabalhavam os jovens intelectuais, como Carlos Drumond de Andrade, revela a união das elites em torno da fundação da UMG. Os modernistas, enfim, não a fundaram, mas lutaram também por ela. Eles estarão mais ligados à outra iniciativa cultural importante dos anos 20: a preservação do patrimônio artístico e cultural de Minas, no que tiveram o apoio dos modernistas paulistas.

A fundação da UMG fazia parte do projeto político de Antônio Carlos. Ele tinha um verdadeiro programa de reforma da educação. Aliás, nos anos 20, o tema educacional tornou-se plataforma política. Várias propostas de reforma da educação foram apresentadas. Fernando Azevedo se destacou nessa discussão em São Paulo; em Minas, destacaram-se Francisco Campos e Francisco Mendes Pimentel. Foi esse último que se ocupou do problema da universidade, dos textos legais e do projeto. A UMG teria como objetivo: estimular a cultura científica, a produção nacional de conhecimento científico, promover o progresso e o bem-estar da população, a formação profissional, a fidelidade à cultura mineira e nacional, a responsabilidade e compromisso social. A instituição deveria servir à região mineira e ao Brasil. Ela teria autonomia didática e administrativa. A Universidade não seria um agregado de escolas, mas uma “confederação”. Ela deveria integrar as quatro escolas que a constituíam, bem como os professores e alunos. O espírito da Universidade seria o da convergência da “razão pragmática” e da “razão humanística” em uma “razão científica”, que não separa, mas reúne as duas primeiras. Alguns dos seus fundadores eram ao mesmo tempo técnicos e humanistas: juristas e naturalistas, físicos e filósofos, engenheiros e historiadores, farmacólogos e latinistas… Propõe-se um espírito comum, de solidariedade entre as suas quatro unidades e os corpos docente e discente.

Portanto, a UMG nasceu como resultado da convergência de conjunturas favoráveis: o projeto de um homem político forte, a cidade nova e centralizadora da vida político-administrativa e cultural, o anseio antigo das elites políticas e intelectuais e de outras camadas da população. A sua criação obteve o apoio entusiástico de toda a população. A imprensa, os estudantes, os políticos, os profissionais liberais, todos aplaudiram a iniciativa do Presidente do Estado. Fundada, a luta passou a ser pela construção de uma “cidade universitária”, uma sede espacial bem delimitada, um campus. A crise financeira do Estado adiou o projeto.

O Presidente escolheu para ser o seu primeiro Reitor um homem de sua confiança e que lutou pela UMG: Francisco Mendes Pimentel (18691957). Ele foi aluno, professor e diretor da Escola de Direito. Pimentel tomou a sua indicação como uma “missão”. Mas, durou pouco! O Professor Dias descreve de modo dramático o conflito que opôs o Reitor, o Conselho Universitário e os estudantes em torno da questão da “aprovação anual sem exames finais!”. Pimentel sofreu duramente a violência estudantil. Houve gritos, ameaças, pedradas, ovos atirados, tiros, mortos, feridos, humilhados, polícia e processos na justiça. Pimentel abandonou a universidade, decepcionado e ressentido. O autor sugere que esta fase seria a da criação definitiva. Mas, depois desse episódio, a UMG esteve ameaçada: ela pareceu passar de um “sonho dourado” a um “pesadelo infernal”. O Presidente do Estado pensou em desistir da idéia, pois estava frustrado. Mas, não o fez. A vida universitária ficou carregada de desconfiança e ressentimentos. No entanto, o tempo passou, a ferida sarou. E nos anos 40/50, a universidade se consolidou: incorporou a FAFICH e a Escola de Arquitetura e Belas Artes. Em 1949, ela foi federalizada.

Hoje, a UFMG é um dos centros de pesquisa e de formação de quadros e cidadãos, um centro de produção de conhecimentos científicos, sociais e filósoficos e de educação dos mais férteis do Brasil e em padrões excelentes. A universidade sofreu com as reviravoltas políticas: 30,37,64. Ela teve de lutar por sua existência e pela sua autonomia contra as ditaduras. Ela sempre foi uma referência democrática, um centro de resistência aos ventos mais turbulentos da história brasileira. Os fundadores e dirigentes da UMG e da UFMG lutaram com dedicação e competência pela sua fundação e continuidade. Se eles se inspiraram nos antepassados mineiros do século XVIII, eles nos inspiram, hoje, na defesa da Universidade contra aqueles que, muitos saídos dela, querem passar para a história como seus “coveiros”.

O livro do Professor Dias é encerrado com alguns interessantes apêndices: belas fotos dos primeiros prédios da UMG e de Belo Horizonte dos anos 20/40; as biografias dos cientistas mineiros dos séculos XVIII e XIX, feitas por Aurélio Pires; o discurso de Pedro Nava louvando a criação da UMG; o documento da fundação com as assinaturas dos fundadores; um documento em que a nova universidade responde às questões da ABE sobre a sua idéia de universidade; documentos dramáticos que revelam a luta dos Reitores da UMG e UFMG pela sua autonomia, destacando-se os de Aluísio Pimenta em 64.

Concluída a leitura do livro do Professor Dias, tem-se a certeza de que a pesquisa promovida pelo departamento de História para comemorar os 70 anos da UFMG, que está planejada para 5 volumes, começou muito bem em seu primeiro volume. Os próximos 4 volumes terão no livro do Professor Dias um bom preâmbulo, uma boa referência. O projeto UFMG: Memória & História foi bem iniciado; agora, aguardemos os próximos resultados desse importante trabalho.

José Carlos Reis – Departamento de História/UFMG.

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