Brasil em projetos: História dos sucessos políticos e planos de melhoramento do reino. Da ilustração portuguesa à Independência do Brasil | Jurandir Malerba

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Jurandir Malerba | Imagem: Café História

Num momento tão difícil da conjuntura nacional, em que a lenta construção da democracia brasileira após 1985 é ameaçada por distintas forças, a compreensão desse processo passa não somente pela análise do contexto atual, como pelo estudo dos diferentes projetos propostos para a construção do Brasil a partir de sua Independência, em 1822. Neste sentido, só podemos saudar com entusiasmo a iniciativa da Editora da Fundação Getúlio Vargas com o lançamento da coleção Uma outra história do Brasil, que pretende apresentar os projetos políticos de distintos grupos sociais que atuaram no Brasil nos últimos dois séculos.

O primeiro volume dessa ambiciosa empreitada, Brasil em projetos, é da lavra de Jurandir Malerba e abrange o período que vai do último quartel do século XVIII às duas primeiras décadas do seguinte. Trata-se, como sabemos, de um período chave da história do Brasil, marcado na economia por um significativo crescimento baseado na produção agropecuária de base escravista e, em termos sociais, pela consolidação de uma poderosa elite mercantil, responsável pelos vínculos tanto internos quanto externos da América portuguesa. É no campo político que temos algumas das principais transformações. Da chegada da família real ao Brasil até a abdicação de Dom Pedro I, temos décadas de grande agitação, abrangendo da transferência dos órgãos da corte portuguesa para a América à construção de uma nova nação e de um Estado independente. Tudo isso num ambiente intelectual marcado pelo influxo das ideias iluministas e do liberalismo. Leia Mais

Mobilidade e materialidade dos textos. Traduzir nos séculos XVI e XVII | Roger Chartier

Debruçar-se sobre livros centenários não nos permite acessar o mundo de onde vieram, a menos que consigamos traçar a história de suas formas de existência ao longo do tempo, ou seja, de suas diferentes vidas. Mas quantas vidas afinal pode ter uma obra? De acordo com Roger Chartier, a Brevissima relacíon de la destruycíon de las Indias, de Bartolomé de las Casas, por exemplo, tem sete vidas, referentes às sete diferentes edições publicadas em circunstâncias e espaços distintos entre os séculos XVI e XIX. E quando uma obra ganha outras formas de circulação, ao ser representada, adaptada, reescrita? Daí suas numerosas vidas podem garantir-lhe a posteridade ou mesmo a imortalidade. Em Mobilidade e materialidade. Traduzir nos séculos XVI e XVII, publicado no Brasil em 2020 pelas editoras Argos e EDUFBA, com tradução de Marlon Salomon e Raquel Campos, Roger Chartier oferece uma nova faceta de seus estudos realizados na Biblioteca da Universidade da Pensilvânia, onde tem atuado como professor visitante. Em seu livro intitulado La main de l’auteur et l’esprit de l’imprimeur, de 2015, Chartier apresentou análises das coleções consultadas nessa mesma biblioteca, a partir das quais destacou o papel do autor e do impressor nas significações adquiridas pelas obras. No livro recentemente traduzido no Brasil, são a materialidade e a mobilidade de obras que ocupam o plano central de sua investigação, sendo realçadas na própria organização do volume, que conta com cinco capítulos distribuídos sob as seguintes designações: Publicar; Representar; Traduzir; Adaptar e Epílogo: reescrever. Leia Mais

Todos estos años de gente: Historia Social, protesta y política en América Latina | Andrea Andujar e Ernesto Bohoslavsky

Andrea Andujar e Ernesto Bohoslavsky
Andrea Andujar e Ernesto Bohoslavsky |Fotos: Juan Pablo nchez Noli y Sabrina García/Industrias de Lamemoria e Ana D’angelo/Pagina12

A recente publicação em língua espanhola do livro Todos estos años de gente: historia social, protesta y política en América Latina (2020) nos convida a refletir sobre um campo historiográfico há muito referenciado em nossas academias, mas que segue em grande e profícuo movimento: a História Social e seus sujeitos. Organizado por Andrea Andujar e Ernesto Bohoslavsky, o livro reúne renomados historiadores com diferentes abordagens, temáticas e teóricas, provocados pelas indagações sugeridas na mesa redonda La historia y la protesta en América Latina, que integrou a segunda edição do Congreso Internacional de la Asociación Latinoamericana e Ibérica de Historia Social – ALIHS. O encontro ocorrido em 2017, na cidade de Buenos Aires, aparece agora sob uma proposta atenta aos debates historiográficos que, perfilados pela diversidade latino-americana, convoca-nos a pensar as intersecções entre os movimentos sociais e aqueles que os estudam, com especial ênfase na relação humana experienciada no tempo. Os historiadores Andujar e Bohoslavsky, que lançaram seu livro pela Editorial Universidad Nacional General Sarmiento, convocam para o palco principal do debate o fio invisível que conecta as escolhas individuais e as coletivas envolvidas na história dos protestos, resultando num belo exercício crítico sobre memória e ação política. Leia Mais

Mercados e feiras livres em São Paulo: 1867-1933 | Francis Manzoni

Francis Manzoni
Francis Manzoni, 2020 | Foto: Sesc-SP

O livro Mercados e feiras livres em São Paulo (1867-1931), do historiador Francis Manzoni, lançado pela Edições Sesc em 2019, é fruto de sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Estadual Paulista cinco anos antes. O autor apresenta à comunidade de historiadores e ao público geral o universo do abastecimento e da alimentação da capital paulista, em diálogo com a urbanização, o mundo do trabalho e os conflitos dos diferentes sujeitos que formaram a cidade, como negros, migrantes e estrangeiros. Tais agentes são compreendidos como os protagonistas de uma história feita por lavradores, carroceiros, carregadores, vendedores ambulantes, tropeiros e comerciantes que atuavam no ramo alimentício e de produtos de uso cotidiano pela população da cidade entre o final do século XIX e o começo do século XX. A obra destaca como os mercados públicos paulistanos, as feiras e o comércio ambulante tiveram um papel central no abastecimento e foram parte constitutiva do processo de urbanização que São Paulo experienciou a partir das últimas décadas do Oitocentos.

Como define o autor na introdução do livro, busca-se conduzir o leitor ao chamado “tempo do Brasil sem agrotóxicos”, quando da construção do primeiro mercado da capital paulista, na Várzea do Carmo, em 1867, até a inauguração do Mercado Municipal de São Paulo, na rua da Cantareira, em 1933. Manzoni defende a necessidade de se analisar a história da cidade a partir das práticas cotidianas e dos modos de vida, da multiplicidade de trabalhos e lutas. Segundo o autor, essas perspectivas foram geralmente silenciadas diante da “imagem de uma São Paulo rica, moderna e europeizada, minimizando outros modos de viver, trabalhar e lutar que eram numericamente menos expressivos, mas que subsistiram no interior e no entorno da metrópole do café” (MANZONI, 2019, p. 12). Leia Mais

Shrinking the Earth: The Rise and Decline of American Abundance | Donald Worster

Shrinking the Earth, “Encolhendo a Terra”, em tradução livre, é a produção literária mais recente do historiador ambiental Donald Worster, que nasceu em 1941 e cresceu em Hutchinson, Kansas. Na década de 1970, ele se tornou mestre em filosofia pela Yale University e doutor em História pela mesma universidade. A partir de 1989, ocupou a cadeira de História Norte-americana da University of Kansas. Após sua aposentadoria, em 2012, Worster se tornou especialista estrangeiro e professor sênior da escola de História da Universidade Renmin, China. Ele é um dos fundadores da história ambiental norte-americana e foi presidente da American Society for Environmental History. Durante sua carreira, escreveu livros que influenciaram o campo da disciplina, como A River running West: the Life of John Wesley Powell (2000) e A Passion for Nature: the Life of John Muir (2008).

A História Ambiental pretende entender como ambiente e sociedade se relacionam. A disciplina surgiu em meados de 1970, predominantemente na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA), quando cientistas naturais apontaram consequências danosas da ação humana sobre a natureza. Essa nova percepção de estudo enfrentou, e ainda enfrenta, resistência das Ciências Humanas, embasadas no paradigma durkheimiano, no qual o social se explica apenas pelo social. Worster dialoga nesse livro com a noção de fronteiras e limites, trabalhados pelos historiadores norte-­americanos Frederick Jackson Turner (1861-1932) e Walter Prescott Webb (1888-1963). A obra resenhada trata da história ambiental mundial e busca explicar como chegamos à atual situação planetária, marcada cada vez mais pela escassez de recursos, pontuando questões importantes para o estudo da sustentabilidade. O livro está dividido em três partes, além do prólogo e epílogo. Cada parte é composta de três capítulos narrativos e de um quarto capítulo referente a uma viagem de campo.

No prólogo “Luz Verde de Gatsby”, o autor utilizou uma passagem do romance de Francis Fitzgerald (1896-1940), The Great Gatsby (1925), para delinear uma visão alternativa do passado de devastação da natureza e guiar a leitura. A passagem se refere aos momentos em que Gatsby, um emergente social romântico e sonhador, enxerga uma luz verde à distância no porto e fica esperançoso de ser aceito pela rica Daisy Buchanan. A luz apenas assinala o ancoradouro da mansão de Daisy, mas simboliza as expectativas de Gatsby em relação ao seu futuro. Essa luz verde também representa as expectativas de crescimento da já próspera sociedade estadunidense de 1920. Worster chamou de “teoria da luz verde” a ilusão que os humanos têm de um futuro em que a natureza seja sempre abundante.

Ainda no prólogo, Worster avisa que abandonou três perspectivas familiares na história contemporânea: da simpatia pelos perdedores, da escola dos bons hábitos e das boas instituições e da continuidade do Holoceno. Sobre as duas primeiras, Worster afirma que trata dos êxitos na extração de matérias-primas da natureza, principalmente os referentes à colonização dos EUA. Sobre a terceira visão, ele aponta que alguns cientistas já consideram que estamos no Antropoceno, uma era de grandes transformações causadas na biosfera pelo ser humano, principalmente a partir da Revolução Industrial do século XVIII. A era anterior, o Holoceno, iniciada há doze milênios e pós período de glaciação, teve sua relativa estabilidade da natureza abalada justamente pela atuação humana.

Na parte I, Worster descreve as revoluções que ocorreram na sociedade europeia após o descobrimento do Novo Mundo pelos colonizadores europeus. Eles conseguiram expandir suas fronteiras e promover o desenvolvimento utilizando recursos naturais obtidos de suas colônias, mas mesmo alguns dos primeiros economistas advertiram que o crescimento econômico e social tinha um limite. O inglês John Stuart Mill (1806-1873) foi o primeiro a dizer que essa limitação não era necessariamente ruim, pois impunha novos desafios ao estilo de vida europeu (1848). Além disso, para Mill nem tudo do mundo natural podia ser precificado ou utilizado, ideia semelhante à dos primeiros defensores da natureza selvagem, ou wilderness, como William Wordsworth (1770-1850) e Henry David Thoreau (1817-1862). Worster finaliza a primeira parte descrevendo a caça desenfreada às baleias na ilha de Nantucket na metade do século XIX, o que levou à quase extinção do animal.

A parte II, “Depois da Fronteira”, narra uma sequência de práticas de extração de recursos naturais nos EUA, as suas consequências e os estudos feitos pelo conservacionismo norte-americano, encabeçado por George Perkins Marsh (1801-1882). É descrito o poder destrutivo da agricultura, que desequilibrava ciclos d’água. A crise hídrica foi tema da viagem de campo, que trata do “Vale Imperial”, na Califórnia, estado que passou por uma grande seca em 2003. A devastação continuou por meio do desenvolvimento industrial do século XIX, quando o combustível propulsor da indústria, o carvão, levou à contaminação do ar, solo e da água por substâncias tóxicas, alterando o ciclo do carbono. Combinado com o ferro, o carvão proporcionava a criação do aço, que passou a ser utilizado nas ferrovias, amplificando a expansão das cidades e a destruição ambiental. Com a escassez do carvão, o gás natural e o petróleo se tornaram os próximos combustíveis das atividades humanas. Essa grande dependência dos recursos naturais e como lidar com ela é descrita na sequência. O presidente Theodore Roosevelt (1858-1919) tentou associar o conservacionismo aos interesses industriais, o que foi desastroso para o meio ambiente. Para Roosevelt, a construção de barragens, por exemplo, significava transformar um “desperdício” de força d’água em lucro para a sociedade. Atualmente, essa associação falaciosa fica explícita em empresas que utilizam o prefixo “eco” em seus produtos, sem praticar qualquer forma de proteção à natureza.

Após tanta devastação, chegamos ao limite, tema da terceira parte do livro. A narrativa inicia com a fase posterior à Segunda Guerra Mundial nos EUA, que se caracterizou pelo aumento do consumismo e desenvolvimento desenfreado, incomodando até mesmo os conservacionistas mais adeptos da prosperidade econômica. Surgiu, então, uma categoria mais prática de conservacionistas, a dos ambientalistas modernos, que comprovaram como a ação exploradora humana acarretava na degradação do meio ambiente.[1] Worster dispende boa parte dos capítulos seguintes discorrendo sobre a obra dos cientistas Dennis Meadows e Donella Meadows (1941-2001), autores principais de The Limits to Growth (1972). O livro foi um alerta sobre as dinâmicas do sistema social, seus limites e a necessidade de ajustes para que o mundo não colapse. A partir desse estudo, outros pesquisadores começaram a delimitar uma zona de perigo relacionada à capacidade de suporte da Terra. A viagem de campo, “Rio Athabasca” (Canadá), encerra a terceira parte. O betume descoberto no rio canadense, localizado em uma floresta boreal, tinha extração e tratamento difíceis e onerosos. Após a crise do petróleo em 1973, investiu-se desesperadamente em sua extração e área e o rio ficaram devastados.

No epílogo, “Vida em um pálido ponto azul”, Worster cita a viagem ao espaço da Voyager I, em 1977. O astrônomo Carl Sagan (1934-1996) pediu que fosse fotografado o que havia ao redor da nave. Foi registrada apenas a Terra, um pálido ponto azul. O Novo Mundo esperado pela ida do homem ao espaço não existe. Worster propõe que é preciso aprender a viver com os recursos disponíveis. Ele alerta que, por conta do crescimento da tecnologia, da população e do consumo, o nosso mundo está encolhendo ecologicamente. A lógica da composição do livro se completa: descoberta, exploração e limites.

Worster expõe a sua preocupação principal com a devastação ambiental desde o primeiro capítulo do livro e a reitera ao longo de sua narrativa: “Mas quais são as chances de encontrar outra natureza, outro hemisfério de abundância tão fácil? Zero”[2] (p. 25). Apesar do livro ser definido como de História Ambiental global, Worster concentra sua narrativa na Europa e nos EUA, o que não desvirtua a proposta da obra. Sua riqueza de informações a torna acessível a qualquer pessoa que tenha interesse em compreender o “encolhimento” da Terra, situação explícita a quem se propõe observar minimamente as condições em que se encontra o meio ambiente. Shrinking the Earth não se desenvolve em tom alarmista, mas não deixa de ser um alerta sobre a situação atual e futura da Terra e seus habitantes: não temos mais um longo passado pela frente.

Notas

1. Para melhor compreensão das categorias de proteção da natureza, sugiro NASH, 1990.

2. Trad. livre da autora: “But what are the odds of finding another nature, another hemisphere of such easy abundance? Zero”.

Referências

FITZGERALD, Francis Scott. The Great Gatsby. New York: Charles Scribner’s Sons, 1925.

MEADOWS, Donella H. et al. The Limits to Growth: a Report for the Club of Rome’s Project on the Predicament of Mankind. New York : Universe Books, 1972.

MILL, John Stuart. Principles of Political Economy with Some of their Applications to Social Philosophy. Vols. I & II. London: John W. Parker, 1848.

NASH, Roderick. American Environmentalism: Readings in Conservation History. New York: McGraw-Hill, 1990.

WORSTER, Donald. A River running West: the Life of John Wesley Powell. New York: Oxford University Press, 2000.

WORSTER, Donald. A Passion for Nature: the Life of John Muir. New York: Oxford University Press, 2008.

Julıana da Costa Gomes de Souza – Universidade de Brasília, Centro de Desenvolvimento Sustentável. E-mail: jcgdesouza@gmail.com


WORSTER, Donald. Shrinking the Earth: Th e Rise and Decline of American Abundance. London: Oxford University Press, 2016. Resenha de: SOUZA, Julıana da Costa Gomes de. Como chegamos a este ponto?  Varia História. Belo Horizonte, v. 37, n. 74, p. 635-639, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

Complicidad económica con la dictadura chilena. Un país desigual a la fuerza | Juan P. Bohoslavsky, Karinna Fernández e Sebastián Smart

La escasa literatura existente sobre la contribución y complicidad de empresas y grupos económicos en la violación sistemática de derechos humanos ocurrida en Chile durante el régimen de Pinochet, hace del libro Complicidad económica con la dictadura chilena. Un país desigual a la fuerza un aporte indispensable para mejorar nuestra comprensión sobre el origen de muchas de las desigualdades sociales y económicas que, actualmente, son objeto de las mayores protestas que hayan tenido lugar en Chile desde el fin de la dictadura cívico-militar.

En el libro, sus editores – Juan Pablo Bohoslavsky, Karinna Fernández y Sebastián Smart – reúnen una serie de investigaciones en las cuales se documenta desde diferentes disciplinas y dimensiones, la existencia de redes de financiamiento y apoyos a la dictadura, que habrían permitido al régimen de Pinochet solventar su política represiva para mantenerse en el poder, y al mismo tiempo, transformar radicalmente la estructura político-económica del país. De este modo, los veintiséis capítulos que componen el libro convergen en la tesis de que existiría una estrecha relación entre la asistencia económica extranjera, la política económica implementada por la dictadura y la violación sistemática de los derechos humanos.

El esfuerzo por documentar la colaboración y complicidad financiera con la dictadura chilena – tal como sostiene Elizabeth Lira en el prólogo del libro – constituye una pieza fundamental para garantizar a las víctimas la no repetición de las violaciones a los derechos humanos ni de las condiciones que las hicieron posible. En esta misma línea, Juan Pablo Bohoslavsky señala, en el capítulo introductorio, que este libro ofrece una nueva narrativa de la dictadura, al considerar la responsabilidad de sus cómplices económicos y vincularla con la actual agenda de justicia social. Argumenta que la ayuda financiera recibida por el régimen se orientó, por un lado, a comprar lealtades y apoyos de sectores claves de la sociedad chilena, y por otro, a montar un eficaz aparato represivo, cuyo principal propósito fue crear las condiciones necesarias para la implementación de un conjunto de políticas sectoriales que tuvieron como denominador común el beneficio económico de la élite chilena y de las grandes empresas nacionales y extranjeras, todo esto, en detrimento del bienestar de la clase trabajadora y el consiguiente aumento de la desigualdad económica y social en el país.

Los capítulos posteriores se organizan en siete secciones temáticas, cada una de estas aporta importante evidencia en ámbitos poco explorados del pasado reciente de Chile. La primera sección, titulada “Pasado y presente de la complicidad económica” se articula en torno al informe elaborado en 1978 por Antonio Cassese, quien fuera nombrado por la Comisión de Derechos Humanos de Naciones Unidas como relator especial para evaluar el apoyo financiero recibido por la dictadura. Como sugiere Naomi Roth-Arriaza en el capítulo que inaugura esta primera sección, los trabajos ahí presentados constituyen un importante esfuerzo por desarticular aquella narrativa que desliga el plan económico de la dictadura, de la violencia utilizada por el régimen de Pinochet para reprimir a la población y así, acallar sus críticas.[1] Los cinco capítulos que componen la sección funcionan como un bloque analítico que inicia dando cuenta de las razones de la escasa atención que recibieron las dimensiones económicas dentro de la agenda de la justicia transicional chilena y cómo, en los últimos años, esto se ha ido revirtiendo. Este cambio, producido por una forma más integral de comprender los derechos humanos, permitió ampliar la visión hacia los derechos económicos y sociales que fueron vulnerados durante la dictadura y que hoy continúan siendo parte de las luchas sociales en Chile. Si bien, como exponen Elvira Domínguez y Magdalena Sepúlveda en el quinto capítulo del libro, el estado de los derechos económicos, sociales y culturales en Chile ha sido en el último tiempo objeto de un mayor escrutinio internacional – lo que se refleja en un número relativamente alto de procedimientos especiales realizados en el país, al punto de equipararse con la atención prestada a la violación de los derechos civiles y políticos -, esto no ha sido suficiente para comprender efectivamente todos los abusos cometidos por el régimen de Pinochet, ni el efecto que éstos continúan teniendo para el pleno ejercicio de los derechos humanos en el Chile de post-dictadura.

Esta sección también aporta algunos antecedentes para comprender cómo la violación de los derechos civiles y políticos durante la dictadura – específicamente, la supresión de los derechos sindicales – fue un factor relevante para atraer la asistencia económica extranjera, y a la vez, fue condición necesaria para la imposición de una política económica basada en la acumulación de capital, la cual, a partir de la privatización de empresas del Estado y la venta de sus activos, transfirió la riqueza nacional a manos de la clase empresarial chilena. La sección cierra reconociendo que, aunque el impacto de las iniciativas en términos de verdad y justicia ha sido limitado, Latinoamérica ha ocupado un lugar protagónico en la identificación de las responsabilidades de las empresas en las graves violaciones a los derechos humanos. Destaca en este itinerario la forma en como las víctimas y sus familiares han complementado la movilización social con estrategias legales innovadoras a fin de responsabilizar a las empresas e incluirlas en el radar de la justicia transicional, esto, más allá de si las comisiones de verdad implementadas en sus respectivos países, tenían o no como mandato, esclarecer la participación de los agentes económicos en las violaciones a los derechos humanos. En este sentido, y siguiendo a Priscilla Hayner (2008, p. 247), el deseo de buscar la verdad es cuestión de tiempo, hay veces en que este deseo sólo se logra hacer patente cuando las tensiones que generan conflictos dentro de una sociedad han sido disminuidas, y hay otras, en las que es justamente este deseo el que impulsa cambios sobre los límites y las formas de abordar los crímenes del pasado.

La segunda sección de este libro, titulada “La economía del pinochetismo”, también consta de cinco capítulos, los cuales – con excepción del capítulo de Marcos González y Tomás Undurraga, quienes discuten sobre la complicidad intelectual en la dictadura – se articulan en torno a la relación existente entre la política extractivista impulsada por la dictadura, la concentración del poder y la riqueza y la construcción de una institucionalidad político-jurídica funcional a las necesidades del neoliberalismo. La sección inicia con el capítulo presentado por José Miguel Ahumada y Andrés Solimano, quienes sostienen en su trabajo que las desigualdades sociales y económicas que afectan a Chile en la actualidad tienen sus bases en el modelo económico implementado durante el régimen de Pinochet. Así, esta sección analiza el recorrido que siguió la economía chilena durante la dictadura, la que – en tanto proceso históricamente situado – experimentó una serie de cambios, que fueron más el resultado del activo rol del Estado y de la correlación de fuerzas al interior del gobierno dictatorial, que un producto de las fuerzas autónomas del mercado.

En este marco, las privatizaciones llevadas a cabo desde la segunda mitad de los años setenta, con el objetivo inicial de desmantelar el Estado productor y desarrollista, y luego con la intención de suplir las funciones sociales del Estado, habrían posibilitado que las elites económicas no sólo concentraran el grueso de la riqueza nacional, sino que, además, adquirieran una fuerte influencia en el funcionamiento de lo que sería la nueva democracia. Del mismo modo, en esta sección se advierte que, pese al impacto negativo que ha tenido el extractivismo económico en los derechos humanos y en el medioambiente, no ha existido la intención de cambiar el rumbo del modelo extractivista chileno, pues como sugiere Sebastián Smart, si bien éste se asienta en una legislación creada por la dictadura, la interrelación y mutua dependencia entre el poder político y económico existente en Chile, ha impedido cualquier tipo de modificación sustantiva al modelo.

Por otro lado, esta sección refuerza la idea de que las actuales desigualdades surgen en un contexto de represión y de múltiples restricciones a la deliberación democrática, y también, de que son consecuencia de una trasformación radical de la economía, en la cual tuvieron lugar procesos de acumulación por desposesión y de oligopolización de la estructura productiva, dando origen con esto, a una elite empresarial que, hasta el día de hoy, controla amplios aspectos de la vida económica, política y social del país.

La tercera y cuarta sección – tituladas “Juegos de apoyos, corrupción y beneficios materiales” y “Normas y prácticas represivas en favor de los grupos empresariales”, respectivamente – reúnen diez investigaciones, las que podrían, por la similitud de sus temáticas, constituir una única sección cuyo eje estuviera en el impacto que han tenido las diversas políticas y decretos leyes, dictados por la dictadura, en la actual agenda de justicia social. A pesar de esto, es posible reconocer una cierta estructura asociada a temáticas específicas dentro de cada una de las secciones. Así, mientras los dos primeros capítulos de la tercera sección analizan el rol de las cámaras empresariales y de los medios de comunicación en la comisión u omisión de violaciones a los derechos humanos; los dos últimos dan cuenta del impacto que tuvieron las privatizaciones, tanto en el sistema de pensiones como en el patrimonio público de Chile. Respecto de este último punto, Sebastián Smart señala que, en base a la violencia desplegada, la dictadura terminó con el histórico y progresivo proceso de creación de empresas estatales, dando paso a la enajenación de las mismas (muchas de las cuales fueron vendidas muy por debajo de su valor económico). En efecto, según Smart, se pasó de 596 empresas estatales en 1973 a sólo 49 en 1989, lo que implicó una mayor concentración de riquezas y la profundización de las brechas sociales y económicas ya existentes.

Del mismo modo, los dos primeros capítulos de la cuarta sección tratan sobre el desmantelamiento del sindicalismo chileno y explican cómo el “Plan laboral” de la dictadura – que básicamente operó como una regulación del poder colectivo de los sindicatos – tuvo como objetivo garantizar plenamente el derecho de propiedad y legitimar así, las bases del poder económico y social de la elite chilena. Pese a que el año 2003, fue publicado en el diario oficial un nuevo Código del Trabajo, para Salazar (2012, p. 308-309) este no es más que una forma de aparentar modernidad y sensibilidad social, pues mantiene las mismas relaciones laborales impuestas por la dictadura.

Los dos capítulos siguientes reflexionan sobre cómo la implementación del modelo neoliberal en Chile significó la disminución de las prestaciones sociales básicas y el aumento de la pobreza, dando paso a la criminalización y el encierro masivo de pobres, por un lado, y por otro, a su erradicación de las áreas céntricas, y posterior, relocalización en sectores periféricos. Finalmente, los últimos dos capítulos de esta sección analizan las consecuencias económicas, sociales, medioambientales y culturales que han experimentado los pueblos originarios en Chile, a propósito de la apropiación que hiciera la dictadura de recursos naturales y bienes comunes. Así, por ejemplo, y considerando la actual crisis hídrica, el capítulo de Cristián Olmos conecta el rol de empresas y actores económicos en la privatización del agua, con las constantes violaciones a los derechos de comunidades indígenas próximas a centros mineros en el Norte de Chile. Para Olmos, la base de estas vulneraciones se encuentra en la plataforma legislativa generada en dictadura, la cual comprende la Constitución, el Código de Aguas y el Código de la Minería. Una lectura similar lleva a cabo José Aylwin, quién en su estudio, da cuenta de cómo la dictadura, luego de apropiarse de tierras mapuches (reconocidas y restituidas por los proceso de reforma agraria impulsados por los gobiernos de Eduardo Frei Montalva y Salvador Allende), éstas fueron vendidas de forma irregular, para posteriormente, establecer sobre ellas una política de incentivos monetarios y tributarios que benefició, principalmente, a los conglomerados forestales que habían colaborado con el régimen de Pinochet, teniendo esto, como consecuencia directa, la exclusión del pueblo mapuche y el deterioro del medio ambiente y del hábitat natural y cultural de las comunidades.

Dos capítulos son los que componen la quinta sección titulada “Estudios de casos”. En ella, se analizan emblemáticos casos de corporaciones nacionales que financiaron, o directamente participaron en delitos de lesa humanidad. Karinna Fernández y Magdalena Garcés documentan cómo los recursos logísticos de la Pesquera Arauco y de Colonia Dignidad fueron puestos a disposición de la represión militar. Este trabajo advierte sobre la activa participación de estas corporaciones en el secuestro, tortura y desaparición de civiles durante la dictadura chilena. Las autoras también llaman la atención sobre la falta de voluntad política para perseverar con las investigaciones y las debilidades presentes en la acción judicial, las que muchas veces, no han permitido conocer la verdad de los hechos, ni cuantificar o determinar el destino de los dineros obtenidos por la comisión de estos delitos. En esta misma línea, Nancy Guzmán entrega evidencia para conocer cómo, desde la elección de Salvador Allende como presidente de Chile, el diario El Mercurio fue utilizado por su dueño, Agustín Edwards, para colaborar con la dictadura; primero, azuzando el golpe de Estado, y luego, encubriendo los crímenes del régimen, mediante múltiples campañas de desinformación y manipulación de la opinión pública.

La sexta sección temática, “Aspectos jurídicos de la complicidad económica”, también se compone de dos capítulos. En ellos se exponen, por un lado, los principios generales emanados del derecho internacional para abordar las causas de complicidad económica; y por otro, las (im)posibilidades de perseguir, juzgar o reparar – en el marco del derecho chileno – la comisión de estos delitos, por los cuales algunas empresas y sus altos miembros se beneficiaron económicamente. Juan Pablo Bohoslavsky reflexiona, a la luz del derecho internacional y comparado, respecto de cuándo procede establecer responsabilidades civiles en las violaciones de derechos humanos. En este marco, sostiene que para determinar dichas responsabilidades se requiere conocer si la asistencia corporativa a un régimen criminal, generó, facilitó, dio continuidad o hizo más efectiva la comisión de estos delitos. Argumenta que, comprender el contexto que originó y sostuvo la complicidad económica, resulta incluso, más relevante que constatar el grado de conocimiento que tenían las corporaciones sobre el daño producido. En un tenor similar, Pietro Sferrazza y Francisco Jara sostienen que la condición de civiles no excluiría a los actores económicos de la persecución criminal por delitos de lesa humanidad, al tiempo que advierte una oportunidad – de acuerdo a la jurisprudencia – para la imprescriptibilidad de los casos, toda vez que éstos devengan de acciones que hayan facilitado o contribuido a la violación de los derechos humanos.

La séptima sección, titulada “Conclusiones y prospectivas”, coincide con el último capítulo del libro. En este, el historiador Julio Pinto, describe tres momentos en los cuales se habría ido anudando una cierta simbiosis entre el mundo empresarial y la dictadura cívico militar. El primer momento, se encuentra en la amenaza que significó el programa de la Unidad Popular para la libertad de empresa y el derecho de propiedad. El segundo, tiene que ver con los beneficios que recibieron durante la dictadura aquellos empresarios que apoyaron y colaboraron con el régimen. Mientras que el tercer momento, se asocia con las garantías de inmodificabilidad de los mecanismos básicos de funcionamiento de la economía neoliberal, así como de los componentes centrales de la institucionalidad en la cual se estableció dicha garantía.

De este modo, el libro que ha sido reseñado tiene el valor de ofrecer un variado análisis sobre la complicidad de las empresas y empresarios durante la dictadura. Desde un abordaje interdisciplinario, logra articular efectivamente una narrativa que conecta las violaciones a los derechos humanos con las políticas económicas implementadas durante el régimen de Pinochet. No obstante, considerando la diversidad de perspectivas y dimensiones desde las cuales se observó el problema, se extraña un capitulo con una mayor sistematización de los fallos judiciales, conclusiones de comisiones investigadoras o solicitudes de información realizadas al Congreso Nacional. Esto, por un lado, a fin de comprender los aciertos y reveses que han tenido estas iniciativas, y por otro, para conocer el estado actual de las impugnaciones realizadas en el marco de los objetivos de verdad, justicia, reparación y garantías de no repetición. Por lo pronto, y de acuerdo a la experiencia comparada, pareciera ser que las democracias y economías modernas pueden sobre­vivir a los juicios que buscan determinar las responsabilidades de los agentes económicos en la violación de los derechos humanos, lo que, sin duda, ofrece a las víctimas la esperanza de que las situaciones de abuso que experimentaron sean reconocidas y reparadas.

Finalmente, la evidencia histórica presentada en este libro no sólo constituye una crítica dirigida a los actores económicos involucrados en violaciones a los derechos humanos o a quienes se beneficiaron de las prácticas represivas y autoritarias de la dictadura, sino también, la crítica apunta a los gobiernos de la transición, los cuales no quisieron enfrentar realmente las causas estructurales de la desigualdad en Chile: concentración de la propiedad productiva, formación de conglomerados económicos con altas cuotas de mercado y debilitamiento del poder de negociación sindical, entre otras (SOLIMANO, 2013, p. 100). De este modo, el libro Complicidad económica con la dictadura chilena., podría nutrir el debate sobre la desigualdad en Chile – que, tras la revuelta social ha tomado con fuerza la agenda política – y direccionarlo, hacia la rendición de cuentas de los beneficios recibidos por las empresas, a cambio de su colaboración con la dictadura.

Nota

1. Durante la post-dictadura, la nueva clase dirigente permitió que en la figura de Pinochet se encontraran discursos a la vez contradictorios: los que apuntaban a su responsabilidad en una de las dictaduras más sangrientas de América Latina y los que reconocían que las transformaciones económicas impulsadas bajo su régimen, constituyeron una pieza fundamental para el desarrollo económico y la estabilidad política de Chile. Así, se podía condenar al dictador y, al mismo tiempo, reconocer su legado en materias económicas.

Referencias

HAYNER, Priscila. Verdades innombrables. El reto de las comisiones de la verdad. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 2008.

SALAZAR, Gabriel. Movimientos sociales en Chile. Trayectoria histórica y proyección política. Santiago: Uqbar, 2012.

SOLIMANO, Andrés. Capitalismo a la chilena. Y la prosperidad de las élites. Santiago: Editorial Catalonia, 2013.

Sergıo Urzúa-Martínez – Universidad de Buenos Aires, Facultad de Ciencias Sociales. E-mail: urzua@usach.cl


BOHOSLAVSKY, Juan Pablo; FERNÁNDEZ, Karinna; SMART, Sebastián (Eds.). Complicidad económica con la dictadura chilena. Un país desigual a la fuerza. Santiago, Chile: LOM Ediciones, 2019. Resenha de: URZÚA-MARTÍNEZ, Sergıo. Violencia, complicidad e impunidad: Los actores económicos en la dictadura de Pinochet. Varia História. Belo Horizonte, v.37, n.74, p.625-634, maio/ago. 2021. Acessar publicação original [DR]

 

 

Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro | Petrônio Domingues

Filosofia e Historia da Biologia 23
Petrônio Domingues | Foto: Sesc.org |

SCOTT The common wind 23Uma parte relevante, porém ignorada de nossa história, é recuperada habilmente por Petrônio Domingues em sua mais recente obra. Domingues tem-se destacado como um historiador comprometido em expandir o entendimento do multifacetado papel do negro na construção da sociedade brasileira. Um dos maiores estudiosos da história do ativismo negro político, o autor se posiciona contrário ao discurso convencional que situa o negro brasileiro como relevante agente cultural, mas que não atribui a mesma significância à atuação negra na história política, econômica e social. Domingues, em Estilo Avatar, traz uma essencial contribuição para retificar essa narrativa.

A escolha de pesquisar uma organização até então pouco conhecida, a Ala Negra Progressista, organização fundada e liderada por Nestor Macedo em São Paulo, no ano de 1948, constitui-se em uma das fortalezas do livro. Através deles, Domingues expõe a ignorância que permeia a sociedade brasileira sobre a multiplicidade e complexidade do papel do negro no âmbito político brasileiro. Domingues ressalta que, apesar de serem ativos participantes do processo democrático, Nestor Macedo e a Ala Negra Progressista nunca receberam atenção da literatura especializada e jamais foram objetos de uma pesquisa acadêmica. Tal observação reforça a relevância dos estudos históricos em promover narrativas de inclusão. Enquanto muito da literatura sobre populismo no Brasil tem se concentrado apenas em lideranças brancas, Estilo Avatar reverte o foco e investiga a dimensão das práticas populistas na população afro-brasileira.

Esse trabalho se junta a uma literatura emergente que se dedica a compreender a trajetória histórica do negro na política brasileira. As recentes pesquisas acadêmicas de Edilza Sotero (2015), Tianna Paschel (2018), Gladys Mitchell (2018) e Kwame Dixon (2016) comprovam que a rica, porém ainda pesquisada em estágio incipiente, história afro-brasileira no mundo político é pontuada por uma mobilização determinada, intelectualmente centrada e imbuída de profunda consciência política.

Estilo Avatar vai além da missão de resgatar esse importante e olvidado fragmento da história brasileira. As correções metodológicas e teóricas no campo de Black Studies que visam retificar narrativas históricas que, por longo período, colocaram o negro como sujeito passivo na construção histórica, são habilmente executadas em Estilo Avatar (DAGBOVIE, 2015). A análise de Domingues da sinuosa relação entre Nestor Macedo e um dos expoentes do populismo político brasileiro, o governador paulista Adhemar de Barros, serve de advertência a historiadores para a diferença entre assimetria de poder e completa subjugação. Ao mesmo tempo que o autor não esconde o fato de Adhemar de Barros gozar de reconhecimento e poder político superiores aos de Nestor Macedo, ele salienta que ambos constantemente negociavam e buscavam, através de sua associação, o alcance de seus objetivos particulares.

O primeiro capítulo traça as origens da ANP. A ascendência da organização é contextualizada na atmosfera política vivida em São Paulo nos anos pós-Estado Novo. É nesse ambiente de retomada democrática que Adhemar de Barros se estabelece como liderança política e expoente do populismo no estado de São Paulo. Domingues define o processo de construção do “mito Adhemar Barros” como um projeto político que focava numa interlocução direta com as massas, apoiada por um grupo de profissionais de propaganda e uso massivo da mídia, “recorrendo ao rádio, ao cinema, à música e a imprensa” (p. 55) para conduzir sua campanha eleitoral. Domingues nota que a “Ala Negra Progressista inscrevia em capítulos, artigos e parágrafos dos seus estatutos a preocupação com o negro no mundo da política” (p. 48). Convencionalmente, considera-se que houve um hiato na história do ativismo negro político no período entre o abrupto fim da Frente Negra Brasileira em 1937 e o advento do Movimento Negro Unificado em 1978. O autor parcialmente diverge de tal narrativa e nos mostra, através do caráter político da Ala Negra Progressista, que o negro brasileiro nunca deixou de aspirar a um papel de protagonista na política brasileira. Além da relevância histórica da ANP por ter sido uma organização negra que objetivava a inserção da comunidade afro-brasileira no mundo político, a ANP também desempenhava um relevante papel no fomento da conscientização racial. Tal mobilização se articulava principalmente através de “panfletos, palestras, encontros e reuniões sociais” (p. 50). O livro também singulariza o engajamento de lideranças femininas que, através de uma Diretiva Feminina, conduziram diversas atividades de cunho social. Ademais, nesse capítulo o autor destaca a constante negociação entre a classe política e a operária, ressaltando a assimetria de poder entre as partes sem a plena submissão do grupo subalterno. Domingues demonstra que a elite política, embora fizesse uso da máquina eleitoral para se manter no poder, era também alvo da pressão da classe trabalhadora, estabelecendo assim entre as partes uma “relação de negociação e conflito por uma via de mão dupla” (p. 74).

O capítulo seguinte foca no personagem histórico central da obra de Domingues, Nestor Macedo. Os arquivos do Deops possibilitaram ao autor revelar fragmentos da vida social e ativista de Nestor Macedo e sua organização. A ANP não passou incólume frente ao ostensivo monitoramento do Deops de qualquer movimento social, cultural ou político que pudesse representar potencial ameaça à ordem política. A rigorosa investigação conduzida por Domingues nos apresenta na figura de Macedo um personagem riquíssimo, que acima de tudo, aprendeu a lidar com os meandros da política e sociedade brasileira para lutar por uma posição de protagonismo.

O autor nos revela que Adhemar de Barros e Nestor Macedo eram produtos de similar estirpe política que sorviam das práticas populistas para avançar suas agendas. Enquanto Adhemar de Barros usava dos palanques políticos e da máquina eleitoral para consolidar sua carreira política e permutar favores, Nestor Macedo ficou conhecido como o “Rei dos bailes”, dada sua estratégia de promover atividades festivas no salão de baile da ANP, e assim sedimentar sua influência na comunidade negra.

Em relação ao personagem principal do livro, Domingues em momento algum romantiza a personalidade de Nestor Macedo como articulador político e ambicioso líder negro, assim como nunca a deprecia por suas falhas e dúbias condutas que por vezes tiveram desfecho em uma delegacia. Domingues expõe tanto as virtudes como as defecções desse personagem complexo. O autor salienta que ao mesmo tempo que Macedo “não se importava de colaborar com o Deops e tampouco tinha por isso crise de consciência” (p. 98), ele também via a política como instrumento de justiça racial, e através desse meio reivindicava benefícios para sua comunidade.

O último capítulo examina como a ANP capitalizou dos ares democráticos que alentavam a comunidade negra a demandar a inclusão da questão racial nas agendas das lideranças político-partidárias. Esse capítulo foca em uma das perguntas fundamentais abordadas no livro. Por que Nestor Macedo e a Ala Negra Progressista optaram por apoiar Adhemar de Barros? Domingues argumenta que, apesar de algumas demonstrações de solidariedade à população negra, para Adhemar a questão racial era de secundária importância.

Para Domingues, a razão da aproximação de Adhemar junto aos votantes negros era fundamentalmente “um investimento de engenharia política, de quem não desperdiçava a oportunidade de explorar o potencial eleitoral dos segmentos específicos da população” (p. 164). Domingues atribui grande peso à associação entre Nestor Macedo e Adhemar de Barros à negligência dos atores políticos, tanto da esquerda quando da direita, quanto à questão racial durante as décadas de 1940 e 1950 (ANDREWS, 1991HANCHARD, 1994). Dessa forma, o populismo ademarista “mesmo que de forma oportunista, instrumental e frívola” (p. 227), destacava-se por incluir a questão racial em sua plataforma política. Com a consolidação democrática das últimas décadas na América Latina, a questão da maior integração política de grupos subalternos começou a receber maior atenção por parte do meio acadêmico. Estudos históricos como Estilo Avatar nos possibilitam traçar a trajetória do laborioso processo que tais minorias enfrentaram para conscientizar lideranças políticas brasileiras sobre a questão racial.

É imperativo que pesquisadores deem a devida atenção à estrutura político-partidária de cada contexto político, a fim de compreender a razão pela qual certos grupos negros empregaram seu apoio político a partidos que atribuíam pouca relevância à questão racial. Se a congruência ideológica não se estabeleceu como agente agregador entre tais associações, elas não se constituem em anomalias políticas, mas sim obedecem o comportamento de grande parte das alianças partidárias no meio político brasileiro, onde grupos políticos ideologicamente díspares se aliam para avançar seus específicos projetos de poder, estabelecendo assim “a política da permuta” (p. 94).

Estilo Avatar é leitura obrigatória para qualquer leitor interessado em expandir seu conhecimento sobre o protagonismo negro no projeto de nação brasileira. O resgate histórico de Nestor Macedo e sua organização corrigem a narrativa prevalente que o populismo no Brasil se restringiu a lideranças brancas como Getúlio Vargas e Adhemar de Barros, que cooptaram e subjugaram a população negra. Estilo Avatar deve servir como um trecho de um caminho longo a ser percorrido pela historiografia das relações raciais no Brasil. Indubitavelmente temos muito a aprender sobre a população afro-brasileira no populismo, e que a obra de Domingues sirva de inspiração para futuras pesquisas acadêmicas.

De igual importância é a correção metodológica apresentada no livro que necessita ser salientada e reiterada para futuras investigações históricas de grupos subalternos. Vindouras pesquisas acadêmicas sobre as experiências da população afro-brasileira têm a missão e a responsabilidade de abdicar de classificar o negro brasileiro como ator anônimo ou secundário, e sim retratá-lo como agente central e ativo da história brasileira.

Referências

ANDREWS, George Reid. Blacks and Whites in São Paulo 1888 – 1988. Madison: The University of Wisconsin Press, 1991. [ Links ]

DAGBOVIE, Pero Gaglo.What is African American History? Malden: Polity Press, 2015. [ Links ]

DIXON, Kwame. Afro-politics and Civil Society in Salvador da Bahia, Brazil. Gainesville: University Press of Florida, 2016. [ Links ]

DOMINGUES, Petrônio. Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2018. [ Links ]

HANCHARD, Michael George.Orpheus and Power: The Movimento Negro of Rio De Janeiro and São Paulo, Brazil, 1945-1988. Princeton: Princeton University Press, 1994. [ Links ]

MITCHELL, Gladys L.The Politics of Blackness: Racial Identity and Political Behavior in Contemporary Brazil. New York: Cambridge University Press, 2018. [ Links ]

PASCHEL, Tianna S. Becoming Black Political Subjects: Movements and Ethno-racial Rights in Colombia and Brazil. Princeton: Princeton University Press, 2018. [ Links ]

SOTERO, Edilza. Representação política negra no Brasil pós Estado Novo. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015. [ Links ]


Resenhista

João Batista Nascimento Gregoire – University of Kansas, History Department, 1450 Jaywak Blvd, 66045, Laurence, Kansas, United States. joaogregoire@ku.edu.


Referências desta resenha

DOMINGUES, Petrônio. Estilo Avatar: Nestor Macedo e o populismo no meio afro-brasileiro. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2018. 265p. Resenha de: GREGOIRE, João Batista Nascimento. Ativismo político negro e o populismo em São Paulo. Varia Historia. Belo Horizonte, v.37 n.73, Jan./Apr. 2021. Acessar publicação original [IF].

Roubos e Salteadores na Bahia no tempo da abolição (Recôncavo, década de 1880) | Eliseu Silva

Filosofia e Historia da Biologia 20

O processo de abolição é uma das áreas de estudo com maior vitalidade nas últimas décadas, notadamente, por investir no diálogo com a historiografia internacional, por incorporar novos procedimentos de análise e por tratar das experiências de escravizados e ex-escravizados.

É a partir desse cenário que o historiador Eliseu Silva circunscreve sua pesquisa. O livro é resultado da dissertação defendida na UFBA em 2016 e, posteriormente publicada pela EDUFBA em 2019. A investigação tratou dos roubos, furtos e de gente identificada como fora da lei, temática bastante visitada nas Ciências Sociais. Com um trabalho da área de História, o autor procurou analisar as complexas dinâmicas sociais em torno dos furtos e dos roubos em um recorte espacial e temporal delimitado. A pesquisa está concentrada no termo de Cachoeira, no Recôncavo baiano, na década de 1880.

Eliseu Silva produziu um trabalho de qualidade pautado nas regras do campo da história acadêmica, acessando farta bibliografia para diferentes frentes de sua investigação, com destaque para o diálogo refinado travado com intelectuais latino- americanos sobre o banditismo. Essa historiografia contribuiu para Silva não reduzir os homens em conflito com a lei em agentes que invalidavam injustiças sociais. As leituras teóricas e conceituais se fizeram presentes, com predominância dos historiadores sociais que dão o tom do debate realizado ao longo da obra que procurou reconstituir redes sociais ao rés do chão. A historiografia baiana, rica e diversa, mobilizada pelo autor, permitiu refletir sobre os diferentes aspectos que marcaram a desigualdade e a exclusão experimentada por gente empobrecida, em parte, oriunda do universo do cativeiro.

O historiador cruzou uma diversidade de fontes como jornais, processos criminais, correspondências policiais, relatórios dos presidentes de província e atas do legislativo. Ao analisar esse variado conjunto documental, apresenta-se ao leitor ações e vínculos estabelecidos por gente considerada criminosa nos influxos do processo de dominação e desmonte das relações escravistas.

Maria Helena Machado (1987) lembra que roubos e furtos podiam ser interpretados como “suplementação da economia independente” e como subversão. O autor, seguindo essa interpretação, indicou ser a maior parte dos delitos arrolados enquadrados no crime contra a propriedade, envolvendo animais, dinheiro e objetos de pequeno valor oriundos de fazendas e casas de comércio. Os objetos surrupiados carregavam simbologias de prestígio e poder próprios do universo branco e senhorial. As ações dos ditos ladrões podem ser lidas, por vezes, como imbuídas do interesse de recompensar danos infligidos e desavenças pessoais. Sendo assim, os delitos não necessariamente ocorriam para conter a fome ou a carência material. De um lado, a pesquisa buscou não dicotomizar as identidades de criminoso e de trabalhador, por outro lado, o autor não quis romantizar as experiências desses indivíduos tomando-as como expressão absoluta da luta contra a opressão e as injustiças sociais. Muitos adentravam no mundo do crime premidos pelas péssimas condições de vida. Já outros, apesar da preferência pelos endinheirados, também roubavam gente pobre e, por isso, não podem ser considerados bandidos sociais segundo a concepção de Hobsbawm (2010). Dessa feita, Silva procurou apresentar as experiências desses homens sob uma perspectiva mais equilibrada, sem superestimar suas ações e, para isso, faz uso do conceito de roubo social. Segundo Eliseu Silva, roubo social consiste na possibilidade dos menos favorecidos economicamente adquirirem recursos materiais distantes de sua realidade. O autor, a partir das análises empíricas, observou como o banditismo à época estava associado ao processo de desmonte das relações escravistas. A repressão aos supostos furtos e roubos tinha também a intenção de criminalizar as iniciativas e os projetos de futuro que ganhavam espaço com as lutas pelo fim do cativeiro.

O livro está dividido em três capítulos bem estruturados que dialogam com diferentes fontes documentais, procedimentos metodológicos e com especialistas nas temáticas abordadas. No primeiro capítulo é caracterizado o Recôncavo baiano na década de 1880, assim como as questões que permearam esse período. Discutiu-se acerca da abolição do cativeiro, da regulamentação do trabalho livre e da implementação de normativas que auxiliaram na coerção e na interferência do cotidiano da população recém-liberta.

No segundo capítulo são narradas as desventuras sucedidas em meio a roubos e furtos ocorridos no termo de Cachoeira. Segundo o autor, algumas dessas ações podem ser interpretadas como respostas a práticas consideradas injustas. Entre os escravizados, parece ter sido difundido o entendimento do direito ao usufruto de bens e recursos pertencentes ao senhor ou ex-senhor, pois as riquezas obtidas eram resultado do suor do seu trabalho, como uma espécie de um acerto de contas. Esse é um ponto importante da análise, tendo em vista que, na década de 1880, estava em derrocada a ideia de que o direito de propriedade incluía a posse de uma pessoa por outra, resultando em conflitos acerca da propriedade do que era produzido nas fazendas. A legitimidade da posse de terras, segundo Mariana Dias Paes (2018), por exemplo, também estava em disputa nesse período e era marcada pelo contexto da escravidão. Os debates em torno do tema da emancipação gradual fizeram com que o registro de terras tivesse a matrícula de escravos como referência. Segundo a autora, a partir de 1880 a legitimação da posse de escravos ou de terras estava centrada nas provas de domínio e, para isso, foram criadas tanto categorias jurídicas como documentos que garantissem sucesso nos litígios judiciais envolvendo tais propriedades. Avançava nas últimas décadas do século XIX o reconhecimento da propriedade de coisas, ao mesmo tempo em que amainava a legitimidade do domínio de pessoas.

Ainda no segundo capítulo, conhecemos quem eram os indiciados nos crimes de arrombamento, furto de animais e roubo, como também se estabelece uma aproximação aos seus hábitos, motivações, redes de sociabilidades e as redes de comércio ilícito. A partir dos dados arrolados, ficamos sabendo que parte significativa dos envolvidos com a ladroagem era formada por indivíduos não-brancos, tendo entre eles cativos. A maior parte dos indiciados era gente livre, os quais gozavam de certa liberdade de locomoção, facilitando as incursões criminosas. Nota-se a presença marcante de homens jovens, solteiros e trabalhadores braçais do universo urbano e rural. Alguns desses indivíduos foram localizados pelo nome, etnia e ofício, como o israelita José Morgan, a crioula Thomazia Maria e o fogueteiro Procópio Barbosa.

Entre os objetos subtraídos destacam-se joias, dinheiro, tecidos, roupas, fumo e animais que eram levados para vender ou para consumir. Os espaços que ofereciam esses produtos em profusão eram as fazendas, lojas de secos e molhados, fábricas de tecido ou fumo, casas de joias, todos esses estabelecimentos pertencentes às elites econômicas e políticas do entorno de Cachoeira. O roubo das posses da elite proprietária era visto como uma afronta à honra e à autoridade dos mais abastados e, por isso, tais delitos eram duramente perseguidos. Já a recepção dos objetos, em grande parte, deu-se entre pequenos comerciantes e mulheres. Segundo o autor, os primeiros se convertiam em receptadores por objetivarem ganhos pelos preços mais baixos dos produtos comercializados e, as últimas, no imaginário da época seriam acusadas com maior facilidade, pois os ladrões não sofreriam represálias.

No terceiro capítulo, somos melhor apresentados aos protagonistas da investigação. Nesse ponto é destacada a trajetória do grupo de salteadores de Basílio Ganhador, suas ações e quais os mecanismos e sujeitos compunham o bando. As mulheres, por exemplo, eram personagens importantes na rede de ajuda e favores, pois apesar de não serem integrantes efetivas da malta, atuavam na troca de notas mais altas de dinheiro no comércio e vendendo produtos roubados. As façanhas do grupo circularam na imprensa e nas correspondências de autoridades policiais, juízes e presidentes de província. O autor relata ainda que, na “companhia” de Basílio Ganhador, eram aceitos cativos fugidos, o que aumentava a repulsa ao bando por parte da classe proprietária.

Os codinomes dos personagens chamam a atenção e mereceriam uma análise mais acurada. Em várias passagens são apresentadas o envolvimento em delitos de indivíduos com as alcunhas de “Pé de rodo”, “Boca de boi”, “José das Preás”, “Joaquim Belas cousas” e “Marinheiro”. A reflexão sobre os codinomes poderia reforçar a discussão realizada quanto às ocupações e habilidades dos sujeitos que recorriam à ladroagem, ora como forma de subsistência, ora como modo de vida. Tal consideração poderia corroborar o argumento inicial de não dicotomizar as experiências desses sujeitos entre os universos do trabalho e do crime.

O livro de Eliseu Silva é uma leitura importante para os pesquisadores com trabalhos voltados à história social da escravidão e do processo de abolição. A discussão realizada na obra tem o potencial de atrair também o público não acadêmico que tenha interesse na história dos grupos minorizados, nas estratégias para impor sua subalternização e nos chamados foras da lei do século XIX.

Referências

DIAS PAES, Mariana Armound. Escravos e terras entre posses e títulos: A construção social do direito de propriedade de propriedade no Brasil (1835-1889). Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. [ Links ]

HOBSBAWM, Eric. Bandidos. São Paulo: Paz e Terra, 2010. [ Links ]MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1830-1888. São Paulo: Brasiliense, 1987. [ Links ]

Maria Emilia Vasconcelos dos Santos – Universidade Federal Rural de Pernambuco, Departamento de História, Rua Dom Manuel de Medeiros, s/n, 52171-900, Recife, PE, Brasil. mariaemiliavas@hotmail.com.


SILVA, Eliseu. Roubos e Salteadores na Bahia no tempo da abolição (Recôncavo, década de 1880). Salvador: Editora da UFBA, 2019. 216p. Resenha de: SANTOS, Maria Emilia Vasconcelos dos. De Posse da “cousa alheia”: Salteadores e comparsas no Recôncavo baiano na década da abolição. Varia Historia. Belo Horizonte, v.37 n.73, Jan./Apr. 2021. Acessar publicação original [IF].

Nordeste do Brasil na Segunda Guerra Mundial – Flávia Pedreira

PEDREIRA Flávia de Sá
Da esquerda para direita: autores Armando Siqueira, Gabriella Cordeiro e Luiz Gustavo; Flávia Sá (organizadora) e convidados /  

PEDREIRA, Flávia de Sá. Nordeste do Brasil na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: LCTE Editorial, 2019. 340 p. Resenha de: VAINFAS, Ronaldo. Nordeste flagelado pelos nazistas. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, no. 71, Mai./ Ago. 2020.

A Segunda Guerra Mundial terminou há 75 anos. Terminou na Europa em maio de 1945, com a rendição alemã aos soviéticos após o suicídio de Hitler e no Japão em setembro, após as bombas lançadas pelos EUA, em agosto, sobre Hiroshima e Nagasaki. O Brasil passou por tudo isso. Viveu a crise da democracia liberal nos anos 1930, tempo do Estado Novo; participou da Segunda Guerra, enviando tropas para a Itália.

Mas o que aqui nos interessa é o Brasil no tempo da Segunda Guerra Mundial. Memórias de combatentes e pesquisa historiográfica reconstruíram a atuação brasileira na Itália. Elogio do alto comando dos aliados à bravura dos soldados brasileiros. Risco alto que alguns enfrentaram, depois da guerra, desmontando minas em diversos países ocupados pela Alemanha. Heróis de guerra, foram desprezados na volta ao Brasil, sobretudo a soldadesca, porque os oficiais foram condecoradíssimos. A maioria dos “pracinhas” que lutaram na Itália foram recrutados nas regiões Norte e Nordeste do país. A região foi sistematicamente atacada pelos submarinos alemães em 1942.

O livro organizado pela historiadora Flávia de Sá Pedreira, Nordeste do Brasil na Segunda Guerra Mundial, publicado pela LCTE Editorial em 2019, não deixa dúvida a respeito. Os ataques começaram no Sergipe, em agosto de 1942, quando o submarino U-507 afundou seis cargueiros brasileiros de diversas tonelagens que, acrescente-se, também faziam transporte de passageiros. Luiz Pinto Cruz e Lina Aras abrem o livro com texto bem documentado sobre tais ataques. Eles ocorreram entre 15 e 17 de agosto, afundando os navios Baependy, por ironia de fabricação alemã, o Araraquara, o Aníbal Benévolo, o Itagiba e o Arará. A cada navio torpedeado, pânico total na capital e até no interior. Parentes desesperados à procura de sobreviventes. Corpos despedaçados nas praias. Medo de uma iminente invasão alemã. Blackouts.

Dilton Maynard nos conta como o medo assolou Aracajú naqueles dias, com a explosão do Baependy. Os ataques prosseguiram na costa baiana, onde os alemães torpedearam outros quatro navios brasileiros. Total de desaparecidos no Sergipe e na Bahia: 612. Luana Quadros Carvalho analisa as consequências dos ataques ao litoral de Salvador: crises de abastecimento, inflação, mercado paralelo, o que atingiu sobretudo a população pobre da cidade.

É sabido que o número de navios mercantes brasileiros afundados por submarinos alemães – e também italianos – foi muito maior do que os torpedeados na costa nordestina. Mas a Segunda Guerra alcançou o Nordeste de forma implacável, antes de tudo porque os ataques ocorreram em mar brasileiro. O impacto social dos eventos foi tremendo. Como a censura do DIP levou dias para permitir a divulgação das notícias, o Nordeste vivenciou uma autêntica caça às bruxas nos primeiros dias da tragédia. Casas e lojas de estrangeiros, suspeitos de espionagem, foram vandalizadas. Quando a imprensa é censurada, predomina o boca-a boca e todo abuso se torna banal.

Seja como for, havia uma rede de espionagem alemã espalhada pelo Brasil e por outros países sul-americanos, como a Argentina e o Chile. Juliana Leite reconstrói a rede de espionagem nazista, que contava com cerca de dez células ramificadas em vários estados do país. A autora particulariza o caso pernambucano, onde empresas alemãs instaladas no Recife funcionavam como locais de recrutamento, a exemplo da Siemens Schukert S.A e a Dreschler & Cia. Os grandes espiões, porém, provinham da diplomacia alemã instalada no país, e não era desconhecida das autoridades brasileiras, com sua DIP sempre atenta.

A obra em foco inclui estudos sobre várias cidades nordestinas, examinando a reação popular aos afundamentos de cargueiros brasileiros e outros aspectos da entrada do Brasil na guerra. Osias Santos Filho analisa o impulso que a guerra mundial deu à indústria têxtil maranhense. Mas, a partir de 1942, algumas atividades refluíram, como a exportação de babaçu, cujo principal importador era a Alemanha, além da carestia, inflação, racionamentos e falta de combustível. No vizinho Piauí, Clarice Lira analisa a grande mobilização popular em 1942. Não faltaram perseguições a alemães, italianos e japoneses residentes em Teresina.

A Paraíba, como expõe Daviana da Silva, foi estado dos mais destacados na mobilização do Brasil, com passeatas e comícios em Campina Grande e João Pessoa. O jornal A União publicou fotografias de paraibanos que viajavam nos navios afundados, incluindo notícia sobre a vida de cada um. A autora sugere que tais eventos despertaram não apenas um surto de brasilidade como a emergência de um sentimento de paraibanidade, assunto caro à história regional, como a de outros estados que por séculos gravitaram na órbita pernambucana. Sérgio Conceição estuda o caso de Alagoas e concentra o capítulo na história socioeconômica da região, analisando a ascensão da produção de borracha, incentivada pelo regime Vargas, vista com grande entusiasmo por algumas lideranças, criticada por outros apegados à produção de cana e de algodão.

Antônio Silva Filho examina o cotidiano de Fortaleza nos anos 1940, cidade que também abrigou base militar dos EUA, discorrendo sobre os primórdios da “americanização” de certos costumes locais. Na abertura do capítulo, uma alusão ao carnaval de rua na capital, em 1946, em especial a formação de um bloco chamado “Cordão das Coca-Colas”, formado por sargentos brasileiros da FAB, que satirizava “as moças da sociedade local que haviam namorado soldados norte-americanos” (p.37). O autor é cauteloso na análise do tal desprezo pelas moças que “namoravam ianques”, citando mesmo uma crônica de Raquel de Queiroz, datada de 1944, para quem “só os rapazes são um pouco contra os nossos aliados, rosnam bastante, falam em mentalidade colonial (das mulheres cearenses)” (p.38). Por minha conta, digo que esse bloco era tremendamente misógino e machista, conforme sugeriu, com elegância, a grande escritora brasileira.

Em obra com tal recorte regional, é certo que não poderia faltar capítulos sobre o Rio Grande do Norte, antes de tudo por causa do famoso Parnamirim Field, então distrito de Natal, hoje município autônomo, que abrigou duas bases norte-americanas nos anos 1940. Parnamirim Field não foi a única base aeronaval dos EUA no Brasil, como muitos sabem, mas era a principal, designada em mapas militares dos EUA como Trampoline of Victory porque estava na rota ofensiva dos norte-americanos nas campanhas da África e do sul da Itália. Foi nela que ocorreram os contatos mais intensos entre a população brasileira e os norte-americanos, tema que já foi objeto de estudos sérios e documentados.

A obra contém três capítulos sobre a terra potiguar. Anna Cordeiro estuda o bairro da Ribeira, em Natal, favorecido pelo boom populacional ocorrido na cidade; Luiz Gustavo Costa contribui com biografia de um natural do Rio Grande do Norte, veterano da FEB na Itália; e enfim, Flávia Pedreira contribui com trabalho sobre os intelectuais potiguares em face da base norte-americana erigida em Natal. Entre eles, Câmara Cascudo, que se mostrou ambivalente, segundo Flávia, diante da influência de Paranamirim Field sobre a cultura local: ora reconhecia o valor da “boa música” tocada pelas orquestras norte-americanas nas praças natalenses, ora depreciava a difusão de artigos como a “borracha açucarada”: os chicletes.

As balizas teórico-metodológicas do livro aparecem na apresentação da organizadora. Em primeiro lugar, uma alusão ao clássico de Hannah Arendt, Origens do totalitarismo (2000), para realçar que as atrocidades do nazismo contaram com o apoio das massas. Isso é válido para a Alemanha hitlerista, e o seria para a Itália fascista e para a o regime stalinista na URSS. Para o Brasil não, apesar de que o regime liderado por Getúlio Vargas, após 1937, aspirava a ser um Estado fascista, do tipo definido por Mussolini: “Tudo para o Estado, nada contra o Estado, nada fora do Estado”.

A historiografia brasileira, porém, com a exceção da produzida em São Paulo, qualifica o Estado brasileiro entre 1937 e 1945 como autoritário, mas não fascista, muito menos totalitário. A própria aliança do Brasil com os EUA, em 1942, contribui, factualmente, para relativizar, ou mesmo negar, a vocação fascista do Brasil na ditadura de Getúlio Vargas. Com a eclosão da guerra, em 1939, o governo permaneceu no attentisme, atento ao desenrolar do conflito, como diria o historiador francês Pierre Laborie (2010), ao caracterizar a atitude dos franceses em face da ocupação alemã. A maioria não resistiu à ocupação nazista, tampouco foi colaboracionista, senão agiu conforme as circunstâncias, transitando no que chama, com acuidade, de zona cinzenta.

Getúlio Vargas parece ter esposado o attentisme, atuando em uma zona cinzenta no campo diplomático. Muitos historiadores brasileiros preferem tratar o Estado Novo como berço do Trabalhismo, com seu viés nacionalista e popular, ao invés de assimilá-lo aos totalitarismos alemão e italiano. Nesse ponto, o paradigma teórico adotado no livro é um tanto anódino, em especial porque a imensa maioria dos textos da coletânea descreve experiências de ataques alemães ao Nordeste e sua repercussão, sem operar com o conceito. O totalitarismo funciona, antes de tudo, como pano de fundo histórico, em geral atribuído ao regime nazista. Mas vale dizer que, em todos os textos, os autores apontam, de várias maneiras, a contradição visceral do Estado Novo, uma ditadura inspirada nos regimes autoritários europeus, que depois se alia aos EUA na luta pela democracia no mundo.

Por outro lado, a alusão de Flávia Pedreira a Paul Ricoeur (2008) parece-me exata para exprimir as pesquisas que dão corpo ao livro. Nas palavras da organizadora, “faz-se a inclusão de entrevistas orais com aqueles que vivenciaram a época e/ou seus descendentes, trazendo à tona um verdadeiro exercício de memória que muito tem a esclarecer os fatos e personagens envolvidos” (Pedreira, 2019, p.8). Uma opção metodológica que atravessa todos os ensaios e nisso acerta em cheio o seu propósito.

Mas penso que não vale a pena alongar tais considerações teórico-metodológicas, por vezes nominalistas, a propósito de livro tão relevante. A história não deve, a meu ver, demonstrar teorias, senão valer-se delas para reconstruir o passado. O livro em causa faz isso à perfeição, malgrado o que afirmei acima. Vista no conjunto, a obra conta uma história do Nordeste para além das secas e da exploração da miséria, desafiando mitologias. Mostra ao vivo o Nordeste atacado pelo nazismo em 1942. Assunto fascinante e obra à altura do tema.

Referências

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. [ Links ]

LABORIE, Pierre. 1940-1944. Os franceses do pensar-duplo. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (org.). A construção social dos regimes autoritários. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX, vol. 1: Europa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. [ Links ]

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2008. [ Links ]

Ronaldo Vainfas – Universidade Federal Fluminense Departamento de História Campus de Gragoatá, Niteroi, RJ, 24220-900, Brasil. rvainfas@terra.com.br.

The Identitarians: the Movement against Globalism and Islam in Europe – ZÚQUETE (VH)

ZÚQUETE, José Pedro. The Identitarians: the Movement against Globalism and Islam in Europe. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2018. 484 p. Resenha de: GUIMARÃES, Gabriel. O movimento etnonacionalista europeu. Uma análise dos Identitários. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, no. 71, Mai./ Ago. 2020. 

O livro analisado é de José Pedro Zúquete, investigador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa que tem se dedicado à análise comparada de movimentos políticos radicais. Sua obra The Identitarians: the movement against Globalism and Islam in Europe, publicada pela University of Notre Dame Press, em 2018, é de grande relevância para a compreensão de um conjunto de movimentos políticos da direita euroamericana, analisados a partir de seus fundamentos teóricos, discursos e práxis. Tais fundamentos se ancoram nos líderes da chamada Nouvelle Droite, uma escola de pensamento voltada para as origens e traços culturais dos europeus, criada no fim dos anos 1960 com o Groupement de Recherche et d’Études pour la Civilisation Européenne (GRECE). Grupo criado por Alain de Benoist, o GRECE faz uma crítica do que considera visão monoteísta de mundo, cujas raízes judaico-cristãs, na modernidade, levariam a grandes propostas supranacionais, como o liberalismo e o marxismo. A esses grupos acrescenta-se a alt-right estadunidense, conjunto de organizações que partilham de um enquadramento de mundo bastante parecido, porém com um discurso ainda mais explicitamente racialista.

Esse enquadramento é a chamada “grande substituição”. O termo vem da obra do autor francês Renaud Camus, Le Grand Remplacement (2012), onde são enfatizadas as mudanças etnodemográficas ocorridas nas grandes cidades da Europa Ocidental, nas quais o número de habitantes de origem não europeia é cada vez maior. O suposto risco, no caso, é o da transformação das maiorias europeias em minorias numéricas dentro de algumas décadas.

Em torno da visão neopagã de Benoist, onde cada núcleo social e cultural teria seu conjunto de valores sacros voltados apenas para os membros de sua comunidade fechada, como na Gemeinschaft de Herder (2004), orbitam vários outros temas e propostas teóricas. Destaca-se, nesse sentido, o tema do “globalismo”, identificado geralmente em estruturas de poder supranacionais, como a ONU e a União Europeia, e pelo arcabouço ideológico que as sustenta. Isto é, o multiculturalismo, que levaria ao enfraquecimento dos controles fronteiriços, a políticas públicas voltadas cada vez mais para a inclusão de minorias, entre outras coisas, diluindo o que Smith (1991) chamou de core ethnies, os núcleos linguísticos e culturais com uma memória coletiva comum que estão no centro da formação da maioria das nações modernas, e a congruência entre cultura e política, que constitui o nacionalismo para Gellner (2013).

Outro importante tema é o Islã. Apesar de não ser visto como a única ameaça à identidade dos povos europeus e seus descendentes, é considerado a presença extraeuropeia mais significativa existente no continente. Isso se deve ao fato do número de muçulmanos ser bastante alto, pela sua alta taxa de natalidade, pela sua capacidade de converter novos fiéis oriundos de comunidades não originalmente muçulmanas e, ainda, de se organizar a fim de propor políticas públicas específicas.1

Uma dimensão teórica trabalhada em The Identitarians é o da geopolítica. Embora constituam movimentos nacionalistas, os identitários pensam na formação de um bloco político transnacional, articulado por interesses que seriam comuns aos povos de origem europeia. Em relação a esse debate, é central a obra do autor russo Alexander Dugin (2013), na qual é retomado o projeto do eurasianismo.2 O “abraço euroeslavo” é um projeto que defende uma comunhão de interesses entre as civilizações europeias que se estenda da “Ibéria à Sibéria”, pelo eixo Paris-Berlin-Moscou. Apesar da inclinação comunitarista dos identitários, no sentido cultural de Tönnies (2011) e Herder (2004), a discussão em torno à identidade, no sentido biológico, também ocorre com grande relevância para a etologia de Konrad Lorenz (2002) e a paleoantropologia de Robert Ardrey (2014).3

Embora dentro da miríade de movimentos e agrupamentos analisados existam alguns grupos que se assemelhem muito a movimentos fascistas, como o italiano Casa Pound, falar apenas de um “retorno ao fascismo” seria um tanto reducionista, de forma que o fenômeno identitário aponta para algo mais amplo. Ele é parte da crise dos modelos cívico-territoriais de nacionalismo e da ascensão de propostas nacionalistas mais comuns na Europa centro-oriental, onde o Estado nacional se formou posteriormente aos países da Europa Ocidental. As tensões frente à migração, sentidas por alguns setores dessas populações, traz à tona tipos de conflito que caracterizavam a Europa centro-oriental do século XIX, até 1945, e mesmo décadas depois em algumas áreas da Europa (Mazower, 1991), onde a formação de bolsões e enclaves étnicos dentro de seus Estados-nação fazia com que as populações majoritárias desenvolvessem um discurso étnico bastante arraigado.

A proposta dos primeiros eurasianistas de inícios dos novecentos era pensar uma saída para organizar politicamente o multiétnico Império Russo. Para eles, o patriotismo estatal de nada valia,4 se esse Estado não fosse preenchido e conduzido por uma coletividade étnica consciente de seu lugar único no mundo (Ivanov; Fotieva; Shishin; Belokurova, 2016). A etnosociologia eurasianista, da qual falavam e falam seus defensores, constitui uma sociologia voltada para a descoberta dos traços fundamentais etnoculturais e etnonaturais de um povo, convergindo ciências sociais e ciências naturais, proposta semelhante à dos identitários,5 frente a um cenário social também bastante semelhante. A resposta dos identitários ao novo quadro multiétnico da Europa, sobretudo ocidental, se assemelha àquela dada pelos eurasianistas aos desafios enxergados na formação da identidade e administração do Império russo de então.

Portanto, o livro de Zúquete, através da análise dos identitários, estabelece um quadro analítico que adentra a problemática mais profunda do continente europeu, assim como do nacionalismo em geral, proporcionando uma explicação clara e objetiva para os interessados no tema dos movimentos nacionalistas e anti-imigração. É uma obra importante também no sentido da análise do crescimento do nacionalismo não apenas na Europa, mas em países como Índia, Turquia, Indonésia, Japão, Brasil, tendo em vista, evidentemente, as grandes diferenças entre essas experiências. Ainda assim é possível notar pontos em comum em todos eles, denotando certas tendências do século XXI que o livro de Zúquete ajuda a compreender.

1Como a carne hallal nas escolas.

2Retomado no sentido de que o eurasianismo foi uma escola de pensamento criada pelo historiador e linguista russo Nicolai Trubetzkoi em inícios do século XX.

3Os autores oriundos das ciências biológicas utilizados muitas vezes não são membros ou mesmo simpatizantes dos movimentos. Ainda assim, suas teorias são utilizadas como meio de validação científica daquilo que defendem em um plano político.

4Aqui nota-se a semelhança com o nacionalismo cívico-territorial. Um nacionalismo voltado para traços mais abstratos de um Estado e uma constituição modernos.

5Vale lembrar que os trabalhos que tentavam compreender a identidade dos europeus a partir de análises biológicas abundavam também na parte ocidental do continente até 1945. Não desapareceram totalmente após o fim da segunda guerra, mas não exerciam mais tanto impacto no ambiente acadêmico universitário como antes.

Referências

ARDREY, Robert. The Territorial Imperative: a Personal Inquiry into the Animal Origins of the Property and Nations. EUA: StoryDesign, 2014. [ Links ]

CAMUS, Renaud. Le Grand Remplacement suivi de Discours d’Orange. Plieux: Chez l’auteur, 2012. [ Links ]

DUGIN, Alexander. La Cuarta teoria política. Barcelona: Publidisa, 2013. [ Links ]

IVANOV, Andrey Vladimirovitch; FOTIEVA, Irina Valevjna; SHISHIN, Michail Yurevitch; BELOKUROVA, Sofja Michailovna. The Ethno-Cultural Concept of Classical Eurasianism. International Journal of Environmental and Science Education. vol. 11, n. 12, p.5155-5163, 2016. [ Links ]

GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 1983. [ Links ]

HERDER, Johann Gottfried. Another Philosophy of History and Selected Political Writings. Indianapolis/Cambridge: Hackett Classics, 2004. [ Links ]

LORENZ, Konrad. On Agression. London: Routledge, 2002. [ Links ]

MAZOWER, Mark. Continente sombrio: a Europa no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. [ Links ]

SMITH, Anthony. The Ethnic Origins of Nations. Oxford: Blackwell Publisher, 1991. [ Links ]

TÖNNIES, Ferdinand. Community and Society. Mineola/New York: Dover Publications, 2011. [ Links ]

ZÚQUETE, José Pedro. The Identitarians: the Movement against Globalism and Islam in Europe. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2018. [ Links ]

Gabriel Guimarães – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa Av. das Forças Armadas, Lisboa, 1649-026, Portugal. gfrgs@iscte-iul.pt.

Arqueologia – FUNARI (VH)

FUNARI, Pedro Paulo. Arqueologia. São Paulo: Contexto, 2010, 125p. ALMEIDA, Fábio Py Murta de. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

O livro Arqueologia, do professor doutor Pedro Paulo Funari, livre docente de História da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), é uma composição ímpar, indicado especialmente aos cursos introdutórios de História, Arqueologia e de História da Literatura do Antigo Oriente Próximo. Seu texto tem forma agradável e objetiva; mérito do autor, fruto dos anos de atividade profissional e dedicação ao estudo arqueológico. Assim, pela larga experiência na temática, Pedro Funari busca objetivamente apresentar a Arqueologia tendo em vista o ramo da história cultural, isso com uma linguagem fácil e direta; aponta logo no início da obra que a arqueologia não se compreende apenas pelas descobertas das figuras e das imagens, mas institui-se num campo muito reflexivo, envolvendo tanto a leitura, quanto a prática nos sítios arqueológicos.

Olhando mais detidamente sua obra, Pedro Funari começa informando basicamente o “estado da questão” da ciência arqueológica, definindo seu objeto de estudo e a evolução do pensamento. Para ele, a arqueologia consiste nos conhecimentos dos primórdios, dos relatos das coisas antigas. Só mais recentemente, por conta do campo de atuação e de envolvimento (diálogo) com ciências sociais, é que a arqueologia vem se traçando de forma interdisciplinar. Com ela, não se visa revelar apenas o sentido das coisas e dos artefatos desenterrados, mas configurar que os “ecofatos e biofatos são vestígios do meio ambiente e restos dos animais que passaram sobre apropriação do ser humano”, o que retira a limitação do estudo arqueológico apenas ao passado, mas, também, liga-o ao presente, como o é na arqueologia industrial. Mesmo assim, pensando especificamente na idealização do passado, indica-se que esse pensamento é metodologicamente pautado nas etapas arqueológicas, sempre olhando dados e artefatos. Materiais entre os quais podem ser vistos indicativos das relações sociais que foram produzidos, uma vez que atuam como mediadores das atividades humanas, determinando estereótipos e comportamentos de uma sociedade. Para a atividade é fundamental entender que a partir da “reintegração dos artefatos a um contexto cultural como o nosso e em um invólucro da relação de poder que o artefato produz, o mesmo adquire importância crucial”, portanto, o arqueólogo tem que inserir tais objetos no interior das relações sociais em que foram produzidos, fazendo-os exercer novas funções de mediações. Portanto, é dentro da cultura,1 como desenvolvimento e criação humana, que o objeto transforma-se em artefato, recebendo uma formulação junto à humanidade.

Outro nicho de saberes destacado pelo autor são as formas de pesquisa na arqueologia: indicando um “complexo de técnicas utilizadas pelo arqueólogo, formulações não neutras, que se inserem num complexo de questões metodológicas que derivam das políticas do arqueólogo”. Técnicas, por exemplo, como o desenterramento e a escavação estratificada. Elas teriam evoluído ao longo do tempo dividindo-se em três importantes fases: a primeira, a preocupação com a superposição de níveis de ocupação e com datação relativa aos artefatos; a segunda, com o estudo e registro dos estratos; e a terceira, com a escavação de amplas superfícies, preocupada com o estudo do funcionamento da sociedade que ali viveu. Infelizmente, no Brasil, inicialmente, houve uma “desvalorização do contexto histórico devido às grandes importações de técnicas e ideologias (no caso, arqueológicas), advindas da Europa, ou seja, a valorização de um passado externo ocasionou a desvalorização da memória nativa (indígena)”. Ainda sim, apesar do desenvolvimento exemplar que a arqueologia vem tendo no Brasil, ela está longe de ser valorizada. Percebe-se que recentemente está ocorrendo uma grande reviravolta na pesquisa brasileira e internacional, trazendo um diálogo entre a arqueologia brasileira e a mundial, o que dinamiza o estudo nacional. No detalhe da relação entre a arqueologia e as outras áreas do conhecimento, Pedro Funari mostra que essa ciência não pode ser desarticulada das outras disciplinas. Deve estar relacionada com as demais ciências (como a história, a antropologia, a biologia, a geografia, a física, a arte, a arquitetura, a filosofia, a linguística e a museologia), pois elas são e foram fundamentais para sua evolução, como já indicamos.

No fim, a obra Pedro Funari faz uma explanação e um convite ao aprendizado arqueológico no Brasil. Indica, antes de qualquer coisa, que o arqueólogo deve ter o compromisso com a burocracia regional e responsabilidade social. Também, aponta que deve haver respeito para com a sociedade no todo, desde grupos majoritários até os minoritários. Para ele, a arqueologia é uma ação política2 que, por isso, tem algumas dificuldades de inserção no Brasil, até mesmo por que, como profissão, tem um difícil reconhecimento por não haver uma graduação específica na área. Mesmo assim, existe pós-graduação nessa área de atividade profissional, e pode-se atuar como professor, pois em museus, laboratórios, arqueologia (setor burocrático) de contrato, como maneira de proteger o patrimônio arqueológico, e na gestão turística do patrimônio arqueológico brasileiro. Enfim, algumas áreas podem servir como convite ao estudo e trabalho arqueológico. Merece destaque a gama de projetos e novos horizontes arqueológicos, pois nosso território é um vasto campo de pesquisa sobre as comunidades que aqui habitaram no passado.

Por fim, com vasto conhecimento acerca da ciência arqueológica, não só no Brasil, mas também, em outros países em que realiza suas pesquisas, Pedro Paulo Funari expõe de maneira singular, sucinta e principalmente realista uma ampla visão acerca da arqueologia e do seu desenvolvimento ao longo dos últimos séculos. Sobre a abordagem dos conceitos e objetos de estudos, o livro Arqueologia pode ser encarado como um belo convite ao seu estudo como disciplina acadêmica. Caso os leitores queiram aprofundar os apontamentos apresentados pelo autor, vale a pena à consulta de obras, como, por exemplo, a História do pensamento arqueológico de Bruce G. Trigger3 e algumas obras da vasta bibliografia do professor Pedro Funari.4 Ao fim da resenha, destacamos a admiração pelo esforço do autor que, mesmo em um texto relativamente pequeno, consegue ter riqueza de detalhes e não deixa de enaltecer as questões histórico-metodológicas da disciplina. Por isso, pensamos que cumpriu o objetivo de explorar de forma suscita questões que vem levantado a arqueologia nos últimos anos, bem como exauriu o intento de introduzir suas questões de forma geral. Assim, em termos de historiografia, o autor faz uma aproximação da disciplina de arqueologia junto a um ramo da história, a luz dos termos e conceitos reconhecidos na história cultural. Propriamente, aproxima a variante da nova história cultural, principalmente a estilizada por Roger Chartier, com as questões que vêm levantado os embates da cultura material escavada como as: representações, poder e práticas culturais – ajudando no diálogo história e arqueologia sobre o prisma do conceito simbólico de cultura de Clifford Geertz e de Marshall Sahlins.5 Agora, pensando mais longe, é urgente que as editoras se preocupem em produzir livros desse tipo, sendo relevantes ao nicho dos alunos e aos cursos introdutórios de nível superior. Assim, fica aqui o apelo para a produção de livros e materiais que sejam sucintos e que possam da melhor forma introduzir o estudo dos discentes às cadeiras acadêmico-científicas.

1 A noção de cultura utilizada pelo autor é ligada á história cultural, vista em FUNARI, Pedro Paulo A. e PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Patrimônio histórico e cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. Quando Pedro Funari utiliza da contribuição decisiva de Roger Chartier, autor que aponta a história cultural relacionada com a “noção de ‘representação’ e de ‘práticas’ (…) tanto os objetos culturais seriam produzidos ‘entre as práticas e representações’, como os sujeitos produtores e receptores da cultura circulariam entre esses dois pólos, que de certo modo corresponderiam respectivamente aos ‘modos de fazer’ e aos ‘modos de ver'”, como cita BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004, p.76.
2 Sobre ação política e seu destaque dentro da história política, vide a descrição de Marieta de Moraes Ferreira quando comenta a obra de René Rémond: “Nova História Política (…) ao se ocupar do estudo e da participação na vida política (…) integra todos os atores, mesmo os mais modestos, perdendo assim o caráter elitista e individualista e elegendo as massas como seu objeto central”, RÉMOND, René. Por uma história política.Rio de Janeiro: FGV, 2003, p.7. Assim, a ação política permeia o respeito aos atores sociais de diferentes grupos ligados as redes de poder que constituem a sociedade.
3 TRIGGER, Bruce G., História do pensamento arqueológico. Tradução de Ordep Trindade Serra. São Paulo: Odysses Editora, 2004.
4 Citamos aqui, por exemplo, as duas obras: FUNARI, Pedro Paulo A. Arqueologia e patrimônio, Erechim: Habilis, 2007; e FUNARI, Pedro Paulo A. (org.). Cultura material e arqueologia histórica. Campinas: IFCH/UNICAMP, 1999.
5 Assim para Clifford Geertz e Marshall Sahlins o conceito de cultura pode ser definido como um conjunto de sistemas de signos e significados constituídos pelos grupos sociais. Portanto, para interpretar as culturas, no caso do antropólogo Clifford Geertz significa interpretar: símbolos, mitos, ritos. Agora, partindo de Clifford Geertz, Marshall Sahlins defende que os grupos de uma cultura também “representam” suas interpretações do passado no presente. Vide para isso, GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978; e SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

Fábio Py Murta de Almeida – Historiador e mestre em Ciências da Religião pela UMESP. Professor de História da Faculdade Batista do Rio de Janeiro (FABAT) e pesquisador do grupo de Arqueologia do Mundo Bíblico ligado a UMESP Faculdade Batista do Rio de Janeiro. Rua Jose Higino 416, Tijuca, Rio de Janeiro. CEP: 20510-412. pymurta@gmail.com.

 

 

 

 

 

Gesamtausgabe. I/7. Zur Logik und Methodik der Sozialwissenschaften. Schriften 1900-1907 – WEBER (VH)

WEBER, Max. Gesamtausgabe. I/7. Zur Logik und Methodik der Sozialwissenschaften. Schriften 1900-1907, Wagner, Gerhard. Tübingen: Mohr Siebeck, 2018. 772 p. MATA, Sérgio da. A metodologia de Max Weber entre reconstrução e desconstrução. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, no. 70, Jan./ Abr. 2020.

Max Weber morreu aos cinquenta e seis anos de idade, em 14 de junho de 1920. Dez anos depois, e apesar dos esforços de Karl Jaspers, Hans Freyer e Raymond Aron, eram poucos os eruditos alemães que ainda o mencionavam. Traduzido por mexicanos e norte-americanos, Weber atravessa o Atlântico e começa a ganhar a América, ao passo que na Alemanha nacional-socialista seus livros – compreensivelmente – juntavam poeira nas estantes. Essa longa hibernação só acaba em fins da década de 1950, quando fica clara a dívida da Escola de Frankfurt para com a tese weberiana da racionalização ocidental, e em especial com a publicação dos notáveis estudos de Wolfgang Mommsen, Reinhard Bendix e Friedrich Tenbruck. A partir de então já não era possível ler e interpretar este clássico das ciências humanas sem o suporte de disciplinas como a história das ideias, e, não menos importante, sem recorrer a este imenso monumento de erudição que é a edição crítica das obras completas de Weber, a Max Weber Gesamtausgabe (MWG).

A editora Mohr Siebeck e Academia de Ciências da Baviera acabam de publicar o volume I/7, contendo a maior parte dos ensaios que se tornaram conhecidos no Brasil e outros países sob o título de “Metodologia das Ciências Sociais”. O aparecimento deste livro de mais de 700 páginas, intitulado Sobre a lógica e a metodologia das ciências sociais. Escritos 1900-1907, pode ser considerado um evento editorial de grande importância. Isso vale igualmente para os historiadores, uma vez que é justamente nesse conjunto de textos que se encontra o essencial da teoria weberiana do conhecimento histórico.

Foi Marianne Weber quem coligiu, em 1922, os textos teórico-metodológicos publicados por seu marido entre 1903 e 1919, e que receberam o título um pouco pretensioso de Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre, “Ensaios reunidos sobre doutrina da ciência”. A história de sua recepção é atribulada, pois via de regra as primeiras traduções para o inglês, o francês, o italiano e o espanhol não incluíram a totalidade do material selecionado por Marianne. O pecado não chega a ser grande, já que o conjunto de textos que conteria o fundamental da epistemologia weberiana é ainda uma questão em aberto entre os especialistas. A edição alemã de 1922 passaria por alterações significativas em 1951 e 1968, com a inclusão de textos que a viúva de Weber não havia selecionado em 1922 (Sell, 2018, p.321-322). Assim, não pareceu impróprio aos responsáveis pela edição inglesa mais recente a inclusão de textos inéditos como o agora famoso “Manuscrito de Nervi”, essencial para mensurar o peso da influência do filósofo Heinrich Rickert sobre Weber. Essa tumultuada história editorial está longe de terminar, uma vez que os editores da MWG optaram por uma solução que não chega a ser consensual: o conjunto de textos original foi cindido em duas partes, uma anterior e outra posterior ao biênio 1907-1908. Uma decisão que implica, literalmente, na implosão do volume organizado pela viúva de Weber.

Tenbruck foi o primeiro a questionar publicamente o que chamou de “desmontagem” (Tenbruck, 1989, p.102). Mas não convém superestimar suas consequências. Para o bem e para o mal, as decisões tomadas pelos coordenadores da edição crítica só muito raramente têm sido acompanhadas pelas traduções de Weber ao redor do mundo, e não há razão para supor que nesse caso há de ser diferente. O que nos parece particularmente interessante aqui é o fato de que os dois volumes resultantes estavam entre os primeiros anunciados da MWG. O primeiro deles, objeto desta resenha, deveria ter aparecido em 1984; e o segundo para 1987. Você leu corretamente: três décadas e meia de atraso!

Segundo nos disse há pouco uma das pessoas diretamente envolvidas, o editor originalmente designado para o volume não conseguiu levar adiante o penoso processo de preparação dos textos, o que implicou uma perda de tempo que, de resto, já vitimara outros importantes volumes da MWG, entre eles o que contém os famosos artigos sobre “a ética protestante”. Mas, independente das muitas possíveis razões envolvidas, tal lapso de tempo é eloquente o bastante, fala uma linguagem clara: não era uma prioridade disponibilizar ao público a edição histórico-crítica dos textos que sistematizam a concepção weberiana de ciência histórica e social.

Também na outra ponta há problemas. Trata-se de textos bastante desiguais em densidade analítica e em qualidade literária (alguns são inegavelmente prolixos), e cuja tradução impõe grandes dificuldades. Basta dizer que a versão brasileira (Weber, 2001), realizada em conjunto pelas editoras Unicamp e Cortez no início da década de 1990 (e atualmente em sua 5ª edição) está longe de ser adequada. Embora tenha sido deixada a cargo de um alemão radicado no Brasil, o falecido Augustin Wernet, é tal o número de erros ali cometido – de desvios terminológicos ao “sumiço” de parágrafos inteiros – que temos recomendado sempre o uso da criteriosa versão inglesa, traduzida por um dos maiores conhecedores deste corpus, o dinamarquês Hans Henrik Bruun (Weber, 2012).

Em que pesem tais dificuldades e o colossal atraso, Sobre a lógica e a metodologia das ciências sociais é um precioso instrumento de trabalho. De nossa parte, importa-nos sublinhar o seu valor para historiadores das ideias e interessados em teoria da história. Estes escritos, que contém o essencial da metodologia de Weber, são fruto de seu diálogo não apenas com clássicos como Ranke, Roscher e Droysen, mas também com os mais importantes nomes da teoria da história de inícios do século passado – de Dilthey a Simmel, de Rickert a Gottl. Seu objetivo é fundamentar a “ciência da realidade”, assim definida:

A ciência social que nós pretendemos praticar é uma ciência da realidade. Queremos compreender a realidade da vida ao nosso redor, e na qual nos situamos, em sua especificidade – por um lado: as conexões e a relevância cultural de suas diversas manifestações em sua configuração atual, e, por outro, as causas pelas quais ela se desenvolveu historicamente de uma determinada maneira e não de outra (p.174).

Aqui se estabelece o programa do Arquivo para a Ciência Social e a Política Social, revista que Weber tinha assumido em 1903 em parceria com Werner Sombart e Edgar Jaffé. As diferenças em relação ao funcionalismo durkheimiano saltam aos olhos. Para Weber a prioridade epistêmica não são as recorrências, as “leis” ou os “modelos”, mas os fenômenos singulares, considerados intersubjetivamente como relevantes. Vale dizer, “históricos”. Mais ainda, a elucidação de tais fenômenos deve se dar diacronicamente, historicamente. Somente desta forma se chega a saber como eles se tornaram o que são. Um programa, enfim, que se afasta não só do modelo francês, mas também daquele furor taxonômico que se apodera do próprio Weber ao longo das páginas de Economia e Sociedade (Mata, 2019).

É incomum que numa resenha se fale tão pouco da obra em si, mas o leitor há de admitir que se trata de um caso à parte. Embora mal traduzidos ou traduzidos apenas em partes para o português, a maior parte do material que compõe o volume I/7 da MWG já está à disposição do público brasileiro na Metodologia das ciências sociais. O que se pode esperar de uma edição crítica, além do minucioso trabalho de depuração filológica próprio de empreendimentos desta envergadura é, por um lado, a apresentação de eventuais “descobertas” (manuscritos inéditos, versões alternativas aos textos já publicados, etc), e, por outro, novas interpretações obtidas à luz do material inédito. De fato, salvo por alguns fragmentos de menor importância, a grande novidade é a publicação integral das notas de leitura feitas por Weber entre dezembro de 1902 e janeiro de 1903 num hotel nas proximidades de Gênova, os chamados “Manuscritos de Nervi”. Parte deste manuscrito foi previamente publicado em inglês por H. H. Bruun e Sam Whimster (Weber, 2012, p.413-418), mas é sem dúvida interessante para os interessados ler as anotações feitas Weber enquanto preparava o tratado “Roscher e Knies e os problemas lógicos de economia política histórica” (p.41-101; p.243-379). Numa de suas anotações, Weber se contrapõe secamente ao conhecido verso de Schiller: “A história não é o tribunal do mundo” (p.627). Fica evidente o considerável esforço desprendido por ele na leitura de O domínio da palavra, um inusual livro escrito por Friedrich Gottl (p.628-637); e assim por diante.

Com isso se chega à segunda e decisiva questão, a mesma questão colocada anos atrás por Wilhelm Hennis (Hennis, 2003, p.75): em que medida apuro filológico e algum material inédito nos permitem revisitar, com outros olhos, a metodologia de Weber? A solução salomônica dos editores não nos parece ter agregado muito de substancial nesse particular. Resta-nos, sob este ponto de vista, dar razão ao protesto de Tenbruck evocado mais acima. Até onde chega nosso conhecimento da literatura especializada mais recente, foram os 12 tomos contendo toda a correspondência ativa de Weber entre 1875 e 1920 (num total de 9.032 páginas) que mais claramente contribuíram para abrir novos caminhos para os Weber Studies.

De toda forma, a competente introdução preparada por Gerhard Wagner realiza um indispensável trabalho de contextualização, e a nosso ver acerta ao se contrapor ao senso comum que atribui a Weber um acento demasiadamente “interpretativo”. Além de realçar a importância do hoje esquecido Christoph Sigwart, Wagner dá seguimento à tendência recente (Mata, 2014Wagner e Härpfer, 2015) de se recuperar a importância das ciências naturais para Weber. Sua carreira docente teve início no momento em que a fama de Helmholtz e Du Bois-Reymond atingia seu ápice, e seu recurso moderado ao arsenal conceitual das hard sciences contradiz frontalmente os apóstolos da dicotomia radical entre ciências humanas e naturais, e que justamente naquela época começava a se estabelecer na Alemanha. Não parece ter sido menor a atenção que Weber devotou à lei da conservação da energia de Julius Robert Mayer e, em especial, aos estudos do fisiólogo Johannes von Kries sobre as categorias de causalidade e possibilidade. As evidências apresentadas por Wagner (p.18-24) mostram que foi considerável o influxo de Kries na preparação dos “Estudos críticos no campo da lógica das ciências da cultura” (p.384-480).

O ponto alto do volume é decerto o artigo programático “A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na política social” (p.142-234), mais conhecido na literatura especializada como o “ensaio sobre a objetividade”. A importância deste texto é dupla. Por um lado, ele permite mapear à perfeição como Weber concebeu A ética protestante e o espírito do capitalismo do ponto de vista do método. De outro, o fato de estudos recentes no campo da epistemologia histórica e teoria da história, como os de Lorraine Daston (2017) e Arthur Alfaix Assis,1 continuarem a referenciá-lo – e isso se dá sempre que o polissêmico conceito de “objetividade” é alvo de reflexão consequente – mostram o quanto ainda podemos aprender com ele. O uso das aspas no título revelam a distância do autor face a todo “objetivismo”. Ao mesmo tempo, Weber reconhece a inevitabilidade do recurso do historiador e do cientista social a determinadas ficções heurísticas, ou seja, os conceitos ou “tipos ideais”. Já em 1904, ele admite que a ficcionalidade é parte integrante da ciência da realidade. Mas, fique claro: como um meio, jamais como “destino”. A ciência weberiana não persegue apenas um ideal de rigor. Rigor e senso de responsabilidade precisam andar juntos.

No momento em que o obscurantismo político e religioso ameaça pôr abaixo as conquistas de gerações inteiras de pesquisadores brasileiros, dando à noção de “desconstrução” as consequências que seus adeptos relutavam em considerar possíveis hors-texte, duas passagens do ensaio sobre a objetividade (p.147; p.154) atestam seu valor duradouro. Concluamos com elas esta breve resenha: “Nenhum ser humano dotado de reflexividade, que age responsavelmente, pode deixar de ponderar sobre os fins e as consequências de seu agir”. Weber não endereça esta advertência aos donos do poder; é à comunidade científica que ele se dirige. Pois é ela, e sobretudo ela, que põe tudo a perder quando se esquece de que “em parte alguma o interesse da ciência é mais intensamente prejudicado, no longo prazo, do que naquelas circunstâncias em que não se quer ver os fatos incômodos e as realidades da vida em sua dureza”.

1ASSIS, Arthur Alfaix. Objectivity. In: KRAGH, Timme; RÜSEN, Jörn; MITTAG, Achim; SATO, Masayuki (eds.) Core Concepts of Historical Thinking (no prelo).

Referências

DASTON, Lorraine. Historicidade e objetividade. São Paulo: LiberArs, 2017. [ Links ]

HENNIS, Wilhelm. Im langen Schatten einer Edition. Zum Erscheinen des ersten Bandes der Max-Weber-Gesamtausgabe. In: HENNIS, Wilhelm. Max Weber und Thukydides. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003. [ Links ]

MATA, Sérgio da. Max Weber e as ciências naturais. Ciência Hoje, v. 320, p.22-25, 2014. [ Links ]

MATA, Sérgio da. Realism and Reality in Max Weber. In: HANKE, Edith; SCAFF, Lawrence; WHIMSTER, Sam (eds.) The Oxford Handbook of Max Weber. London: Oxford University Press, 2019. [ Links ]

SELL, Carlos. Resenha de Verstehende Soziologie und Werturteilsfreiheit. Schriften und Reden 1908-1917. Tempo Social, v. 30, n. 3, p.321-334, 2018. [ Links ]

TENBRUCK, Friedrich. Abschied von der “Wissenschaftslehre”? In: WEISS, Johannes (Hrsg.) Max Weber heute. Erträge und Probleme der Forchung. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989. [ Links ]

WAGNER, Gerhard; HÄRPFER, Claudius. Max Weber und die Naturwissenschaften. Zyklos: Jahrbuch für Theorie und Geschichte der Soziologie, v. 1, p.169-194, 2015. [ Links ]

WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais. São Paulo/Campinas: Cortez/Unicamp, 2001. [ Links ]

WEBER, Max. Collected Methodological Writings. London: Routledge, 2012. [ Links ]

Sérgio da Mata –Departamento de História, Universidade Federal de Ouro Preto, Rua do Seminário, s/n, Mariana, MG, 35.420-000, Brasil. sdmata@ufop.edu.br.

 

Um ás na mesa do jogo: a Bahia na história política da I República (1920 – 1926) – BRITO (VH)

BRITO, Jonas. Um ás na mesa do jogo: a Bahia na história política da I República (1920 – 1926). Salvador: EDUFBA, 2019. 267 p. SOUZA, Felipe Azevedo. A Bahia e a República contra o café com leite. Varia História. Belo Horizonte, v. 36, no. 70, Jan./ Abr. 2020. 

Já se contam décadas desde que caiu em descrédito a tese que interpretava a política na Primeira República como um estável e previsível pacto entre as oligarquias paulistas e mineiras. A produção historiográfica recente apresenta um cenário sensivelmente diverso. Ainda que entre elites, a construção da ordem se inscrevia em um imbrincado jogo de alianças voláteis e coalizões de curto prazo envolvendo lideranças de vários estados da federação. A inconstância das negociações entre grupos de interesse estaduais não raro resultou em intervenções militares e instauração de estados de sítio. Turbulências sociais e dificuldades para acomodar os interesses de elites fragmentárias eram frequentes no caminho da governabilidade. Em Um ás na mesa do jogo: a Bahia na história política da I República (1920-1926), Jonas Brito capta a intensidade dessas transações através de uma operação historiográfica que articula os estratagemas de bastidores e o influxo de intempéries socioeconômicas que persistentemente sacudiram os governos e os tensos processos sucessórios presidenciais.

O recorte temporal relativamente curto, de 1920 a 1926, foi pródigo em tumultos e viradas de mesa. Iniciando-se após um vigoroso ciclo de greves, aqueles anos foram pontilhados por conflitos armados envolvendo revoltas estaduais e a ascensão do tenentismo. A onda contestatória ressoou no primeiro escalão da política com a formação da Reação Republicana que, como a campanha civilista, buscou emplacar um presidente oriundo das hordas oposicionistas a partir da articulação de uma profusa campanha eleitoral baseada em uma plataforma programática crítica ao governo e às instituições do sistema representativo. Os influxos por mudança, concentrados principalmente na disputa presidencial de 1921/1922, atravessam o livro através do exame esmiuçado de um processo de ruptura intraoligárquico que foi fundamental para selar os destinos da Primeira República.

Outrora retratada em torno de imagens de “paralisia e marginalidade”, a Bahia era, como pontua o título da obra, um ás na mesa do jogo da Primeira República (NEGRO; BRITO, 2013). As teses inovadoras de Eul-Soo Pang e Cláudia Viscardi já situavam o estado em seu proeminente papel de eixo de estabilidade do regime (PANG, 1979VISCARDI, 2001). Jonas Brito disseca esse plano de poder evidenciando o domínio de ação dos construtores dessa almejada estabilidade. Como quem lê sobre os ombros austeros das lideranças republicanas, Brito conduz os enredos do livro a partir das correspondências de eminências como Nilo Peçanha, Arthur Bernardes, Otávio Mangabeira, Washington Luís, os irmãos Pedro e Góis Calmon. É de se destacar também a cuidadosa utilização de fontes diplomáticas, de onde o autor extrai algumas sínteses conjunturais lapidares. Através de um rigoroso mapeamento das movimentações públicas e reservadas de grupos que se realinhavam negociando interesses particulares e pautas públicas, o autor dimensiona o papel dos baianos no tabuleiro da política nacional.

O início dos anos 20 representou o fim de um período de jejum da Bahia em relação ao círculo de poder do Palácio do Catete. Até aquele momento as disputas entre Rui Barbosa e José Joaquim Seabra dividiam o cenário político estadual entre “ruistas” e “seabristas”. O contínuo boicote mútuo que um grupo infligia a outro acabou por esmaecer o potencial de liderança do estado junto ao poder central. O pacto entre as facções veio com a formação da coalizão oposicionista da Reação Republicana, e o fato de Hermes da Fonseca ter sido um dos principais articuladores para a adesão de Rui (seu destacado oponente em disputas anteriores) é mais um sintoma de que aquela campanha era extraordinária.

A unidade política da Bahia foi resultado do esforço conjunto de estados insatisfeitos com a candidatura bernardista que era fundeada em interesses de grupos paulistas e mineiros. Sem uma Bahia forte não haveria lastro para uma oposição capaz de enfrentar o poderio do governo. Como o autor aponta, “a atitude da Bahia impossibilitou o isolamento do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, dois estados já resistentes à candidatura de Bernardes” (p.249). Os baianos têm destaque nesta narrativa, mas este foi um processo nacional e o livro de Brito não encontra barreiras geográficas para analisar o que estava em jogo; suas páginas excedem a história da Bahia a todo tempo. O autor acompanha os próceres oposicionistas que naquela campanha deixaram seus gabinetes e saíram em caravana pelo país em carros, embarcações e trens. É especialmente relevante a maneira como essas expedições eleitorais são exploradas, a análise joga luz sobre o papel das oposições em um contexto competitivo como esse em tela – temática, vale dizer, ainda subestimada na literatura sobre o tema.

Artur Bernardes venceu aquelas eleições, mas teve diante de si um país inflamado em conflitos e rivalidades estaduais. Na Bahia, vivia-se situação diversa: a ascensão de Goés Calmon, eleito governador em 1923, foi um elemento de conciliação entre as elites. Ocupando o vácuo de influência deixado pela morte de Rui Barbosa, Calmon foi habilidoso em montar uma base fiel ao seu projeto de governo e em acomodar potenciais dissidentes a partir de um fino cálculo de distribuição de recursos políticos e de divisão de poder.

Naquele momento, a Bahia restaurava seu antigo papel de sustentação do poder central, conjuntura argutamente explorada a partir do episódio de recepção ao príncipe italiano Umberto di Savoia, cuja passagem pelo Brasil esteve a um triz de ser gorada. Cariocas e paulistas batiam cabeças com insurreições armadas em seus territórios, coube então à Bahia, sob os auspícios da aristocrática família Calmon, receber a comitiva. A pompa e circunstância ostentadas naquela recepção foram elevados a emblema da Bahia dos Calmon, tempos de solidez institucional e alinhamento com o Catete.

Em seu livro de estreia, fruto de dissertação em História defendida na Universidade Federal da Bahia, o jovem historiador já demonstra destacada habilidade para dar sentido à confusa conjuntura da época através de uma escrita límpida. A atenção que volta às articulações internas de poder, evidenciando o contínuo movimento de acomodação e ruptura das oligarquias, dá ao livro ímpeto de obra de referência, de onde pesquisadores do tema podem sempre voltar para se esclarecer sobre essa fundamental quadra do Brasil republicano. É, portanto, livro para se ter na estante.

Referências

NEGRO, Antonio Luigi; BRITO, Jonas. Mãe paralítica no teatro das oligarquias? O papel da Bahia na Primeira República para além do café-com-leite. Varia Historia [online]. 2013, v.29, n.51, p.863-887. [ Links ]

PANG, Eul-Soo. Coronelismo e Oligarquias, 1889-1943. A Bahia na Primeira República. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. [ Links ]

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias. Uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte: C/Arte, 2001. [ Links ]

Felipe Azevedo Souza – Departamento de História, Universidade Federal da Bahia, Estrada de São Lázaro, 197, Federação, Salvador, BA, 40.210-730, Brasil. felipeazv.souza@gmail.com.

El pensamiento conservador y derechista en América Latina, España y Portugal, Siglos XIX y XX – KOLAR (VH)

KOLAR, Fabio; MÜCKE, Ulrich. El pensamiento conservador y derechista en América Latina, España y Portugal, Siglos XIX y XX. Madrid: Iberoamericana-Vervuert, 2019. 362 p. LVOVICH, Daniel. Conservadores y derechistas en Iberoamérica en los últimos dos siglos. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 69, Set./ Dez. 2019. 

Los textos que componen El pensamiento conservador y derechista en América Latina, España y Portugal, Siglos XIX y XX, volumen compilado por Fabio Kolar y Ulrich Mücke son resultado de las ponencias presentadas originalmente en un simposio que se realizó en Hamburgo en 2016. Se trata de un libro ambicioso en sus alcances geográficos y temporales, ya que incluye textos sobre distintos, países latinoamericanos, España y Portugal, desde comienzos del siglo XIX hasta fines del siglo XX.

En la introducción del texto, a cargo de Kolar y Mücke, se destacan las dificultades que supuso para el estudio de esta tradición el uso poco preciso y en ocasiones arbitrario de conceptos como derecha y conservador. Los compiladores asimismo señalan la necesidad de articular, en el plano temporal, los elementos heredados de las tradiciones políticas conservadoras con las novedades propias del siglo XX; y en el plano de las escalas la combinación entre las historias políticas e intelectuales nacionales con los elementos propios de una historia regional o global, para dar cuenta de la especificidad de cada caso en el marco de sus conexiones transnacionales (KOLAR; MÜCKE, 2019, p.7-36).

Los temas que los compiladores eligen presentar como ejes para el análisis de la tradición derechista y conservadora en sus continuidades y rupturas son los de la soberanía y la revolución, la Iglesia y la religión, las mujeres y el género, las masas y las élites, la circulación de lecturas y el problema del anticomunismo, el fascismo y las dictaduras.

No todos los textos que integran la compilación responden del mismo modo a las aspiraciones de renovación historiográfica expuestos en la introducción – como el empleo de las herramientas de la historia intelectual y la combinación de escalas de análisis – aunque todos ellos son sólidos y bien fundamentados. De hecho, es perceptible una distancia entre la tradición cultural en que se insertan y la biblioteca en que se respaldan los compiladores y las de los autores, de modo que su articulación no resulta siempre sencilla.

Varios trabajos abordan el temprano siglo XIX. Lucia Pereira das Neves estudia los lenguajes políticos de conservadores y lliberales en la época de la independencia del Imperio de Brasil, mostrando los modos en que más allá de la implantación de algunos principios liberales, la vida pública no se extendió más allá de la elite. Víctor Peralta Ruiz analiza el pensamiento político del realismo antiliberal en Perú en los años de las guerras de independencia, al que considera un movimiento reactivo y reacio al liberalismo español, estudiando para ello tres momentos relevantes de esa tradición conservadora.

En una mirada de largo plazo sobre el siglo XIX, Marta García Ugarte destaca la centralidad política y la heterogeneidad del catolicismo mexicano, proponiendo como clave interpretativa que la modernidad resulto connatural a la catolicidad. Por su parte, Benjamin de Losada estudia el pensamiento de Pedro Gual y Pujadas, franciscano español que expresó el pensamiento ultramontano en el Perú de la segunda mitad del siglo XIX. El análisis en el marco de una “cultura atlántica de la confrontación” permite al autor mostrar las peculiaridades del vínculo entre catolicismo y republicanismo en América del Sur. Tributario de la perspectiva de Quentin Skinner, el aporte de Erika Pani analiza las formulaciones conservadoras sobre el pueblo en el marco de la Guerra de Reforma mexicana, mostrando los modos en que el conflicto funcionó como un límite a la hora de desarrollar iniciativas que consideraran de un modo efectivo la soberanía popular.

Eduardo González Calleja expone en su trabajo la larga y heterogénea tradición conservadora española de defensa armada de un orden social al que se consideraba amenazado, desde la década de 1840 hasta la conformación del Somatén Nacional, entendido como un eslabón intermedio entre las formas tradicionales de movilización reactiva y las modalidades de radicalización de las derechas.

Ricardo Arias Trujillo discute las visiones tradicionales sobre el conservatismo colombiano entre 1880 y 1930 proponiendo una visión de esta tradición que – más allá de su relación intrínseca con el catolicismo – resultó sumamente heterogénea, de manera que su consideración como una fuerza reaccionaria ha impedido dar cuenta de la existencia en su seno de sectores que defendieron la democracia y el laicismo.

Entrando de lleno en la historia del siglo XX, dos trabajos examinan en particular la problemática de la historia de las mujeres. Para el caso portugués bajo el salazarismo, Irene Flusner Pimentel da cuenta de la situación de subordinación femenina en el Estado Novo, lo que no impidió la movilización política de las mujeres ni la tardía formación de una elite femenina en el seno del régimen. Por su parte, Margaret Power, a través del análisis del caso de la movilización de las mujeres anticomunistas contra Goulart en Brasil y contra Allende en Chile muestra – apelando al análisis transnacional y comparado – la coexistencia en su discursividad de tópicos en común, propios del anticomunismo global de la época de la guerra fría, conviviendo con otros enraizados nacionalmente, como la importancia diferencial de la apelación al catolicismo en cada caso.

Un enfoque igualmente trasnacional y comparado se encuentra en el trabajo de Ernesto Bohoslavsky, Magdalena Broquetas y Gabriela Gomes dedicado al estudio de organizaciones juveniles conservadoras en Argentina, Chile y Uruguay entre 1958 y 1973. Atentos al impacto común del discurso anticomunista trasnacional, y a las redes que lo sostenían, cuanto a los rasgos que particularizan cada experiencia nacional, el articulo sostiene que las diferencias ideológicas entre estos grupos y los propios de la derecha revolucionaria no ocluye la existencia de un repertorio de acciones violentas y de un enemigo definido de manera similar que los emparenta.

El aporte de João Fabio Bertonha se ubica en un estilo de reflexión conceptual. Partiendo de la constatación de que existieron múltiples conexiones entre las derechas latinoamericanas de entreguerras y los fascismos, el autor sostiene que existió un fascismo latinoamericano con rasgos diferenciales respecto a sus coetáneos europeos, y propone – sin llegar a una conclusión definitiva – discutir y evaluar la utilidad del concepto de fascismo ibérico. Por último, Riccardo Marchi estudia el tránsito de una elite universitaria identificada con el nacionalismo revolucionario en los años finales del Estado Novo portugués hacia el liberal-conservadurismo, en un proceso que es explicado por el anacronismo de su lenguaje original ante el fin del imperio colonial, y por la incorporación del lenguaje político predominante en Europa y Norteamérica en los años setenta y ochenta como parte de homogenización política e ideológica del período.

Más allá de la marcada heterogeneidad de las contribuciones que constituyen esta obra, Conservadores y derechistas es una valorable contribución a un campo en expansión, y un libro que instiga a los historiadores de América Latina y Europa a profundizar el diálogo, así como un instrumento que nos ayude a pensar en la génesis del fenómeno de las derechas y su radicalización en nuestros días y a pensar claves analíticas para su comprensión.

Referências

Kolar, Fabio y Mücke, Ulrich (eds.). El pensamiento conservador y derechista en América Latina, España y Portugal, Siglos XIX y XX. Madrid: Iberoamericana-Vervuert, 2019. [ Links ]

Daniel Lvovich – Instituto del Desarrollo Humano Universidad Nacional de General Sarmiento – CONICET Juan María Gutiérrez, 1150, Los Polvorines, Buenos Aires, Argentina. daniel.lvovich@gmail.com.

O regresso dos mortos. Os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (séculos XVI-XVII) – SÁ (VH)

SÁ, Isabel dos Guimarães. O regresso dos mortos. Os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (séculos XVI-XVII). Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais – ICS, 2018. 331 p. DILLMANN, Mauro. A Misericórdia do Porto e seus doadores dos espaços dos mundos transoceânicos Ibéricos. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 69, Set./ Dez. 2019.

(Re)conhecida na/pela historiografia brasileira, a historiadora portuguesa Isabel dos Guimarães Sá, professora no departamento de História da Universidade do Minho (Portugal), desenvolve pesquisas sobre misericórdias portuguesas ao menos desde a década de 1990,fn1 sendo uma das grandes expoentes na temática.fn2 O livro “O Regresso dos Mortos: os doadores da Misericórdia do Porto e a expansão oceânica (séculos XVI-XVIII)”, publicado em 2018 pela Imprensa de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, é uma continuidade das suas investigações, decorrente da compilação de textos e resultados da pesquisa da autora desenvolvida na última década junto ao Arquivo histórico da Santa Casa de Misericórdia do Porto. De primorosa abordagem teórico-metodológica à inegável fluidez narrativa, a obra certamente conforma sofisticação e sutileza tanto aos leitores que compartilham e prezam pelas regras do ofício (de historiador) quanto àqueles que buscam conhecimento do passado.

O livro apresenta 10 capítulos divididos em dois eixos: o primeiro fornece um quadro contextual do papel das Misericórdias no agenciamento das heranças deixadas em testamento, especialmente aquelas relativas à instituição da mercantil cidade do Porto, bem como a identificação coletiva dos seus doadores nos territórios ultramarinos; o segundo, inicia com um breve capítulo intitulado “A reconstituição de trajetórias de doadores: fontes e métodos”, que introduz e problematiza os demais, dedicados à análise das particularidades da vida, das posses, das relações familiares e das doações de sujeitos que viviam nos séculos XVI e XVII nas duas grandes áreas da expansão ibérica, o Estado da Índia e a América portuguesa. Foi por meio desses territórios que emergiram, segundo a autora, as fortunas mais significativas legadas à Misericórdia do Porto, que provinham de homens, mulheres e membros do clero (p.66). Ao final de cada subcapítulo em que analisa indivíduos e famílias, Guimarães Sá organizou uma cronologia das dinâmicas testamentárias no que tange às doações e, ao final do livro – vale mencionar – trouxe interessante “índice remissivo” (p.309-331).

Ao reunir diferentes casos de doadores – dezesseis ao todo, embora se desdobre em muitos outros ao considerar ascendentes e descendentes dos quadros genealógicos – Guimarães Sá tenciona identificar repetições que constituam “padrões de comportamento” relativamente homogêneos, buscando também compreender esses sujeitos “enquanto pessoas” e seus motivos para a realização de doações à Misericórdia do Porto, entre eles, o de cuidar da salvação eterna da própria alma. Pode-se identificar uma proximidade com os trabalhos de história social desenvolvidos por pesquisadores que se valem de metodologias prosopográficas,fn3 embora a autora não faça qualquer menção ao método.fn4

A obra propõe uma abordagem micro-histórica para tratar das singularidades dos sujeitos, da vida mercantil ultramarina, das religiosidades, dos valores, dos consumos e das relações familiares. São tecidas considerações sobre a interpretação dos bens/materialidades e suas conversões em dinheiro para pagamento dos benefícios espirituais. Na dinâmica que vinculava o doador e a instituição receptora dos recursos, em período da história moderna marcado pelo entusiasmo português na expansão oceânica, as relações familiares tornar-se-iam fragmentadas e a vida material dos portuenses aberta a novos produtos e mercadorias.

A escolha dos indivíduos que mereceram atenção investigativa partiu de dois critérios: geográfico, com foco em doadores que transitavam pelo império português na Ásia e na América; e documental, privilegiando aqueles que deixaram registros (p.19). Esses doadores eram indivíduos que pertenciam à elite mercantil e possuíam experiências no trato marítimo e na circulação de pessoas e bens. Constituíam redes sociais e comerciais que legitimavam seus movimentos, seus laços de família e suas “últimas vontades” (p.197). É a atenção dispensada às figuras dos doadores e às doações, individuais e coletivamente, que, segundo a autora, justifica a pesquisa frente à produção historiográfica relativa às Misericórdias.fn5 Além disso, as reflexões propostas por Guimarães Sá (p.16), ao perceber as influências dos territórios da expansão sobre os doadores e sobre as próprias doações se inserem nos debates sobre “mundos conectados”, tal como proposto pelo historiador Serge Gruzinski (2014).

Importante destacar o conjunto de fontes privilegiadas para análise, constituído por testamentos e inventários de bens, mas também genealogias, registros paroquiais, escrituras notariais, entre outros. Há um exemplar cuidado em explicitar as possibilidades e limites dos testamentos (p.93-95) e com a esmerada análise dessas fontes (ponto forte da obra), Guimarães Sá estabelece interpretações sobre vínculos familiares, relações de valores morais e monetários e contatos culturais entre a Ibéria e a Ásia. A experiência com os testamentos permite à autora captar “impressões” (p.181) e realizar inferências pertinentes sobre vida privada (p.193), reconstituindo os laços familiares e a dimensão subjetiva de cada indivíduo. Quando a análise assume feições generalizantes, a autora justifica como sendo “pincelada larga”, a exemplo da caracterização dos doadores. Ao traçar um perfil destes – domínio da escrita, vida de caráter urbano, “elites” da cidade -, merecem destaques o manejo das fontes e a apresentação das dificuldades no fazer historiográfico, como a necessidade de presumir que muitos doadores fossem solteiros a partir da ausência de referência à cônjuges na documentação.

Em relação à metodologia, é elogiosa a preocupação demonstrada em frisar o que o livro não é ou não pretende ser: não é um estudo de longa duração, não é história econômica; não tem como objeto os irmãos, apenas os doadores (p.49); não é um estudo de quaisquer casos de doações, apenas daquelas com escritura notarial (p.50) e ligados aos territórios da expansão ibérica, que correspondiam a 20% do total de doadores (p.67, 75); não faz análise da logística e das transferências de heranças através dos oceanos (p.96).

A autora aponta para o que considera como “uma das constatações mais importantes” do livro: a forma como se processava a circulação de gêneros e bens e sua transformação. Mercadorias, dinheiro, terras, roupas, móveis poderiam se converter em “papéis de crédito” para a Misericórdia (sua riqueza preferida) e esta poderia, através de rituais, converter os bens materiais em espirituais (p.90). A Misericórdia do Porto estava longe de se limitar a cuidar apenas dos sufrágios e dos pobres, desejando lucrar com as rendas proporcionadas pelas heranças recebidas. As doações pressupunham uma dinâmica de troca entre o sujeito que doava e a instituição: aqueles que deixavam seus legados esperavam, em troca, “missas anuais”, “para sempre”, “todos os anos” ou “enquanto o mundo durar”, o que poderia gerar situações de heranças recusadas, quando os serviços requisitados fossem desproporcionais com os rendimentos atribuídos (p.80). Ao cumprir o “acordo”, ao tratar da eternidade das almas, a Misericórdia promovia o “regresso dos mortos” (referência ao título do livro), um regresso póstumo e simbólico destes doadores, que viviam em outros territórios e teriam sua memória garantida entre os vivos na sua terra natal.

Por fim, vale dizer que a obra poderá interessar a quem se volta ao período moderno português, à história das religiões, à história das instituições e à história das elites no Antigo Regime. De narrativa encadeada, ao reunir textos inéditos e reformulações/revisões de outras publicações realizadas pela própria autora a partir do ano de 2011, acaba por portar algumas recorrências explicativas, embora haja cuidadosa coesão de ideias e mereça, com certeza, forte recomendação de leitura.

1Informação acionada em Academia.edu. Disponível em https://uminho.academia.edu/IsabelDosguimaraessa. Acessado em 21 jun. 2019. Destaco, entre tantas, as seguintes publicações: SÁ, Isabel Guimarães. Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no império português, 1500-1800. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997; em parceria com a historiadora Maria Antónia Lopes, publicou História Breve das Misericórdias Portuguesas, 1498-2000. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018. No Brasil, publicou As misericórdias portuguesas, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: FGV, 2013 (Coleção FGV de bolso). Nesse sentido, indico alguns trabalhos publicados no Brasil nos últimos anos, que fazem parte das reflexões que constam na obra resenhada: Entre consumos suntuários e comuns: a posse de objetos exóticos entre alguns habitantes do Porto (séculos XVI-XVIII), Anais do Museu Paulista, v. 25, n. 1, p.35-57, abr. 2017; As misericórdias e as transferências de bens: o caso dos Monteiros, entre o Porto e a Ásia (1580-1640), Tempo, v. 22, n. 39, p.88-109, abr. 2016; Conectando vivos e mortos nos territórios da expansão ibérica: religião e ritual entre os doares da Misericórdia do Porto (1500-1700). In: HERMANN, Jacqueline; MARTINS, William de Souza (Orgs.). Poderes do Sagrado: Europa católica, América Ibérica, África e Oriente portugueses (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Multifoco, 2016, p.111-138. Outros textos, inclusive com diferentes temáticas, tem atualmente mobilizado as pesquisas de Guimarães Sá: Rainhas e cultura escrita em Portugal (séculos XV-XVI). In: GANDELMAN, Luciana; GONÇALVES, Margareth de Almeida; FARIA, Patrícia Souza de (Orgs.). Religião e linguagem nos mundos ibéricos: identidades, vínculos sociais e instituições. Seropédica: UFRRJ, 2015, p.169-180; Os rapazes do Congo: discursos em torno de uma experiência colonial (1480-1580). In: ALGRANTI, Leila; MEGIANI, Ana Paula Torres (Orgs.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada no mundo ibérico, séculos XVI-XIX. São Paulo: Alameda, 2009, p.313-332.

2Em Portugal, estudos sobre os papéis, funções e atuações das Santas Casas de Misericórdias são profícuos e continuam a florescer. Ao lado da própria Isabel dos Guimarães Sá, merecem menção as pesquisas de ARAÚJO, 2018ABREU, 2017 e LOPES, 2010.

3Sobre os significados das pesquisas com essa metodologia, VARGAS, Jonas Moreira. “Rastreando Indivíduos e Redes de Relações”: algumas contribuições teóricas e metodológicas para o estudo das elites e grupos dirigentes no Brasil. In: SOARES, Fabrício Antônio; SILVA, Ricardo Oliveira da (Orgs.). Diálogos: estudos sobre teoria da história e historiografia. Vol. II. Criciúma: Unesc, 2017, p.133-165; BULST, Neitard. Sobre o objeto e o método da prosopografia, Politeia, V. 5, n. 1, p.47-67, 2005.

4Embora a autora não faça referência direta ao trabalho de Peter Burke (1991) sobre as mudanças e semelhanças no estilo de vida, atitudes e valores das elites de Veneza e Amsterdã no século XVII, existem dialogias entre as abordagens de ambos.

5Para a misericórdia do Porto, a autora dialoga com dois historiadores “da instituição”: Artur Magalhães Basto e Eugénio de Andrea da Cunha Freitas, além de uma vasta historiografia, especialmente portuguesa e brasileira.

Referências

ABREU, Laurinda. Misericórdias, Estado Moderno e Império. In: PAIVA, José Pedro (coord.). Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Vol. 20. Lisboa: União das Misericórdias Portuguesas, 2017, p.245-277. [ Links ]

ARAÚJO, Maria Marta Lobo de (org.). As sete obras de Misericórdia corporais nas Santas Casas de Misericórdia (séculos XVI-XVIII). Braga: Santa Casa de Misericórdia de Braga, 2018. [ Links ]

BULST, Neitard. Sobre o objeto e o método da prosopografia. Politeia, V. 5, n. 1, p.47-67, 2005. [ Links ]

BURKE, Peter. Veneza e Amsterdã: um estudo das elites do século XVII. São Paulo: Brasiliense, 1991. [ Links ]

GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo: história de uma mundialização. Trad. Cleonice Mourão e Consuelo Santiago. Belo Horizonte/São Paulo: UFMG; Edusp, 2014. [ Links ]

LOPES, Maria Antónia. Protecção Social em Portugal na Idade Moderna. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010. [ Links ]

VARGAS, Jonas Moreira. “Rastreando Indivíduos e Redes de Relações”: algumas contribuições teóricas e metodológicas para o estudo das elites e grupos dirigentes no Brasil. In: SOARES, Fabrício Antônio; SILVA, Ricardo Oliveira da (Orgs.). Diálogos: estudos sobre teoria da história e historiografia. Vol. II. Criciúma: Unesc, 2017, p.133-165. [ Links ]

Mauro Dillmann – Departamento de História Universidade Federal de Pelotas Rua Alberto Rosa, 154, Pelotas, RS, 96.010-610, Brasil maurodillmann@hotmail.com.

Speaking of Spain: the Evolution of Race and Nation in the Hispanic World – FEROS (VH)

FEROS, Antonio. Speaking of Spain: the Evolution of Race and Nation in the Hispanic World. Cambridge: Harvard University press, 2017. 367 p. BILBAO, Julian Abascal Sguizzardi. Raça, nação e pátria: A espanholidade em movimento. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 69, Set./ Dez. 2019.

 

O livro Speaking of Spain de Antonio Feros se insere em um contexto historiográfico no qual o pretenso vínculo entre o estabelecimento de um Estado-nação e a união dinástica das Coroas de Castela e Aragão (1479) já fora pertinentemente criticado por autores como Vicens Vives (1960)John Elliott (20102018) e Bartolomé Clavero (1981). Após o impacto dessa crítica, as relações entre nação, pátria – e também raça – passaram a ser entendidas como não-evidentes e tornaram-se matéria de amplo debate.

O principal objetivo do livro é discutir os deslocamentos semânticos e controvérsias em torno dos conceitos de raça, nação e pátria entre o século XVI e princípio do XIX no contexto imperial hispânico. No que diz respeito às fontes, o autor recolhe narrativas variadas (crônicas, discursos, tratados e legislação) que desenvolveram à sua maneira os supracitados conceitos dentro do recorte estipulado, privilegiando os discursos próprios dos “espanhóis” (Feros, 2017, p.11).

A despeito das dificuldades impostas pela amplitude do arco espaço-temporal, a problemática é clara e o autor realiza um trabalho historiográfico pertinente. A leitura é fluída, sendo relevante tanto para especialistas, quanto para um público mais amplo. Inclusive, poderia ser adotado como ponto de partida para a aproximação da história do Império Hispânico pelo público brasileiro. O livro é de interesse para aqueles que estudam História Ibérica, mas também, para os que se dedicam a assuntos relacionados à América Colonial e à independência da América, pois demonstra como a estrutura das sociedades coloniais ensejaram questões acerca da significação da espanholidade (Spanishness).

Como o texto cobre um amplo recorte, a bibliografia utilizada é igualmente vasta. Em um primeiro momento, poderíamos destacar o diálogo com Tamar Herzog (2003)Pablo Fernández Albaladejo (2007) e Mateo Ballester Rodríguez (2010), autores que trabalham as complexas relações entre escalas identitárias no contexto hispânico. É interessante o destaque de Feros para as relações de tensão entre a Catalunha e a Monarquia, apontando para comparações com os conflitos no seio da monarquia britânica moderna. No ano seguinte a Speaking of Spain, Elliott publicou Scots and Catalans (2018), que discutiu muitas das questões levantadas pelo livro em questão.

Nos quatro primeiros capítulos, Feros aborda a relação entre nação, raça e pátria nos séculos XVI & XVII. O contexto inicial é o da Espanha de Isabel e Fernando – marcada pela conquista de Granada, pela expulsão dos Judeus e pelo início da exploração colonial – havendo um impulso para a criação político-discursiva de uma comunidade monárquica exclusivamente católica. Nesse quadro, eruditos formularam ideias acerca da história e da concepção de Espanha e espanholidade. O sentimento de lealdade ao local de nascimento, ou seja, à pátria (Catalunha, Biscaia, Andaluzia, etc) e a pluralidade jurídica das diversas partes da Monarquia desestabilizavam a ideia de nação como um conjunto unitário de língua, leis e povo (Feros, 2017, p.48). Apesar disso, havia um esforço para pensar o que existia de comum aos espanhóis: constituiu-se a ideia de que estavam ligados pela descendência cristã antiga, cujo patriarca era um dos netos de Noé, Tubal (considerando a narrativa bíblica de que toda humanidade proviria de sua linhagem após o dilúvio). Em uma sociedade em que havia sujeitos recentemente convertidos ao catolicismo, cuja ascendência era judaica e muçulmana, a construção de uma identidade baseada na antiguidade cristã era um fator de exclusão das chamadas linhagens conversas (que não poderiam assumir determinados cargos administrativos e religiosos), portanto criava-se a ideia de uma “pureza de sangue” dos cristãos velhos.

Outro problema em voga nos séculos XVI e XVII está evidenciado no seguinte trecho: “Eram os descendentes de espanhóis, estabelecidos em regiões não-europeias, especialmente nas Américas, espanhóis genuínos?” (Feros, 2017, p.65). O debate, originado desta indagação, girava em torno de alguns eixos centrais: qual o impacto do clima no caráter dos espanhóis nascidos na América [criollos]? Quais eram os efeitos da mistura “sanguínea” entre os descendentes de europeus, os nativos e os africanos na colônia? Nesse sentido, Feros excede a discussão da limpieza de sangre no contexto peninsular, traçando pontes com os territórios do ultramar, enfatizando como a realidade colonial também compôs esse campo problemático.

Os quatro últimos capítulos discutem as relações entre nação, raça e pátria ao longo do século XVIII e início do XIX. Nesse momento, a sociedade hispânica sofreu transformações causadas pela guerra de sucessão do início do século XVIII, levando ao trono a casa Bourbon. Os monarcas dessa dinastia possuíam um projeto de enfraquecimento das instituições regionais, especialmente no que diz respeito às regiões historicamente pertencentes à Coroa de Aragão. Nesse quadro, intelectuais reforçam que a lealdade deveria ser endereçada à pátria comum (Espanha) e não às pátrias locais. Isso indica um movimento tendencial ao longo do século XVIII de coincidência entre o conceito de pátria e nação, uma novidade no campo semântico.

Na Europa, surgiam novas teorias de hierarquização racial, e os espanhóis passavam a ser diretamente questionados sobre a histórica presença de judeus e muçulmanos em seu território, colocando em xeque seu pertencimento à raça “branca”. A visão de decadência do Império Hispânico era muito difundida, por isso os peninsulares formularam discursos de diferenciação entre eles e os criollos, sobre os quais pairava a suspeita de misturas consideradas espúrias com indígenas e africanos escravizados. As bases discursivas da limpieza de sangre, constituída por meio da elisão de hibridações étnicas, são ressignificadas no contexto do “racismo científico” para reforçar hierarquias. Alguns peninsulares apostaram no “melhoramento” das populações nativas e africanas pelo branqueamento, discurso rechaçado, via de regra, pelos criollos, os quais visavam afirmar sua posição social através de uma aparência europeizada – esses debates implicaram fissuras na noção de espanholidade.

O livro fecha com a emergência da Constituição liberal de Cádiz (1812) no contexto pós napoleônico. Nesse momento, houve um direcionamento para a construção de um Estado-nação espanhol que substituiria o sistema imperial de outrora: “A força de ligação entre os habitantes da Monarquia Hispânica deixaria de ser a partilha de uma mesma linhagem ou da mesma raça, e passaria a ser uma paixão compartilhada por sua nação e pátria” (Feros, 2017, p.252). Nesse sentido, houve um esforço para a inclusão dos territórios americanos, entretanto, durante as sessões das cortes, os criollos se sentiram marginalizados pelos peninsulares. Cabe notar a tentativa de integração dos indígenas como cidadãos, o que, segundo o autor, foi feito com o intuito de marcar o sucesso de sua assimilação pelo processo de colonização. Já os descendentes de africanos livres, foram considerados espanhóis, mas não cidadãos de pleno direito (conforme o artigo 22 de Cádiz).

Speaking of Spain é uma leitura altamente recomendada, levando em conta as bem-sucedidas articulações entre a realidade peninsular e colonial. O autor cumpre com seu objetivo de estudar os deslocamentos dos conceitos de nação, raça e pátria entre os séculos XVI e XIX, demostrando sua relação intrínseca com as mudanças político-sociais no Império Hispânico ao longo do tempo.

1No original: “Were the descendants of Spaniards who settled in non-European regions, and specially Americas, genuine Spaniards?”

2No original: “The binding force for inhabitants of the Spanish monarchy would no longer be membership in the same linage or the same race but a shared passion for one’s nation and patria.”

Referências

BALLESTER RODRÍGUEZ, Mateo. La identidad española en la edad moderna (1556-1665): discursos, símbolos y mitos. Madrid: Tecnos, 2010. [ Links ]

CLAVERO, Bartolomé. Institución Política y Derecho: acerca del Concepto Historiográfico de ‘Estado Moderno’. Revista de Estudios Políticos (Nueva Era), n. 19, Enero-Febrero, 1981. [ Links ]

ELIOTT, John. Una Europa de Monarquías Compuestas. In: ELLIOTT, John. España, Europa y El mundo de ultramar [1500-1800]. Madrid: Taurus, 2010. [ Links ]

ELIOTT, John. Scots and Catalans: Union and Disunion. New Haven: Yale University Press, 2018. [ Links ]

FERNÁNDEZ ALBALADEJO, Pablo. Materia de España: cultura política e identidad en la España moderna. Madrid: Marcial Pons, 2007. [ Links ]

FEROS, Antonio. Speaking of Spain: the Evolution of Race and Nation in the Hispanic World. Cambridge: Harvard University Press, 2017. [ Links ]

HERZOG, Tamar. Defining Nations: Immigrants and Citizens in Early Modern Spain and Spanish America. New Haven: Yale University Press, 2003. [ Links ]

VICENS VIVES, Jaume. A estrutura administrativa e estadual nos séculos XVI e XVII (Extraído de XIe Congrès des Sciences Historiques, 1960. Rapports IV: Histoire Moderne, Stockhom, Almqvisq & Wiskell, 1960, p.1-24). In: HESPANHA, Antonio Manuel (Org.). Poder e instituições na Europa do antigo regime: coletânea de textos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1960], 1984. [ Links ]

Julian Abascal Sguizzardi Bilbao – Programa de Pós-Graduação em História Universidade de São Paulo Av. Prof. Lineu Prestes, 338, Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05.508-900, Brasil. julianbilbao25@gmail.com.

Detrás de la cortina. El sexo en España (1790-1950) – GUEREÑA (VH)

GUEREÑA, Jean-Louis. Detrás de la cortina. El sexo en España (1790-1950). Madrid: Cátedra, 2018. 630 p. MIRANDA, Marisa. Mirar/tocar/sentir (detrás de la cortina): Una cuestión de historia global de la sexualidade. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 68, Mai./ Ago. 2019. 

Mirar/tocar/sentir (detrás de la cortina): Una cuestión de historia global de la sexualidad

Quienes estamos interesados en la(s) historia(s) de la sexualidad(es) nos hemos visto complacidos con la publicación, en 2018, de Detrás de la cortina. El sexo en España (1790-1950). El voluminoso libro, que cuenta con más de 600 páginas constituye, en realidad, una edición española, revisada y actualizada, del texto – también de autoría del catedrático francés, Jean-Louis Guereña – publicado bajo el título Les Espagnols et le sexe, XIXe-XXe siècles (2013). No obstante, en Detrás de la cortina encontramos, además de la cuidadísima traducción del francés de la versión original (realizada por Marisa Guereña Mercier), la incorporación de nuevas fuentes historiográficas que vieron la luz en el lapso 2013-2018 y el abordaje de algunas cuestiones entonces ausentes.

Adentrándonos sobre la temática de esta excelente producción debemos señalar que las indagaciones sobre la historia de la sexualidad constituyen un campo del saber si bien presidido por la mirada foucaultiana, son aquí aggiornadas y ampliadas. Y siendo el poder (en cualquiera de sus formas, y en todas ellas) quien se arroga la definición compulsiva de las categorías que definen y, a la vez, distancian la sexualidad “normal” de la “patológica”; la “legítima” de la “ilegítima”; la “permitida” de la “prohibida”, la disponibilidad de las fuentes constituye un desafío de difícil logro. Así, la obra comentada denota un profuso y minucioso trabajo recopilatorio; advirtiéndose, en todo el recorrido del libro, una presentación lógica coherente con lo prometido en el índice.

A su vez, sagazmente, nos avisa el autor que una historia “social” de la sexualidad debe ser concebida, al mismo tiempo, como una historia “cultural” de la sexualidad (Guereña, 2018, p.40); afirmación digna de elogio y que, a la vez, permite abrir el debate e integrar múltiples problemáticas, posibilitando el acercamiento al actualísimo abordaje de la sexualidad desde una perspectiva de género.

Ahora bien, en los diez capítulos que componen el libro, nos encontramos en su primera parte con una profundización de “El descubrimiento del sexo”, donde Guereña se aboca a la divulgación de la sexualidad “por escrito”. Y, en este marco, se introduce en las tensiones habidas en España en torno al condón, en su doble función de preservativo antivenéreo y de método anticonceptivo.

La segunda parte, titulada “La prostitución, ¿un mal necesario?”, se ocupa del conflictivo tema del reglamentarismo en la prostitución. La purulencia del enfrentamiento entre reglamentarismo y abolicionismo ha sido leída para España a partir de señalar el espacio de sociabilidad y ocio que involucraba al burdel. Desde esa perspectiva, se ocupa de la recepción del abolicionismo, en particular a partir de las ideas de Josephine Butler. Una recepción tortuosa puesto que, siguiendo a la malograda intelectual española Hildegart Rodríguez (también trabajada en Detrás…), el abolicionismo era censurado en su país por creerse que “se lanzarían a la calle irremediablemente centenares de prostitutas” (Hildegart, 1933, p.48).

La tercera parte del libro permite apreciar una particular síntesis entre la expertisse historiográfica del autor y su incansable búsqueda de fuentes inéditas. En efecto, si bien es imponente la valía de todos los recursos aquí utilizados, sean editos o inéditos, cabe señalar las enormes dificultades para hallarlas, atento a que, muchas de ellas fueron, o bien publicaciones prohibidas por la censura inquisitorial (capítulo 6) o bien producciones eróticas clandestinas (capítulo 7). Se ahonda, además, sobre cierta “democratización” del acceso al erotismo y la pornografía, en la España de los años veinte y treinta del siglo XX. Esta parte concluye con interesantísimas exhumaciones vinculadas al erotismo gráfico y sus mercados de imágenes, sin perder de vista la tradicional consideración de la erótica del cuerpo femenino como objeto estético.

El epílogo, que, en realidad, bien podría ser considerado un capítulo más, visibiliza al sexo en cuanto objeto de debate, valiéndose para esto de desgranar una polémica habida en 1933 entre el húngaro Oliver Brachfeld y el español Gregorio Marañón respecto a las teorías sexuales de este último, en especial respecto a los estados intersexuales. Así, Guereña, analiza el volumen publicado durante ese año titulado por Brachfeld, Polémica contra Marañón, y que tuviera como objetivo destruir el “mito” Marañón (Guereña, 2018), aunque yendo más allá de ello.

La conclusión general se concentra en tres aspectos (“Pensar la sexualidad en la historia”; “¿Culturas sexuales específicas?” y “Fuentes y archivos”). En ella queda resumida una idea sobre la cual no cabe sino aplaudir: la concepción de una historia de las sexualidades integrada en un “conjunto de contextos ideológicos, políticos, sociales y culturales en donde se sitúa y cobra todo su significado” (Guereña, 2018, p.577); aun cuando nuestro hispanista tiene bien en claro las dificultades que se deben afrontar para lograrlo.

Un frondoso y atinado aparato erudito que refuerza las afirmaciones del autor denota, una vez más, la rigurosidad metodológica a la que nos tiene acostumbrados Guereña. El ítem denominado “Orientaciones bibliográficas”, incluye menciones de suma utilidad tanto para investigadores expertos en la temática como para nóveles lectores interesados en ella.

En definitiva, Detrás de la cortina. El sexo en España (1790-1950) constituye, pues, otro libro en extremo recomendable del prolífico historiador especializado en cuestiones vinculadas a la sexualidad en España, cuya producción bibliográfica es imponente. Por tan sólo mencionar una, es editor de La sexualidad en la España contemporánea (1808-1950) (Guereña, 2011), libro sobre el que también hemos tenido el placer de realizar una reseña (Miranda, 2014).

Para finalizar, debemos advertir que esta obra excede el marco de una investigación situada. En efecto, el carácter universal de la problemática y la perspectiva desde donde es abordada, invitan a reflexionar sobre un asunto medular en la materia: la gestión pública de las privadísimas cuestiones de alcoba. O, lo que es lo mismo, la intrusión del (bio) poder en la sexualidad.

Referências

GUEREÑA, Jean Louis (ed.). La sexualidad en la España contemporánea (1808-1950). Cádiz: Universidad de Cádiz, 2011. [ Links ]

GUEREÑA, Jean Louis. Les Espagnols et le sexe, XIXe-XXe siècles. Rennes: Universidad de Rennes, 2013. [ Links ]

HILDEGART. Venus ante el derecho. Madrid: Castro, 1933. [ Links ]

MIRANDA, Marisa. Hacia una historia global de la sexualidad en España. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 21, n. 1, p.349-352, 2014. [ Links ]

Marisa Miranda – Instituto de Cultura Jurídica Universidad Nacional de la Plata/ CONICET 48 Nº 582, 3º piso, La Plata, 1.900, Argentina mmiranda2804@gmail.com.

Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX) – RAGGI et. al. (VH)

RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta. Salvador da Bahia: Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. 285 p. DOMINGUES, Cândido. Uma baía de histórias: novos olhares sobre Salvador e suas conexões atlânticas. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 68, Mai./ Ago. 2019. 

A obra Salvador da Bahia: interações entre América e África (séculos XVI-XIX) fecha um ciclo de debates dos projetos de pesquisa intitulados Bahia 16-19 e Uma cidade, vários territórios e muitas culturas,1 financiados pela União Europeia e Capes/Brasil, respectivamente. No âmbito de cada um desses projetos de investigação, historiadores do Brasil, Portugal e França foram chamados a pensar o Império português a partir de uma perspectiva do Atlântico Sul, de modo a integrar África e América numa outra leitura da colonização lusitana. Salvador, capital do território colonial português na América por mais de 200 anos, foi escolhida como centro de interesse investigativo. Por cerca de dois anos a equipe apresentou seus resultados de pesquisa. Os projetos congregaram pesquisadores com investigações em estágios distintos de desenvolvimento, e no seu âmbito foram organizados workshops nas cidades de Salvador, Lisboa e Paris, favorecendo um debate mais ampliado e diverso, o que se reflete nos trabalhos publicados ao final do processo.

Composta por uma introdução e dez artigos, a coletânea é aberta com a observação dos editores sobre a predominância entre as contribuições que compõem o volume de “perspetivas que elegem, maioritariamente, como ponto de partida, geografias extraeuropeias” (Raggi; Figuerôa-Rego; Stumpf, 2017, p.7). Desse modo, a obra dá sequência à Coleção Atlântica, mais nova do gênero historiográfico publicada pela Editora da Universidade Federal da Bahia (EdUFBA), em parceria com o Centro de Humanidades da Universidade Nova de Lisboa (CHAM).2

Um ponto alto da obra é a multiplicidade de fontes que possibilita perceber diferentes relações entre a história da Cidade do Salvador (antiga Cidade da Bahia), as instituições portuguesas (Universidade de Coimbra ou a Junta da Administração do Tabaco, por exemplo) e sujeitos tão diversos quanto africanos escravizados ou libertos agentes do tráfico, clero, indígenas ou agentes da administração colonial. Em seu texto, Carlos Silva Jr. mostra a importância de fontes orais do atual Benin para entendermos as interações afro-europeias setecentistas. A ligação nominativa, de inspiração da microhistória italiana, mostra-se fundamental ao fazer historiográfico desde abordagens da vida socioeconômica de africanos no Atlântico até as análises das matrículas universitárias, da formação e atuação de bispos no Império. Por sua vez, o estudo de um regimento (ou seu projeto) ou de um tratado armorial mostrou-se de interesse para compreendermos diretrizes do Estado e mentalidades individuais. A estas fontes somam-se tantas outras mais tradicionais ao ofício, como testamento e inventário post-mortem, denúncias e processos inquisitoriais, registros notariais e de batismos, legislação colonial e imperial.

Os textos de Carlos da Silva Jr.3 e Luis Nicolau Pares destacam-se por aproximar os conceitos e métodos da História Social com ideias da História Econômica, de modo a pensar a história do tráfico atlântico de escravos conectado com demandas internacionais da economia e da política. A agência africana (a agency de inspiração Thompsoniana) é analisada a partir das possibilidades de africanos (abrindo caminhos para também pensarmos seus descendentes) agirem na engrenagem do capitalismo crescente e de modo integrado ao tráfico de escravos. Se no século XVIII a fundação de Porto Novo é, também, inspirada na busca de melhores preços e fuga de um mercado de alta concorrência (Silva Jr., 2017), no comércio ilegal oitocentista, africanos como Joaquim d’Almeida e Manoel Pinto são representativos de tantos outros que voltaram à África para organizar o comércio negreiro no litoral de modo a dinamizar o embarque e burlar a vigilância inglesa (Pares, 2017).

Ao analisar os “escravos-senhores”, Daniele Souza, também inspirada na História Social, considera o tráfico atlântico como promotor de fenômenos no escravismo brasileiro. Defende que a vigorosa oferta de escravos na Bahia e a possibilidade de fazer encomendas diretamente com marinheiros permitiu a escravos comprar um escravo a preço acessível. Assim como Pares, a autora assevera que a participação africana como “senhores” de escravos ou no comércio era uma exceção do sistema escravista, eram atores protagonistas de excepcionalidades. Como afirma Pares, “uma historiografia que privilegia os africanos enquanto sujeitos autônomos, com capacidade de ascensão social e ação política, não poderia negligenciar, apesar do incômodo moral que supõe” o estudo de situações dessa natureza (Pares, 2017, p.15).

Finalizando a primeira parte, João Figuerôa-Rego e Camila Amaral analisam ações do Estado para o comércio de duas mercadorias de extrema importância para o tráfico transatlântico de escravos: o tabaco e a aguardente (cachaça), respectivamente. Ambos nos chamam a atenção para o envolvimento de agentes do Governo do Império (magistrados e governadores, por exemplo) inseridos em grupos mercantis locais. Figuerôa-Rego mostra, ainda, tentativas da coroa para evitar tais aproximações dos administradores do tabaco na Bahia. A vasta rede político-mercantil das famílias César de Meneses e Lencastro está presente em ambos os textos, ainda que nas entrelinhas.4

A segunda parte da obra, Administração e agentes no espaço americano, tem como foco analisar dispositivos, projetos, instituições e formação clerical. É a parte da obra na qual Europa e América mais se aproximam. Aqui os autores analisam processos desenvolvidos na América, mas dependentes de aprovações ou julgamentos da metrópole. Ou ainda, a formação universitária europeia de agentes que atuariam no Brasil.

Com focos diferentes, Fabricio Lyrio e Maria Leônia C. de Resende discutem a administração dos indígenas envolvendo as igrejas secular e regular e o Estado colonial. Apesar de voltarem sua atenção para o século XVIII brasileiro, mostram que as origens dos problemas relacionados com os governos das comunidades autóctones arrastavam-se desde debates quinhentistas.

Resende destaca a importância de se analisar os discursos da ordenação indígena no mundo hispânico, de tradição mais longeva e inspiradora dos religiosos lusitanos. Lyrio realça a difusa legislação indigenista portuguesa, jamais unificada para o Estado do Brasil. A administração de questões como mão de obra, conflitos, catequese dos indígenas mudavam conforme a Capitania, afirma. Essa realidade levou ao provincial jesuíta (padre encarregado da administração da província), em 1745, a propor ao Rei um regimento que regulamentasse a colonização destes povos naquele Estado, que é, parcialmente, analisado pelo autor. Por sua vez, Leônia Resende mostra que apesar de aprovada a possibilidade canônica para ordenar sacerdotes indígenas, os entraves, muitas vezes pessoais, eram fortes. Aqueles que conseguiram foram ordenados apenas após a expulsão jesuíta e, ainda assim, sua atuação “se restringia à mera função de auxiliar na missionação e, por isso mesmo, não resultou propriamente na consolidação de uma carreira eclesiástica” (Resende, 2017, p.185). Ambos mostram, acima de tudo, a vulnerabilidade jurídica dos povos indígenas, muitas vezes sujeitos aos caprichos dos colonos, oriundos de todos os níveis sociais.

Um desafio da historiografia é perceber o quanto a norma aproxima-se da prática. Ediana Mendes investiga os currículos da Universidade de Coimbra e os registros de matrículas buscando entender a formação possível dos bispos que atuaram no Brasil e o quanto isso seria útil no governo diocesano. O Concílio de Trento é a ponte que aproxima este texto do artigo seguinte, de Jaime Gouveia. Ambos mostram que, a despeito da uma historiografia que contestou a aplicação das normas tridentinas no ultramar, a Coroa procurou cumpri-las tanto na formação dos bispos (Mendes, 2017, p.199) quanto na atuação de “estruturas de vigilância e disciplinamento” do clero (Gouveia, 2017, p.246). Este autor parte da premissa do luso-tropicalismo freyriano para mostrar que uma História Comparada do reino e das colônias indica uma “pandemia luxuriosa” clerical tanto em Portugal quanto no Brasil (Gouveia, 2017, p.245).

Distinto de todos os demais artigos, Miguel M. de Seixas discute “o impacto dos elementos ultramarinos na heráldica portuguesa dos séculos XVI e XVII” (Seixas, 2017, p.251). Se na Europa a Ciência Heráldica (ou Ciência do Brasão) viu-se distante das Universidades, no Brasil nota-se verdadeiro abismo. Encarada como “mera preciosidade de diletantes” e associada à nobreza, aqui e lá, essas características foram fundamentais para esse distanciamento ou, ainda, para considerá-la como uma ciência auxiliar da História (Seixas, 2011, p.27-28). O autor, no entanto, defende que o estudo dos tratados armoriais e das pedras d’armas mostram a consonância da política da coroa com suas conjunturas. Neste aspecto a primeira vez que o brasão da Cidade do Salvador aparece nos tratados portugueses reflete a importância da cidade na Restauração (1640), assim como ocorrera com Goa e Malaca no “século de ouro” da Ásia (Seixas, 2017, p.270).

Organizar uma coletânea é propor-se ao desafio da coesão. Ele pode ser alcançado de distintos modos e intensidades. Esta obra, portanto, não deixa de enfrentar seus percalços. Como ressaltei até aqui, seus textos estão afinados com uma pesquisa de relevo e um debate historiográfico atualizado, sem abandonar os clássicos. Isso por si só já seria um convite à leitura. Destacaria um aspecto a que a obra se propõe e atingiu muito bem seu objetivo: avançar no conhecimento da ação de indígenas e africanos na construção da sociedade colonial. Os artigos que tratam desses agentes históricos mostram que estes estavam bastante atentos ao que se passava na política, economia e religião, e buscaram inserir-se nas brechas que o poder dominante lhes “permitia”. Salvador e suas histórias por vezes não aparecem diretamente no texto, daí um conhecimento prévio de sua capitalidade, das instituições nela instaladas e sua jurisdição a todo o Estado do Brasil. Aos neófitos, recomenda-se atenção redobrada, um simples detalhe pode ligar Salvador aos mais vastos sertões assim como um brasão pode ligá-la diretamente ao rei.

Uma história lusoafroameríndia da Cidade da Bahia! A obra mostra uma Salvador integrada às preocupações e cultura da Era das Invasões Ultramarinas Europeias, mas não só. Amplia e reverbera a atuação dos milhares de povos da África construindo seu mundo, agindo no comércio em busca de sua liberdade. Mostra tantos outros povos ameríndios, em todo o Brasil a suscitar a Igreja Primaz da Bahia a buscar soluções para problema da colonização. E, por fim, realça a importância da Universidade para a construção de agentes políticos de qualquer sociedade.

1O livro que abre esta Coleção é: SOUZA, Evergton Sales; MARQUES, Guida; SILVA, Hugo R. (org.). Salvador da Bahia: retratos de uma cidade atlântica. Salvador/Lisboa: EDUFBA/CHAM, 2016. As seções ocorreram em Salvador (UFBA) e Lisboa (UNL/CHAM). Sobre o projeto BAHIA 16-19 «Salvador da Bahia: American, European, and African forging of a colonial capital city» (PIRSES-GA-2012-318988) ver http://www.cham.fcsh.unl.pt/ext/BAHIA/BAHIA_home.html, acesso em 19/10/2018.

2CHAM é uma unidade de investigação interuniversitária vinculada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e à Universidade dos Açores, financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

3Para uma versão ampliada desse artigo cf. SILVA Jr., 2017a, p. 1-41.

4Para uma boa análise desta rede político-mercantil ver GOUVÊA; FRAZÃO; SANTOS, 2004, p. 96-137.

Referências

GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes de poder e conhecimento na governação do Império Português,1688-1735. Topoi, vol. 5, n. 8, p. 96-137, 2004. [ Links ]

GOUVEIA, Jaime Ricardo. “Bahia de Todos os Santos e de quase todos os pecados”: O luso-tropicalismo e a história comparativa no espaço luso-americano (1640-1750), In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.223-250. [ Links ]

MENDES, Ediana Ferreira. A formação acadêmica dos prelados da América Portuguesa (séc. XVII e XVIII, Bahia, Olinda e Rio de Janeiro). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.195-222. [ Links ]

PARÉS, Luis Nicolau. Entre Bahia e a Costa da Mina, libertos africanos no tráfico ilegal. In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.13-50. [ Links ]

RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Curas de almas nativas: o clero indígena na América Portuguesa (século XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.161-194. [ Links ]

SEIXAS, Miguel Metelo de. Heráldica, representação do poder e memória da nação: o armorial autárquico de Inácio de Vilhena Barbosa. Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2011. [ Links ]

SEIXAS, Miguel Metelo de. A representação do ultramar nos armoriais portugueses (séculos XVI-XVIII). In: RAGGI, Giuseppina; FIGUEIRÔA-REGO, João; STUMPF, Roberta (Org.). Salvador da Bahia Interações entre América e África (séculos XVI-XIX). Salvador/Lisboa: EdUFBA/CHAM, 2017. p.251-284. [ Links ]

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SILVA Jr., Carlos da. Interações atlânticas entre Salvador e Porto Novo (Costa da Mina) no século XVIII. Revista de História, n. 176, p. 1-41, 2017a. [ Links ]

Cândido Domingues – Centro de Humanidades Universidade Nova de Lisboa Avenida de Berna, 26-C, 1069-061, Lisboa, Portugal candido_eugenio@yahoo.com.br.

O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos de vida (1881-1883) – MUSTO (VH)

MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos de vida (1881-1883). São Paulo: Boitempo, 2018. 158 p. BRITO, Leonardo Octavio Belinelli de. Outro olhar sobre Marx. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 67, Jan./ Abr. 2019.

No ano em que são comemorados duzentos anos do nascimento de Karl Marx, é compreensível que a efeméride agite debates políticos e teóricos que envolvam seu legado, bem como o mercado editorial local. Entre seus resultados, está a publicação de O velho Marx, de Marcello Musto, autor ligado à fase mais recente do ambicioso projeto editorial das obras completas de Marx e Friedrich Engels, conhecido como MEGA (Marx-Engels-Gesamtausgabe), cuja história é longa e cheia de percalços indissociáveis das desventuras sofridas pelo uso soviético dos pensamentos dos filósofos alemães (Marxhausen, 2014).

Munido pelo aparato documental mobilizado nesse projeto editorial, no qual se destacam os manuscritos/rascunhos e as cartas, frequentemente muito reveladoras, trocadas por Marx com seus correspondentes, o curto livro tem um objetivo restrito, mas nem por isso menor: realizar uma apresentação dos principais acontecimentos da vida pessoal e intelectual de Marx no triênio 1881-1883. Seu principal alvo é a interpretação, rotineira entre seus seguidores, como entre seus críticos, de que os últimos anos do filósofo alemão foram marcados pela confusão de propósitos, fragilidade física e emocional e insegurança teórica. Musto quer nos mostrar justamente o contrário: como Marx, ainda que em condições de saúde frágeis, possuía energia e disposição para perseguir obsessivamente os temas de seu interesse.

Estruturado sob um movimento sempre dúplice, o qual envolve momentos alternados ligados à biografia de Marx com análises da própria evolução de seu pensamento, o livro de Musto conta com quatro capítulos: o primeiro apresenta o estado no qual se encontrava Marx em 1881, ano em que o livro começa sua narrativa; o segundo analisa o debate sobre o destino das comunas agrárias russas e sua relação com o socialismo e a posição de Marx a seu respeito; o terceiro foca na recepção europeia de O capital e o complicado momento familiar pelo qual a família do filósofo alemão passava no segundo semestre de 1881; e o último capítulo expõe a viagem de Marx à Argélia, único momento de sua vida em que saiu do continente europeu, e suas reflexões sobre a situação dos países árabes.

Como se vê, o primeiro mérito do livro de Musto é apresentar os acontecimentos da vida de seu biografado que mesmo o público acadêmico desconhece, como exemplifica o caso da viagem de Marx à Argélia. Nesse plano, vale destacar duas questões delicadas, decisivas para o sucesso do livro, com as quais Musto parece ter se debatido: em primeiro lugar, como selecionar os fatos narrados e articulá-los com uma interpretação a respeito de seus sentidos? Em segundo lugar: como conferir uma narrativa vívida de Marx sem cair numa abordagem excessivamente engrandecedora de sua figura, como se as dificuldades da vida fossem questão menor para espírito tão altivo e brilhante?

No caso da primeira pergunta, Musto teve a ideia inteligente de destacar que o fio vermelho que conecta os empreendimentos intelectuais tardios de Marx – entre os quais se sobressaem, sem dúvida, seu contato com a antropologia por meio da obra de Lewis Morgan e o seu estudo sobre a situação sociopolítica russa – é a recusa do pensamento dogmático, no que Marx contrariava os determinismos variados então em voga. Ao descrever a fusão de Marx com seu gabinete e sua devoção à pesquisa, Musto parece atingir o segundo alvo de seu livro: a noção restrita de “marxismo”, como um conjunto de fórmulas axiomáticas que teve seu primeiro momento de formulação na pena de Karl Kautstky, ele mesmo um tributário das formas de pensar deterministas vigentes no fin de siécle (Haupt, 1979). Com isso, Musto coloca em xeque a construção ideológica mais poderosa das esquerdas do século XX.

E aqui passamos à segunda questão. Em contraste com o procedimento ideológico que alça a figura de Marx à dimensão sobre-humana, o Marx que emerge do livro de Musto não é a figura monolítica, supra-histórica, que os regimes nascidos sob a sua suposta influência pintaram ao longo do século XX. Além de demonstrar como seus pensamentos foram alterados pelas descobertas que realizava, O velho Marx destaca a inserção do filósofo alemão numa rede de militantes e familiares com os quais dividia angústias e alegrias, embora sempre orientado pelas suas preocupações teórico-práticas. Nesse sentido, o esforço do biógrafo não é demonstrar como a dimensão pública das atividades de Marx se sobrepunha à sua vida privada, mas, ao contrário, frisar como sua vida privada e pública se fundiam em uma só – a vida do sujeito Marx – e que, como não poderia deixar de ser, era carregada de contradições, dilemas e escolhas.

Por razões compreensíveis, um livro sintético sobre tema tão complexo traz o risco de algumas limitações. Embora muito bem sucedido, talvez houvesse necessidade de explorar um pouco mais a fundo as descobertas/reformulações teóricas de Marx no período delimitado pela pesquisa. Em que pese observação do autor sobre o fato de esse ser um livro de “biografia intelectual” e indicar a preparação de outro “exclusivamente teórico” (Musto, 2018, p.10), isso não altera a fato de que poderia ter havido discussões teóricas mais profundas no livro atual, especialmente porque, como o próprio autor demonstrou, a biografia de Marx não é separada de suas formulações teóricas.

Pelo seu assunto e pela sua forma expositiva – clara, concisa e livre de jargões -, o livro de Musto certamente interessará aos pesquisadores brasileiros do pensamento de Marx, bem como ao público não acadêmico, mas interessado em discussões políticas. É possível, inclusive, que incomode aqueles que se identifiquem com o “mito Marx” que transcorreu o século XX. Se o fizer, o livro terá cumprido seu objetivo (Musto, 2018, p.11). É que Musto apresenta um caminho para outro Marx, talvez um Marx do século XXI, mais aberto, mais plural e, quem sabe, ainda mais poderoso. Um Marx, portanto, em construção.

Referências

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MARXHAUSEN, Thomas. História crítica das Obras completas de Marx e Engels (MEGA). Crítica Marxista, Campinas, n.39, p.95-124, 2014. [ Links ]

MUSTO, Marcello. O velho Marx – uma biografia de seus últimos anos de vida (1881-1883). São Paulo: Boitempo, 2018. [ Links ]

Leonardo Octavio Belinelli de Brito – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Universidade de São Paulo, Avenida Professor Luciano Gualberto, 315, São Paulo, SP, 05.508-900, Brasil. belinelli.leonardo@gmail.com.

Entangled Empires: the Anglo-Iberian Atlantic, 1500-1830 – CAÑIZARES-ESGUERRA (VH)

CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Entangled Empires: the Anglo-Iberian Atlantic, 1500-1830. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2018. 331 p. KALIL, Luis Guilherme. A Península e a Ilha: Ibéricos e ingleses no Atlântico dos séculos XVI ao XIX. Varia História. Belo Horizonte, v. 35, no. 67, Jan./ Abr. 2019.

Em sua investigação sobre os primeiros exploradores europeus do território norte-americano, Tony Horwitz (2010, p.16) afirma haver um “século perdido”, que iria de 1492 até 1620, com o desembarque do Mayflower. O vazio apontado pelo jornalista é ilustrado através da entrevista com um guarda-florestal de Plymouth, frequentemente questionado por turistas se este rochedo seria o local onde Colombo teria desembarcado no Novo Mundo.

Esta curiosa confusão de datas e personagens se relaciona com questões mais amplas acerca do passado colonial americano e dos impérios construídos por ingleses e ibéricos durante a Modernidade. A visão de uma experiência inglesa na América como algo único e isolado do restante do continente possui uma longa e variada trajetória marcada por aspectos como as rivalidades imperiais e os embates entre católicos e protestantes no período. Esse processo ganha força nos Estados Unidos independente através dos esforços de construção de um passado nacional que encontra nos puritanos ingleses o ponto de partida para o Destino Manifesto da nação. Já no século XX, essa perspectiva fomenta uma abordagem – há muito criticada pelos historiadores, mas ainda atraente em sua tipologia simplista, dicotômica e determinista – que identifica na América a existência de dois modelos opostos de colonização: exploração ou povoamento.

Ao longo de sua carreira, Jorge Cañizares-Esguerra vem dedicando grandes esforços na tentativa de negar o isolamento e historicizar a construção deste antagonismo que silencia as conexões, enfatizando que a trajetória do Império inglês – e, mais amplamente, da própria Modernidade – só seria compreensível se a experiência ibérica fosse colocada em primeiro plano. Nesse sentido, o autor enfatizou em obras anteriores o papel central do Império espanhol e de suas colônias americanas em alguns dos principais debates epistemológicos do século XVIII (2001), os vários pontos em comum entre conquistadores hispânicos e religiosos puritanos (2006) e a “dramática influência” das ideias, políticas e ações ibéricas nas colônias ultramarinas inglesas, marcadas pela inveja em relação à Espanha (Cañizares-Esguerra; Dixon, 2017). Em todos os casos, há um questionamento direto em relação aos recortes nacionais e imperiais e também às perspectivas tradicionais de Modernidade e de História Atlântica, que deixariam de lado a complexidade e a riqueza das trajetórias de pessoas, bens, ideias e escritos. Como alternativa, o historiador, em conjunto com outros pesquisadores (Gould, 2007), propõe a perspectiva de “Impérios Emaranhados” (2012), cujas trajetórias seriam impossíveis de serem compreendidas separadamente.

O presente livro é mais uma contribuição nessa direção. Resultado de um encontro organizado por Cañizares-Esguerra e seus orientandos na Universidade do Texas, em 2014, Entangled Empires visa, através de seus doze artigos, reforçar as críticas às abordagens nacionais ou imperiais através da análise de uma ampla gama de temas, documentos, personagens e regiões que se estendem do século XVI ao início do XIX. A ideia de um esforço conjunto em defesa da perspectiva de Impérios Emaranhados fica visível através não apenas de referências conceituais e bibliográficas comuns, mas também pelas recorrentes menções nos artigos a outros textos do mesmo livro, o que reforça o diálogo entre eles e a unidade da obra, permitindo conexões que escapam aos temas específicos de cada um dos autores.

Como exemplo, podemos citar os estudos de Mark Sheaves (Cap. 1) e de Christopher Heaney (Cap. 4), que destacam a fragilidade das identificações nacionais em relação a determinadas fontes históricas e personagens. No primeiro caso, o autor persegue a trajetória de ingleses como um comerciante e escritor que viveu em terras espanholas denominado nos documentos do período tanto como Pedro Sánchez quanto como Henry Hawks, a depender de seu local de publicação. Já Heaney analisa a tradução e adaptação para o inglês feita por Richard Eden de trechos das Décadas de Pedro Mártir de Anglería, identificando a influência da Utopia de Thomas More (que, por sua vez, foi influenciado pelas cartas de Américo Vespúcio) e a tentativa de, através dos escritos, inspirar os ingleses em direção ao Novo Mundo.

Outros capítulos ressaltam a atuação de grupos que transitavam entre a península, a ilha e o mundo atlântico. É o caso do artigo de Michael Guasco (Cap. 2), para quem os primeiros contatos dos ingleses com os africanos teriam sido pautados pela experiência ibérica anterior, da análise de Holly Snider (Cap. 5) a respeito dos judeus sefaraditas e de Christopher Schmidt-Nowara (Cap. 6) sobre a importância de alguns irlandeses para a expansão inglesa e suas múltiplas relações com os domínios ibéricos. Destacam-se ainda as contribuições de Bradley Dixon (Cap. 9), para quem a influência ibérica também foi fundamental para se compreender as expectativas e a atuação de determinados grupos indígenas em seus contatos com os ingleses, e de Kristie Flannery (Cap. 12), que altera o eixo de análise do Atlântico para o Pacífico, apontando a multiplicidade de relações existentes entre ingleses, espanhóis e nativos nas Filipinas durante a Guerra dos Sete Anos.

Em muitos capítulos, a referência aos impérios ibéricos presente no título da obra perde força para a abordagem mais específica das relações entre espanhóis e ingleses. Uma exceção é o trabalho de Benjamin Breen (Cap. 3), que destaca o papel central dos portugueses no comércio de “drogas” e na formação de redes comerciais e intelectuais. A decisão de concentrar a atenção no Atlântico anglo-ibérico traz ainda como consequência – algo reconhecido pelo próprio organizador em sua introdução (p. 3) – o pouco espaço dedicado a outros impérios, personagens e eventos fundamentais para a compreensão das questões que envolvem muitos dos artigos desta coletânea, como o caso da Revolução de Santo Domingo e, mais amplamente, da atuação francesa, holandesa, sueca, entre outras, no Novo Mundo, o que não só ampliaria a quantidade de impérios abordados, mas também aprofundaria o emaranhado entre eles.

Para além das possibilidades de ampliação do escopo de análise, que abrem espaço para outros esforços coletivos de pesquisa no futuro, Entangled Empires é uma importante contribuição no já longevo esforço de problematização do conceito de Império. Após percorrermos as trajetórias dos textos, produtos e personagens além dos debates intelectuais, negociações políticas e conflitos armados analisados pelos autores que participam desta coletânea, torna-se cada vez mais difícil identificarmos as especificidades e os limites há muito identificados entre os impérios construídos pelos ibéricos e ingleses.

1É interessante observarmos que a produção de obras coletivas em torno de uma proposta de análise – algo ainda raro dentro da historiografia brasileira – é muito comum nos Estados Unidos. Apenas como exemplo, limitando-nos a livros que alcançaram grande repercussão dentro das pesquisas sobre o continente americano durante o período colonial, podemos citar obras como Negotiated Empires (2002) e Indian Conquistadors (2007).

Referências

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CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge. Histórias emaranhadas: historiografias de fronteira em novas roupagens? In: FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira (org.). História da América: historiografia e interpretações. Ouro Preto: EDUFOP, 2012, p.14-39. [ Links ]

CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge; DIXON, Bradley J. “O lapso do rei Henrique VII”: inveja imperial e a formação da América Britânica. In: CAÑIZARES-ESGUERRA, Jorge; FERNANDES, Luiz Estevam de Oliveira; BOHN MARTINS, Maria Cristina (orgs.). As Américas na Primeira Modernidade. Curitiba: Prismas, 2017, p. 205-243. [ Links ]

DANIELS, Christine; KENNEDY, Michael V. Negotiated Empires: Centers and Peripheries in the Americas, 1500-1820. New York; London: Routledge, 2002. [ Links ]

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HORWITZ, Tony. Uma longa e estranha viagem: rotas dos exploradores norte-americanos. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. [ Links ]

MATTHEW, Laura; OUDIJK, Michel. Indian Conquistadors: Indigenous Allies in the Conquest of Mesoamerica. Oklahoma: University of Oklahoma Press, 2007 [ Links ]

Luis Guilherme Kalil – Departamento de História, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Av. Governador Roberto Silveira, s/n, Nova Iguaçu, RJ, 26.020-740, Brasil. lgkalil@yahoo.com.br.

Frei Betto, biografia – FREIRE; SYDOW (VH)

FREIRE, Américo; SYDOW, Evanize. Frei Betto, biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 448 p. BOHOSLAVSKY, Ernesto. Frei Betto, uma vida entre a Igreja e a política. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 66, Set./ Dez. 2018.

O recente livro de Freire e Sydow é uma contribuição extremamente valiosa para a compreensão de alguns fenômenos políticos do último meio século do Brasil. A biografia nos permite perceber a profunda interligação entre as atividades intelectuais e pastorais e as práticas políticas de Frei Betto, desde meados da década de 1960 até hoje. Frei Betto parece ter estado presente sempre que algo novo aconteceu na política brasileira: ele foi a ponte entre a Igreja paulistana e o líder guerrilheiro clandestino Carlos Marighella no final dos anos 60, tendo passado quatro anos na prisão durante a ditadura por causa dessas tarefas; participou das comunidades eclesiais de base em vários estados depois de sair da cadeia; morou em uma favela em Vitória; fez parte das greves dos metalúrgicos do ABC em 1980; posteriormente, permaneceu próximo ao Partido dos Trabalhadores (PT) e a Lula e, finalmente, acabou envolvido na execução do Programa ‘Fome Zero’ nos governos do PT. Enquanto fazia tudo isso, tornava-se uma das figuras intelectuais brasileiras mais lidas e reconhecidas fora do Brasil, juntamente com Leonardo Boff e Paulo Freire, com os quais teve inúmeros contatos e intercâmbios e compartilhava o pertencimento à galáxia do catolicismo brasileiro em diálogo com tradições marxistas e críticas.

A primeira parte da biografia é organizada de acordo com uma rota cronológica, que começa com referências aos avós do frade e termina com suas últimas iniciativas políticas e literárias na segunda década do século XXI. A segunda metade do livro, contém capítulos temáticos: sobre a participação na imprensa, sua produção literária, suas amizades e sua vida cotidiana atual. Uma interessante seleção de fotografias nos permite ver algumas das trajetórias e ligações de Betto dentro e fora do Brasil e dentro e fora da Igreja Católica. O trabalho baseia-se na consulta da ampla produção intelectual e política do biografado, cartas pessoais, documentação jornalística e jurídica e, claro, dezenas de testemunhos recolhidos no Brasil, Argentina, Cuba, França e Nicarágua, produzidos por homens e mulheres que tiveram ligações com o dominicano em suas numerosas iniciativas políticas, eclesiásticas e educacionais. Nesse sentido, o livro oferece pistas para uma reconstrução das redes editoriais, jornalísticas, políticas e religiosas (principalmente latino-americanas) nas quais participou Frei Betto desde finais dos anos 60.

Trata-se de um livro explicitamente favorável a Frei Betto: os entrevistados são unanimemente solidários, coincidentes na avaliação e nas memórias sobre o biografado. Isso impede que o leitor perceba as dissidências interpretativas que possam existir sobre Frei Betto, suas práticas políticas e seu nível de participação e envolvimento políticos (com a exceção do capítulo 20, que inclui as críticas e amarguras geradas por sua saída do primeiro governo Lula, em 2004, e a publicação do livro A mosca azul, em 2006). Essa impressão é confirmada pelo fato de que o prefácio do livro foi escrito por Fidel Castro, explicitamente amigo do frade: em 1985, como resultado de longas conversas gravadas em Havanna, Frei Betto publicou o livro Fidel e a Religião, que fazia parte da longa lista de seus esforços feitos para aproximar as posições teóricas e organizacionais do marxismo e do catolicismo (Betto, 1985). Talvez uma consulta a ocasionais detratores políticos, sindicais ou dentro da Igreja teria contribuído para detectar ou destacar algumas facetas ou avaliações mais críticas ou negativas sobre sua trajetória. A figura de Frei Betto torna-se neste livro, então, passível de leituras apologéticas. Em parte, isso é o resultado também da relevância do próprio biografado neste projeto editorial, no qual teve um envolvimento entusiasmado desde o início.

Os autores mostram vários elementos da vida econômica e social da família do frade que tiveram um papel crucial na trajetória de Frei Betto: um tio general do Exército e um pai juiz ajudaram a evitar a tortura física que sofreram outros clérigos sob o AI-5; pertencer a altos estratos profissionais da sociedade mineira foi fundamental para sua formação intelectual e para a posse de recursos retóricos que ajudaram construir uma carreira muito bem sucedida no mercado literário no Brasil. Vale considerar, por exemplo, que os próprios autores agradecem à agente literária de Betto (Freire; Sydow, 2016, p.405). Quantos autores da esquerda e frades têm um “agente literário”? Isto não é para apontar essas questões como se fossem estigmas, mas porque fatores como a estrutura da Igreja, do campo literário ou a distribuição desigual de bens simbólicos e materiais ao longo de linhas étnicas, de gênero e regionais no século XX no Brasil contribuem muito para uma compreensão mais precisa da impressionante carreira de Frei Betto. Isso ajudaria a compensar a importância que os autores atribuem a fatores mais individuais e contingentes, como as enormes virtudes pessoais do sujeito biografado.

Este livro será de enorme interesse para um público não especializado, interessado em conhecer os elementos centrais da evolução histórica do Brasil desde a ditadura até o presente. Aqueles que desejam conhecer mais a radicalização dos católicos nos anos 60 vão encontrar chaves sobre o rapidíssimo processo pelo qual muitos jovens passaram da Juventude Estudantil Católica para a resistência armada. Mas também vão achar pistas sobre os movimentos populares nos anos 70 e as ligações com a Teologia da Libertação e com projetos educativos radicais. Muitas das características da política durante o começo da Nova República nos anos 80 e da política pública dos governos do PT são mais bem compreendidas a partir desta biografia, que consegue mostrar que Frei Betto foi uma figura animada, inteligente e criativa, não escapando nunca ao engajamento em relação aos problemas de seu tempo.

Referências

FREIRE, Américo; SYDOW, Evanize. Frei Betto, biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2016. [ Links ]

BETTO, Frei. Fidel e a religião. São Paulo: Brasiliense, 1985. [ Links ]

Ernesto Bohoslavsky – Universidad Nacional de General Sarmiento, Oficina 5111, J. M. Gutiérrez 1150, (1613) Los Polvorines, Província de Buenos Aires, Argentina. ebohosla@ungs.edu.ar.

 

Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980) – MARTINHO (VH)

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. 589 p. GONÇALVES, Leandro Pereira. Marcello Caetano, uma biografia dos trópicos. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 66, Set./ Dez. 2018.

“Sei que estás em festa, pá

Fico contente

E enquanto estou ausente

Guarda um cravo para mim”

(Chico Buarque, “Tanto Mar”, versão I, 1974)

Os versos da canção de Chico Buarque, Tanto mar, foram entoados e intensificados, criando uma unidade entre Brasil e Portugal a partir dos desdobramentos de 25 de abril de 1974, quando, com a Revolução dos Cravos, ocorreu o processo de consolidação da democracia e a derrocada do Estado Novo português. Esse momento marcou o deslocamento para o exílio do último representante do regime, Marcello Caetano, que inspirado ou não em Chico, expressou: “mas entre nós está tanto mar…”, ao referenciar a nova vida na Cidade Maravilhosa, onde permaneceu até sua morte, em 1980.

A relação entre os dois países não é ocasional, não apenas com Chico Buarque ou mesmo Marcello Caetano, mas também com Francisco Carlos Palomanes Martinho, autor da mais recente biografia do líder português. O professor luso-brasileiro, que é livre-docente do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo, autor de diversos estudos sobre Portugal Contemporâneo,1 desenvolve uma reflexão sobre a vida de Marcello Caetano em vários níveis, abordando o sentido do personagem em sua totalidade, desde aspectos do cotidiano, do âmbito privado e familiar, até momentos de sua trajetória política, acadêmica e intelectual. Além disso, traz informações sobre o exílio, fase de grande contribuição historiográfica, pois o autor utiliza uma série de documentos que os colegas investigadores portugueses não alcançaram em outros trabalhos, devido ao depósito em acervos brasileiros. Há de ressaltar a quantidade significativa de materiais coletados em arquivos portugueses, estabelecendo, portanto, uma produção empírica sólida e de relevância.

O prefácio, escrito por António Costa Pinto – que ao lado de Angela de Castro Gomes, representam as principais influências historiográficas do autor -, mapeia a obra como a terceira “grande biografia” de Caetano publicada em poucos anos, expressando a relevância da investigação. Talvez o único ponto possível de reflexão mais aprofundada sejam as ausências das biografias antecessoras como elementos analíticos, mas há a compreensão do autor em optar por não utilizá-las, buscando uma interpretação sem balizas anteriores.2

A biografia, um gênero cada vez mais abordado na academia, é cercada de aspectos metodológicos e teóricos que o autor não se furtou quando analisou e refletiu de forma conceitual elementos centrados sobre a memória do personagem, ainda mais em torno de um líder que teve a “ingrata” missão de ser o “número dois” da ditadura, sucedendo a liderança consolidada em torno da imagem de António de Oliveira Salazar.

Marcello Caetano foi político, professor de Direito e o último presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo, entre 1968 e 1974. Na área acadêmica, atuou na Universidade de Lisboa, tendo uma carreira docente de extrema relevância para a consolidação das doutrinas corporativistas na História do Direito. Na juventude, foi militante do movimento monárquico, fazendo parte do Integralismo Lusitano. Nos anos 1930, foi uma das peças-chave do regime salazarista no âmbito do Estado Novo, inclusive participando da redação da Constituição de 1933. Apesar de divergências políticas com Salazar, devido ao caráter reformista de suas propostas, manteve-se ativo no governo, o que contribuiu para a sua ascensão em 1968, momento em que António de Oliveira Salazar foi afastado por motivo de doença. Um governo reformista em um contexto de instabilidade gerou a derrubada do Estado Novo e do governo de Marcello Caetano com a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, sendo exilado no Brasil, onde se adaptou bem na sociedade e desenvolveu atividades acadêmicas na Universidade Gama Filho, ocupando o cargo de diretor. Mesmo não tendo uma ação ativa na política, Caetano vivia em um país autoritário, ou seja, um espaço propício para o desenvolvimento de seus pensamentos e suas práticas políticas e intelectuais.

Um dos aspectos de maior relevância da produção de Francisco Martinho é a destreza do autor em criar um texto acadêmico que, ao mesmo tempo, fosse compatível com o grande público, não perdendo conceitos e equilibrando elementos aos leitores dos dois países. Com o impacto editorial, a biografia ganhou uma versão em língua inglesa e brevemente estará circulando na terra do exílio de Marcello Caetano (Martinho, 2018).

A obra é composta de uma produção linear da vida do líder português, contribuindo para o entendimento dos vários aspectos do biografado, principalmente em relação a um elemento de extrema relevância: o uso intelectual e acadêmico com uma finalidade política, demonstrando que a vida de Caetano não está restringida ao período de 1968 a 1974, momento que esteve na Presidência do Conselho de Ministros.

A biografia é composta por dez capítulos, e após o primeiro capítulo memorialístico sobre o Estado Novo, o autor dedica reflexões em relação ao contexto privado, focando a formação de Marcello Caetano, que nasceu em Lisboa no dia 17 de agosto de 1906 e presenciou todas as transformações políticas do século XX, sendo, desde jovem, quando estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, militante católico, monárquico e democrata-cristão conservador.

O livro segue uma estrutura cronológica, tendo o eixo político como base central a relação analítica. O terceiro capítulo apresenta a maturidade do biografado, quando assumiu a Mocidade Portuguesa, assunto do quarto capítulo. Devido às divergências entre Salazar e Caetano, o líder português o nomeia ministro das Colônias, período abordado no quinto capítulo. O capítulo sexto tem como ponto central o retorno de Marcello Caetano para o interior do Estado Novo, quando assumiu a Comissão Executiva da União Nacional e a Presidência da Câmara Corporativa, alcançando assim notório reconhecimento político. Sem abandonar suas atividades acadêmicas e intelectuais, conforme mostra o capítulo sete, quando assume a reitoria da Universidade de Lisboa, Caetano se destaca na política nacional com cargos no Executivo do Estado Novo, o que o faz assumir a função de ser o sucessor de Salazar, como exposto no capítulo oito. Com grandes dificuldades de dar sequência ao governo anterior, a queda do marcellismo com todas suas repercussões é o tema do capítulo nove. O exílio no Brasil é apresentado no último capítulo para concluir essa importante obra biográfica.

Trata-se de um líder político de expressão do século XX com características peculiares em torno de uma ótica católica e corporativista que passou a ser um dos braços centrais do Estado Novo, sendo um homem do Estado que possuía uma via acadêmica ativa com uma rede de intelectuais, o que propiciou uma vida (não muito intensa) no Brasil, mas que encontrou nos trópicos, no contexto ditatorial, um porto seguro para os últimos anos de sua vida.

1 MARTINHO, 2002MARTINHO; COSTA PINTO, 2007MARTINHO; COSTA PINTO, 2016.

2Refere-se aos estudos de: CASTILHO, 2012LEITÃO, 2014.

Referências

CASTILHO, José Manuel Tavares. Marcello Caetano – uma biografia política. Lisboa: Edições 70, 2012. [ Links ]

LEITÃO, Luís Menezes. Marcello Caetano – um destino. Lisboa: Quetzal, 2014. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. A bem da nação: o sindicalismo português entre a tradição e a modernidade (1933-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano, uma biografia (1906-1980). Lisboa: Objectiva, 2016. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes. Marcello Caetano and the Portuguese “New State”. Sussex University Press, 2018. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; COSTA PINTO, António (Org.). O corporativismo em português: Estado, política e sociedade no salazarismo e no varguismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. [ Links ]

MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes; COSTA PINTO, António (Org.). A onda corporativa: corporativismo e ditaduras na Europa e na América Latina. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2016. [ Links ]

Leandro Pereira Gonçalves – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Rua José Lourenço Kelmer, Juiz de Fora, MG, 36.036-330, Brasil. leandropgoncalves@gmail.com.

Birders of Africa: History of a Network – JACOBS (VH)

JACOBS, Nancy J. Birders of Africa: History of a Network. New Haven & London: Yale University Press, 2016. 325 p. VELDEN, Felipe Ferreira Vander. História através dos pássaros. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 66, Set./ Dez. 2018.

Desde que Robert Delort, aliando a leitura de fontes históricas variadas com os conhecimentos da zoologia, declarou, em 1984, que “os animais têm uma história”, a assim chamada História Ambiental vem paulatinamente deixando sua preocupação clássica com a constituição de paisagens (Cronon, 1983Schama, 1996) e passando mais e mais a se interessar pelos animais como produtores de história. “History is not just for people anymore”, declara Nancy Jacobs (Jacobs, 2016, p.8) nesta sua incursão pelas trajetórias das relações entre povos e pássaros no continente africano. Retomando a célebre assertiva do antropólogo Claude Lévi-Strauss, Jacobs sustenta que os pássaros são bons para pensar; neste caso, para pensar a história da África e das relações entre populações africanas e estrangeiros, negros e brancos, nas complexas articulações entre ciência, conhecimento local, política e poder, colonialismo e descolonização, raça, nação, trabalho, honra, hierarquia e desigualdade, colaboração e violência. A história da África pode ser escrita, assim, da perspectiva de sua rica avifauna ou, mais precisamente, das milenares interações entre humanos e aves naquele continente, captadas por meio na análise do conhecimento historicamente produzido pelas pessoas sobre os pássaros em solo africano.

É fato que, apesar da centralidade da África na história da América portuguesa e do Brasil, conhecemos pouco do que se passa e do que se passou do outro lado do Atlântico. E, se começamos a saber mais das histórias e das culturas na África subsaariana em distintas disciplinas acadêmicas no país, a natureza africana – e, sobretudo, as relações entre grupos humanos e seres naturais – ainda chega até nós basicamente por meio de imagens estereotipadas e espetacularizadas dos safaris, cujo efeito principal está justamente no apagamento da diversidade e da historicidade das relações entre humanos e não humanos ali (Igoe, 2017). A África, megadiversa em culturas, é também exuberante em pássaros (menos conhecidos do público do que seus icônicos mamíferos), que Jacobs busca historicizar por meio da atenção às atividades dos agentes que ela chama de birders, que traduzimos como “passarinheiros” – todos aqueles que, na história do continente, se interessaram em se aproximar das e seguir as aves, por razões variadas, vernaculares, ornitológicas e recreacionais (Jacobs, 2016, p.9). Descortinar a rede (network) que conecta estes birders aos pássaros e demais agentes não humanos na história antiga e recente da África constitui o objetivo primordial do livro.

Em oito capítulos, divididos em duas partes (a primeira, de caráter mais estrutural, focalizando o período anterior à colonização até o século XIX; a segunda, com foco em trajetórias individuais, centrada na consolidação hegemônica da ornitologia científica no século XX e na emergência do birdwatching como fenômeno global), a autora nos traz uma detalhada análise da África e suas muitas assimetrias – entre negros e brancos, colônia e império, ciência e conhecimento nativo. Mais do que apostar, contudo, numa pétrea oposição entre esses termos, Jacobs argumenta que a história da produção de conhecimento sobre a África é muito mais uma história de colaboração e interpenetração do que uma de (simples) exclusão. Sem negar a violência colonial (inclusive na ciência, fortemente racializada), o livro sugere que o estudo dos saberes sobre as aves africanas pensados como modalidades de cooperação entre conhecimentos, práticas e técnicas africanas e estrangeiras (europeias e norte-americanas) é a forma mais acurada para conhecermos um pouco da trajetória de gente comum que, na África ao sul do Saara (e, com especial foco, nas suas partes meridional e oriental anglófonas), esteve envolvida, de muitas maneiras, com as ricas faunas ornitológicas locais e seu estudo. A metodologia empregada é heteróclita – variando entre arquivos históricos, diários de viajantes, coleções museológicas, textos de estudantes, obras de arte, memórias e entrevistas com “passarinheiros” (profissionais e amadores) africanos – porque apenas assim, defende Jacobs, pode-se escrever a história desses sujeitos menores para os quais as elites olharam, mas sobre os quais pouco escreveram com profundidade (Jacobs, 2016, p.22-23).

Não se trata, o livro, de uma história (natural) ornitológica africana, nem tampouco de uma história da ornitologia em África, do conhecimento a respeito dos pássaros. Poder-se-ia definir a obra de Jacobs como uma reflexão sobre a história da relação entre humanos e aves naquele continente, uma história da história da ornitologia desenvolvida por lá. História que, coordenada desde o século XVI pelo império, narra a trajetória de consolidação da ciência, com o paulatino apagamento dos saberes vernaculares sobre as aves e a crescente hierarquização (sobretudo racializada) dos saberes. Traços desses conhecedores e conhecimentos originais africanos (e dos eventos que os colocaram diante de saberes e poderes europeus), evidentemente, permanecem nas espécies e nos espécimes – muitos nos seus nomes e nos “inert envelop[s] emptied of the living bird” (Jacobs, 2016, p.97). Recuperá-los, nos interstícios entre a zoologia moderna e os vernáculos nativos, constitui uma das tarefas da autora – o que ela faz, nos capítulos 5 a 8, reconstruindo as trajetórias individuais de “passarinheiros” africanos, alguns dos quais tiveram papel crucial no desenvolvimento da ornitologia naquele continente.

Este livro de Nancy Jacobs, assim, constitui-se, por sua novidade e tratamento refinado da temática, em excelente umbral de acesso a todos os interessados na história ambiental em geral, e na história das relações (majoritariamente assimétricas) entre humanos (negros e brancos, cientistas e assistentes) e não humanos (aves) em particular, na África sub-saariana e na ciência. Sua análise, fundada na ideia de acessar a história – do nível estrutural às histórias de vida pessoais – a partir das aves (e das relações entre distintos grupos humanos e a avifauna), permite compreender muito das redes que conectaram a África ao resto do mundo, e produzir algo como uma história africana do ponto de vista das associações nacionais, regionais ou locais com os pássaros. Deve agradar – por sua discussão pormenorizada do que seriam, a primeira vista, questões historiográficas menores – também àqueles que desejam aprofundar-se na micro-história africana, sejam especialistas (nas ciências sociais e nas ciências biológicas), seja o leitor comum – “passarinheiro” ou não – disposto a conhecer mais sobre as savanas e florestas que, densas em pássaros (2355 espécies), nos observam na margem oposta do oceano (Jacobs, 2016, p.239).

Referências

CRONON, William. Changes in the Land: Indians, Colonists, and the Ecology of New England. New York: Hill & Wang, 1983. [ Links ]

DELORT, Robert. Les animaux ont une histoire. Paris: Seuil, 1984. [ Links ]

IGOE, Jim. The Nature of Spectacle: on Images, Money, and Conserving Capitalism. Tucson: The University of Arizona Press, 2017. [ Links ]

JACOBS, Nancy J. Birders of Africa: History of a Network. New Haven & London: Yale University Press, 2016. [ Links ]

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. [ Links ]

Felipe Ferreira Vander Velden – Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Ciências Sociais, Via Washington Luís, Km 235, São Carlos, SP, 13.565-905, Brasil. felipevelden@yahoo.com.br.

Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil – MAMIGONIAN (VH)

O tão aguardado livro Africanos Livres: A abolição do tráfico de escravos no Brasil , da historiadora Beatriz Mamigonian, não decepciona. Oferecendo uma nova perspectiva sobre o processo de abolição, o autor enfatiza as experiências e a luta pela liberdade dos africanos escravizados no contexto de negociações de tratados e leis abolicionistas que buscavam acabar com o comércio de escravos no Atlântico. Mamigonian esclarece a conexão entre a história dos africanos escravizados no século XIX; políticas e legislação nacionais relativas à escravidão e ao trabalho livre; e mudanças na política, sociedade, legislação e sistema judicial brasileiro que eventualmente favoreceram a abolição geral da escravidão. Africanos Livresreestrutura assim a narrativa histórica sobre a abolição do comércio de escravos e da escravidão, destacando esforços conservadores para preservar o controle da sociedade sobre o trabalho negro e enfatizando a influência política e cultural dos africanos e seus descendentes na construção da liberdade durante o século XIX.

Os três primeiros capítulos do livro investigam a categoria ‘livre africano’ que surgiu no contexto dos tratados brasileiros e britânicos e a lei de 1831. Mamigonian mostra que nem os tratados que negociaram o fim do tráfico de escravos no Atlântico nem a lei de 1831, que libertou novas chegadas africanas, garantiu a liberdade africana suficientemente. A decisão conservadora de negar cidadania aos africanos; esforços para controlar sua presença e trabalho produtivo no Brasil; ea falta de compromisso político e judicial para fazer cumprir a lei assegurava que os africanos traficados de fatoescravização. Alguns conseguiram defender sua liberdade no tribunal. De um modo mais geral, porém, funcionários e agências governamentais apoiaram os interesses dos comerciantes e proprietários de escravos e evitaram processar os responsáveis ​​pelo tráfico de escravos. Além disso, o trabalho dos africanos que foram libertados pelas autoridades portuárias ou pelo comitê misto brasileiro e britânico que monitorava o comércio ilegal, foi “concedido” a indivíduos ou instituições públicas. Essa prática, semelhante ao sistema de aprendizagem ou servidão contratada de outras sociedades atlânticas, procurou facilitar a transição do trabalho escravo para o trabalho livre. Mas, diferentemente desses sistemas, as concessões brasileiras de mão-de-obra africana raramente impõem ou impõem um limite no tempo de serviço. Como resultado, o Estado brasileiro sacrificou a liberdade dos africanos para favorecer as necessidades dos proprietários de escravos,Mamigonian, 201 , p. 164)

Os capítulos 4 e 5 exploram as condições de trabalho que os africanos livres experimentam. Os beneficiários que tinham o direito de explorar o trabalho dos africanos livres frequentemente os tratavam mal, os ameaçavam com a venda e ignoravam os termos temporários da concessão. A realidade diária dos africanos livres não era, portanto, muito diferente da dos escravos. As condições de vida entre os empregados em obras públicas ou por instituições governamentais eram ainda mais precárias. Forçados a realizar trabalhos perigosos e árduos, muitos morreram antes de poder exigir sua liberdade. Aqui, Mamigonian também examina o contraponto britânico ao sistema brasileiro de subsídios trabalhistas com exemplos de africanos livres resgatados no Brasil por autoridades britânicas e levados, voluntariamente ou não, para trabalhar no Caribe. Suas experiências entre os britânicos, e a sujeição comum ao trabalho forçado sob condições exigentes dificilmente cumpriam a promessa de liberdade. Apesar de sua retórica abolicionista, os britânicos também aderiram ao uso racista do trabalho forçado como instrumento da civilização. Os impérios britânico e brasileiro continuariam a explorar a capacidade produtiva dos africanos para beneficiar economicamente seus súditos brancos.

Nos capítulos 6, 7 e 8, Mamigonian discute a lei Eusébio Queiroz de 1850 e suas conseqüências para libertar africanos e para a continuidade da escravidão. A lei afirmou o firme compromisso do governo e da justiça imperial de acabar com o comércio de escravos no Atlântico. Mas dificilmente questionou a cumplicidade do Estado e da elite com a escravidão criminal de africanos nas duas décadas anteriores (Mamigonian, 2017, p. 284). Eusébio de Queiroz e outros agentes do governo enfatizaram a intolerância judicial ao comércio ilegal de escravos depois de 1850, promovendo o esquecimento público de quaisquer atividades ilícitas anteriores à lei de 1850. Assim, condenaram milhares de africanos a um cativeiro ilegal e reforçaram o apoio do Estado à exploração de escravos. Entre 1854 e 1864, no entanto, os africanos livres continuaram submetendo suas petições de liberdade aos tribunais:Mamigonian, 2017 , p. 322-323). Além disso, suas petições revelaram seus esforços para buscar alguma autonomia, apesar do cativeiro, formando famílias, aprendendo o idioma e tornando-se economicamente ativo por direito próprio. Ironicamente, suas realizações foram usadas no tribunal como prova de que não eram africanos, mas nascidos no Brasil, justificando decisões judiciais que negavam sua liberdade legítima.

Os capítulos finais do Africanos Livres revelam os esforços que o governo fez para prender os africanos livres que tentaram buscar sua liberdade e, inversamente, a luta persistente dos africanos pela emancipação ( Mamigonian, 2017p. 360-361). Mamigonian observa, em particular, a iniciativa de criar uma lista de africanos livres que procuravam proteger os proprietários de escravos daqueles que poderiam tentar questionar a legitimidade de suas reivindicações sobre a propriedade de escravos. Ajudados por abolicionistas, os africanos livres usaram os mesmos registros para argumentar que sua chegada ao Brasil era anterior à abolição do tráfico de escravos no Atlântico. A potencial subversão de tais esforços e a disseminação de noções de liberdade africana perturbaram o estado imperial e as classes proprietárias, que temiam desordem pública e perda de controle sobre as classes trabalhadoras. A vontade política emergente de resolver o problema dos africanos livres fortaleceu os esforços abolicionistas durante os anos finais do século XIX e preparou o terreno para a abolição da escravidão como um todo ( Mamigonian, 2017p. 454)

Beatriz Mamigonian conclui seu livro lembrando aos leitores o ministro Rui Barbosa e a decisão de outro funcionário de queimar listas de escravos e outros documentos relativos à história tardia da escravidão no Brasil. Mais uma vez, procuraram o esquecimento público do passado problemático do Brasil ( Mamigonian, 2017 , p. 454-455). Sua tentativa de resgatar os pecados da nação com fogo promoveu, além disso, uma narrativa histórica sobre a abolição que enfatizava demais as ações da elite política branca e das classes proprietárias. Ao rejeitar essa narrativa e aprofundar a história desse período, Mamigonian recuperou a relevância e a liderança política de outros atores históricos, principalmente africanos.

Referências

MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres : a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. [  Links  ]

Mariana Dantas – Universidade de Ohio, Departamento de História. Bentley Annex 457, Athens, Ohio, 45.701, Estados Unidos. dantas@ohio.edu.


MAMIGONIAN, Beatriz Gallotti. Africanos Livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 632 p. DANTAS, Mariana. Africanos Livres: Agentes da Liberdade no Brasil do Século XIX. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 65, Mai./ Ago. 2018.

No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central – DUTRA e SILVA (VH)

DUTRA e SILVA, Sandro. No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. 304 p. HEIZER, Alda. Natureza e Política: A ocupação de Mato Grosso de Goiás entre 1930 e 1950. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 65, Mai./ Ago. 2018.

No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central tem como objetivo apresentar o processo de ocupação de uma região de floresta tropical, mais conhecida como Mato Grosso de Goiás, a partir da análise das políticas de colonização entre 1930 e 1950.

O texto é bem escrito, distribuído em duas partes, ancorado em documentação textual e iconográfica variada, matéria-prima de rigorosa investigação. Privilegia a reflexão sobre os acontecimentos locais à luz de contextos mais amplos e se traduz numa contribuição efetiva “à internacionalização da História ambiental nas Américas” (Dutra e Silva, 2017, p. 16).

Com prefácio de Stephen Bell e apresentação de Donald Worster, ambos professores de universidades norte-americanas e autores preciosos para os argumentos apresentados, o livro propõe uma reflexão sobre como o mito do oeste em Goiás foi construído antes mesmo de se traduzir numa política governamental de colonização e imigração, proposta durante o Estado Novo (1937-1945).

De início, Sandro Dutra e Silva apresenta ao leitor suas escolhas teóricas bem como a opção feita por inserir suas próprias memórias, reforçando seu interesse pela representação do passado. O impacto causado pela cor do primeiro pôr do sol visto pelo autor, ainda menino, no Planalto Central e, mais tarde, ao revisitá-lo, nas descrições do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, de forma proustiana, é, no mínimo, instigante para quem inicia a leitura.

Além disso, para o autor, os sentidos que a paisagem do cerrado tiveram sobre ele são hoje muito mais afetivos e expressão de sua identidade goiana de raízes mineiras. É nesse momento que tem início a aventura do leitor, pelos versos de Cora Coralina, pelas descrições do menino de doze anos que olhava o Cerrado pela janela do automóvel do pai e por sua experiência acadêmica, em 2008, ao participar de um encontro da Sociedad Latinoamericana Y Caribeña de Historia Ambiental (Solcha), em Belo Horizonte – para o autor, um divisor de águas em suas pesquisas sobre a expansão da fronteira agrícola (Dutra e Silva, 2017, p. 29).

O livro oferece uma reflexão sobre o Oeste que ultrapassa a categoria de sertão: o Oeste Eldorado no Brasil central que se opõe a uma noção presente na historiografia brasileira sobre sertão como lugar hostil, terra de índios bravios.

Sandro Dutra e Silva, ao trabalhar fontes variadas, apresenta ao leitor elementos sobre o Oeste como “lugar” de promessas de terras livres, férteis e à disposição de homens e mulheres que se dispusessem a trilhar “a marcha para o Oeste”.

Num exercício constante de situar suas preocupações em um quadro teórico mais amplo no seio da história, e da história ambiental, em particular, o autor busca aproximações e distanciamentos com a tese do historiador norte-americano Frederick Jackson Turner (1861-1932) sobre o mito americano do começo absoluto, da identificação da marcha para o Oeste norte-americana, tão caros às discussões sobre fronteiras, mobilidade social e migrações, e que não poderiam estar de fora desse tipo de abordagem. O autor traz para a cena os autores brasileiros que se apropriaram em diferentes momentos da temática da fronteira, das reflexões sobre o homem e o mundo natural.

Ao apresentar o caso do Oeste brasileiro e o conteúdo ocupação e da colonização do Mato Grosso de Goiás, a obra traz suas especificidades: a destruição trazida pela expansão para o Oeste, a colonização de desflorestamento, a criação de projetos de cidades “signos do provisório” e a convivência lado a lado de projetos excludentes, espaços de modernidade e conservação, em análises muito bem sucedidas por meio de fontes documentais e vivência pessoal.

Um exemplo é o da cidade de Goiânia e o seu protagonismo no contexto da “marcha para o Oeste”. A cidade moderna, projetada em 1930, para seguir os passos de Belo Horizonte, sua precursora, mantinha traços da tradição rural, fato que causou estranhamento a Lévi-Strauss em sua visita, em 1937, ao testemunhar a convivência do palácio e os carros de boi num mesmo espaço (Dutra e Silva, 2017, p. 127).

Outro momento importante do livro é quando o autor traz à cena o lugar do povo outsider: “o outro lado do rio das almas”, a cidade estigmatizada, Barranca, como era conhecida. Anápolis, Ceres, sede da Colônia Agrícola de Goiás (CANG) e outros centros importantes “irradiadores das políticas de colonização”, estão presentes e são analisados historicamente.

Os personagens dessas histórias que se entrelaçam são muitos e poderíamos citar dentre eles Bernardo Sayão, que permitiu ao autor reconhecer os códigos através dos quais a história foi mediada (Dutra e Silva, 2017, p. 256).

Foi durante a década de 1940 e início dos anos 50 que o estado de Goiás utilizou uma intensa propaganda sobre migração e colonização bem como participou de parcerias com instituições e governos com a finalidade de atrair colonos, tanto nacionais como estrangeiros, para ocupar o território goiano. Período em que várias investidas de ocupação foram realizadas, como foi o caso dos alemães que, no pós-guerra, se instalaram no Paraná, mas que tiveram Goiás como primeira opção.

O livro chama a atenção para a criação de centros urbanos e analisa a formação das cidades na fronteira do Oeste do Brasil, consideradas núcleos de civilização. Barranca é um exemplo. Contrastes muito bem apresentados, como as imagens do baile da elite local no clube, o teatro e a rua, as imagens de Rialma, são contundentes.

Por fim, Sandro Dutra e Silva apresenta em seu livro questões que se localizam na fronteira de diferentes campos do saber e que estão na ordem do dia, como a destruição florestal e a perda da diversidade biológica.

O autor apresenta mudanças e permanências no tempo: não é essa afinal a tarefa a que se devem dedicar os historiadores?

Referências

DUTRA e SILVA, Sandro. No Oeste, a terra e o céu: a expansão da fronteira agrícola no Brasil central. Rio de Janeiro: Mauad X, 2017. [ Links ]

Alda Heizer – Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Rua Jardim Botânico, 1008, Rio de Janeiro, RJ, 22.470-180, Brasil. alda.heizer@gmail.com.

 

Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro – VISCARDI (VH)

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Unidos perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro. Curitiba: CRV, 2017. 207 p. PINTO, Surama Conde Sá. Arquitetura do novo regime: O Federalismo brasileiro na Primeira República. Varia História. Belo Horizonte, v. 34, no. 65, Mai./ Ago. 2018.

Nas últimas décadas, a historiografia relativa à Primeira República tem sido enriquecida com diversas contribuições. A vitalidade dessa produção tem provocado importantes deslocamentos de interpretação, sobretudo no âmbito da política, permitindo melhor compreensão do federalismo brasileiro. Há três eixos de renovação. Um deles relaciona-se à revisão do papel das chamadas oligarquias dominantes – São Paulo e Minas Gerais. Foram questionadas as ideias de que a hegemonia dessas oligarquias sustentavase na preeminência da economia exportadora cafeeira e a de que a política do café com leite ditaria a orientação do governo federal. O segundo eixo destaca as dinâmicas específicas de diferentes unidades da federação e suas estratégias para ampliarem os seus espaços políticos no contexto de federalismo desigual, através de tentativas de estruturação de eixos alternativos de poder. O terceiro eixo enfatiza questões de representação, competição política, partidos e voto, desenhando um quadro mais complexo da política na Primeira República, diferente da caricatura de um sistema político marcado pela fraude, violência, clientelismo, ausência de direitos e eternização de oligarquias no poder (Ferreira; Pinto, 2017, p.429-437).

Cláudia Viscardi, professora titular da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), é figura presente nesse debate. Autora de textos sobre a história política e social da Primeira República, no livro O Teatro das Oligarquias, defendeu que a estabilidade do modelo político da Primeira República foi garantida pela ausência de alianças monolíticas permanentes, fato que impediu, a um só tempo, que a hegemonia de uns fosse perpetuada e a exclusão de outros fosse definitiva (Viscardi, 2001, p.22).

Unidos Perderemos: a construção do federalismo republicano brasileiro, seu novo livro, é mais uma contribuição da historiadora mineira que acrescenta novas perspectivas sobre o período. Trata-se de uma adaptação da tese elaborada para a cadeira de titular da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Voltado para especialistas e estudantes de graduação, nele Viscardi retoma o tema do federalismo oligárquico para estudar a montagem do regime republicano, no período entre a propaganda republicana e o governo Campos Sales. Sua análise privilegia o âmbito da macropolítica, priorizando atores políticos envolvidos nesse processo, interesses, identidades, pensamentos e atuação. A proposta apresentada articula a perspectiva que compreende o federalismo a partir da lógica de interesses dos estados-atores com a História Intelectual do Político.

O curioso título guarda relação direta com o tema tratado: a construção do projeto republicano na sua principal dimensão: o federalismo. Segundo a autora, esse projeto representava uma ruptura com o passado monárquico, caracterizado por um Estado centralizado em torno do Imperador, e preconizava a descentralização, a autonomia das antigas províncias, optando pelo conflito no lugar do consenso (Viscardi, 2017, p.22).

O conceito de cultura política (Berstein, 1992Cefai, 2001) é um dos principais referenciais de análise. Ao instrumentalizá-lo, Viscardi prioriza a dimensão do discurso, não enfatizando seus demais componentes, para compreender as mudanças ocorridas no país na virada do século XIX para o XX, quando, segundo a autora, teria se consolidado uma cultura política republicana.

Dividido em cinco capítulos, o livro aborda o movimento republicano em uma de suas dimensões (a dos manifestos da propaganda); a normatização constitucional do novo regime (através da análise comparativa das Constituições estaduais e federal); limites da participação política e da cidadania, tema explorado superficialmente pela autora com base em literatura bastante conhecida; as concepções políticas e a ação de Campos Sales, objeto de análise dos dois últimos capítulos, nos quais figura sua maior contribuição.

São três os principais argumentos defendidos pela autora. O primeiro é o de que a normatização do novo regime articulou os compromissos do movimento republicano com os valores compartilhados por seus autores, que incluíam a desvalorização do povo, uma democracia pouco inclusiva, o falseamento da representação, pela construção de um federalismo desigual, e uma cidadania limitada a poucos homens letrados. O segundo é o de que o federalismo brasileiro foi fundamentado em relação direta com os estados, viabilizando a representação dos interesses privados via intermediação dos chefes locais. O último é o de que a chamada política dos estados de Campos Sales limitou-se a resolver os problemas de sua gestão. Na fórmula adotada no período, que implicou em meios de conviver com as dissidências sem colocar em risco a governabilidade, foram menos importantes as reformas regimentais relativas à última fase de depuração das candidaturas ao Parlamento. Os instrumentos mais efetivos foram a redução dos atores políticos através do voto literário, as limitações impostas à monopolização do poder e o desenho de um mercado político com algum grau de competição (Viscardi, 2017, p.190-191).

Baseada em fontes variadas (manifestos republicanos, as Cartas estaduais e federal, o discurso de campanha eleitoral de Campos Sales e a autobiografia do ex-presidente) e em diferentes metodologias (a prosopografia – superficialmente realizada-, a análise de discursos políticos – amparada em instrumentais da vertente britânica da História dos Conceitos – e o método comparativo), os dados apresentados aproximam-se de muitas das análises de Hilda Sábato sobre a construção da cidadania em países hispano-americanos no século XIX (Sábato, 2001, p.1293, 1297).

A despeito da bibliografia utilizada, o livro apresenta ausências importantes (Holanda, 2009), sobretudo relativas ao movimento republicano, às Constituições estaduais (Ferreira, 19891994), à política no Distrito Federal e às eleições (Pinto, 2011Souza, 2013). Isso faz com que algumas afirmações feitas já tenham sido objeto de questionamentos, como a ideia de que o prefeito do Distrito Federal possuía poderes discricionários na política carioca (Pinto, 2011). A obra prescinde também de maior sistematização dos dados apresentados.

Da mesma forma, a História Intelectual do Político proposta poderia ter sido enriquecida com a incorporação dos léxicos empregados pela imprensa e por pensadores políticos, pois há evidente defasagem entre as definições de conceitos encontrados nos dicionários (fonte priorizada pela autora) e a dinâmica dos conceitos no embate político. Esses elementos, contudo, não comprometem a iniciativa.

No momento em a República brasileira está prestes a completar 130 anos, Unidos perderemos convida os leitores a repensar os primórdios do regime e a superar esquematismos de longa data difundidos em livros didáticos. Seu mérito é acrescentar novos itens na agenda de estudos sobre a Primeira República.

Referências

BERSTEIN, Serge. L’Historien et la culture politique. Vingtième Siècle. Revue d’Histoire, n. 35, juil/sep. 1992. [ Links ]

CEFAI, Daniel. Cultures Politiques. Paris: Presses Universitaires de France, 2001. [ Links ]

FERREIRA, Marieta de Moraes (coord.). A República na Velha Província. Rio de Janeiro: Ed. Rio Fundo, 1989. [ Links ]

FERREIRA, Marieta de Moraes. Em Busca da Idade do Ouro: As elites políticas fluminenses na Primeira República. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1994. [ Links ]

FERREIRA, Marieta de Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. Estados e oligarquias na Primeira República: um balanço das principais tendências historiográficas. Revista Tempo, Niterói, vol. 23, n. 3, set./dez., 2017. [ Links ]

HOLANDA, Cristina Buarque de. Modos de Representação Política. O experimento da Primeira República. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2009. [ Links ]

SÁBATO, Hilda. On political citizenship in the Nineteenth-century Latin América. The American Historical Review, vol. 106, n. 4, oct., 2001. [ Links ]

SOUZA, Wlaumir Doniset de. Democracia Bandeirante: Distritos eleitorais e eleições no Império e na Primeira República. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. [ Links ]

PINTO, Surama Conde Sá. Só para Iniciados: O jogo político na antiga Capital Federal. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Mauad X/ FAPERJ, 2011. [ Links ]

VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O Teatro das Oligarquias: Uma revisão da política do café com leite. Belo Horizonte: C/Arte, 2001. [ Links ]

Surama Conde Sá Pinto – Instituto Multidisciplinar, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Av. Governador Roberto Silveira, s/n. Nova Iguaçu, Rio de Janeiro, 26.020-740, Brasil. suramaconde@uol.com.br

 

Partir pour la Grèce – HARTOG (VH)

HARTOG, François. Partir pour la Grèce. Paris: Flammarion, 2015. 286 p. TRABULSI, José Antonio Dabdab. Partir pour la Grèce. Varia História. Belo Horizonte, v. 33, no. 62, Mai./ Ago. 2017.

Na década de 1960, meu querido mestre Pierre Lévêque convidava os franceses a viajar, numa série de guias então muito conhecidos (Partons pour la Sicile; Partons pour la Grèce). E é para uma viagem igualmente interessante, mas de outra natureza, uma verdadeira viagem ao interior da nossa cultura, que nos convida François Hartog. E é um encantamento viajar com ele, nas páginas deste livro.

Trata-se de uma coletânea de textos mais ou menos recentes, ligados pelo interesse permanente do autor pelas relações que a nossa cultura manteve com a Antiguidade. É uma feliz iniciativa, essa de juntar num volume esses escritos de vária natureza (artigos, introduções, prefácios e outros), alguns de difícil acesso, outros de acesso quase confidencial, pois esses textos formam um conjunto coerente e uma reflexão de fundo sobre a questão. Conhecemos a importância do tema para o autor, especialmente em seus livros sobre Le XIXe siècle et l’Histoire. Le cas Fustel de Coulanges (Paris, PUF, 1988), Régimes d’historicité (Paris, Seuil, 2003), Anciens, Modernes, Sauvages (Paris, Galaade, 2005), ou ainda Evidence de l’Histoire (Paris, Editions de l’EHESS), entre outros.

Os escritos diversos aqui reunidos são enquadrados por um prefácio substancial (“La Grèce vient de loin”, pp. 9-48), e por um epílogo (“Vers d’autres départs”, pp. 269-276) que augura e deseja que outras viagens sejam empreendidas. Ao longo dos capítulos, o conjunto de temáticas caras ao autor são tratadas. Destaquemos algumas, como “O duplo destino dos estudos clássicos”, pp. 49-68), onde ele explica os estudos clássicos como “mais e menos do que uma disciplina” (p. 50 sq.), para mergulhar em seguida num questionamento sobre as condições de surgimento da nossa disciplina. Em referência às Sagesses barbares caras a Momigliano, ele nos explica a “endurance du Barbare” (pp. 115-137), um de seus primeiros textos, que testemunha de seu interesse de sempre pelas relações entre Antigos, Modernos, Bárbaros e Selvagens.

Os capítulos 3 a 6 formam um verdadeiro elenco de “partidas para a Grécia”, onde, voltando a Winckelmann, ele faz a revista das abordagens mais importantes ao longo da época contemporânea: a partir da Romênia, com Mircea Eliade (pp. 149-157); a partir de Cambridge, com Moses Finley (pp. 157-162); a partir do “fim da democracia ateniense”, com Claude Mossé (pp. 162-178). Ele examina também uma série de “partidas francesas” para uma Grécia à moda francesa”, senão até para “cidades gregas à francesa”, de Fustel de Coulanges a Emile Durkheim, e de Emile Durkheim a Jean-Pierre Vernant. Ele aí retraça os percursos a partir de uma posição de grande conhecedor dos problemas e da maioria das pessoas envolvidas (o que dá ao texto deste historiador considerado austero um tom afetivo inabitual). É uma das mais belas “aventuras gregas” do nosso século XX, a da antropologia histórica e a da psicologia histórica, com Gernet, Meyerson e Vernant, e também a das relações entre memória e história, com Vidal-Naquet, que é aqui tratada. Na apresentação do livro, tínhamos recebido a promessa de uma investigação sobre o nosso relacionamento com a Grécia, pois “essa herança, durante tanto tempo no coração da cultura europeia, é feita de múltiplas viagens em direção a um objeto feito e refeito ao longo dos séculos. De que significações a Grécia foi sucessivamente portadora, em Roma, na Idade Média, no Renascimento, e desde a Revolução francesa? De que maneiras ela ajuda a definir as identidades culturais ou nacionais, a democracia, a história? E que sentido isso pode ter, ainda hoje, ‘partir para a Grécia’?” (quarta capa). Podemos dizer que a aposta foi ganha com o texto do livro.

O leitor me perdoe, por favor, por não entrar mais no detalhe dos capítulos deste livro impossível de resumir, em sua grande variedade de temáticas. Que ele considere isto mais uma notícia do que uma resenha. O livro, entretanto, apesar de um aspecto um pouco disperso por ser uma coletânea de textos escritos em momentos muito diferentes da vida do autor, possui uma unidade profunda, que é a do pensamento de Hartog. Para os que conhecem bem os livros do autor, sua leitura será um prazer renovado e prolongado; para os que não conhecem seus livros, será uma excelente introdução, que dará certamente vontade de ler todos os outros. Pensando bem, ele é talvez uma espécie de balanço da obra de Hartog; mas tudo o que nós pedimos a ele é que não pare de nos levar em outras viagens.

José Antonio Dabdab Trabulsi – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Antônio Carlos 6627, Campus Universitário Belo Horizonte, MG, 30.310-770, Brasil. dabdabtrabulsi@fafich.ufmg.br.

A Erradicação do Aedes aegypti: Febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968) – MAGALHÃES (VH)

MAGALHÃES, Rodrigo César da Silva. A Erradicação do Aedes aegypti: Febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968). Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2016. 420 p. ANAYA, Gabriel Lopes. A Erradicação do Aedes aegypti: Febre amarela, Fred Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968). Varia História. Belo Horizonte, v. 33, no. 62, Mai./ Ago. 2017.

O livro de Rodrigo Magalhães tem como foco a Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti promovida pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) entre 1947 e 1968. A narrativa historiciza de maneira bastante articulada como a Campanha Continental foi o resultado de um processo histórico dinâmico, com antecedentes na Campanha Mundial de Erradicação da Febre Amarela da Fundação Rockefeller (FR), iniciada em 1918. Nesse processo, Magalhães aborda uma multiplicidade de condicionantes políticos e científicos no desenvolvimento da Opas, e como um programa de erradicação internacional pioneiro, considerando suas continuidades e descontinuidades históricas, influenciou os rumos da saúde pública internacional ao longo de cinco décadas.

O trabalho é bem sucedido na sua análise de como a Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti se definiu como um dos grandes esforços de cooperação internacional pautando de maneira decisiva a “definição da agenda de saúde internacional do século XX” sendo responsável em grande medida por um estreitamento das relações internacionais que culminou na consolidação de “um processo de cooperação interamericana na área de saúde que perdura até hoje” (p.329). Expondo de maneira habilidosa a própria história do princípio de erradicação no âmbito das relações em saúde pública no contexto internacional, Fred Lowe Soper (diretor do Serviço Cooperativo de Febre Amarela no Brasil em 1930, e posteriormente diretor da Opas a partir de 1947) se destaca como fio condutor da narrativa de Magalhães, enfatizando a confiança desse personagem histórico na erradicação de espécies de mosquitos como solução para doenças como a febre amarela e a malária. O ápice narrativo guiado pela atuação de Soper se dá no capítulo 6: “A ‘Era Soper de Erradicação’ e o apogeu da Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti.”

No percurso de sua narrativa é notável a habilidade de Magalhães em apresentar de maneira clara a diversidade das relações estabelecidas entre pesquisadores e autoridades em saúde pública de uma comunidade internacional em crescimento. Ao longo de pelo menos cinco décadas, são analisados os processos políticos e científicos que favorecem retomada da proposta de erradicação (como o extermínio do mosquito Anopheles gambiae do Brasil em 1940 e o advento do DDT após a Segunda Guerra Mundial) e sua modulação a novos contextos e expansão, com o início da Campanha Continental e consolidação da Opas. Se Fred Soper é uma importante personalidade que sustenta a narrativa de Magalhães (participando dos principais eventos ao longo do recorte temporal desenvolvido), o mesmo está longe de ser retratado como um personagem plano, motivado cegamente por uma postura erradicacionista simplória com motivações imperialistas. Na conturbada década de 1960, quando há uma reinfestação do A. aegypti na América Central e do Sul, concomitantemente ao fracasso da campanha contra esse mosquito nos EUA, Magalhães aponta importantes controvérsias e condicionantes históricos que ajudaram a delinear o fim da Campanha Continental em 1968. É nesse instigante período de inflexão, que sua narrativa mostra o seu ponto alto, na medida em que apresenta Soper como crítico de seu próprio país ao pressionar “ativamente o governo norte-americano a aderir ao programa de erradicação continental, com o qual o país tinha assumido um compromisso formal” (p.289). O incremento na cooperação entre as repúblicas americanas e o papel fundamental da Opas ao final da década de 1950, coloca em evidência a delicada posição dos EUA na sua ausência em implementar as medidas contra o mosquito em seu próprio território – iniciativa tomada apenas em 1964.

A publicação é fruto da dissertação de doutorado chamada: A Campanha Continental para a Erradicação do Aedes aegypti da OPAS e a Cooperação Internacional em Saúde nas Américas (1918-1968), defendida por Magalhães em 2013 pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ. O volume de documentos pesquisados fornecem a base para uma abordagem abrangente e sólida, que maneja com sucesso os desafios narrativos que se apresentam nas tensões das narrativas históricas transnacionais. Entre os arquivos situados no Brasil estão o arquivo da Casa de Oswaldo Cruz (COC) e do Centro de Pesquisa e Documentação em História Contemporânea do Brasil (CPDOC-FGV) ambos no Rio de Janeiro, e o Centro de Memória da Saúde Pública da Universidade de São Paulo. A pesquisa internacional se deu nos EUA, principalmente no Rockefeller Archive Center (Sleepy Hollow – NY) e o National Library of Medicine (Bethesda – MD). De maneira geral, a análise focada na história dos programas de saúde pública e órgãos internacionais apresentados é equilibrada, se encaixando no que pode ser chamado de terceira onda dos estudos históricos relacionados à Fundação Rockefeller, pois considera as nuances de diversos contextos e complexidades situadas das relações transnacionais.

A perspectiva apresentada se coloca especialmente no questionamento da visão puramente imperialista, ou “via de mão única” e observa o forte intercâmbio interamericano proporcionado pelo caso em questão como um complexo entrelaçamento das relações político-científicas que integra o campo da história da saúde internacional. Destaca-se a importância dada às relações entre os países da América Latina para além da “questão da hegemonia de um suposto modelo sanitário norte-americano” (p.323), enriquecendo os sentidos das relações político-científicas no âmbito da saúde internacional. A qualidade da pesquisa e engenhosidade com o manejo das fontes na narrativa fornece uma grande contribuição historiográfica para o campo.

A evidência atual do Aedes aegypti nas políticas de saúde internacional e a necessidade por histórias que ressoem com inquietações do presente tornam tal publicação indispensável. A articulação do conteúdo, fontes e especialmente das questões colocadas acerca do entrelaçamento entre a história das doenças transmitidas por mosquitos e as políticas de saúde pública nas relações internacionais pode parecer demasiado densa para o leitor casual ou sem contato com o tema, porém, com a elucidativa introdução e inteligente divisão dos capítulos, essas dificuldades iniciais tendem a ser minimizadas, favorecendo o percurso do leitor não familiarizado.

Gabriel Lopes Anaya – Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde. Casa de Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4365, Rio de Janeiro, RJ, 21.045-900, Brasil. gabriel.lopes.mailbox@gmail.com.

Fama pública: Poder e costume nas Minas setecentistas – ROMEIRO (VH)

SILVEIRA, Marco Antonio. Fama pública: Poder e costume nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec, 2015. 356 p. ROMEIRO, Adriana. Varia História. Belo Horizonte, v. 33, no. 61, Jan./ Abr. 2017.

Mais de quinze anos depois de sua defesa como tese de doutorado, vem à luz o livro Fama pública: poder costume nas Minas setecentistas, de Marco Antônio Silveira, em cuidadosa edição da Hucitec, prefaciada por João Adolfo Hansen.

Trata-se de um livro original. E por várias razões, a começar pelo investimento maciço num corpus documental tão rico quanto pouco explorado pela historiografia sobre Minas Gerais: os libelos cíveis, depositados no Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência. Em segundo lugar, pela sofisticação de sua abordagem teórico-metodológica, presente também em trabalho anterior do mesmo autor, O universo do indistinto, inegavelmente uma referência obrigatória sobre a sociedade mineira do século XVIII, cujas questões centrais são aqui retomadas e aprofundadas a partir de uma nova perspectiva. E, por fim, pelo olhar arguto com que Silveira formula seu repertório de problemas às fontes.

A arquitetura do livro merece destaque. Já de início, o autor apresenta as referências conceituais que orientam a investigação, expondo ao leitor os fundamentos teóricos sobre os quais constrói o seu argumento. Cada um dos capítulos é dedicado então à análise de um ou mais libelos cíveis, os quais desvelam histórias de vida, conflitos familiares, solidariedades vicinais, enfim, a trama microscópica que compunha o cotidiano das comunidades rurais da capitania, ao longo do século XVIII. Essa trama densa, protagonizada por brancos, negros e mestiços, é a matéria-prima de uma reflexão sólida e instigante sobre a natureza e a dinâmica da sociedade mineira. Ao final de cada capítulo, o autor junta os fios dispersos e alinhava as suas teses, desenhando uma interpretação inovadora sobre a “invenção da sociedade mineira” (p.27).

Do ponto de vista metodológico, a obra alia uma abordagem antropológica a uma perspectiva histórica. Como antropólogo, Silveira se debruça ao rés-do-chão, aproximando as suas lentes do cotidiano das comunidades rurais, com o propósito de sondar as ideias, os valores, as práticas e os comportamentos que estruturavam a vida social. É da antropologia inglesa, particularmente dos trabalhos de Victor W. Turner, que vem a inspiração para a estratégia analítica calcada na “possibilidade de traçar, por meio deles, as estruturas sociais que lhes emprestavam significado” (p.29). Graças ao conceito de drama social, o leitor se vê como o espectador privilegiado de uma cena que se desenrola diante dos seus olhos: a experiência cotidiana de homens e mulheres, extraída da vida real e concreta. Nota-se também a influência do método de descrição densa de Clifford Geertz, sobretudo na ênfase dada à dimensão social dos significados partilhados pelos sujeitos históricos; e do paradigma indiciário de Carlo Ginzburg.

Como historiador, Silveira investiga o impacto das transformações em curso no século XVIII na dinâmica da sociedade mineira, articulando-o ao contexto macroscópico da emergência do mercado capitalista, que solapou os velhos valores e solidariedades, transtornando as sociabilidades tradicionais. É nesse cenário que a sociedade mineira teve de se inventar, elaborando os seus códigos de estratificação, em meio a forças de sedimentação e subversão, do que resultou um universo fluido, convulsionado e instável, permeado por contradições de toda sorte. Contradição entre as diferentes propostas de ordenamentos social, entre o costume e a lei, entre as solidariedades comunitárias e o apego à propriedade privada, entre as sociabilidades e a privacidade burguesa, entre a piedade e a violência das relações mercantis, entre a caridade e o lucro… Contradições que dão lugar a uma sociedade extremamente conflituosa, que Silveira descreve recorrendo a metáforas bélicas, tais como “campos de batalha” e “guerra”, em tudo contrária à imagem de comunidades idílicas e harmoniosas.

Ao leitor atento, não passam despercebidos os ecos das geniais análises de Sérgio Buarque de Holanda sobre a instabilidade congênita do universo social mineiro, que mal conseguia “dissimular a ebulição íntima”, pois que nascido sob a égide do aluvionismo, era “uma estrutura movediça que se desmancha, em partes, e se recompõe continuamente, ao sabor de contingências imprevisíveis (…)” (Holanda,1982, p.259-310) Para Silveira, é no arrivismo que se encontra a origem dessa dinâmica: de negros a brancos, todos buscavam ali a ascensão social, legitimando suas demandas por meio do repertório dos costumes locais, dos valores cristãos como piedade e caridade, do direito formal, num esforço para esgarçar as fronteiras da classificação social.

É de Sérgio Buarque de Holanda também outro conceito-chave do livro: o descrédito do formalismo, ou seja, o embaralhamento dos signos de distinção, típico do processo vertiginoso de ascensão, esvaziada dos padrões europeus de civilização. Homens rudes que o ouro enriquecia, mas não civilizava, transformavam a lógica social do Antigo Regime numa espécie de simulacro banal.

Os libelos cíveis põem a nu esse intrincado e complexo processo de ordenamento social, no qual a cultura jurídica funcionava como mais um instrumento de disputa nas mãos de homens e mulheres empenhados em fazer valer seus direitos, privilégios e benefícios, em meio à fragilidade do Estado, à economia moral comunitária e às exigências da nova ordem econômica. Nas palavras do autor, “manipulando o choque entre formal e informal, homens e mulheres reunidos no buraco negro das obrigações mútuas buscavam remodelar a seu favor as disposições de poder e patrimônio” (p.273).

O livro de Silveira ainda nos coloca diante de uma questão fundamental: será possível falar em colonização, sem levar em consideração os múltiplos sentidos que ela adquiriu no cotidiano de homens e mulheres? Aqui, já não se trata mais de privilegiar modelos teóricos apriorísticos, ou de perseguir a adesão ou a resistência ao projeto colonizador português, mas de reconhecer o peso da dimensão cultural e valorativa dos agentes históricos e sua imensa capacidade de criar sentidos novos. A colonização surge então como experiência – no sentido de E.P. Thompson – que só pode ser entendida à luz das inúmeras dimensões da vida social, num emaranhado em que se confundem “as práticas sociais e os valores, a vida material e as elaborações simbólicas, as instituições e o cotidiano.” (Silveira, 2001, p.985)

Fama pública é, por fim, um livro corajoso. Nesses tempos em que conceitos como acomodação e negociação tendem a elidir contradições e conflitos, ele nos proporciona uma representação da sociedade mineira como guerra sem trégua…Ou, ainda, quando se assiste ao deslocamento da escravidão como chave para compreensão do mundo colonial, em nome de aproximações com as categorias do Antigo Regime, Silveira, inspirado pela melhor tradição historiográfica brasileira, nos lembra que, afinal, a colônia foi, acima de tudo, uma sociedade escravista.

Referências

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In HOLANDA, Sérgio B. de (ed.). História Geral da Civilização Brasileira , 5a ed., tomo 1, vol. 2. São Paulo: Difel, 1982. p.259-310. [ Links ]

SILVEIRA, Marco Antonio . Ideologia, colonização, sociabilidade. In JANCSÓ, István e KANTOR, Iris (org.) Festa: cultura e sociabilidade na América Portuguesa . vol. 2 São Paulo: FAPESP/Imprensa Oficial, 2001. p.979-990. [ Links ]

Adriana Romeiro – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais, Av. Antônio Carlos 6627, Campus Universitário, Belo Horizonte, MG,Brasil 31.270-901, adriana.romeiro@uol.com.br.

Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial – CABRAL (VH)

CABRAL, Diogo de Carvalho. Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial. Rio de Janeiro: Garamond/FAPERJ, 2014. 536 p. VITAL, André Vasques. Na Presença da Floresta: Mata Atlântica e História Colonial. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 60, Set./ Dez. 2016.

A História é a ciência dos homens no tempo. Essa noção se inspira nas ideias de Marc Bloch e das primeiras gerações da Escola dos Annales. Trata-se de um lugar-comum que é onipresente na formação dos experientes e dos jovens historiadores. O leitor, após viajar pelos múltiplos fluxos materiais emaranhados, minuciosamente mapeados em Na Presença da Floresta, corre o sério risco de se questionar sobre a atual pertinência de considerar o humano como o único sujeito da História. O livro de Diogo de Carvalho Cabral apresenta uma nova abordagem que rejeita a centralidade do humano na História. Esse trabalho repensa a noção de agência e propõe uma metodologia mais relacional, incluindo os não-humanos como agentes ativos na História por meio de sua presença e materialidade na conformação de processos políticos, sociais, econômicos e culturais. Em meio às dramáticas transformações sociais promovidas por furacões, microorganismos, vetores de doenças e outras entidades direta e indiretamente fortalecidas pelas atuais mudanças climáticas, a obra de Diogo Cabral é um chamado aos historiadores e, principalmente, aos historiadores ambientais, a repensar o papel dos não-humanos na História.

Diogo Cabral, geógrafo e pesquisador do Departamento de Recursos Naturais e Meio Ambiente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, confeccionou sua obra a partir de um amplo diálogo transdisciplinar. História, Geografia, Ecologia e Filosofia, são as principais áreas que se encontram emaranhadas na obra, cuja metodologia tem forte inspiração marxista e latouriana, privilegiando interações, conexões, híbridos e processos de metabolismo social. Cabral mantém, principalmente, um diálogo forte com a História Ambiental, campo ao qual busca contribuir ao aprofundar suas perspectivas teórico-metodológicas. Embora o autor considere Na Presença da Floresta uma obra de síntese, ela contém também uma robusta e diversificada quantidade de fontes primárias que são interpretadas ou reinterpretadas a luz de uma abordagem completamente inovadora.

Em quatro partes divididas em dezessete capítulos, Diogo Cabral analisa o papel da Mata Atlântica na conformação social, cultural e, sobretudo, política e econômica do Brasil colonial. A primeira parte é destinada a análise das técnicas que emergiram das relações, ora tensas, ora colaborativas, ou mesmo conflituosas, entre os neobrasileiros e os múltiplos agentes dentro e fora da Mata Atlântica. Aborda especialmente o papel da floresta, das madeiras, dos animais, dos insetos, do fogo, da cana-de-açucar, das embarcações, do oceano Atlântico, da escravidão indígena e africana, da mandioca e das cidades na formação da colônia. A segunda parte analisa os conflitos políticos advindos da tentativa da Coroa Portuguesa em assegurar o monopólio da exploração e a conservação de espécies arbóreas da Mata Atlântica que eram fundamentais para a construção naval. O autor ressalta que esses conflitos envolveram não só as populações da colônia marginalizadas pelas políticas de conservação florestal e pelo combate ao contrabando, mas também várias espécies florestais e animais que em muitos momentos representaram um entrave a política metropolitana. Na terceira parte, é analisado o sistema econômico colonial, especialmente a exploração madeireira, em comparação com o caso das treze colônias da América do Norte. Para o autor, uma série de fatores biogeográficos dificultou a formação de uma economia de exportação de madeira consistente no Brasil até o século XVIII. No último capítulo, Cabral retoma as conclusões dos capítulos anteriores para analisar as implicações historiográficas e políticas de analisar a Mata Atlântica em um quadro social alargado, ou seja, rejeitando a floresta como palco/cenário, encarando-a como um conjunto de agentes históricos.

O autor está a todo o momento atento às diferentes espacialidades e temporalidades em conexão. A própria Mata Atlântica é composta por múltiplas temporalidades e espacialidades anteriores à chegada dos europeus, condição que ganha maior complexidade na obra com a análise de sua presença na política e economia colonial. A busca por dar conta de quatro séculos de inúmeros processos com uma abordagem horizontal é bastante ousada e reforça a densidade da análise. Contudo, a leitura da obra torna-se mais desafiadora e cansativa: o leitor vai se deparar com uma narrativa muito mais fractal do que linear. Longe de ser um problema, esse tipo de narrativa é um caminho lógico dentro da abordagem escolhida pelo autor.

Cabe ressaltar ainda que Na Presença da Floresta está na contramão de obras que analisam a Mata Atlântica exclusivamente sob o ponto de vista da destruição ambiental, como é o caso do estudo clássico A Ferro e Fogo de Warren Dean. É aqui que o estudo de Diogo Cabral se diferencia das perspectivas, ainda majoritárias dentro do campo da História Ambiental, nas quais a natureza é recurso ou receptáculo/palco das representações e ações humanas. A obra deixa enxadas, navios, fogo, espécies arbóreas, saúvas e etc., “falarem” a partir das fontes, identificando o seu protagonismo na formação social, cultural e também nas tramas políticas e na economia. É uma abordagem relacional, pós-humanista, que desafia o tradicional antropocentrismo arraigado na escrita da história.

Na Presença da Floresta é um livro sobre o passado, mas com vistas no futuro. É uma obra de descolonização do pensamento rumo a uma nova ética relacional. É indicado para historiadores e pessoas, acadêmicas ou não, que entendem que o momento atual exige diferentes proposições e mudanças drásticas: novas formas de pensar, novas formas de ação e novas formas de relação com o radicalmente outro.

André Vasques Vital – Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Av. Brasil, 4365, Rio de Janeiro, RJ, 21.040-360, Brasil, vasques_hist@yahoo.com.br.

Inherit the Holy Mountain: Religion and the Rise of American Environmentalism – STOLL (VH)

STOLL, Mark R. Inherit the Holy Mountain: Religion and the Rise of American Environmentalism. New York: Oxford University Press, 2015. 406 p. SILVA, Sandro Dutra e. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 59, Mai./ Ago. 2016.

Nos últimos anos temos sido surpreendidos com a vasta produção intelectual no campo da história ambiental. Uma evidência das preocupações historiográficas com o mundo natural, principalmente no escopo qualitativo dos debates e dos temas no qual emergem os questionamentos, cada vez mais múltiplos, sobre a relação entre a história e a natureza. Esse é o caso da importante obra Inherit the Holy Mountain: religion and the rise of American Environmentalism, do historiador norte-americano Mark Stoll.

O trabalho de Stoll reflete o exercício intelectual sobre o qual se dedicou, por quase três décadas, no exaustivo ofício de responder historicamente sobre o background protestante nas origens do movimento ambiental nos Estados Unidos. Dito isso, reforço a importância de um trabalho que deve ser entendido sobre duas premissas iniciais: (i) não se trata de uma aventura historiográfica, mas o amadurecimento do tema a partir da experiência acadêmica de um historiador com grande trânsito no campo ambiental; (ii) o trabalho não utiliza da retórica e nem do proselitismo em seus argumentos, nem se presta à defesa engajada de uma tese contra premissas anteriormente apresentadas sobre a cultura judaico-cristã.

Não é esse o caminho de Mark Stoll ao tratar do tema. Destaco que as conexões entre a visão apreciativa da natureza e o background calvinista surgiram em pesquisa sobre o ativista ambiental John Muir. Essa percepção foi a motivação necessária para que ele investigasse a repetição desse modelo e as bases culturais que propiciavam uma representação do mundo natural a partir de distintos grupos religiosos nos Estados Unidos. Na década de 1990 publicava o seu primeiro trabalho sobre as origens protestantes do ambientalismo americano no livro Protestantism, Capitalism, and nature in America. As pesquisas se aprofundaram com a ampliação de correlações entre determinadas denominações protestantes e a ação de teólogos, ambientalistas, artistas plásticos, poetas, burocratas e políticos, dentre outros, resultando no primoroso trabalho que é Inherit the Holy Mountain.

A tese central deste livro é que as origens do ambientalismo norte -americano, presente nos movimentos de conservação da natureza, legislação ambiental e preservação da Wilderness, tiveram um background protestante, fundamentando-se, sobretudo, nos grupos calvinistas da Nova Inglaterra: os congressionais e os presbiterianos. Tomados como sujeitos históricos da expansão da ética conservacionista e do discurso de moralização da vida e ordem social puritana, essas comunidades foram analisadas a partir do ethos social, por meio de um conjunto rico e diverso de fontes na interpretação dos seguintes processos: a teologia da natureza nos discursos do próprio Calvino e nos sermões dos ministros calvinistas na Europa e Estados Unidos entre os séculos XVII a XIX; a estética artísticas e o profundo valor teológico dos pintores do Connecticut Valley que revelavam a paisagem e a moral social expressa no papel contemplativo e moralizante da natureza; os projetos urbanos e a relação entre os espaços sociais e a função moral dos bosques e parques públicos; os hábitos de imersão na Wilderness como devoção protestante de contato com a natureza, vista como revelação divina a ser “lida” no book of nature ; na criação de instituições científicas para o uso e conservação dos recursos naturais; a política de manejo agrícola, silvicultura e a instituição burocrática de normas e organizações voltadas para a conservação da natureza; o ativismo ambiental e os valores religiosos no hábitos dos seus agentes; a criação e ampliação de áreas protegidas, dentre outras.

Interessante o ponto de partida, centrado na ação social de personagens ligadas ao movimento ambientalista e com background calvinista, e que marcam toda a obra. Um exemplo é a obra de Thomas Cole, “The Oxbow”, exposta na exibição da National Academy of Design de Nova York em 1836, que evidencia o caminho erudito em relacionar estética, paisagem e ethos puritano no refinado trabalho da interpretação histórica. Stoll ressalta que os sujeitos por ele analisados tinham o coração na igreja de Hartford e a mente na universidade em Yale, o mainstream intelectual dos calvinistas. Mark Stoll aproxima a sua objetiva na interpretação do ethos sem cair nas armadilhas da delimitação que coletiviza e reduz o objeto. Esse é um dos grandes méritos da obra, sobretudo ao apresentar o background religioso a partir de personagens caras ao movimento conservacionista, e que muitos trabalhos biográficos simplesmente não perceberam esse background no jogo histórico do ativismo e da causa ambiental.

O autor faz uma análise consistente sobre a base epistemológica da “teologia da natureza”, fundamentando-se nos princípios do melhor aproveitamento dos recursos naturais na agricultura (Improvement ) e na conservação das florestas, mananciais e outros bens naturais para as futuras gerações (Stewardship ). Improvement e Stewardship são conceitos-chave da tradição calvinista e que o historiador se apropriou com maestria na intepretação da trajetória de diferentes personagens ligadas ao ativismo de proteção da natureza nos Estados Unidos como Pinchot, Marsh, Thoreau, Emerson, John Muir, Rachel Carson, Theodore Roosevelt, dentre outros.

Importante mencionar que a obra não se limita a abordar exclusivamente os calvinistas. Outras filiações religiosas como os Batistas, Metodistas, Batistas afro-americanos, católicos e judeus também foram contemplados sob a ótica da atuação no movimento ambiental contemporâneo. A temática ambiental desses grupos, no entanto, não privilegia os preceitos conservacionistas, mas os direitos civis, alimentação orgânica, lutas sociais, dentre outras. A concepção transcendentalista e sua ética conservacionista também foi abordada. No entanto, ficou confusa as descrições do transcendentalismo e sua complexidade filosófica em meio ao debate protestante e às origens de Ralph Waldo Emerson.

Uma das contribuições mais originais é a rica abordagem da atuação dos presbiterianos na instituição de leis nacionais e de agências de conservação, parques e florestas durante a Progressive Era (1885-1921). A administração de quatro presidentes presbiterianos (Harrison, Cleveland, Theodore Roosevelt e Wilson) foi destacada na ampliação nacional da proteção à natureza. Aliando história política e história ambiental destaca a ampliação das áreas protegidas e a participação privilegiada de políticos, ambientalistas e burocratas nesse período.

Considero que Inherit the Holy Mountain traz um revigorante olhar historiográfico, que oferece um requintado aporte teórico-metodológico e pode ser considerada a masterpiece de um dos mais notáveis historiadores ambientais da América.

Sandro Dutra e Silva – Pós-Graduação Stricto Sensu Territórios e Expressões Culturais no Cerrado, Universidade Estadual de Goiás, Campus Anápolis de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas Anápolis, GO, 75.132-400, Brasil. sandrodutr@hotmail.com.

Os Heróis da Pátria: Política Cultural e História do Brasil no Governo Vargas – FRAGA (VH)

FRAGA, André Barbosa. Os Heróis da Pátria: Política Cultural e História do Brasil no Governo Vargas. Curitiba: Editora Prismas, 2015. 269 p. PAIXÃO, Carlos Nássaro. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 59, Mai./ Ago. 2016.

Os principais objetivos do livro acima referenciado são identificar, descrever e analisar o processo de constituição de uma política coordenada de Estado, no sentido da construção de um panteão de heróis nacionais durante o primeiro governo Vargas (1930-1945). Esta tinha por objetivo constituir uma gama de exemplos e valores que deveriam formar o cidadão novo, em conformidade com os ideais do regime, a saber, o patriotismo, o nacionalismo, a obediência à ordem e o sacrifício pelo Brasil, bem como: buscar no passado as respostas e as formas de agir em uma dada conjuntura no presente. Isto seria realizado pelos usos políticos do passado e pela construção de uma memória histórica.

O princípio da argumentação busca definir a política estabelecida desde o início do regime Vargas, com a valorização dos diversos símbolos nacionais, tais como o Hino Nacional e a Bandeira, dentro de um processo mais amplo de legitimação e manutenção do governo. Entre os símbolos eleitos pelo regime, o autor analisa especialmente o herói nacional.

Na política de valorização dos heróis, houve um processo de formação de um panteão, a partir de uma série de ações que tinham o intuito de potencializar a formação e o culto de vultos do passado. Estas foram marcadas pelo batismo de logradouros, inauguração de bustos e monumentos em sua homenagem. Foram criados instituições e espaços voltados amplamente para o culto ao passado, como o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, o Museu da Inconfidência (1942), na cidade de Ouro Preto e do Museu Imperial (1940), em Petrópolis.

Além disso, os restos mortais dos inconfidentes foram procurados e trasladados para o Brasil, expostos em várias cidades e, finalmente, instalados no panteão dos inconfidentes, quando da inauguração do Museu da Inconfidência. Todo este processo culminou na construção do próprio Vargas como um herói: aquele que conduziria o Brasil à máxima realização do seu destino.

O processo de construção dos heróis que melhor respondiam aos interesses do regime foi marcado por seleção e hierarquização, além de uma política consertada entre os membros do governo para a valorização de determinados vultos. O autor percebe que esta escolha foi amplamente marcada pelo contexto e, principalmente, pelos valores que se queriam difundir. Durante o período, três figuras foram evidenciadas: Duque de Caxias, Barão do Rio Branco e Tiradentes. Em uma conjuntura marcada por forte discurso anticomunista – potencializado e amplificado desde o movimento comunista de 1935 – e depois, a eclosão da Segunda Guerra Mundial fez com que o governo mobilizasse os discursos em defesa da nação e do patriotismo, e valorizasse os personagens em que se pudesse atribuir os valores militares e diplomáticos de defesa da pátria.

Cada um desses vultos contou com a ação de patrocinadores de seus cultos no âmbito da alta administração governamental, que, por meio de recursos financeiros e simbólicos, mobilizou suas estruturas ministeriais na valorização de suas memórias. Caxias, Rio Branco e Tiradentes, foram “adotados” respectivamente, em uma ação conjunta, por Eurico Gaspar Dutra (Guerra), Oswaldo Aranha (Relações Exteriores) e Gustavo Capanema (Educação e Saúde), três dos ministros mais importantes na conjuntura em questão.

Fechando o ciclo de conformação de uma galeria de heróis nacionais, Fraga analisou duas coleções responsáveis pela biografia de diversos personagens do passado, provenientes de várias áreas, como políticos, militares, literatos, artistas, médicos, engenheiros, entre outros. São elas: “Os nossos grandes mortos”, resultado de uma série de conferências organizadas pelo Ministério da Educação e Saúde e “Vultos. Datas. Realizações”, organizada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). A primeira foi criada no contexto da chamada Intentona Comunista e no processo de endurecimento do regime. A segunda surgiu no momento da entrada do Brasil na guerra ao lado dos aliados e contra o nazi-fascismo. Diante disso, afirma o autor, “os vultos nacionais foram requisitados todo o tempo (…), em contextos políticos os mais diversos, servindo nos planos do governo como uma carta coringa, adaptável a qualquer situação” (p.255).

Para responder aos objetivos propostos, o autor se vale de uma gama variada de documentos, tais como: cartas, livros, decretos, jornais e revistas, discursos, fotografias, monumentos, relatórios, atividades escolares, cartilhas, cédulas, moedas, conferências, peças de teatro e roteiro de filmes, depoimentos, projetos de lei. Toda a pesquisa demonstra a preocupação com o rigor e a solidez do trabalho documental, a partir do qual, ele desenvolve seus argumentos em cotejamento sistemático com as fontes.

O trabalho apresenta um diálogo constante com os debates em torno das discussões da memória, sobre os usos, abusos e manipulações que aqueles que ocupam posições de poder dentro do Estado, fazem do passado no intuito de estabelecer seu domínio no presente. Abre uma possibilidade de valorização das questões simbólicas como fundamentais para o exercício de poder. Dentre tantos trabalhos que abordam as relações do governo Vargas com a manipulação do passado, este livro traz, como inovação temática e interpretativa, a análise da ação consciente e sistematizada do Estado no sentido de utilizar personagens do passado, transformando-os em heróis, para responder demandas conjunturais, difundindo exemplos comportamentais úteis ao status quo.

O livro se insere nos debates historiográficos mais recentes sobre as diversas nuances do regime Vargas. Fraga destaca os diversos processos utilizados pelo Estado no sentido da construção de um aparato simbólico voltado para a construção de uma identidade nacional em consonância com suas diretrizes. A escrita é marcada pelo rigor teóricometodológico, a linguagem é densa e, ao mesmo tempo, envolvente, facultando ao leitor o entendimento daqueles processos.

A leitura é recomendada para estudantes e profissionais de história em todos os níveis que se interessem pelo período em questão, pois lança novas luzes sobre o exercício de poder e de dominação do regime, situado para além da repressão.

Carlos Nássaro Paixão – Programa de Pós-Graduação em Memória Linguagem e Sociedade, Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Estrada do Bem Querer Km 04, CP 95, Vitória da Conquista, BA, 45.083-900, Brasil. carlos.hyst@gmail.com.

A invenção da brasilidade: Identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração – LESSER (VH)

LESSER, Jeffey. A invenção da brasilidade: Identidade nacional, etnicidade e políticas de imigração. São Paulo: Editora Unesp, 2015. 206 p. JOANILHO, André Luiz. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 59, Mai./ Ago. 2016.

Há obras que devem ser tratadas como tomadas de consciência de uma nacionalidade, mesmo que não tenham essa intenção. Autores que tratam daquilo que poderíamos chamar de “alma” nacional, acabaram indo um pouco além e dizendo mais do que intencionaram. É o caso do livro recém lançado de Jeffrey Lesser, A invenção da brasilidade (São Paulo: UNESP, 2015). Pelo texto, pela pesquisa e pelas descrições históricas, o autor pretendia apresentar o Brasil para um público não brasileiro, mais especificamente, para um público norte-americano. No entanto, acaba dizendo mais sobre nós do que poderíamos esperar.

Mesmo que não se tenha colocado claramente, a obra é uma história comparada entre Brasil e Estados Unidos. Estão ali os mitos de origem. O Norte-americano é claro: a Terra Prometida, o Novo Israel, portanto, ali é o lugar de chegada e de construção do futuro. Já o nosso mito é uma não origem. Somos estrangeiros numa terra estrangeira. Na realidade, o nosso mito é um não mito: terra de passagem; terra de fronteira; confins do mundo. Como entender um lugar, um país cujo mito de origem é desmistificação da origem?

Jeffrey Lesser, conhecedor da nossa “alma”, quer dizer, das nossas pequenas idiossincrasias, busca não ferir suscetibilidades nacionais, com algum tipo de crítica sobre o modo como construímos nosso país, ao contrário, apresenta uma narrativa clara e didática de como nós nos formamos. Bem ao inverso do mito americano: o país se forma de dentro para fora. Nós somos o de fora para um não dentro.

O país não é promessa de nada, a não ser de extração de riquezas (algo não dito, afinal sabemos disso, mas não queremos que fiquem dizendo isso por aí). Portanto, os recém-chegados não tinham (talvez não tenham ainda) nenhum compromisso com a terra de acolhimento, a não ser extrair o máximo possível e o mais rápido.

Tendo isso em vista (é bom lembrar, que não foi dito), Jeffrey Lesser nos apresenta um quadro constante de chegadas de povos que eram admitidos de acordo com circunstâncias e nenhum planejamento ou política específica de imigração. Vagas humanas imensas aportaram nestas terras tendo como único móvel, desejado ou não, encontrar o bem-estar econômico. Em momento algum, mesmo que inicialmente pudesse ser pensado, foram em direção ao seu “verdadeiro” lar, mesmo que imaginário. É claro que se pode objetar que mesmo os Estados Unidos não foram exatamente uma terra de acolhimento (e não foram mesmo), mas cultivaram o mito o suficiente para que se acreditasse nisso, diferença fundamental.

A intenção é anunciada, por Lesser, logo no começo: A imigração é um tema que permite discutir o Brasil como “nação” (em termos de etnicidade e identidade nacional), paralelamente à postura mais tradicional, mas igualmente produtiva, de falar de “os Brasis” (p. 20). Sua diferença face a uma “tradição” historiográfica busca incluir o nosso país numa perspectiva não mais “excepcional”, como é comumente tratada a nossa história, perante a América, mas como equivalente às formações das nacionalidades americanas, incluindo os Estados Unidos, isto é, a América é terra estrangeira (evidentemente que não para as populações autóctones, mas que os governos fizeram questão de também torná-las estrangeiras nas suas próprias terras).

Assim, esta será a principal hipótese de Lesser, grupos de imigrantes se tornaram brasileiros ao incorporar a cultura majoritária, mas permaneciam como grupo distintos (p. 25). No entanto, o autor positivamente nos lembra que estas identidades não eram fixas, ao contrário. Por exemplo, mesmo “não brancos”, isto é, não europeus, como árabes ou japoneses, se tornaram “brancos” no Brasil, pelo menos foi o modo que encontraram para negociar os seus lugares na sociedade brasileira. Assim, permanecer distintos significava, e significa, serem distintos no Brasil, mesmo que isso não tenha nenhuma correspondência real e efetiva com o lugar de origem. Chineses se tornam japoneses, árabes se tornam antepassados longínquos de indígenas, italianos do Tirol se tornam austríacos, descendentes de italianos se enobrecem, encontrando na internet possíveis brasões com nomes de famílias, assim por diante. Há um jogo constante das identidades conforme as circunstâncias.

Este padrão explicativo torna o livro mais interessante, pois nos apresenta um quadro geral, não exaustivo, da nossa formação, algo um pouco esquecido após a década de 1970. Histórias locais e regionais se tornaram muito mais comuns nos últimos anos, sendo abandonada qualquer perspectiva mais geral, como se a História do Brasil estivesse resolvida a partir da explicação econômica, por meio da linhagem estabelecida por Caio Prado Jr. Portanto, todas as outras histórias (políticas, sociais, culturais) só são possíveis graças, ou por causa desta linha mestra e única.

De certa maneira, sem expor isso claramente, é o que faz Jeffrey Lesser ao encontrar móveis gerais e específicos nesse processo. Se temas comuns como o branqueamento, a ideia de que o imigrante melhoraria o nosso, a busca de trabalhadores dóceis para a agricultura e de povoadores para as regiões fronteiriças apresentam a necessidade de compor uma população, a chegada de imigrantes nos mostra que na realidade se constituiu, ou ainda, acentua a diversidade do que seria a nossa “alma”.

Dessa forma, após gerações, muitos brasileiros continuam sendo estrangeiros. Algo que afeta a nossa ideia de nacionalidade. Essa fluidez é uma marca da negociação da identidade nacional, para parafrasear o título do livro anterior de Jeffrey Lesser, Negociando a identidade nacional, UNESP, 2001. Grupos de imigrantes jogam o tempo todo com outros grupos e com aquilo que poderíamos chamar de ideias dominantes.

Mas, a grande questão é a que permanece, por que não se criou uma identidade tipicamente brasileira? A resposta não foi dada diretamente, mas através de toda a obra. Jeffrey Lesser aponta para a nossa especificidade: somos um povo tipicamente multicultural. Não no sentido que podemos ver nas grandes cidades europeias ou americanas, mas num sentido caracteristicamente sul-americano e brasileiro: incorporamos o que é estrangeiro na nossa identidade. Portanto, se na nossa origem está o herói sem nenhum caráter, com o nosso Brasil estrangeiro, acabamos nos tornando uma sociedade de indivíduos “multicaráter”, um povo de mil faces.

André Luiz Joanilho – Universidade Estadual de Londrina, Campus Universitário, Londrina, PR, 86.057-970, Brasil. alj@uel.br.

 

Speaking of Flowers: Student Movements and the Making and Remembering of 1968 in Military Brazil – LANGLAND (VH)

LANGLAND, Victoria. Speaking of Flowers: Student Movements and the Making and Remembering of 1968 in Military Brazil. Durham: Duke University Press Books, 2013. 352 p. IORIS, Rafael R. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 58, Jan./ Abr. 2016.

Como acrescentar ao nosso conhecimento sobre o papel da militância estudantil no combate à ditadura no Brasil? Este importante livro (escrito por Victoria Langland, do Departamento de História da Universidade de Michigan) nos oferece uma nova reflexão sobre o tema que aponta inovadores caminhos historiográficos para trabalhos futuros.

Em grande parte centrado no ano de 1968 quando, de maneira similar a eventos em outras partes do mundo, representantes discentes brasileiros se mobilizaram de maneira inédita na defesa de melhorias educacionais, sociais e políticas, a obra oferece não só uma leitura atenta sobre trágicos eventos da ditadura militar, mas analisa também como sucessivas narrativas sobre esse mesmo ano se articularam com o pro- cesso de redemocratização política e, desde então, com a própria reconstrução do movimento estudantil no país.

Embora focado no período militar, Speaking of Flowers oferece elementos para uma história do movimento estudantil brasileiro. Para tanto, a autora organiza os capítulos de maneira criativa, onde distintos momentos históricos são priorizados de modo a enfatizar seus principais eixos explicativos. Um dos argumentos centrais da análise é que os estudantes brasileiros (especialmente os de nível universitário) sempre se viram (e foram dessa mesma forma tratados por sucessivas lideranças do aparelho de estado) como protagonistas da evolução política do país. Da mesma forma, ao examinar como os estudantes se organizaram na defesa de seus interesses ao longo da história do país, dentro de um processo no qual os próprios se constituíam como ator político legítimo, o texto apresenta uma reflexão original sobre o processo de criação e recriação da memória social recente.

É nesse sentido que Langland apresenta seu projeto também como o de uma busca pelos diversos significados assumidos pelo ano 1968, assim como a da militância estudantil associada a este, que foram sucessivamente atribuídos por distintos grupos de estudantes ao longo do processo de resistência ao regime militar e da redemocratização do país. A reflexão sobre os sentidos coletivos atribuídos por distintos atores sociais para suas próprias ações é ancorada, em grande parte em pesquisa secundária, numa descrição geral do processo de constituição do movimento estudantil ao longo do século XIX e a primeira metade do século XX. É demonstrado como, ao longo dessa trajetória, os estudantes brasileiros se mobilizaram dentro de um percurso que daria as bases para a própria identidade estudantil no país desde então.

A identidade política do movimento estudantil teria assumido um viés ainda mais claro no contexto da Guerra Fria, quando este emergente segmento seria cada vez mais influenciado pelo ideário esquerdista, por vezes revolucionário dos anos 50 e 60. Essa radicalização se aceleraria após a ascensão do regime militar em 1964, especialmente ao longo do ano de 1968. Ao recontar como os estudantes reagiram de maneira assertiva e criativa à crescente repressão sofrida, a autora nos mostra como o sacrifício de muitos de seus pares levou o movimento estudantil a um novo patamar e importância simbólica. Tragicamente, essa maior militância seria um dos focos principais da acentuada violência policial do regime ditatorial, especialmente a partir de dezembro 1968, quando da outorga do Ato Institucional No. 5.

Uma das principais contribuições de Langland é a de demostrar com uma grande riqueza de detalhes como, durante o período da vigência desse importante ato institucional, a leitura sobre o ano de 1968 se tornaria mais complexa e multifacetada. De um lado, para os operadores da repressão estatal, o ano de 68 passaria a representar tudo o que não poderia mais ocorrer; e todo tipo de atividade estudantil ao longo dos anos 70 seria vista sob esse prima de suspeição e vigilância. De outro, para os próprios estudantes, o mesmo ano, assim como a mobilização juvenil a ele associada, seriam objetos de uma leitura muito mais rica e sofisticada; dentro da qual alguns aspectos da militância de então seriam privilegiados (por exemplo, a defesa intransigente do direito de expressão e participação então suprimidos), enquanto outros elementos seriam reavaliados ou mesmo rejeitados (de modo especial a participação na luta armada de várias lideranças do movimento ao longo de 68 e 69).

A reflexão apresentada no livro é rica e muito bem amparada em evidências históricas relevantes, fruto de um minucioso trabalho de pesquisa por parte da autora. Seria pois impossível fazer justiça, nesta curta resenha, aos detalhes e nuances apresentados. Caberia, contudo, apontar que, por vezes, ao tentar alinhavar por demais os capítulos entre si, de modo a apresentar uma lógica subjacente ao desenrolar dos acontecimentos, a análise tende a oferecer uma imagem talvez por demais coerente para eventos eminentemente complexos, muitos deles díspares e mesmo contraditórios; como, por exemplo, as ações de grupos de estudantes de diversos matrizes ideológicos ao longo de um período tão longo.

Da mesma forma, embora a autora inove de maneira louvável ao tratar com tanto interesse e criatividade de questões ligadas à temática de gênero, mais elementos seriam necessários para que o leitor possa de fato acompanhar algumas das assertivas de cunho analítico feitas pela autora (por exemplo, como os próprios estudantes, especialmente homens, interpretavam seus padrões de comportamento para com seus pares do sexo feminino).

Por fim, especialmente no momento em que o Brasil passa por uma verdadeira guinada conservadora, seria útil saber mais sobre como estudantes politicamente conservadores entenderam os muitos processos históricos tão bem examinados. Ainda assim, tomado como um todo, nenhum desses aspectos prejudica a leitura e não diminui em nada a capacidade persuasiva do texto; devendo os mesmos serem vistos muito mais como relevantes linhas de pesquisa à espera de novos estudos, detalhados e qualificados como o apresentado em Speaking of Flowers.

Rafael R. Ioris – Latin American Center University of Denver, 2000 E. Asbury Ave., Sturm Hall #367 Denver, CO 80208 rafael.ioris@du.edu.

Le rhinocéros d’or: Histoires du Moyen Âge africain – VAUVELLE-AYMAR (VH)

FAUVELLE-AYMAR, François-Xavier. Le rhinocéros d’or: Histoires du Moyen Âge africain. Paris: Alma Editeur, 2013. 317 p. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 58, Jan./ Abr. 2016.

Entre os estudos africanistas no Brasil, a atenção aos temas relacionados à África subsaariana no período anterior à chegada dos portugueses tem crescido de forma evidente. De um lado, decorre da preocupação em romper visões reducionistas que preconizam o início da história moderna da África à chegada dos europeus e, de outro, de um olhar mais atento às narrativas de viajantes não europeus, sobretudo os eruditos árabes que percorreram diferentes regiões da África islamizada entre os séculos VIII e XVI. Considera-se ainda a presença entre nós de especialistas no período, principalmente de Paulo de Moraes Farias que, em cursos e participação em eventos, fez aumentar a visibilidade e a exuberância de temas relativos às civilizações sahelianas, bem como a relevância de se pensar a diversificação das fontes históricas como pressuposto para o estudo da História da África. Considera-se nesse aspecto os avanços de metodologias das Ciências Humanas que empregam as fontes orais, os estudos sobre a cultura material e a importância dos dados vindos da Arqueologia essenciais para contextos nos quais os registros escritos são relativamente escassos. A obra em questão atende a cada um desses anseios, focalizando temas da História da África entre os séculos VIII e XVI projetados a partir de fontes variadas e tendo em perspectiva o ensino e a pesquisa em História da África.

Posso começar dizendo que, fora uma ou outra observação de menor importância, o livro Le Rhinocéros d’or é fascinante e original. É composto por uma reunião de trinta e quatro ensaios relativamente independentes entre si, referentes à história do continente no período conhecido, especialmente entre os especialistas francófonos, como a Idade Média africana. Os capítulos, curtos e bem estruturados, focalizam aspectos das sociedades localizadas em diversas regiões da África. Da Etiópia e da Eritréia às regiões meridionais do continente; do norte mediterrânico às cidades ribeirinhas do Níger, dos santuários da Mauritânia aos centros comerciais da costa suaíli, o autor vai “ziguezagueando” (p. 27) pelo continente e defrontando-se com a enorme diversidade de povos, culturas e personagens que sempre caracterizou a História da África em todos os seus períodos e tempos. A cada capítulo, escrito numa linguagem fluida e cativante, adequada também a leitores diletantes, seguem notas de fim com indicações mais acadêmicas sobre as trajetórias da historiografia, os percursos das fontes, e a relação dos principais estudiosos que, ao longo do tempo, analisaram o tema.

Abrangendo um período quase sempre esquecido e confundido como “tempos obscuros”, principalmente pela lacuna de documentos escritos, o elemento organizador do livro são as fontes: um documento escrito, um processo judicial ou uma correspondência; artigos das trocas comerciais (o âmbar ou moedas), objetos da cultura material, por exemplo, o rinoceronte de ouro que serve ao título; fontes cartográficas, o Atlas de Al Idrisi ou o famoso Atlas Catalão, feito no século XIV por dois judeus da Escola de Maiorca; sítios arqueológicos, afrescos, conjuntos de megalitos ou de tumbas e suas revelações; narrativas de viajantes, chineses, e árabes em profusão. E também recursos atuais como os resultados das escavações arqueológicas que permitiram a reconstituição da estratigrafia de cidades como Kilwa, na costa índica.

Da análise das fontes são extraídas informações que, no geral, colocam as sociedades africanas nos circuitos de trocas de mercadorias, de ideias e concepções religiosas das grandes correntes intercontinentais. A partir do que é revelado de imediato por cada documento/monumento, o texto se amplia conduzido por guias que levam o leitor a visitar os contextos históricos: as cidades desaparecidas engolidas pelo Saara, como Ghana I e Ghana II, a vida nas cortes, os trânsitos comerciais transsaarianos, as redes longitudinais dos mercadores judeus ou o processo de islamização das sociedades mediterrânicas, do Sahel, da costa do oceano Índico ou do mar Vermelho. Sintomaticamente a figura central do último capítulo é o capitão de navio Vasco da Gama e o périplo de navegação que, partindo de Lisboa em 1497, chegaria no ano seguinte à ilha de Moçambique. Momento em que, depois de muitas tentativas, “os portugueses acabavam de entrar no domínio das navegações mercantis regulares do oceano Índico” (tradução, p. 307).

Impossível não falar de detalhes na apresentação da obra, tamanha a diversidade e riqueza dos materiais tratados. “Peças esparsas de um puzzle” (p.17), a introdução esclarece as premissas que conduzem os estudos e a maneira de abordá-los. A proposta, além da diversidade, é a de iluminar “traços” e construir a história desse período a partir de uma visão trazida pelos fragmentos, escapando da ambição de um panorama pressupostamente global: “é que preferimos o vitral ao grande afresco narrativo que poderia trazer a ilusão de um discurso magistral” (tradução, p. 18).

François-Xavier Fauvelle-Aymar é especialista em História africana, professor da Universidade de Toulouse II Jean Jaurès, e pesquisador ligado ao laboratório TRACES – Travaux et Recherches Archéologiques sur les Cultures, les Espaces et les Sociétés (UMR 5608 CNRS), com um impressionante conjunto de produção acadêmica, entre livros e artigos. Faz parte do grupo de medievalistas franceses que segue os caminhos abertos por Raymond Mauny e Théodore Munod. O próprio Mauny é personagem do capítulo 25, em suas expedições por entre o Saara, chegando a Taghâza, no Mali, por onde andaram também René Caillé, em 1828, Ibn Battuta, em 1352, e ainda Hassan al-Wazzân, mais conhecido como Leão Africano, em 1510. Temporalidades que se cruzam na temática da exploração e das rotas do sal na África do Oeste. Sua acuidade teórica é também revelada no prefácio e nas ponderações que faz sobre a questão da memória investida nos monumentos e sobre as inferências relacionadas à noção de tesouro. Referindo-se ao pequeno objeto que dá titulo ao livro, o rinoceronte de ouro encontrado no sitio da colina de Mapungubwe, na África do Sul, afirma que quase sempre por trás do qualificativo de “tesouro” existe uma escavação mal feita e irresponsável que alijou o objeto pretensamente único e raro do contexto documental arqueológico que o cercava à época de sua descoberta. “Tesouro é aquilo que sobrou quando todo o resto desapareceu” (tradução, p.20).

Desta forma, o objetivo da apresentação que se faz aqui não é somente a de chamar a atenção à obra publicada na França em 2013, como também alertar para sua tradução, importante no nosso país em que as demandas pelos temas africanos não correspondem ainda ao volume de traduções necessárias, inclusive de textos essenciais para a pesquisa e para o ensino da matéria nas instituições escolares. Em razão do didatismo da obra e da forma inteligente pela qual foi construída, o livro pode ser utilizado tanto para o ensino médio – e com ele introduzir os jovens alunos no fascínio trazido pela História da África, como também nas disciplinas dos cursos de graduação.

Maria Cristina Cortez Wissenbach – Departamento de História, Universidade de São Paulo, Av. Professor Lineu Prestes 338, Cidade Universitária, São Paulo, SP, 05.508-000 criswis@usp.br.

Livros e leituras na Espanha do Século de Ouro – CASTILLO (VH)

CASTILLO Gómez, Antonio. Livros e leituras na Espanha do Século de Ouro. Prefácio Marisa Midori Deaecto, tradução Claudio Giordano. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2014, 208 p. NEUMANN, Eduardo Santos. Varia História. Belo Horizonte, v. 32, no. 58, Jan./ Abr. 2016. 

 

Enhorabuena, esta expressão tão castelhana – que felicita uma realização ou parabeniza um determinado feito -, sintetiza de maneira apropriada a publicação em língua portuguesa de mais um livro do historiador, especialista em cultura escrita, Antonio Castillo Gómez. Este é o primeiro livro de Castillo publicado no Brasil, apesar do autor já possuir diversos artigos e capítulos de livros em periódicos e obras coletivas editadas em nosso país.

Desde a conclusão de sua tese de doutorado, publicada em 1997, ele tem direcionado seus esforços para consolidar uma linha de pesquisa cuja atenção está voltada aos materiais escritos, particularmente aqueles produzidos na sociedade hispânica durante os séculos XVI e XVII. É nesse contexto, o Século de Ouro espanhol, que está situado este livro.

A seleção de textos reunidos nesta obra, uma compilação de trabalhos reelaborados e atualizados, são o resultado da trajetória de um pesquisador maduro e interessado em rastrear as distintas práticas da leitura apesar de suas pistas difusas, pois esta é uma atividade plural. É consenso entre os historiadores que o advento da Idade Moderna marca o ingresso definitivo da sociedade ocidental europeia nas práticas da comunicação letrada, período no qual é registrada uma ampliação das taxas de alfabetização e do número de livros impressos. Assim, as indagações do autor estão direcionadas às práticas de leitura na sociedade castelhana, com ênfase nas suas diferentes modalidades e experiências, seja a leitura erudita ou aquela praticada por pessoas comuns que mantinham contato esporádico com a cultura escrita, fosse através de uma gazeta, um panfleto ou mesmos as escritas expostas ou cartazes fixados nas portas das igrejas.

Afinal, no que consiste atualmente história da leitura? Para responder a esta indagação e necessário inseri-la na perspectiva da história social da cultura escrita. Quando surge este novo campo de estudo? Primeiro: trata-se de um termo recente, cunhado em meados dos anos 90, e designa um campo de investigação fértil, que tem conferido sinais de vitalidade à pesquisa histórica. A segunda consideração diz respeito a sua formulação. Sua gênese está relacionada a recuperação ou as reconsiderações em torno da leitura e principalmente da escrita como objeto de análise histórica, mudança iniciada nos anos 60. E a escrita e suas potencialidades tem em Armando Petrucci, paleógrafo italiano, o principal expoente dessa renovação. Ao propor uma “ciência da escrita” ele argumenta que os textos podem revelar além do seu conteúdo expresso, os valores e condutas de uma época. A partir da fusão de duas vertentes – no caso a história social da escrita e a história do livro e da leitura -, cuja reformulação permitiu uma renovação dos pressupostos teóricos e metodológicos que pautava tais temas, tais modificações conferiram ao estudo da escrita e da leitura um ponto de observação privilegiado para a compreensão das sociedades pretéritas.

O livro no seu conjunto está organizado em 6 partes. No primeiro capítulo, o autor aborda os diferentes significados da leitura na sociedade hispânica – o que se lia, como liam e as avaliações a respeito desse habito-, pois como registrou Miguel de Cervantes, através de seu imortal personagem, Dom Quixote, do qual se dizia que de “tanto ler secaria o cérebro”. No segundo dedica atenção a leitura erudita, a leitura por excelência nas avaliações mais tradicionais sobre o tema, e seu vínculo imediato com a escrita. O terceiro “Paixões solitárias”, apresenta um estudo sobre as práticas de leitura daqueles indivíduos privados de liberdade, que exatamente pela reclusão atrás das grades, buscavam na leitura um alento. No quarto capitulo “Ler em comunidade” trata das leituras femininas, particularmente aquelas realizadas por religiosas efetuadas em conventos, no caso a leitura de textos espirituais que tem nas monjas carmelitas descalças, seguidoras de Santa Teresa de Jesús, seu exemplo maior. Nos capítulos finais, Castillo dedica atenção a dois temas de sua predileção: as práticas leitoras cotidianas e o contato estabelecido com a leitura nas ruas, através de folhetos, avisos ou mesmo os pasquins infamantes. O último capítulo é dedicado ao contato com os livros e a leitura. Analisa como esta prática despertou em alguns o desejo de se converter também em autores, seja através da redação de diários ou de “autobiografias”, uma manifestação de uma memória pessoal.

Pelo exposto e evidente que diante da primazia da cultura letrada durante o Século de Ouro espanhol a leitura e a escrita promoveram transformações que afetaram tanto as formas de organização política como as relações sociais. Sem dúvida, a prática da escrita e da leitura foi mais acentuada nos espaços régios, nos círculos cortesãos, mas também estava presente nas oficinas dos artesãos e mesmo nas ruas. Em seus trabalhos o autor tem procurando descrever através da análise dos materiais escritos, tanto os permanentes ou efêmeros, os significados relacionados à presença da leitura e da escrita, indagando a respeito dos efeitos da alfabetização entre as camadas médias e subalternas.

Ao contemplar a atividade de leitores particularmente nos espaços urbanos Antonio Castillo centra atenção àqueles que ao transgrediram as normas vigentes, fizeram outros usos da leitura. Afinal, não saber ler não implicava obrigatoriamente estar excluído do mundo da cultura escrita, e muitos indivíduos ao compartilharem a leitura com os demais utilizaram-na para finalidades distintas. O foco são os outros leitores. As leituras realizadas pelos grupos menos favorecidos, que nos espaços públicos entram em contato com os textos lidos de forma coletiva, independente do fato de serem escutadas ou lidas, permitiram aos distintos públicos contato com os últimos acontecimentos ou mesmo o conteúdo das edições recentes.

No seu conjunto a análise morfológica dos produtos escritos, dos textos manuscritos, está voltada a reconstruir as possíveis conexões existentes entre as diferentes práticas letradas e seus contextos sociais de recepção. Esta é uma das particularidades presentes a história social da cultura escrita, ou seja, uma interpretação pautada em evidências, na constituição de um corpus documental.

Por suas inquietações Antonio Castillo Goméz não se rende às explicações simplistas a respeito dos recortes sociais em sociedades de Antigo Regime. Seu interesse são aqueles grupos cujas evidências de sua capacidade alfabética, apesar de mais esparsas, comprovam a abrangência social da leitura. E a escrita, apesar de suas implicações imediatas com o poder, nem sempre remete obrigatoriamente a uma leitura elitista da sociedade e seu estudo têm sinalizado outras indagações a respeito do consumo cultural. Enhorabuena, repito, os leitores brasileiros agora têm ao seu alcance este excelente conjunto de textos.

Eduardo Santos Neumann – Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rua Ivan Iglesias 184, Porto Alegre, RS, 91.210-340, Brasil eduardosneumann@gmail.com.

 

Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação – SCOTT et. al (VH)

SCOTT, Rebecca J; HÉBRARD, Jean M. JOSCELYNE, Vera. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Campinas: Editora da Unicamp, 2014. 296 p. DIÓRIO, Renata Romuldo. Provas de liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 57, Set./ Dez. 2015.  

Edouard Tinchant, um homem negro, “descendente de haitianos”, nascido em New Orleans, sul dos Estados Unidos, viveu na Antuérpia, onde foi fabricante e comerciante de tabaco. Em 1899, ele escreveu para Máximo Gomez, um dos líderes pela luta da independência cubana, para fazer um pedido. Tinchant pretendia usar o nome e o retrato do general Gomez como marca de seus melhores charutos. O pedido seria uma forma de reverenciar um defensor do antirracismo, causa que marcou a história dos seus antepassados e descentes.

A referida carta foi encontrada por Rebecca Scott e Jean Hébrard, no Arquivo Nacional de Cuba, e, a partir desta, esses pesquisadores iniciaram uma busca surpreendente por outras informações relativas à vida profissional e pessoal de Tinchant. Eles obtiveram dados sobre cinco gerações de uma família constituída pela união entre uma africana e um francês, Rosalie e Michel Vincent, e essa extensa pesquisa documental deu origem ao livro Provas de Liberdade: uma odisseia atlântica na era da emancipação.

As trajetórias de homens e mulheres de cinco gerações da família de Tinchant foram resgatadas com base em registros encontrados em arquivos. Estes documentam momentos de suas vidas em diferentes locais onde se instalaram, como Cuba, Estados Unidos (Luisiana), Haiti, Bélgica (Antuérpia) e França. As histórias são elucidadas a partir da análise de cartas de alforria, batismos, testamentos, contratos de casamento, recenseamentos, dentre outros. O pano de fundo são os acontecimentos políticos que perpassam a crise do escravismo e do colonialismo no Mundo Atlântico e as revoluções antirracistas e de cunho liberal do século XIX. As principais são a Revolução Haitiana, a Revolução Francesa de 1848, a Guerra Civil e a Reconstrução nos Estados Unidos.

Por meio dos estudos dessa família, o livro aborda questões relativas a tráfico, escravidão, liberdade e condições impostas aos descendentes de escravos nos séculos posteriores à emancipação e em contextos de guerras. As histórias dos membros dessa família convergem na luta por direitos, como a preservação da liberdade, a legitimidade das uniões conjugais e a garantia da cidadania. Na opinião de Rebecca Scott e Jean Hébrard, Rosalie e seus descendentes eram conscientes da importância dos documentos para a reivindicação de suas prerrogativas, e em função disso, procuravam os meios para que os registros fossem produzidos. Esse é o fio condutor de histórias vivenciadas pelas pessoas que possuíam laços consanguíneos em locais e momentos tão díspares.

O livro dialoga com trabalhos mais recentes que buscam uma narrativa de biografia. Nesse caso, trata-se de pequenas biografias desenvolvidas a partir das escolhas individuais dos descendentes de Rosalie, apresentadas em nove capítulos. São micro-histórias “em constante movimento”, como afirmam os autores. Partidas, chegadas e fixação em diferentes localidades denotam uma relação direta com condicionantes como legislação, hierarquia social e guerra.

Tráfico, escravidão e liberdade são elucidados pela trajetória de vida de Rosalie na segunda metade do século XVIII. Os principais mecanismos de administração da escravidão nos domínios franceses e espanhóis no Novo Mundo são relatados a partir das experiências dessa africana dentro de um contexto mais amplo em que estava inserida. São evidenciados os indícios da sua travessia pelo Atlântico, da Senegâmbia para Santo Domingo, Caribe, passando pelo período que viveu sob o regime da escravidão até a sua libertação.

No período da Revolução Haitiana Rosalie era denominada na documentação como Marie Françoise. Nessa ocasião, ela era liberta e possuía quatro filhos, fruto da relação conjugal com o francês Michel Vincent. Em uma tentativa de fuga para Cuba, a família foi separada, a filha, Elisabeth Vincent, foi levada para Nova Orleans, onde mais tarde casou-se com o carpinteiro Jacques Tinchant. Edouard, mencionado anteriormente, era um dos cinco filhos nascidos dessa união, nenhum deles se encontrou com a avó, Marie Françoise. Embora os Tinchant apresentassem uma confortável situação na Louisiana, a família partiu para a França em 1840. Pelo que consta nas fontes encontradas, o motivo teria sido a tentativa de escapar das severas leis que incidiam sobre homens negros e seus descendentes nos Estados Unidos daquela época.

A trajetória política de Edouard Tinchant merece destaque, pois ele foi diretor de uma escola de crianças libertas, veterano do exército da União na guerra civil e representante multirracial no sexto distrito de Nova Orleans. No entanto, foi na Antuérpia que ele teve uma espetacular ascensão econômica com a produção e venda de charutos finos. Seus negócios estenderam-se para Nova Orleans e também para o México, onde Joseph Tinchant, irmão de Edouard, representou o empreendimento. Eles transitaram entre a América do Norte e a Europa, deixando registros como empresários ou cidadãos respeitáveis. Em 1875, Joseph foi mencionado nos documentos como Don Joseph Tinchant, que, de acordo com as formas de tratamento local, indicava ser um cidadão do México.

Em 1937, Marie-José Tinchant, uma jovem de 21 anos que era neta de Joseph Tinchant, deu uma entrevista ao jornal londrino Daily Mail. A publicação mostra que, embora Marie-José fosse uma moça delicada, culta e filha de um próspero comerciante de charutos da Antuérpia, teve seu casamento anulado por causa da tez da sua pele. Mesmo fugindo e conseguindo realizar o casamento, ocorreram tentativas de anulação da união da parte dos pais do noivo, com base no preconceito racial. Anos depois ela é presa pelas forças nazistas de ocupação da Bélgica, supostamente por ser um membro do Movimento de Resistência durante a Segunda Guerra, e morre em um campo de concentração em 1945, na Ravensbrück, Alemanha.

Os momentos de vida elucidados no livro resultam de um levantamento exaustivo de fontes sobre os membros das famílias de descendentes da ex-escrava Rosalie, depois referida como Marie Françoise. As histórias são retratadas com acentuada tendência, por parte dos autores, em suposições de informações que não são captadas por meio dos documentos. De todo modo, isso em nada compromete o trabalho, tamanho o esforço em evidenciar como essas gerações fizeram uso desses papéis para legitimar seus direitos e superar restrições que os ligavam à escravidão. O livro nos mostra que quanto mais distante da condição escrava, maiores as chances de obter ascensão econômica, social e até mesmo política. Contudo, também deixa claro que em cada uma dessas conquistas havia uma luta constante em torno do combate ao racismo que assolou e ainda assola gerações até os nossos dias.

Por abarcar um período tão abrangente, marcado por tantas mudanças, o livro interessa aos especialistas da escravidão, do fim do colonialismo e dos conflitos antirracistas no Mundo Atlântico, mas também àqueles dedicados a debates mais contemporâneos acerca da luta contra o racismo

Renata Romuldo Diório – Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutoranda em História Social da Cultura. Universidade Federal de Minas Gerais. Rua Amador Catarino Jales, 105, Distrito de Padre Viegas, Mariana, MG, 35422-000, Brasil. renatadiorio@hotmail.com.

Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-1823) – CARVALHO e. al (VH)

CARVALHO, José Murilo de; BASTOS, Lúcia; BASILLE, Marcelo (Orgs). Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-23). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. GASPAR, Tarcísio de Souza. Guerra Literária: panfletos da Independência (1820-23). Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 57, Set./ Dez. 2015.

A confluência de novas tecnologias de comunicação – as chamadas redes sociais – com velhas insatisfações políticas tem modificado, disseminado e talvez potenciado o debate e a mobilização política no Brasil e noutras partes do globo, e contribuído para a ocorrência de movimentos como a Primavera Árabe e os protestos de junho de 2013 no Brasil. É impossível prever o futuro dessa interação. Mas o seu passado, isto é, o da correlação entre a efervescência de ideias e de manifestações públicas de opinião e a deflagração de conflitos políticos de grande escala, foi historicamente consagrado. Nos últimos séculos, momentos de crise coincidiram quase sempre com a proliferação de falas, de textos e de outras expressões do pensamento. Alterações políticas trouxeram consigo furor comunicativo. Ou, antes disso, a popularização de conceitos ocasionou modificações no vocabulário e nas estruturas políticas.

A monumental obra em questão, dividida em quatro grossos volumes, expõe uma dessas felizes – e raras – combinações entre proliferação da palavra e efervescência política na história brasileira. Organizada por três grandes nomes de nossa historiografia política, a coleção de panfletos da Independência traz boa parte do que se escreveu e se discutiu publicamente no Brasil ao longo de um curto, porém, crucial período, no qual transformações políticas decisivas se sucederam em ritmo acelerado. O movimento liberal do Porto, em agosto de 1820, foi o estopim de tensões impactantes no mundo luso-brasileiro, suscitadoras da produção de expressivo conjunto de panfletos manuscritos e impressos, que alimentaram o debate envolvido na constitucionalização do reino lusitano, nas eleições e nos debates das Cortes, na emancipação brasileira e na afirmação inicial do novo Estado americano. Em obra pretérita, intitulada Às armas, cidadãos! (2012), os organizadores já haviam dado à luz 32 panfletos manuscritos redigidos entre 1820 e 1823. Agora, em Guerra Literária: panfletos da Independência, completam a coleção com a parte mais robusta do acervo, composta pelos folhetos políticos impressos à mesma época, num total de 362 panfletos.

Coligida em diferentes instituições, ao longo de décadas de pesquisa acumulada por seus organizadores, a edição crítica dos panfletos é um colosso documental. Seu impacto na historiografia interessada na independência e na história do pensamento político brasileiro na primeira metade do século XIX promete ser expressivo, tanto por facilitar o acesso a documentos importantes, quanto por revelar fontes pouco utilizadas ou desconhecidas. Os impressos informam sobre a formação de uma incipiente esfera pública de discussão política, que incluiu “periodiqueiros”, jornalistas, membros das elites coimbrã e brasiliense, bacharéis, militares, religiosos, letrados e leitores diversos e se estendeu, pela oralidade, até grupos populares e iletrados. Esse lastro social do processo constitucional e independentista apenas recentemente começou a ser descortinado por nossa historiografia. A obra interessa ainda por se coadunar a diferentes perspectivas da história política em voga, como as que perseguem conceitos (sob influência de R. Koselleck),linguagens (inspirada em autores como J. G. A. Pocock e Q. Skinner) e culturas políticas. Essa historiografia, mais afeita às expressões populares e ordinárias do pensamento político, de preferência aos cânones e aos registros oficiais, tem reconstituído formas de pensar, de agir e de se exprimir em embates ou processos políticos, historicamente situados.

Guerra Literária cumpre bem os requisitos de uma obra de referência. Os volumes estão ordenados por gêneros literários e, no interior desses, os panfletos se dispõem em ordem cronológica anual. A opção pelo gênero textual adequa-se às características da documentação. Datados apenas com o ano de publicação, os folhetos não se prestam a sequenciamento cronológico preciso. Tampouco poderiam ter sido organizados por autor, haja vista a ocorrência comum do anonimato e do pseudônimo. Os dois primeiros tomos, compostos por cartas (v. 1) e por análises, reflexões e projetos de teor especulativo (v. 2), são mais homogêneos. O terceiro e o quarto englobam tipos distintos: sermões, orações, discursos, diálogos, catecismos, dicionários, manifestos, proclamações, representações, protestos, apelos e elogios (v. 3); e poesias, relatos, exposições, memórias, notícias e narrações (v. 4). Nesse volume ainda constam os folhetos políticos impressos na Cisplatina, então parte do Reino Unido. Os organizadores contribuíram com uma introdução geral à coleção e outras específicas a cada volume. Os panfletos platinos tiveram introdução especializada, redigida por Ana Frega. O leitor conta ainda com cronologia do período, índices onomásticos, notas biográficas e o rol das tipografias envolvidas.

Os impressos eram “literatura de circunstância” que almejava comunicar-se com o grande público. A oralidade impregnou textos em forma de diálogo, orações, catecismos, entre outras. Cabia fazer circular o “novo vocabulário político”, valendo-se de técnicas retóricas e de artifícios literários. Os panfletos tomaram as ruas. A leitura em voz alta e a rede de murmurações e de boatos levaram o conteúdo de discursos e de comunicações escritas àqueles que não sabiam ler. Baratos e acessíveis, os escritos de circunstância serviam, como se disse à época, ao entretenimento dos que não podiam pagar entrada no teatro. Num contexto de agitação política, foram instrumentos fundamentais de participação e de mobilização. Possibilitaram a intervenção do homem comum no espaço público. Disseminaram notícias e informações políticas, tornando-as de domínio público. Popularizaram, em frequência inédita no Brasil, os conceitos políticos oriundos da Ilustração e do contexto revolucionário que desestruturou o Antigo Regime (v. 1, p. 12-16).

Apesar do clima de liberdade de expressão e de participação política, manifestada inclusive através do voto, as heranças coloniais daquela sociedade escravista restringiram e, no limite, inviabilizaram essa esfera pública. Nos panfletos relativos à situação brasileira, a escravidão metaforizava o despotismo e a tirania. A princípio, a constituição deveria estipular “os direitos do cidadão livre”, distinguindo-o do “escravo de tantos senhores”. Em seguida, a postura recolonizadora adotada pelas Cortes transformou-se numa tentativa de escravização, “como se fôssemos um punhado de miseráveis escravos sujeitos à discrição e capricho de seus senhores, e não um Reino aliado mais poderoso e com mais recursos do que o mesmo Portugal” (v. 2, p. 110-123). Um poema feminino que se acredita ter sido escrito por menina baiana de 13 anos indagou: “Justos céus, de que nos servem/Bases da Constituição/Se a lusa tropa só quer/Impor-nos a escravidão” (v. 4, p. 263).

A independência garantiu a alforria política das elites regionais, antes submetidas à metrópole europeia. Como discursou posteriormente o deputado Lino Coutinho, “o Brasil quebrou os ferros da escravidão e separou-se do reino e se pôs no estado de independência”. Mas não estendeu esse “estado” à massa de africanos e de descendentes submetidos ao cativeiro doméstico, desprovida do foro de cidadania, privada do acesso à educação formal e alheia, portanto, aos conteúdos da cultura escrita e do debate político letrado. Segundo José Bonifácio, “nossa independência não é mais do que aquela de um filho que se emancipa”. Em 1822 apenas uma parte da ex-colônia se emancipou ou, em termos kantianos, atingiu sua maioridade política. Faltou que o mesmo ocorresse à outra parte, cuja razão, desprovida de uso público, ainda forceja por libertar-se da escravidão.

Tarcísio de Souza Gaspar – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais. Campus Muzambinho. Estrada de Muzambinho, km 35, Bairro Morro Preto, Muzambinho, MG, 37.890-000, Brasil. tarcisio.gaspar@gmail.com.

 

História da educação brasileira: do período colonial ao predomínio das políticas educacionais neoliberais – SHIGUNOV NETTO (VH)

SHIGUNOV NETO, Alexandre. História da educação brasileira: do período colonial ao predomínio das políticas educacionais neoliberais. São Paulo: Salta, 2015. 277 p. FORTUNATO, Ivan. História da educação brasileira: do período colonial ao predomínio das políticas educacionais neoliberais. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 57, Set. / Dez. 2015.

Parece simples a tarefa de produzir uma resenha: ler, reler, entender, resumir e comentar. Mas não é. Trata-se de ler, reler, compreender o que foi escrito dentro do contexto em que fora produzido, cotejando-o com as referências e os objetivos da obra, sejam estes declarados ou apanhados nas entrelinhas. Mais ainda, trata-se de tornar público o pensamento do autor, pois, é pela resenha que estudantes, professores, pesquisadores… leitores, tomam conhecimento da importância e relevância de determinado livro para determinada obra. Particularmente, por precaução, não costumo assumir toda essa responsabilidade. Prefiro assinar o que escrevo, pois qualquer equívoco recai somente sobre minha própria produção.

Não obstante, a “História da educação brasileira: do período colonial ao predomínio das políticas neoliberais” é um livro que merece todo esse esforço, redobrado até. Isso porque a tarefa escolhida – e cumprida com êxito – exigiu de seu autor demasiado empenho para recobrir toda nossa história educacional que, praticamente, se equivale a nossa própria história cultural desde o “descobrimento”, tendo em vista que as primeiras escolas foram criadas e geridas pelos jesuítas, que também foram os primeiros mestres.

Não obstante, Shigunov Neto deixa claro os propósitos de sua investigação logo na apresentação do livro: “indicar que a educação brasileira sempre esteve vinculada aos interesses da ideologia dominante” (p. ix). Assim, o leitor pode esperar muito mais do que somente ler sobre o desenvolvimento cronológico da educação brasileira desde o século XVI até o momento atual. Isso porque Shigunov Neto nos apresenta uma obra que circunscreve toda nossa história educacional a partir das complexas contingências sócias, econômicas e políticas de cada período vivido pelo país… sendo a educação, como reforça constantemente o autor, vinculada aos interesses daqueles que estavam no poder.

Ao prefaciar a obra, o professor Pedro Demo deixa expresso que o livro de Shigunov Neto é “obra longa, densa, resultado de esforço hercúleo de pesquisa sistemática” (p. vii). E de fato é. Seu autor consultou algumas dezenas de livros, tratados, leis, documentos etc. listando quase duas centenas de referências no final. Ademais, o autor faz excelente uso das notas de rodapé, esclarecendo, por meio de breves explicações biográficas, quem foi quem na história da educação brasileira, fortalecendo ainda mais a contextualização dos acontecimentos. Sua redação é clara, objetiva e impessoal, tornando-se outro ponto de destaque da obra pois, para cada momento histórico apresentado, foi feito um excelente cotejamento de ideias de vários autores, promovendo não apenas o relato do período, mas possibilitando a reflexão sobre a transformação histórica do Brasil e da história da nossa educação.

O livro começa recuperando o período das grandes navegações, recobrindo o momento vivido por Portugal e os motivadores que levaram os portugueses a procurar por novas terras além-mar e, assim, “descobrir” o Brasil. Os primeiros capítulos são destinados, então, a descrever as navegações e as subsequentes fases de colonização do país e os diferentes projetos educacionais implantados: o jesuíta, o pombalino, o ideal de D João VI… Na densa redação que oferece para cada projeto, Shigunov Neto busca evidenciar sua hipótese de que cada reforma educacional no país teve (e ainda tem) como propósito “a total destruição e substituição das antigas propostas” (p. 47).

O capítulo sexto é o mais intenso do livro, tratando, em mais de uma centena de páginas, sobre o período republicano, momento em que a educação pública e para o trabalho industrial entra efetivamente na pauta na agenda política: “foi somente no período republicano”, afirma (p. 267), “que a educação começou a tomar contornos diferenciados e a se constituir num problema de ordem social”. Assim, Shigunov Neto recobre os ideais de educação nas constituições federais e nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, 1968, 1971 e 1996, sem se desvincular de seu objetivo principal: demonstrar que a educação brasileira sempre esteve vinculada aos interesses de quem assumia o poder. O último capítulo do livro é dedicado às discussões a respeito da influência das políticas neoliberais na educação nacional, buscando retratar o momento vivido desde o final do século passado.

Essa densa e extensa obra a respeito da História da Educação Brasileira pode e deve ser lida pelos alunos de todas as licenciaturas e de cursos voltados para ciências humanas, assim como precisa ser lido por estudantes de pós-graduação interessados na história e na educação brasileira. Pode ser lido de uma só vez, mas não é recomendado. Deve ser lido parcimoniosamente, permitindo-se momentos de parada. Ao final, se o trabalho de Shigunov Neto resultou na análise de uma trajetória pessimista, conforme indicou Pedro Demo no prefácio, cabe aos educadores de hoje e de amanhã encararem essa triste jornada, compreendendo-a para, então, transformarem-na em uma marcha um tanto mais entusiasmante.

Ivan FortunatoNúcleo de Estudos Transdisciplinares em Ensino, Ciência, Cultura e Ambiente (NuTECCA). Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Campus de Itapetininga/SP. Avenida João Olimpio de Oliveira, 1561, Itapetininga , SP, 18.202-000, Brasil. ivanfrt@yahoo.com.br.

Procesos represivos y actitudes sociales. Entre la España franquista y las dictaduras del Cono Sur – ÁGUILA; ALONSO (VH)

ÁGUILA, Gabriela; ALONSO, Luciano (Coord). Procesos represivos y actitudes sociales. Entre la España franquista y las dictaduras del Cono Sur. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2013. 300 p. GONÇALVES, Marcos. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 56, Mai./ Ago. 2015.

Quais as correspondências possíveis entre o regime franquista (1939-1975) e as ditaduras militares instaladas ao sul do nosso continente a partir da década de 1960? Existem categorias de análise comuns que podem constituir-se em grade de interpretação sistêmica desses objetos? Estas são duas das indagações que atravessam os ensaios reunidos na coletânea “Procesos represivos y actitudes sociales. Entre la España franquista y las dictaduras del Cono Sur”, coordenada por Gabriela Águila, professora de História Latino-americana da Universidad de Rosário, e Luciano Alonso, catedrático de História e Teoria Social da Universidad Nacional del Litoral (Santa Fe/Argentina).

Desde o Prólogo a obra sinaliza para a complexidade de tais questões, não apenas pela evidência prévia das distâncias cronológicas e geográficas, mas igualmente pelas origens políticas e culturais distintas dos conflitos sociais que fizeram emergir esse conjunto de regimes. A este duplo aspecto são aditados os desdobramentos díspares quanto aos processos da experiência repressiva e transição democrática vivenciados pelas sociedades respectivas.

No entanto, as assimetrias passam a significar um fator de menos densidade quando a elas são aplicados modelos de compreensão que se afastam das definições normativas e rígidas, atribuindo a essa obra coletiva unidade metodológica, coerência teórica e pluralidade documental. A coletânea reúne contribuições de historiadores e estudiosos das ciências sociais de países como Espanha, Brasil, Chile, Argentina e Uruguai cuja especialidade na temática núcleo – a ditadura repressiva como síntese sociopolítica dessas sociedades no século XX, e as consequentes sequelas herdadas – convida a revisitar subtemáticas alicerçadas ao núcleo. As categorias chaves de análise são o sistema repressivo engendrado pelos regimes; as coalizões de violência formadas por diversos níveis organizacionais e hierárquicos; as atitudes sociais que conformaram extensas redes de relacionamentos situadas entre o consenso e a resistência; o exílio como símbolo primordial do desterro.

A obra conta com a reedição de um clássico artigo escrito por Julio Aróstegui e publicado em dezembro de 1996, no Bulletin d’Histoire Contemporaine de l’Espagne. Atual e robusto pelas inquietações que suscita, “Opresión y pseudojuricidad. De nuevo sobre la naturaleza del franquismo,” (p.23-40) funciona como o fundamento metodológico para o agrupamento de ensaios que problematizam o papel das ditaduras de ambos os lados do Atlântico. No texto, Aróstegui advoga a necessidade de superação de tipologias dependentes da casuística politológica, para que sejam reconsiderados, efetivamente, os estatutos histórico e historiográfico da questão.

Em outras palavras, para Aróstegui, partindo do problema espanhol, a análise do sentido histórico de um regime não pode estar encoberta pela sua significação; ou, as interrogações não devem ser lançadas aos referentes do objeto numa categoria dada a prioriou circunscrita em definições formais de regimes políticos segundo critérios já estabelecidos. (p.25) Aróstegui reivindica uma “suficiente empiria” propiciada pela análise histórica que desconstrua as estratégias argumentativas da ciência política e da sociologia em interpretarem como “fascista”, “sin apelación, a un régimen [franquismo] que jamás se llamó a sí mismo tal cosa. Y lo mismo cabría decir de sus calificaciones como “autoritarismo” – con o sin “pluralismo limitado” -, “bonapartista” o “dictatorial.” (p.28)

Tendo em vista esses postulados teóricos, abrem-se para os autores da coletânea questões em série, todas elas proporcionadas, claro está, pela legitimação heurística e prática cotidiana que foram atribuídas aos regimes por si mesmos. De modo que as possibilidades de comparação não frutificam somente entre os regimes que tiveram certa proximidade geográfica e cultural; mas existem razões que justificam “comparaciones ampliadas”. Tais casos comparativos aparecem na reflexão de Luciano Alonso (p.43-68) e Daniel Lvovich, (p.123-146) ao ponderarem sobre os marcos gerais de uma época; as estruturas sociais e instituições políticas; os vínculos internacionais; e, principalmente; as mútuas influências e características ideológicas, fatores suficientemente capazes de romper barreiras temporais, culturais e geográficas assumindo certo caráter de permanência e densidade histórica, e tornando factíveis as comparações ampliadas, assim como, as devidas diferenciações entre os grupos políticos.

Não obstante, a grade de interpretação sistêmica mais recorrente da obra coletiva é instaurada pela noção de “dimensão repressiva” como aquilo que parece representar ou definir a natureza dos regimes políticos. Coerentes a essa noção, autores como Jorge Marco mergulham nos sistemas de “limpeza política” na Espanha franquista que levaram a assassinatos extrajudiciais. (p.69-96) Como reforço do argumento comparativo, esta prática em muito encontra parentescos com o que viria a ocorrer mais tarde em países como a Argentina, com a lógica de “desaparición” e Chile com os “assassinatos públicos” que inauguraram a ditadura pinochetista. Os dois países são analisados respectivamente por Gabriela Águila, no texto “La represión en la historia reciente argentina: fases, dispositivos y dinámicas regionales,” (p.97-121) ou Igor Goicovic Donoso que em “Terrorismo de Estado y resistencia armada en Chile,” (p.245-270) desbasta a radicalização profunda da sociedade chilena com a chegada do socialista Allende ao poder, acompanhada do inconformismo de uma sociedade tradicional e na qual as Forças Armadas gozavam de imenso prestígio. Donoso destaca que, obstinadas pela ideia de uma “refundação” da sociedade chilena, as Forças Armadas recorreram à repressão como principal mecanismo de controle social: “La represión política fue, por lo tanto, una condición imprescindible para garantizar el éxito del proceso refundacional y un elemento clave para anular la relación entre izquierda política y movimiento popular.” (p.245)

A coletânea ainda conta com artigos sobre os sistemas repressivos do Brasil, a cargo de Samantha Quadrat, e Uruguai, com um ensaio escrito por Carlos Demasi. Enquanto Quadrat problematiza as cadeias de comando repressivo e as variantes de violência política; Demasi debate as ambíguas formas de coexistência entre a sociedade uruguaia e a ditadura.

Tal obra coletiva é especialmente recomendada aos estudiosos (professores e alunos de pós-graduação) da história política recente da América Latina, bem como, aos pesquisadores preocupados com a dimensão transnacional e de cruzamentos da cultura política hispanoamericana. Fundamentada em sólida metodologia e original emprego de documentação (sob a ótica de atribuir voz própria aos regimes políticos), a conjugação das variadas facetas assumidas pelos sistemas repressivos em pauta na coletânea pode subsidiar, como marco historiográfico comparativo uma série auspiciosa de objetos de estudos: o funcionamento dos sistemas penitenciários, as resistências armadas ou pacíficas, as funções representacionais e legitimadoras das ditaduras, os posicionamentos dos distintos agentes frente à dominação ditatorial, ou ainda, a autonomia adquirida pelo sistema repressivo nos âmbitos regionalizados.

Marcos Gonçalves – Departamento de História. Universidade Federal do Paraná. Rua General Carneiro, 460, 6º andar, Ed. D. Pedro I, Curitiba, PR, 80.060-150. marcos.goncalves@ufpr.br.

O lugar da geografia brasileira: A Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro entre 1883 e 1945 – CARDOSO (VH)

CARDOSO, Luciene P. Carris. O lugar da geografia brasileira: A Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro entre 1883 e 1945. São Paulo: Annablume, 2013. 240 p. MARTINELLO, André Souza. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 56, Mai./ Ago. 2015.

É quase senso comum ver disciplinas vizinhas dialogarem pouco, pelo menos sobre a tradição que já tiveram. Mas existem tentativas de aproximação da História e da Geografia, como a obra de Luciene P. Carris Cardoso. Essa historiadora publicou pela editora Annablume partes da sua dissertação de mestrado e da tese de doutorado. Trata-se de um trabalho acadêmico com relevante atenção aos detalhes, e sem perder o contexto maior: concepções “pré-geográficas” antes da institucionalização formal da Geografia.

Entre suas contribuições está recolocar em discussão as ações de institutos e indivíduos que adensaram os debates sobre determinadas áreas das ciências, antes de conquistarem legitimidade. Anteriormente à criação de Universidades, das Faculdades de Educação e, com destaque, antes mesmo dos Departamentos e cátedras de Geografia (e/ou História pois, quase sempre, inicialmente eram um só curso), houve sim, um profundo e permanente debate de uma – com o perdão da expressão – “proto-Geografia” brasileira ou “Pré-disciplina”. Nesse livro, percebem-se saberes geográficos de várias tendências se constituindo, antes da disciplina Geografia formalmente existir. E a disciplinarização, a criação dos cursos de formação de professores e bacharéis, enfim, da ciência geográfica em geral foi, de início, extremamente influenciada por essa Sociedade aqui estudada.

A partir do caso da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro/SGRJ fundada no Império (fortemente apoiada pela Coroa e parte influente da Corte), em 1883, seguem-se ideias de pessoas que pensavam a Geografia como central para o País. O recorte do trabalho vai até o final de 1945 quando a Sociedade alterou seu nome e passou a ser Sociedade Brasileira de Geografia. Vários pontos marcam a obra, entre eles, a passagem e conferência na SGRJ do renomado geógrafo francês Elisée Réclus, assim como Marechal Candido Rondon e demais intelectuais, burocratas, estadistas, ídolos ou heróis daquela Sociedade (tal como o Imperador D. Pedro II e Getúlio Vargas, para ficar em exemplos de governantes), entre outros. A maneira metodológica de organização das fontes que Cardoso utilizou para construir seu texto é didática, seguindo uma certa ordem cronológica. O estudo nos apresenta uma profunda relação entre formas de se pensar a(s) Geografia(s) e o Poder(es), a partir do papel daqueles indivíduos membros filiados que constituíram a Sociedade, seja a produção de reuniões, materiais e temas de interesses, suas publicações, a Geografia como instrumento para o Estado, para o nacionalismo mas também, para os próprios sujeitos que mobilizavam tal Sociedade para proporem e realizarem políticas, ideias e visibilidade de opiniões pessoais.

Das documentações mais presentes no livro estão as publicações e atas de reuniões da SGRJ, com as quais a autora consegue também constituir parte da trajetória biográfica de pessoas que pertenceram a essa Sociedade, justamente a partir dos textos publicados pela SGRJ. Além de certa periodicidade de publicações, do usos de Anais de Eventos, o livro aponta alguns papéis ocupados por figuras-chave na compreensão de tal Sociedade, seus interesses, dos discursos e “ideologias geográficas” (essa última expressão de Antonio Carlos Robert Moraes, autor que apresenta a primeira capa a “orelha” do livro) da SGRJ. Não foi por mera coincidência que um (ex-)chanceler, por exemplo, foi presidente daquela Sociedade. A própria escolha das sedes das cidades para realização de eventos da SGRJ, também é outro exemplo da existência de acordos entre os membros, pois os encontros e congressos organizados pela SGRJ não eram “escolhas imparciais”, mas desejos de seus membros e questões candentes com a época.

Quero chamar atenção para a 9ª reunião Nacional de Geografia – e me toca pessoalmente tal exemplo por ter sido a sede a antiga Faculdade de Educação, conhecida FAED, na qual me licenciei – evento realizado em Florianópolis, cidade escolhida em reunião da SGRJ, tema de um dos últimos capítulos do livro. A escolha da capital de Santa Catarina se deveu aos fatores do contexto geopolítico e nacionais da Segunda Grande Guerra pois, naquele ano de 1940, pensava-se a relevância da difusão de brasilidade via Geografia em um dos Estados do País com maior número e contingente de imigrantes alemães. Havia, portanto, como bem aborta a autora, uma “cultura geográfica do Estado Novo” na e pela SGRJ; e a escolha de realizar o evento em terras catarinenses refletiu um pouco aquele momento. Por outro lado, também a escolha de Santa Catarina para receber tal evento se deveu ao peso institucional do catarinense José A. Boiteux (1865-1934), ativo membro da SGRJ, idealizador do 1º Encontro dessa Sociedade ainda na “República Velha”. Portanto, a Nova reunião em Florianópolis foi uma forma de retribuição e homenagem póstuma a Boiteux. Destaca-se também a realização de trabalho de campo no Vale do Itajaí, coordenado pelo conhecido geógrafo francês – naquela época professor da USP – Pierre Monbeig.

Acredito que os leitores interessados nas discussões presentes no livro de Luciene P. Carris Cardoso serão constantemente surpreendidos com tantas valiosas informações discutidas na obra, e talvez sintam aquele gostoso prazer de re-ler o que acabou de ser lido. Esse trabalho realizado pelo espectro da História traz novamente a necessidade de continuação das trocas além dos departamentos e de maneira interdisciplinar, pois afinal, com esse livro conseguimos compreender “o lugar da geografia brasileira”, essa expressão que nomeia o livro que logo deverá ser leitura obrigatória e bibliografia de referência nos melhores cursos e centros de discussão de Geografia. É mais uma vez um bom momento para pensarmos os lugares possíveis da História e da Geografia no Brasil e os distanciamentos que ambas tomaram de si mesmas, podendo aprofundar com melhor qualidade os debates com a publicação sobre as histórias da Geografia brasileira e da Sociedade que “fundou” interpretações geográficas antes mesmo de existir uma Geografia stricto sensu.

André Souza Martinello – Laboratório de Geografia Política. Universidade de São Paulo. Av. Engenheiro Max de Souza 1327, ap. 102, Cond. São Gabriel, Coqueiros, Florianópolis, SC, 88.080-000. andresoumar@gmail.com.

Transformando o Brasil: uma história do desenvolvimento nacional na era do pós-guerra – IORIS (VH)

IORIS, Rafael. Transformando o Brasil: uma história do desenvolvimento nacional na era do pós-guerra. Nova York: Routledge, 2014. 270 p. ROGER, Thomas D. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 56, Mai./ Ago. 2015.

Em setembro de 1957, uma jovem estudante de uma escola pública do interior de São Paulo, chamada Dorothy Del Ben Pedroso, enviou uma carta ao Conselho Nacional de Desenvolvimento (CD). O presidente Juscelino Kubitschek havia encarregado a agência de executar seu ambicioso Plano de Metas, e o CD tinha a reputação de instituição tecnocrática de alto nível envolvida em pesados ​​problemas da política nacional. Mesmo enfrentando essas graves responsabilidades, os membros do CD reservaram um tempo para ler as perguntas de Dorothy sobre o objetivo de aumentar a mecanização agrícola, sobre as quais ela aprendeu em material publicado sobre os planos de JK. O secretário-geral do Conselho, Lucas Lopes, um confidente pessoal de Kubitschek e um poderoso formulador de políticas, leu a carta junto com outros quatro membros do CD. Esse detalhe sobre as operações internas da agência demonstra uma das grandes realizações de Rafael Ioris em seu novo livro completo sobre desenvolvimento durante o governo Kubitschek. Ioris fornece um relato detalhado e texturizado das origens do Plano de Metas e como ele foi colocado em ação. Ele vincula seu exame dos debates em torno da política e da mecânica de sua implementação à história mais ampla de como ela foi envolvida por vários setores sociais.

A carta de Dorothy mostra que os debates sobre desenvolvimento atingiram amplamente a sociedade brasileira da década de 1950. Das elites políticas aos alunos das escolas rurais, todo tipo de pessoa sabia algo sobre os objetivos de Kubtschek e achava que estava interessado no processo de realizá-los. Ioris fornece narrativas claras e cativantes do progresso desses debates, em seus vários níveis de abstração e influência. Ele cataloga as perspectivas e argumentos apresentados em uma ampla gama de materiais publicados, divulgados por grupos de negócios e grupos de reflexão. Ele também analisa as operações internas das agências federais, como indica sua atenção à correspondência do CD. E ele analisa as visões da classe trabalhadora, especialmente da indústria automobilística, usando documentos como A Voz do Metalúrgico. Apesar de tantos grupos terem participado ativamente da discussão sobre a busca pelo desenvolvimento, Ioris sustenta que “não existia definição consensual de desenvolvimento nacional” na época (p. 6). A heterogeneidade de opinião fornece mais uma razão para reconstruir esses debates e determinar quais vozes ecoaram mais alto durante o rápido desenvolvimento que ocorreu durante o governo de JK. Ioris também fornece um corretivo para uma visão reducionista da época – que Kubitschek presidiu um período de concordância social e apoio monolítico às suas políticas.

Uma das principais intervenções de Ioris reside em seu argumento insistente de que o Conselho de Desenvolvimento não funcionou como um corpo transcendentemente tecnocrático, isolado da influência externa. Ioris argumenta que o mais importante dos interlocutores do CD veio da comunidade empresarial. O Conselho manteve vínculos claros e amplos com interesses privados e, de fato, os objetivos do Plano de Metas que foram alcançados foram precisamente aqueles em torno dos quais houve maior interação entre a agência e o capital privado. Além disso, os defensores mais fortes do Plano vieram de setores sociais com maior probabilidade de negar o conteúdo político de suas posições. Os setores de renda média e alta, incluindo líderes empresariais, defendiam uma abordagem “técnica” da política que ressoava com o estilo aparente de JK. Mas por mais que possam obscurecer isso, essas abordagens eram certamente políticas. E a tendência a favor da governança tecnocrática ajudou a estabelecer as bases para o apoio desses militares aos setores, quando tomou o governo em 1964.

Ioris apresenta um argumento perspicaz sobre o contexto da queda do regime democrático em 1964. Primeiro, ele fornece uma visão do crescimento de uma predileção por administradores supostamente não políticos. Segundo, ele demonstra que a abordagem consistentemente favorável aos negócios da JK encerrou oportunidades para outros setores sociais contribuírem com sua própria visão de desenvolvimento, principalmente a classe trabalhadora que cresce rapidamente. Sua crescente frustração com um modelo de desenvolvimento que falhou em lidar com as desigualdades regionais e de classe ajuda a explicar a polarização dos anos de Goulart. Enquanto o período de JK registrou um crescimento anual de 11% na produção industrial, por exemplo, os empregos industriais aumentaram apenas 3% ao ano. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento industrial concentra-se cada vez mais em São Paulo, e particularmente na região do ABC.

Lendo os relatos de Ioris sobre os debates em andamento nas páginas da Conjuntura Econômica ou Cadernos do Nosso Tempo, ou nos jornais dos metalúrgicos, fica impressionado como a questão do desenvolvimento nacional impregnava a cultura da época. Mesmo que os brasileiros não concordassem com o que o desenvolvimento deveria significar, a maioria concordou que eles queriam. Ioris concentra-se amplamente nos diálogos políticos e intelectuais, mas oferece um contexto importante para outras expressões dos debates maiores. Por exemplo, “Eles não usam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, estreou em 1958, no meio do período que Ioris descreve e apresenta o segmento de trabalhadores que ele examina. A caracterização do quinto capítulo da cultura emergente do consumo abre essa discussão, mas Ioris deixa para outros estudiosos explorar ainda mais os elos entre os debates sobre cultura e desenvolvimento.

Os seis capítulos do livro dividem-se ordenadamente em duas seções. A primeira seção descreve o contexto histórico para a elaboração e implementação do Plano de Metas e a segunda examina as relações de três grupos distintos com o Plano. Os três capítulos que constituem a primeira seção preparam o terreno para a compreensão da história do pensamento desenvolvimentista no Brasil, preenchendo antecedentes e contexto para compreender os anos do pós-guerra. Ioris também coloca o Brasil em um contexto internacional, demonstrando onde sua experiência nacional se encaixa em um cenário mais amplo e particularmente hemisférico. Finalmente, esta seção explica como o Conselho de Desenvolvimento foi formado e funcionou. A segunda seção é composta pelos três capítulos finais, que avaliam seqüencialmente os intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, líderes de negócios (incluindo executivos de publicidade da influente empresa norte-americana J. Walter Thompson) e trabalhadores de automóveis. Este livro bem pesquisado oferece uma imagem rica da trajetória de desenvolvimento nos anos da JK e servirá como uma referência valiosa.

Thomas D. Rogers – Universidade de Emory. 561 S. Kilgo Circle. 221 Bowden Hall. Atlanta, GA 30322. tomrogers@emory.edu.

A América portuguesa e os sistemas atlânticos na época moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime – FRAGOSO et. al (VH)

FRAGOSO, João; GUEDES, Roberto; KRAUSE, Thiago. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na época moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2013. v.1. 184 p. CONCEIÇÃO, Helida Santos. A América portuguesa e os sistemas atlânticos na época moderna: monarquia pluricontinental e Antigo Regime. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 55, Jan. /Abr. 2015.

Nos últimos 20 anos a historiografia brasileira tem revisado o que se convencionou chamar de “modelos explicativos da economia colonial”, mais precisamente o sentido da colonização e a ideia de que a sociedade da América poderia ser traduzida em termos de latifúndio, monocultura e escravidão. O sentido teleológico contido nessa interpretação, formulada por Caio Prado Jr. na década de 1940, visava explicar a nossa dependência estrutural do capital externo, insistindo na ausência de uma economia interna e reduzindo a complexidade da sociedade que se formou no novo mundo às noções de exclusivismo colonial, pacto colonial e relação metropóle-colônia. Por essa perspectiva a sociedade colonial estava dividida basicamente entre senhores e escravos não havendo espaço para perceber historicamente outros agentes sociais.

O fato é que essa visão engessada do nosso passado colonial, não pode mais se sustentar em função dos novos direcionamentos da historiografia brasileira e da incontornável revisão teórica pela qual passou tais modelos explicativos. Por não sublinhar aspectos essenciais das sociedades que se formaram na América a partir de suas relações com as monarquias europeias, é que verificou- se a limitação desses modelos para analisar estas sociedades entre os séculos XVI e XVIII.

Atualmente diversos trabalhos desenvolvidos no âmbito das pós-graduações, vem estudando a América portuguesa nos termos de uma sociedade inserida no Antigo Regime. No entanto, faltava uma publicação que apresentasse essa discussão de modo direto, com uma linguagem factível e centrada não somente em novos aportes teóricos, mas chamando atenção para outras possibilidades de exploração de fontes documentais, tais como os assentos paroquiais e as fontes cartorárias, necessárias para uma apreensão mais complexa e relacional da dinâmica interna desta sociedade.

O livro A América Portuguesa e os sistemas atlânticos foi escrito por três historiadores ligados ao grupo de pesquisa Antigo Regime nos Trópicos, e cumpre um papel relevante para o desenvolvimento do conceito de monarquia pluricontinental, como uma hipótese de trabalho válida para estudar a monarquia católica portuguesa e a formação dos sistemas atlânticos. A obra está dividida em três capítulos, cada um dos quais articulados com a ideia da consolidação de um sistema atlântico em perspectiva comparada, com ênfase nas transformações socioeconômicas vividas pela América lusa entre os séculos XVI e XVIII. E, ao final, há um glossário, muito útil para os investigadores do tema, com os principais conceitos discutidos no texto.

O argumento principal é explorar como a produção e o excedente econômico estavam voltados para a reprodução interna da sociedade escravista com suas diferenças de status (sociedade estamental), atestados pela hierarquia social costumeira, através de um mercado regulado pela política. O conceito de monarquia pluricontinental, vale ressaltar, ainda em construção, tende a diferenciar-se do conceito de monarquia compósita formulado por J. Elliot para descrever a coroa Hispânica nos séculos XVI e XVII, muito embora ambas as monarquias ibéricas fossem católicas

Mesmo que apareçam similaridades, há que sublinhar que existiam diferenças consideráveis entre a monarquia compósita dos Austrias de Espanha e a pluricontinental lusa na gestão de suas possessões no novo mundo. Uma delas diz respeito a interação entre as elites reinóis e americanas nas formas de administração das populações nativas. A monarquia lusa vivia dos rendimentos auferidos nas conquistas, portanto possuia a centralidade na sua periferia, fatores que reiterariam a sua natureza sistêmica como uma monarquia pluricontinental. Para deixar ainda mais claro a formulação deste conceito, os autores analisam em perspectiva comparada as possessões ibéricas, com as colônias inglesas no Caribe, exploradas por uma racionalidade diferente, sob a influência das revoluções de 1640 e 1688, nas quais o lucro de proprietários absenteístas retornavam para suas praças europeias.

Dessa forma a monarquia portuguesa vista como Pluricontinental era também polissinodal e corporativa, orientada por uma disciplina social católica e modulada no interior da segunda escolástica. Baseados em estudos recentes, os autores atestam que nos territórios das conquistas, assegurou-se a autonomia das instituições com poderes concorrenciais, sobretudo no autogoverno dos municípios, orientados pelo princípio do bem comum e da economia das mercês. Tal situação inclusive havia se configurado em Angola, o que teria permitido a montagem do sistema atlântico luso do tráfico de escravos, uma vez que na monarquia pluricontinental as formas de governabilidade estavam alicerçadas em negociações e pactos políticos entre as elites locais e a administração do Império. A formação de vínculos de dependência/lealdade, gerou uma visão de mundo, ou seja um ethos, que configurou-se como ligação incontornável entre sua majestade e o controle dos territórios das conquistas.

Esse sentimento de pertencimento à monarquia traduzia-se numa obediência amorosa, portanto consentida e voluntária, difundida através da disciplina social católica. De acordo com os autores, essa seria uma relevante chave interpretativa para o entender o funcionamento da economia no Antigo Regime católico. Nessa sociedade parte da riqueza social era comandada pelo além-túmulo, ou seja, a cada geração, uma parcela da riqueza social era transferida para instituições religiosas, retornando sob a forma de crédito que poderiam ser dispostos no mercado, possibilitando assim a reprodução da hierarquia social. Nesta realidade havia uma constante sociabilidade entre os diversos agentes – nobreza da terra, escravos, forros e pardos – que interagiam através de variados vínculos (parentais, compadrio, amizade, proteção) e agências necessárias à administração da república e do mercado.

A mobilidade social e a mestiçagem são também aspectos que deram o tom destas transformações ao longo do tempo, um indicativo disso segundo os autores é o aparecimento dos pardos como grupo social. A compilação de dados retirados de assentos paroquiais de duas principais freguesias do Rio de Janeiro são utilizados para demonstrar como esse grupo surge como resultado da interação coeva entre os indivíduos. Nesse sentido a oikonomia, entendida como economia doméstica, perfazia o lugar central da organização da hierarquia social, sendo a base que regulava o trabalho familiar e a escravidão, passando ao largo da interferência das leis de sua majestade.

A contribuição historiográfica deste livro não é totalmente inédita, uma vez que os conceitos já foram apresentados em outros trabalhos publicados pelo grupo de pesquisa Antigo Regime nos Trópicos. Ao final da leitura a questão que se coloca é sobre a pertinência de ampliarmos tal proposta teórica para outras áreas da América Lusa, sobretudo para vermos como diferentes configurações sociais se comportaram frente ao quadro teórico apontado pelos autores.

Helida Santos Conceição – 1Universidade Federal do Rio de Janeiro. Largo de São Francisco, s. 205, Centro, Rio de Janeiro, RJ, 20.051-070, Brasil.helidas@gmail.com.

Medo, reverência, terror: Quatros ensaios de iconografia política – GINZBURG (VH)

GINZBURG, Carlo. Medo, reverência, terror: Quatros ensaios de iconografia política. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. 200 p. Tradução de Federico Carotti, Júlio Castañon Guimarães e Joana Angélica d’Avila Melo. RABELO, Elson de Assis. Medo, reverência, terror: Quatros ensaios de iconografia política. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 55, Jan./ Abr. 2015.

Já faz algum tempo que a dimensão visual da história e da vida em sociedade tem chamado a atenção do principal nome do campo conhecido como micro-história, seja na Itália ou fora dela. Depois de seus estudos mais importantes nesse campo, o autor passou a explorar o gênero do ensaio, com a verve da polêmica e da erudição, como se vê nas obras Relações de forçaOlhos de madeiraO fio e os rastros, nas quais Carlo Ginzburg tem apresentado sucessivamente não apenas seu farto conhecimento sobre longos períodos da história do Ocidente, particularmente da Europa, mas tem posto essa erudição em função de problemas históricos instigantes, a partir das possibilidades dadas pelo método indiciário que ele sistematizara em texto hoje clássico.

O ponto de partida que reúne os quatros capítulos do seu mais recente livro, Medo, reverência, terror, originalmente publicados como quatro ensaios independentes, é a temática mais ou menos comum que lhes abrange e que Ginzburg filia ao conceito de Pathosformeln. Lançado pelo historiador da arte alemão Aby Warburg, mestre de uma geração e conhecida referência do autor italiano, o conceito designa as fórmulas históricas de representação das emoções na arte, vazadas na gestualidade corporal ou na expressividade facial dos sujeitos. Mas, desta vez, trata-se de uma releitura, considerando-se que Ginzburg, em Mitos, Emblemas, Sinais, já mapeara o conceito sobre a obra de Warburg.

Como “instrumento analítico”, as Pathosformeln constituem uma noção que “ilumina as raízes antigas de imagens modernas e a maneira como tais raízes foram reelaboradas” (p.12), especialmente sob o signo da ambivalência entre emoções contraditórias. As Pathosformeln informariam a criação visual, mesmo que o próprio artista eventualmente não saiba de onde vêm essas formas que ele emprega. Ao acentuar a tensão entre morfologia e história, que também havia sido abordada antes, Ginzburg, enquanto historiador, testa o conceito em favor da condição histórica das obras de arte, de sua criação e recepção, com ênfase na questão do político e dos temas das três emoções correlatas (medo, reverência, terror) que, embora distintas, teriam se reforçado e sustentado a dominação, a contestação e a memória do poder.

Ricos em imagens, os capítulos têm o mérito de não reduzi-las ao uso ilustrativo, mas convoca-as para a narrativa, chamando o leitor para que veja os indícios privilegiados na abordagem. No entanto, esse exercício chega a ser um tanto exaustivo, dado o volume de vestígios e informações levantados, que pedem, e permitem, mais análise das imagens em si mesmas. Inclusive, no primeiro capítulo, o privilégio não é dado à imagem e sua constituição: o próprio Ginzburg diz que trata, antes, de um caso de Logosformel (“fórmula de ideias”), pois a abordagem sobre os frontispícios de duas edições do Leviatã, de Hobbes, cede espaço à discussão dos conceitos do medo e da reverência, onde são exploradas as possíveis conotações religiosas da construção filosófica do pensador inglês sobre o Estado, contrariando a tradição que o considera já secularizado, e secularizador, da política.

No segundo capítulo, uma das mais famosas pinturas do período revolucionário francês, o Marat em seu último suspiro, de Jacques-Louis David, é confrontada com outras obras de seu tempo e com as formas capturadas indiretamente da religião e que teriam favorecido o surgimento do “culto” a esse personagem político. O terceiro capítulo indaga detalhes do cartaz que trazia o rosto do marechal-de-campo inglês Lord Kitchener, no começo do século XX, que veio a inspirar não apenas o cartaz estadunidense de recrutamento para a guerra com o rosto do Tio Sam, como também vários produtos similares da propaganda política que tiveram por função intimar o espectador. Segundo o historiador, a língua “demótica” da propaganda atualizou um motivo clássico da pintura – aquele do olhar vigilante e do dedo apontado que parecem saltar da tela rumo ao espectador por força da expressão pictórica.

O quarto capítulo, em que Ginzburg mais uma vez visita a obra de Pablo Picasso, depois do ensaio anteriormente publicado sobre Demoiselles d’Avignon, é, sem dúvida, o mais denso, e o que mais chama a atenção dos historiadores interessados nas circunstâncias sociais de elaboração de uma obra de arte. Após nova digressão pelos temas clássicos da pintura das paixões encarnadas nos corpos, temas que de algum modo chegaram a Picasso, Ginzburg olha para a iconosfera e para os impressos que envolviam o pintor, antes e no momento da produção de Guernica, em 1937: a arquitetura, os objetos escultóricos, a imprensa, os textos surrealistas. E o cotejamento com os esboços fotografados do mural ampliam ainda mais esse espectro documental, e colocam a possibilidade de análise das operações de escolha e exclusão do artista, repercutidas na obra acabada e no tecido histórico para o qual ela virá à luz e do qual fará parte.

Pode-se dizer que os ensaios de Ginzburg têm a ver com um momento em que a historiografia tem se preocupado com aquilo que foi chamado por vários nomes, como cultura visual, modos de ver, com a visualização, enfim, do passado – e que não é preocupação exclusiva dos historiadores que privilegiam a abordagem de documentos visuais, mas um ângulo estratégico de questionamento dos vestígios que pode interessar seja aos historiadores da arte, seja aos da mídia, ou aos da política. E isso é indicativo de uma atenção ética, pontuada pelo autor logo no primeiro capítulo, ao assédio exercido atualmente pelas imagens, que, por sua ubiquidade, tornaram-se cada vez mais indissociáveis das nossas práticas de conhecimento, de produção cultural e de inserção na esfera do político. Embora o autor defina critérios próprios de análise e chegue às suas conclusões em função de problemas específicos, é inegável a constatação de que seus textos engrossam a fileira de uma historiografia que tem relacionado o político e a dimensão visual, exemplificada no capítulo sobre poder e protesto do livro de Peter Burke, Testemunha Ocular, ou no outro livro deste sobre Luís XIV, e nas diferentes tradições de estudos que têm relacionado a arte às suas demais implicações na sociedade, e daí podem se incluir, dentre outros, os nomes de importantes historiadores, como o próprio Warburg e seu círculo de Hamburgo e Londres, Pierre Francastel, Svetlana Alpers, Michael Baxandall, Louis Marin e Georges Didi-Huberman, embora Ginzburg se afaste deliberadamente de algumas perspectivas deste último.

Resta que, em que pese a defesa, por Ginzburg, de um método por excelência conjectural, nem sempre ficam claros os trânsitos de perdas e acréscimos das Pathosformeln, o que demandaria estudos de mais fôlego do que os ensaios podem comportar. Mas isso em si é revelador de que o historiador italiano não toma o conceito de Warburg como cartilha mecânica, mas como provocação para que se investiguem questões particulares com rigor de método para tratar os artefatos trabalhados como documentos, como ele demonstra em relação ao circuito social de produção, circulação e, eventualmente, consumo de algumas obras.

Além disso, lembramos que certas vertentes da historiografia brasileira, por vezes genericamente chamada de “história cultural”, acostumaram-se a trabalhar com as emoções e sensibilidades, nem sempre com chaves de leituras como a do medo, mas, em todo caso, com pouca articulação com a questão do político, e pouca exploração da dimensão visual, salvo algumas exceções. Mas se existe nesse tipo de abordagem o risco de só ver os vestígios históricos das emoções naqueles produtos que foram nomeados como o sendo o “sorriso da sociedade” (como a arte, a literatura ou mesmo a publicidade), seria possível pensar na existência, entre os grupos sociais sem escrita e sem o mercado institucionalizado de arte, de formas históricas recorrentes, e que sofrem reinterpretações, na expressão e na representação das emoções? Seus vínculos, cotidianos, insuspeitos, com a política, não constituiriam matéria de interesse para o historiador, sobretudo em espaços, como os que há e houve no Brasil, nos quais a política, seus ritos e seu espetáculo foram durante muito tempo expressos, veiculados e vividos em termos orais, gestuais, costumeiros, cerimoniais, que recorriam também ao ver e à sua historicidade? Por outro lado, a ferramenta conceitual das Pathosformeln serve para o tratamento de outras imagens, aquelas chamadas de “técnicas” pela crítica especializada, como o cinema e a fotografia, que, a depender do circuito social, podem, com efetividade, jogar o papel inequívoco de cristalização e veiculação das paixões políticas?

Para finalizar, entendemos, portanto, que o livro de Ginzburg abre clareiras metodológicas que ultrapassam suas referências predominantemente europeias, sendo útil no sentido de pensar, para outras configurações sociais, uma história política, ou uma história social da arte, ou uma história das sensibilidades, que desbordem seus campos tradicionais, pondo em xeque os engavetamentos – “história cultural”, “história política” etc. -, e enfocando os problemas a partir do cruzamento de abordagens.

Elson de Assis Rabelo – Colegiado de Artes Visuais, Universidade Federal do Vale do São Francisco Av. Antonio Carlos Magalhães, 510, Juazeiro, BA, 48.902-300, Brasil elson_rabelo@hotmail.com.

1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil | Ângela de Castro Gomes

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Os historiadores Ângela de Castro Gomes e Jorge Ferreira trazem a publico um livro emblemático, 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil, no ano em que meio século se passou daquele 31 de março. Por meio de uma escrita que captura o leitor desde as primeiras páginas, rapidamente se é tomado por uma curiosidade crescente sobre o relato seguinte, o passo seguinte, a negociação, o cenário. Como a mirar um caleidoscópio, os eventos são narrados alternando temporalidades e espacialidades articulados a um grande domínio das informações bibliográficas e documentais. E não poderia ser diferente, a obra é resultado de uma vida de pesquisa e escritas de livros e artigos, de dois historiadores que muito produziram sobre essa temática e esse período. O enorme conhecimento sobre a documentação e a bibliografia relacionada à temática e ao período é elemento decisivo que potencializa essa capacidade de pensar a arquitetura da escrita em seus múltiplos vórtices de efeitos de verdade.

O livro narra um curto período da história política do Brasil: da crise da renúncia de Janio Quadros, em agosto de 1961, até o golpe civil militar de 1964. No entanto, as dimensões sociais, econômicas e culturais se entrelaçam à narrativa quer no detalhamento das lutas sindicais e de setores da sociedade civil, quer nas tensas negociações das estratégias econômicas, quer nas campanhas da UNE e de defensores de uma reforma educacional ampla, entre outros aspectos abordados. Leia Mais

Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros – ENDERS (VH)

ENDERS, Armelle. Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. 392 p. CEZAR, Temístocles.  Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 55, Jan./Abr. 2015.

Imaginemos Plutarco no Brasil. Parece ser mais fácil imaginar um Plutarco Brasileiro. Foi o que fez João Manuel Pereira da Silva em 1847 ao publicar O Plutarco brasileiro, pela editora Laemmert. Armelle Enders imaginou as duas situações: em 2000, a historiadora francesa publica, na revista Estudos Históricos, o artigo ‘O Plutarco Brasileiro’. A produção dos Vultos Nacionais no Segundo Reinado (http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2114); em 2012, a versão de sua tese de habilitação, defendida na Sorbonne em 2004, intitulada Plutarque au Brésil: passé, héros et politique, 1822-1922 – pela editora Les Indes Savantes, de Paris – que aparece agora em português sob o título Os vultos da nação. Fábrica de heróis e formação dos brasileiros. Plutarco é uma espécie de fantasma que atravessa constantemente as paredes deste panteão de papel que os letrados brasileiros esforçaram-se por erigir. Nesse sentido, tanto para Pereira da Silva quanto para Enders, Plutarco é, simultaneamente, um instrumento heurístico e uma hipótese de trabalho.

Quem foram, quem são, nossos grandes homens, nossos homens ilustres, nossos heróis? Tiradentes, José Bonifácio ou Getúlio Vargas encarnam no plano nacional este papel de varão de Plutarco. A colocação da questão nestes termos não dissimula um problema de ordem historiográfica. Afinal, são personagens cuja importância simbólica depende da conjuntura política e do regime de historicidade no qual adquirem fisionomia. É nas disputas pela memória entre a independência de 1822 e sua comemoração um século depois que Enders analisa tais tensões. Nessa duração média seria instalada uma espécie de fábrica historiográfica e pedagógica, na qual heróis ganhariam vida – passada e/ou presente.

Em sete equilibrados capítulos, uma introdução densa e uma conclusão que abre novas possibilidades de pesquisa, Enders apresenta um século que não cabe em si. Ele é pleno de projetos, alguns abortados em sua gênese, outros abandonados pelo caminho, outros ainda que permanecem e se convertem em políticas e em instituições públicas, cujos efeitos lançam-se como luz ou sombra para a ulterior história do Brasil.

No primeiro capítulo, “Os Tácitos no senado”, nota-se também a presença dos antigos como instrumento de inteligibilidade tanto para a fonte que dele se serve quanto para a análise de Enders. Assim, Joaquim Manuel de Macedo explica que estes Tácitos não escreveram a história da independência posto que estavam ocupados fazendo a independência. Pedro I e José Bonifácio são figuras incontornáveis desta conjuntura.

De Pedro II à Republica ou “o império da história”, ou de “Como se deve escrever a história do Brasil”, ao “Plutarco Brasileiro” e à “Fábrica de benfeitores” no qual é ressaltado a atuação dos positivistas, respectivamente, segundo, terceiro, quarto e quinto capítulos, Enders examina com detalhes os fundamentos institucionais e os enunciadores desta prática discursiva responsável pela fabricação dos heróis nacionais.

“Porque me ufano do meu país”, título do polêmico livro de Afonso Celso de 1900, é apropriado por Enders no sexto capítulo com o objetivo de investigar a releitura do passado (por exemplo, a figura de Tiradentes, o centenário de 1808 ou a reavaliação dos bandeirantes) e do presente (por exemplo, Santos Dumond, o Barão do Rio Branco) empreendida pelos homens da Primeira República.

O sétimo capitulo é dedicado à resposta a seguinte questão: “1822-1922: um século para nada?”. 1922 teria sido um ano difícil para a sociedade brasileira. Para o povo como sempre, mas também para os intelectuais, artistas e políticos. Enders fala mesmo de um clima indutor de certa “introspecção nacional”. Uma efeméride “eloquente”, muitas obras, certa tristeza no ar e a abertura para um futuro que logo escapará de seus contemporâneos.

Notável exercício de história da historiografia, o erudito trabalho de Armelle Enders torna-se imediatamente uma referência incontornável para os estudiosos do período e do tema. Ressalta-se a competente tradução de Luiz Alberto Monjardim de Calazans Barradas e a edição cuidadosa da Editora FGV. A historiadora é uma arguta observadora da realidade nacional (eu pensei em escrever da “nossa” realidade, como se Enders fosse uma pesquisadora de “olhar distante”, mas seria injusto pois Armelle não é uma brasilianista, ela não escreve desde um ponto de vista francês ou europeu, mas desde uma compreensão inequívoca da história brasileira em a que a cultura historiográfica não se divide em nós e eles). Não é sem razão que na conclusão não lhe escapam as figurações modernas dos heróis nacionais, entre os quais Zumbi, elevado a tal condição por pressões dos movimentos sociais acatadas pelo então presidente da República, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que inclusive decreta o 20 de novembro como “Dia da consciência negra”.

Porém, gostaria de concluir esta pequena resenha, retomando o “modelo” Plutarco. Um herói de verdade deveria subjugar as injunções entre o político e o histórico, deveria estar acima das querelas, deveria aliar mito e história. Ele não poderia mais ser um homem do século XIX, nem do período colonial, mas do final do século XX. Alguém que conseguisse despertar paixões coletivas. Logo, o “herói completo” não poderia mais ser um mártir social ou um homem político, mas uma celebridade, um star, que, se possível, ultrapassasse as fronteiras da nação. Ayrton Senna seria, para Enders, um bom exemplo deste tipo-ideal de herói requerido pelo mundo contemporâneo. Portador de traços aristocráticos, característica dos heróis anteriores ao Estado-Nação, mestre na arte de pilotar carros de corrida sofisticados, esporte ligado ao que há de mais moderno na atualidade, o habilidoso piloto, em cujo capacete exibia para quem quisesse ver as “cores do Brasil”, tinha por seu país um “patriotismo quase místico” (p. 12) que arrebatava multidões. Para completar morreu cedo, fazendo o que mais sabia e o que mais gostava. Como Aquiles.

A fábrica de homens ilustres, de grandes homens, de celebridades e de heróis do momento, ora comemorados, ora esquecidos, é, como demonstra Enders, uma instância intelectual da sociedade capaz de gerar e de apagar memória(s) e de constituir e de desestabilizar identidade(s).

Temístocles Cezar – Departamento de História Universidade Federal do Rio Grande do Sul Av. Bento Gonçalves, 9.500. Prédio 43.311, s. 116 Porto Alegre, RS, 91.509-900, Brasil t.cezar@ufrgs.br.

Oração e memórias na Academia das Ciências de Lisboa: Introdução e coordenação editorial de José Alberto Silva – ALMEIDA (VH)

ALMEIDA, Teodoro de. Oração e memórias na Academia das Ciências de Lisboa: Introdução e coordenação editorial de José Alberto Silva. Porto: Porto Editora, 2013. 121 p. Resenha de: FERREIRA, Breno Ferraz Leal.  Oração e memórias na Academia das Ciências de Lisboa: Introdução e coordenação editorial de José Alberto Silva. Varia História. Belo Horizonte, v.31, no. 55, Jan. /Abr. 2015.

Com a publicação de José Alberto Silva – doutorando em História e Filosofia das Ciências pela Universidade Nova de Lisboa e membro do Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia – dos textos referentes à participação do padre Teodoro de Almeida (1722-1804) na Academia das Ciências de Lisboa, temos uma nova oportunidade para buscar acompanhar os passos dados pelo pensamento ilustrado em Portugal, bem como as disputas que lhe foram constitutivas. Como parte da Coleção Ciência e Iluminismo, trata-se de mais uma iniciativa que vem muito a contribuir para diminuir a distância entre o que era produzido no contexto das Luzes e o que o público leitor de hoje tem acesso para conhecer aquele período.

Silva assina as notas e a competente introdução à obra, na qual situa a produção intelectual de Teodoro de Almeida no contexto das Luzes e do movimento acadêmico dos séculos XVII e XVIII. Escolhido por seu prestígio junto a uma parcela da elite intelectual portuguesa do período pós-pombalino para o cargo de orador oficial da Academia das Ciências, e por isso responsável pelo seu discurso inaugural, o padre da Congregação do Oratório foi, sem sombra de dúvidas, uma das figuras mais emblemáticas e eruditas da segunda metade do século XVIII, o que o coloca em pé de igualdade a nomes como Antonio Pereira de Figueiredo (1725-1797) e Manuel do Cenáculo Vilas-Boas (1724-1814). Somente uma personalidade dotada de imenso saber poderia ser responsável pela maior obra de divulgação científica do setecentos português, os dez volumes que compõem a Recreação Filosófica (1751-1800), iniciativa de caráter enciclopédico tipicamente iluminista – para além de outras obras em que transitou entre variados gêneros e temas, que foram da literatura à poesia, da filosofia à religião. Sucesso editorial na segunda metade do século XVIII e início do XIX, com reedições contínuas da maior parte dos seus tomos, a Recreação tinha o propósito de alcançar o público leitor da época com a exposição de variados temas vistos pelo prisma do padre, conteúdos que hoje infelizmente são pouco acessíveis justamente pela falta de edições recentes.

As cartas e memórias agora reunidas em livro dizem respeito, portanto, sobre apenas uma fase da vida do padre, a saber, o momento em que retornou a Portugal após oito anos de exílio no exterior. A perseguição promovida por Sebastião José de Carvalho e Melo aos oratorianos nos anos 1760 levou Almeida a residir a maior parte da década subsequente em Baiona (França). Tendo falecido D. José, abriu-se caminho para o seu retorno, o que ocorreu em 1778. Em Lisboa, passa a compor o grupo liderado por D. João Carlos de Bragança (1719-1806), o 2º Duque de Lafões, responsável pela formação da Academia das Ciências, tendo sido eleito em assembleia como orador oficial e sócio efetivo da classe de cálculo. Porém, ao contrário do que se poderia esperar, a partir daí iniciaram-se contratempos em sua carreira dentro da mesma instituição. É isso que mostra um primeiro conjunto de textos presente na obra editada por Silva.

Incluem-se nesse conjunto a oração de abertura recitada por Teodoro de Almeida a 4 de julho de 1780 e mais sete cartas que fazem referência ou a ela ou ao padre e à Academia. Infelizmente, ainda não foi possível elucidar a autoria da maioria delas, especialmente das que lhe foram críticas. Conforme outros historiadores já haviam defendido, destacadamente Francisco Contente Domingues, a disputa teve como pano de fundo a defesa do legado pombalino, particularmente presente na Carta em crítica à oração do Pe. Teodoro de Almeida e na Sátira. Espalhada contra um religioso de S. Filipe Néri, interpretação essa aceita por José Alberto Silva (p.22). Por sua vez, assumindo uma postura que pode ser compreendida como antipombalina, o padre oratoriano celebrou a fundação da Academia como o grande momento da história cultural portuguesa do século, o momento a partir do qual finalmente os portugueses poderiam se considerar equiparados às nações mais cultas da Europa. Esse posicionamento dava margem à interpretação de que o padre fazia pouco das iniciativas culturais e educacionais instituídas durante o ministério de Pombal (1750-1777), como a reforma estatutária da Universidade de Coimbra (1772). A Resposta à precedente sátira, também de cunho antipombalino, vinha a defender Almeida, argumentando que a intenção do padre não era dizer que a ignorância não havia começado a ser dissipada nos anos precedentes, mas apenas dizer que ela ainda predominava, apesar dos esforços anteriores. Em todas elas, portanto, a discussão sobre o atraso que viria a marcar as gerações futuras e que em Portugal adveio atrelada ao discurso pombalino.

A publicação desta Resposta constitui uma contribuição inédita, dado que as demais cartas já haviam sido publicadas em outras obras. Porém, mesmo no caso destas, a sua reunião vem bem a calhar, pois, além de juntá-las todas num único volume, o que temos agora em mãos é o resultado do cotejamento das diferentes versões de cada um dos manuscritos encontrados por Silva em diferentes arquivos e bibliotecas. Também já publicadas anteriormente são as memórias que compõem um segundo conjunto de textos, transcritos a partir dos manuscritos que constam na Biblioteca da Academia das Ciências. Quatro trabalhos dos apresentados nas assembleias acadêmicas (“Sobre a natureza do sol”, “Sobre a natureza da luz e vácuo celeste”, “Sobre a rotação da lua” e “Sobre uma máquina para conhecer a causa física das marés”), por razões desconhecidas não foram publicados nos volumes de memórias da Academia, mas foram incluídos nos tomos das Cartas físico-matemáticas (1784-1799) – ainda que com algumas alterações, como anotou Silva no texto introdutório. De outras memórias lidas têm-se registro, mas os manuscritos seguem desconhecidos.

Cabe a suspeita de que outros capítulos das Cartas, para além dos citados por Silva, possam também ter sido resultado de memórias apresentadas à Academia. Um deles com certeza o foi, a “Carta XXX – Sobre algumas observações físicas do terremoto de 1755” (Cartas físico-matemáticas, Tomo III, 1798), já que há uma versão ligeiramente modificada do mesmo texto publicada na edição do poema Lisboa destruída, em 1800, em Lisboa, pela Oficina de Antonio Rodrigues Galhardo, sob o título de “Observações sobre as circunstâncias do terremoto”. No prefácio desta obra, Almeida afirma ter resolvido inserir no volume uma “dissertação acerca das circunstâncias físicas do terremoto de Lisboa, que há anos li na Academia Real das Ciências”. (p.VI) A inclusão dessa dissertação numa obra de documentos relativos à participação acadêmica do padre tornaria completa a obra coordenada por José Alberto Silva.

Não há mais reparos possíveis a se fazer a uma edição cujo autor também teve o mérito de discutir satisfatoriamente as razões da não aprovação das memórias nos volumes editados pela Academia. Podem-se conjeturar algumas razões para o fato do padre ter exercido um papel reduzido nas atividades acadêmicas. Teria sido em função da má repercussão de sua oração inaugural? De uma desatualização científica do padre, por supostamente não ter acompanhado os progressos do conhecimento em Portugal nas últimas décadas? A essas e outras possibilidades, Silva acrescenta a derrota de um projeto escolar para a Academia almejado pelo padre, em função de um programa mais propriamente utilitário defendido por sócios como o naturalista Domingos Vandelli (1735-1816), que acabou vencedor (p.19-26).

O que temos, portanto, é uma obra que contribui não só para a compreensão de um fragmento da vida intelectual de um autor de obra tão vasta quanto Teodoro de Almeida, mas também dos caminhos percorridos pelo pensamento iluminista em Portugal. Por meio da exposição de José Alberto Silva e dos textos editados, ganha-se em conhecimento a respeito das escolhas feitas pelos ilustrados entre diferentes projetos acadêmicos, das distintas visões acerca do legado pombalino no final do século e da consciência daqueles homens acerca do papel da ciência em Portugal na modernidade.

Breno Ferraz Leal Ferreira – Doutorando, Programa de Pós-Graduação em História Social Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo Av. Prof. Lineu Prestes 338, São Paulo, SP, 05.508-900, Brasil breferreira@gmail.com.

Where the Negroes Are Masters : An African Port in the Era of the Slave Trade – SPARKS (VH)

SPARKS, Randy J. Where the Negroes Are Masters: An African Port in the Era of the Slave Trade. Cambridge: Massachusetts: Londres: Harvard University Press, 2014. 309 p. SILVA JR., Carlos da Silva. Where the Negroes Are Masters: An African Port in the Era of the Slave Trade. Varia História. Belo Horizonte, v. 31, no. 55, Jan. /Abr. 2015.

A participação das autoridades africanas era indispensável para o bom funcionamento do comércio transatlântico de escravos. Ao longo da costa ocidental africana, a presença europeia reduzia-se a poucos fortes litorâneos, sempre sob a vigilância dos potentados locais. A estes cabia a aquisição dos cativos no interior, o transporte para o litoral e sua venda aos comerciantes europeus. O livro de Randy J. Sparks, Where the Negroes Are Masters (“Onde os Negros são senhores”), lança um olhar sobre essa questão a partir um importante porto, embora pouco estudado, do tráfico de escravos: Annamaboe (ou Anamabu, em português), durante o século XVIII. De uma pequena vila de pescadores no final do Seiscentos, Anamabu converteu-se no principal empório escravista na Costa do Ouro (atual Gana) no século XVIII, segundo estimativas do banco de dados Voyages (www.slavevoyages.org).

Em livro anterior, The Two Princes of Calabar (Harvard University Press, 2007), Sparks investigou a trajetória de dois membros da elite de Old Calabar (Velho Calabar), no golfo de Biafra, pelo mundo atlântico. Amparado em ampla pesquisa documental, o autor agora analisa o comércio negreiro na Costa do Ouro, suas relações com as autoridades africanas, os “senhores” de Anamabu, e com o mundo atlântico do século XVIII.

Entre outros méritos, Where the Negroes Are Masters contribui para os estudos do Atlântico Negro, “que compreensivelmente tem se focado no tráfico de escravos e suas milhões de vítimas, mas tem prestado menos atenção às elites comerciais africanas que facilitavam aquele comércio e eram tão essenciais para a economia atlântica quanto os comerciantes de Liverpool, Nantes ou Middelburg” (p. 6). Sparks investe, portanto, nas histórias de indivíduos – especialmente dos africanos – que participaram, em maior ou menor grau, do comércio negreiro em Anamabu.

Não por acaso, dois capítulos tratam de figuras-chave para o tráfico de escravos e que permeiam todo o livro: John Corrantee e Richard Brew. Este, funcionário britânico da Royal African Company (RAC) e mais tarde mercador particular (quando a RAC foi substituída, nos anos 1750, pela Company of Merchants Trading to Africa, ou CMTA) cuja carreira em Anamabu durou mais de vinte anos até sua morte em 1776; aquele, comandante militar africano e mais importante caboceer (do português cabeceira, literalmente “capitão”, título aplicado a altos dignatários) de Anamabu até seu falecimento em 1764. A diplomacia era peça essencial em Anamabu, e ambos utilizaram-na, cada um à sua maneira. Corrantee envolveu-se profundamente nos negócios do tráfico e usou a rivalidade entre as nações europeias (França e Inglaterra, notadamente) em proveito próprio. Richard Brew, que na década de 1760 era o maior exportador de escravos na Costa do Ouro, fez uso de sua influência para mediar conflitos tanto entre os britânicos e as autoridades locais quanto entre as principais entidades políticas na Costa do Ouro: os Fante, que controlavam Anamabu, e os Achante ou Axanti, principais fornecedores de escravos do interior.

As nações europeias tentavam a todo custo ganhar o favor de Corrantee. Os franceses queriam construir um forte em Anamabu, mas os ingleses, que já tinham um forte ali, tentavam evitá-lo de todas as formas. John Corrantee manipulou habilmente os interesses comerciais europeus em seu favor. Graças a suas manobras diplomáticas, ele pôde enviar seus dois filhos à Europa para receber educação formal. A vida desse negociante demonstra a complexidade das relações entre comerciantes europeus e mercadores africanos na costa africana durante o século XVIII. Aliás, como astutamente nota Sparks, “Corrantee e seus companheiros caboceers deveriam ocupar um lugar central na historiografia do tráfico de escravos” (p. 67).

Richard Brew, por sua vez, logo percebeu que uma das chaves para o sucesso em Anamabu estava em estreitar laços com as elites locais, o que fez através do casamento com a filha de John Corrantee. Ele formou, segundo palavras de Randy Sparks, uma “família de crioulos atlânticos” (p. 68). O conceito, emprestado do historiador Ira Berlin, aplicava-se aos africanos adaptados às línguas, modos, valores e culturas dos europeus no litoral ocidental da África. Uma alternativa à noção de “crioulos atlânticos” é o conceito de “ladinização”. Empregado primeiramente por João José Reis para o caso dos libertos baianos no século XIX (Domingos Sodré, um sacerdote africano, Companhia das Letras, 2008), ele serve sem dúvida para explicar as dinâmicas sociais e culturais na Costa do Ouro (e na costa ocidental da África como um todo) no século XVIII. Ao aprender a língua europeia e enviar seus filhos para obter educação formal (ou formar uma família com mulheres locais, no caso dos europeus), esses africanos “ladinos” aprenderam os mecanismos de negociação com as diversas nações europeias, sem tornarem-se necessariamente “crioulos” no sentido cultural.

Nos capítulos seguintes, Sparks aborda temas caros à historiografia africanista mais recente, como a origem dos africanos deportados via tráfico transatlântico, a circulação de africanos e sua articulação dos portos africanos com o mundo atlântico. No primeiro caso, punições judiciais, raptos, a prática de “panyarring” – escravizar um devedor ou um parente seu até que a dívida fosse sanada, sob pena de colocá-los em escravidão permanente – e o “pawn” (“penhora humana”) cumpriam papel importante no suprimento de escravos. Contudo, a maioria dos escravos foi capturada em guerras promovidas pelos Achante no interior da Costa do Ouro. Quanto à circulação através do Atlântico, marinheiros, escravos, ex-escravos e filhos da elite de Anamabu se deslocavam sob o manto de redes comerciais e religiosas de Anamabu para as colônias inglesas na América do Norte (em especial Rhode Island), Jamaica, Bristol, Liverpool, Londres e outros pontos do mapa do tráfico. No entanto, as mortes de John Corrantee e Richard Brew e os conflitos entre os Fante e o rei Achante contribuíram para desarticular as redes comerciais no porto de Anamabu no ultimo quartel do Setecentos. Por fim, a abolição do tráfico britânico, em 1807, declarou o ocaso de Anamabu, cuja economia se baseava, quase exclusivamente, no comércio transatlântico de escravos.

O livro é uma importante contribuição para a história da África e, ao mesmo tempo, para os estudos de História Atlântica, campo fértil no hemisfério norte mas que no Brasil ainda dá seus primeiros passos. Bem escrito, é livro de leitura fácil, que interessa não apenas ao leitor especializado, mas também ao público mais amplo. A obra conta ainda com um glossário, facilitando a vida do leitor menos familiarizado com o tema. A constante menção a Corrantee e Brew, ao longo do texto, mais do que simples repetição, enfatiza a importância de ambos no tráfico transatlântico em Anamabu. Pena que este livro, provavelmente, não será traduzido e publicado entre nós, porque no país que mais recebeu escravos do tráfico é muito pequeno o interesse de editoras por livros dessa natureza.

Carlos da Silva Jr – Doutorando Bolsista Marie Curie/European Union Wilberforce Institute for the study of Slavery and Emancipation (WISE) University of Hull Hull, UK, HU67RX carlos@eurotast.eu.

A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII) – MARCOCCI (VH)

MARCOCCI, Giuseppe. A consciência de um império: Portugal e o seu mundo (sécs. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012, 533 p. PANEGASSI, Rubens. Varia História. Belo Horizonte, v. 30, no. 52, Jan./ Abr. 2014.

Giuseppe Marcocci é um historiador cujas publicações tem ganhado notoriedade junto aos investigadores dedicados ao estudo da formação do Império ultramarino português. Doutor em História pela Scuola Normale Superiore (2008), atualmente é professor da Università degli Studi della Tuscia e tem dedicado suas investigações ao mundo ibérico, com especial atenção ao caso Português e seus principais temas, tais como Inquisição, escravidão, missões extra-europeias e também a justiça no Antigo Regime. No Brasil, participou recentemente evento, além de ter publicado artigos em periódicos relevantes, tais como a Revista de História da Universidade de São Paulo e a revista Tempo da Universidade Federal Fluminense.

Sem perder de vista as contribuições de grandes nomes da historiografia, tais como Luís Filipe Thomaz, António Manuel Hespanha, Francisco Bethencourt e Laura de Mello e Souza, importa notar que o livro de Marcocci traz efetiva colaboração a um campo de estudos onde o número de pesquisas é relativamente escasso. Desse modo, ao preencher uma notória lacuna a respeito do âmago das conquistas lusas, o livro consolida seu trabalho como referência imprescindível aos intressados no debate a respeito da configuração dos impérios coloniais e suas doutrinas políticas nos primórdios da Época Moderna.

Assim, ainda que o autor nos assegure que a noção de império seja pouco comum nas fontes da época, A consciência de um império compreende Portugal como a primeira monarquia europeia a fundar um império de dimensões globais, bem como um necessário aparato ideológico que solucionasse os problemas de natureza jurídica e moral que se desdobravam da ingerência reclamada como direito frente a diversidade de grupos étnicos e suas variadas manifestações culturais e religiosas. Em vista disso, Giuseppe Marcocci parte das bases jurídicas daquilo que denomina como a “vocação imperial portuguesa”, para alcançar a especificidade da herança das elaborações políticas de um império moderno, mas que deitava suas raízes na escravidão, uma instituição atrelada fudamentalmente à antiguidade. Em síntese, é a figuração de Portugal como um agressivo império marítimo o legado que se definia no próprio momento em que a Europa ganhava os contornos de um mosaico de impérios em concorrência.

Trabalho de fôlego, o livro recupera a densidade e o vigor do expansionismo ao atar os laços existentes entre as esferas da economia e da política, aos esquemas culturais e religiosos que estruturaram a consciência do Império português. Diante disso, traz uma perspectiva inovadora ao se deter sobre os pressupostos conceituais característicos do ideário português nos primórdios da Época Moderna, sem perder de vista sua peculiaridade: o entrelaçamento entre Estado e Igreja.

Os doze capítulos que compõem o livro estão distribuídos ao longo de quatro partes bem definidas. Na primeira, A vocação imperial portuguesa, Marcocci debate a intervenção a posteriori do papado na fundação das premissas jurídicas do futuro Império, com ênfase no papel estruturante que a bula Dum diversas (1452) teve como instrumento legitimador de suas futuras ocupações. Partindo desta proposição, o autor esclarece os vínculos de obediência existentes entre os portugueses e o papado, bem como a reivindicação lusa pela ortodoxia católica. Pautada pela necessidade de justificar o tráfico de escravos negros na costa da Guiné, Roma tutelou o acesso exclusivo dos portugueses aos litorais da África atlântica. Em suma, é da incapacidade de legitimar suas conquistas num paradigma distinto das concessões papais que Portugal traçaria o percurso a ser seguido por outros grandes impérios europeus. Entretanto, no início do século XVI o país ibérico definiria um novo posicionamento em relação a Roma no intuito de garantir maior autonomia na gestão de seu império com a criação da Mesa da Consciência, órgão encarregado de se pronunciar sobre matérias tocantes à consciência do rei e que promoveu uma fusão sem precedentes entre as esferas política e religiosa no vértice do reino.

Em A Etiópia, prisma do império, ganha relevância os diferentes usos políticos do mito do Preste João em Portugal. Se num primeiro momento a figura do lendário soberano tornou-se emblemática referência do sucesso da expansão marítima em concomitância à figuração da Etiópia como aliada para a reunificação da Igreja, em um segundo momento são as implicações subversivas do cristianismo etíope que ganham notoriedade. Ou seja, a construção da legitimidade das conquistas a partir da celebração de cristão julgados como heréticos tornou-se um modelo a ser necessariamente abandonado. Tal mudança foi definida pelas rígidas posições frente ao cristianismo etíope adotadas por um atuante grupo de teólogos no interior da corte portuguesa. Doravante, o mítico aliado desapareceria do horizonte cultural português, e paralelamente, vozes dissonantes do movimento humanista seriam sufocadas. Desse modo, ao lado da Mesa da Consciênca, a Inquisição e a censura literária se tornariam as três principais instituições a concorrerem para a definição de um império católico no qual a Etiópia passaria da condição de reino aliado a terra de missões. Definitivamente, a consciência do Império português atrelava-se de modo cada vez mais significativo às formas de inclusão da diversidade na comunidade de crentes.

A terceira parte, Conquista, comércio, navegação: um senhorio disputado, é a mais extensa e se detém nas controvérsias a respeito do controle das especiarias e da supremacia sobre os mares. Aqui, o autor assinala que foi no calor das polêmicas levantadas pelas monarquias europeias contra as pretensões imperialistas das coroas ibéricas que a consciência de um “império marítimo” ganhou seus primeiros contornos no reino português. Sobretudo em face das críticas pela participação direta da coroa no tráfico comercial, que embora possuissem justificativas, encontravam também seus limites nas tradicionais doutrinas cristãs da Idade Média. Por sua vez, a negligência da veiculação da imagem de um príncipe amado e temido, sugerida por alguns ideólogos do Império também foi pautada por estas tradições, que presumiam um modelo político marcado pelos valores da ética cristã. Ou seja, no âmbito das ideias, a violência estaria diluída na perspectiva da conquista espiritual. Com efeito, todo este dabate não correria separado das primeiras reflexões a respeito do papel que o mar desempenharia no equilíbrio de um complexo sistema de domínio que se constituía para além dos limites da Europa. Objeto controverso na época, Marcocci sugere que os descobrimentos modificariam definitivamente a relação entre a terra e o mar, sendo que este passaria a ser compreendido nos quadros de um novo equilíbrio que se origina do pleno conhecimento da verdadeira forma geográfica, bem como das efetivas distâncias do mundo.

Conversões imperiais: para uma sociedade portuguesa nos trópicos? é a última parte do livro. Nela, Marcocci nos faz notar que a ascensão das ações missionárias deu-se no exato momento em que o Brasil tornava-se o centro do sistema colonial lusitano. Tendo em vista que as sociedades nascidas do Império português são caracterizadas pela presença de escravos em resposta às exigências de um sistema produtivo agrícola, o autor atribui relevância ao sacramento do batismo, uma vez que o domínio sobre homens privados de liberdade em nome da conversão era o fundamento jurídico do Império. Assim, na perspectiva do autor, a formação histórica do Brasil nos quadros do Império português está atrelada a um projeto missionário onde os jesuítas desempenharam papel fundamental, de modo que a relação entre batismo e escravidão logo se entrelaçou aos

debates sobre a humanidade dos índios. De todo modo, ao passo que este sacramento seria o instrumento capaz de mudar a posição jurídica e social dos conversos, o contraste entre a perspectiva libertadora da conversão e a dura realidade dos escravos é apresentado como o mais notório vínculo de todo o mundo português do início da Época Moderna.

Por fim, cabe observar que o livro nos conduz à percepção de que a interpenetração entre o Estado e a Igreja define as linhas gerais de inúmeros aspectos da História do Portugal Imperial. Mesmo a retomada do modelo do Império Romano, tida pelo autor como uma das características mais originais da cultura renascentista portuguesa foi sufocada no que tangia à admiração dos autores lusos pela religião romana, o que nos revela o atuante pressuposto de um enquadramento doutrinal que se mostrava indispensável diante do problema da inclusão civil dos novos súditos da coroa. Elemento imprescindível a uma construção política cujo primado, por sua importância e originalidade, seria amplamente valorizada pela cultura europeia, em uma conjuntura de franca mundialização.

Fundamentado em sólida e diversificada pesquisa documental, Marcocci faz uso tanto de cartas, tratados e crônicas impressas, quanto de processos inquisitoriais e outros códices manuscritos pertencentes a fundos diversos, investigados majoritariamente em arquivos portugueses e italianos. Com efeito, um dos fundos ao qual o autor reserva especial atenção é a Mesa da Consciência e Ordens, parcialmente conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Com escrita clara, o livro interessa não apenas aos especialistas, mas a todos que entendem a história como um recurso para a compreensão dos debates contemporâneos, cujos ecos do passado encontram reverberação em fenômenos como a globalização da economia, a homogeneização cultural, ou até mesmo o emprego maciço da força militar como garantia da manutenção da ordem mundial.

Rubens Panegassi – Departamento de História Universidade Federal de Viçosa (UFV), Viçosa (MG), Brasil, e-mail: rubenspanegassi@gmail.com.

Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave Trade – FERREIRA (VH)

FERREIRA, Roquinaldo. Cross-cultural exchange in the Atlantic world: Angola e Brazil during the Era of the Slave TradeNova York: Cambridge University Press, 2012, 282 p. CORRÊA, Carolina Perpétuo. Varia História, Belo Horizonte, v. 30, no. 52, Jan./ Abr. 2014.

No início do século XIX, uma mulher negra livre chamada Francisca da Silva foi escravizada em Benguela depois de ser acusada de ter se utilizado de feitiçaria para assassinar Diniz Vieira de Lima, comerciante de escravos que, apesar de ser natural daquela cidade, falecera no Rio de Janeiro. Assim se inicia o livro de Roquinaldo Ferreira, que integra a prestigiosa série African Studies, publicada, desde 1968, pela Cambridge University Press.

Biografias de pessoas comuns, como Francisca da Silva, elaboradas a partir de documentos oficiais da época, associadas à análise de memórias e relatos de viagem, formam a base da obra, fruto de uma abordagem micro-histórica. Aliando profundo domínio dos estudos históricos recentes sobre o tema, lúcida reflexão metodológica e extensa pesquisa documental realizada em arquivos angolanos, brasileiros e portugueses, o historiador brasileiro radicado nos Estados Unidos tece um rico panorama do mundo atlântico nos séculos XVIII e XIX. O maior desafio metodológico, a feitura de generalizações a partir de exemplos reveladores – estudos de caso de indivíduos cujas vidas foram registradas para a posteridade justamente por serem, de algum modo, atípicas – é solucionado por meio da descrição densa e da atenção ao contexto. O historiador, atento, procura conectar sempre os eventos que se desenrolam no nível micro com o processo maior do qual fazem parte.

Além disso, a adoção de um recorte espacial inspirado na História Atlântica, constructo analítico segundo o qual os acontecimentos da era moderna são organizados a partir do entendimento da Bacia Atlântica como um lugar onde ocorriam intercâmbios demográficos, econômicos, sociais e culturais entre os continentes por ela banhados, permite dar ênfase a aspectos dinâmicos que transcendem as fronteiras administrativas ou nacionais.1 Essa combinação de redução da escala de análise e ampliação do recorte geográfico traz contribuições importantes tanto para a História do Brasil quanto para a História da África Centro-Ocidental.

Apesar do impacto do comércio de escravos para o Brasil, a historiografia pátria guardou silêncio quase absoluto até a década de 1990 sobre as relações entre as duas regiões. A África foi frequentemente encarada como um continente primitivo, homogêneo, estático no tempo e destituído de história, e os africanos, associados automaticamente aos escravos. Por essa razão, o trabalho de Ferreira aparece àqueles familiarizados com a produção historiográfica nacional sobre a escravidão e o tráfico de escravos como a peça faltante para que o quebra-cabeça adquira seu pleno sentido. Vem, portanto, ao revelar a face africana do negócio negreiro, somar novos conhecimentos aos importantes trabalhos que pensam o tráfico do ponto de vista do Brasil, como os de Manolo Florentino e Jaime Rodrigues.

Entretanto, só teremos uma percepção adequada do alcance da obra, se a analisarmos sua contribuição para a História da África Centro-Ocidental. Em 2004, Boilley e Thioub2 argumentavam que, durante o século XX, a escrita da história da África, influenciada, por um lado, pelos combates anticoloniais e, por outro, por modelos eurocêntricos, tendeu a considerar que, depois do contato com o ocidente, a África e os africanos se tornaram vítimas de um sistema que, rompendo com o curso normal da história, constitui a causa principal, senão exclusiva, do lugar subalterno que o continente ocupa nos negócios contemporâneos do mundo. Pensando em como a produção acadêmica sobre o comércio de cativos poderia superar essas limitações, os autores sugeriam que era preciso compreender as implicações dos africanos nos processos históricos, analisando a arquitetura social, bem como os sistemas locais de produção, de troca, de dominação e de exploração da força de trabalho. A chave seria explorar as dinâmicas internas sem silenciar quanto aos interesses e ao envolvimento de atores autóctones no negócio negreiro.

Ferreira desempenha tal tarefa com maestria, mergulhando na sociedade centro-africana durante o período do comércio de escravos. Filia-se, assim, a uma tradição historiográfica inaugurada na década de 1970 por estudiosos como Jill Dias, Beatrix Heintze, Isabel Castro Henriques e Joseph Millerque procura superar o caráter etnocêntrico das análises sobre as regiões africanas engajadas no comércio atlântico e abordar a política, a economia e a sociedade locais em sua historicidade e em sua complexidade.

Esses autores pioneiros, muitas vezes mesclando métodos e abordagens próprios da história, da antropologia e da etnografia, abriram novas possibilidades para o estudo da África Centro-Ocidental, desenvolvendo trabalhos com fontes inéditas encontradas em arquivos angolanos e portugueses. Ademais, elaboraram sofisticadas reflexões teóricas sobre o lugar da África na História Mundial, o papel do historiador ao se relacionar com fontes de natureza diversa (tradição oral, achados arqueológicos, documentos escritos) e os métodos para lidar com os filtros por meio dos quais estrangeiros (os autores da documentação consultada e os próprios pesquisadores) apreenderam a realidade africana. Inovaram ao abordar temas que, durante o período colonial, eram tabus difíceis de serem rompidos, como a fragilidade da dominação portuguesa na região e a participação dos africanos no comércio de escravos, atribuindo a eles um protagonismo em sua história que lhes foi frequentemente negado.

Na contemporaneidade, uma nova geração de historiadores veio se juntar a esses pesquisadores já consagrados, desvendando novos aspectos da sociedade centro-africana no contexto do comércio atlântico. Um bom exemplo é Mariana Cândido3 que empreendeu um estudo sobre Benguela entre 1780 e 1850, argumentando que o tráfico negreiro ajudou a fundar ali uma sociedade crioula, na qual pessoas oriundas de culturas diversas acabaram forjando uma identidade comum.

Em sua dissertação de mestrado, Ferreira já havia se ocupado de Angola, mas investigando os impactos econômicos da proibição do tráfico negreiro para o Brasil entre 1830 e 1860. Em Cross Cultural Exchange in the Atlantic World, o historiador recua no tempo, analisando aquela sociedade durante o auge do comércio atlântico, tecendo para Angola uma análise em muitos sentidos equivalente a que Law e Mann dedicaram à Costa dos Escravos.4 Como esses autores, chega a conclusões abrangentes a partir de histórias individuais, enfatizando as conexões culturais e sociais transatlânticas.

A primeira seção se inicia com a narrativa de uma expedição comandada pelo ex-capitão de navios negreiros Francisco Roque Souto, em 1739, ao Reino de Holo, cujo intento era proporcionar à administração portuguesa contatos comerciais diretos com essa região fornecedora de escravos. A análise do episódio possibilita o exame da intensificação do comércio itinerante no interior de Angola, no contexto do aumento da demanda por cativos no Brasil no século XVIII, decorrência das descobertas de ouro na região das Minas. Tal comércio, conduzido nos sertões africanos por intermediários conhecidos como pumbeiros e sertanejos, consistia na troca de mercadorias importadas por escravos, que eram então conduzidos até os portos de embarque no litoral.

São os impactos do incremento dessa atividade comercial nas estruturas sociais e econômicas de Angola que o autor se propõe a desvendar, e o faz narrando vários casos retirados das fontes, como o de três africanos que tinham chegado a Benguela em 1789, fugidos após todos os outros 25 carregadores da caravana na qual trabalhavam terem sido embebedados e posteriormente escravizados pelo sertanejo Jerônimo Corrêa Dias. Partindo desses estudos de caso, o autor analisa o aumento de formas de escravização não militar, decorrentes de endividamento ou de acusações de feitiçaria, o desvirtuamento de formas de dependência temporária tradicionais e a ampliação progressiva da esfera de atuação dos Tribunais de Mucanos, cortes competentes para conhecer casos de escravização injusta, oriundas das práticas legais Mbundu.

A segunda seção é dedicada ao panorama cultural, religioso e político de Angola durante o período estudado. O historiador explora a demografia e a economia de Luanda, expondo uma sociedade dinâmica, na qual eram fluidas as fronteiras entre escravidão e liberdade e frequentes as oportunidades de convivência entre indivíduos de condições sociais e origens diversas. Nesse mundo cosmopolita, no qual a administração portuguesa tinha dificuldades de se impor, europeus e outros forasteiros acabavam aculturados pelos locais, conforme atestam a prevalência do quimbundo sobre o idioma português.

Especial atenção é dada à religião e à cultura africanas, exploradas a partir da fascinante história de Mariana Fernandes, uma mulher negra livre acusada de feitiçaria e presa em Luanda em 1726. O estudo do processo movido contra Mariana pela Inquisição revela uma mulher dotada de grande autonomia, poder e influência, decorrentes de sua atuação como ganga, autoridade religiosa de Angola. Da leitura emerge a força da religiosidade africana, que perpassava todas as camadas sociais, unindo indivíduos oriundos de realidades muito diversas.

O autor analisa, a seguir, a vida social de Luanda e de Benguela tomando como ponto de partida a história do escravo Manoel da Salvador, que, criança, fora enviado ao Rio de Janeiro, retornando, já adulto, a Luanda, onde, em 1771, é acusado de assaltar a casa de um taberneiro. Para rebater a acusação, Salvador alega que a elevada soma de dinheiro encontrada em sua posse não era produto do roubo, mas fruto da venda de mercadorias enviadas a ele pelo irmão, que continuava a residir no Brasil. Embora boa parte da versão de Salvador pareça ter sido uma mentira, o crédito dado às suas alegações, em um primeiro momento, pelas autoridades, ajuda

a revelar a grande mobilidade geográfica no mundo Atlântico. O estudo de dezenas de outros casos mostra que pessoas livres e escravas atravessavam o oceano em razão de punições por crimes e comportamentos inadequados, mas também para aprender uma profissão, buscar instrução, conduzir negócios e visitar parentes.

Os laços culturais, políticos e comerciais que uniam essas regiões africanas ao Brasil eram tão robustos, que, em 1824, prósperos comerciantes de Benguela, liderados por um homem negro nascido no Rio de Janeiro, de nome Francisco Ferreira Gomes, iniciaram um movimento rebelde que pretendia romper os laços com Portugal e anexar a província ao Brasil recém-independente. A tentativa de secessão, longe de ser uma empreitada fantasiosa, era coerente com a conjuntura da época, sendo mesmo esperada pelas autoridades portuguesas.

Ao enfatizar a organicidade entre as possessões portuguesas, o autor evidencia a esterilidade dos embates em torno dos conceitos “crioulo” e “crioulização”, rótulos estáticos que, segundo ele, dificilmente são capazes de abarcar toda a complexidade dessas mutáveis sociedades, nas quais os indivíduos manipulavam as diferentes esferas culturais, religiosas e jurídicas existentes de acordo com suas necessidades momentâneas.

A obra, inspirador exercício de erudição e imaginação histórica, adiciona mais uma peça ao intrincado quebra-cabeças do Atlântico Português, dando rara ênfase à dimensão humana das sociedades africanas setecentistas e oitocentistas, contribuindo, como sugere Miller, para que “a história atlântica se apoie solidamente em três pernas”,5 e que os africanos, como os outros, assumam o seu lugar como “atores inteligíveis” na trama do passado.

1 RUSSEL-WOOD, A. J. R. Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”. História, São Paulo, v.28, n.1, p.17-70, 2009.         [ Links ]
2 BOILLEY, Pierre; THIOUB, Ibrahima. Pour une histoire africaine de la complexité. In AWENENGO, Séverine; BARTHÉLÉMY, Pascale; TSHIMANGA, Charles (eds.). Écrire l’histoire de l’Afrique autrement?. Paris: L’Harmattan, 2004, p.23-45.
3 CÂNDIDO, Marina P. Enslaving frontier: slavery, trade and identity in Benguela, 1780-1850. Toronto: York University, 2006 (História, Tese de Doutorado).         [ Links ]
4 LAW, Robin; MANN, Kristin. West Africa in the atlantic community: the case of the Slave Coast. The William and Mary Quarterly,Third Series, v. 56, n.2, p.307-334, apr. 1999.         [ Links ]
5 MILLER, Joseph. History and Africa/Africa and History. The American Historical Review, v.104, n.1, p.1-32, feb. 1999.         [ Links ]

Carolina Perpétuo Corrêa – Instituto de História Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro (RJ), Brasil, e-mail: cpcorrea2@hotmail.com.

Centering animals in Latin American history – FEW; TORTORICI (VH)

FEW, Martha; TORTORICI, Zeb (ed.). Centering animals in Latin American history. Durham: Duke University Press, 2013, 391 p. BENEVIDES, Fernanda Cornils Monteiro. Varia História. Belo Horizonte, v. 30, no. 52, Jan./ Abr. 2014.

No século XVIII, uma festa de casamento chamou a atenção dos membros do tribunal da inquisição da cidade do México. O matrimônio ocorreu em uma residência onde “muitas pessoas de ambos os sexos e todas as classes sociais participaram da celebração festejando, dançando e bebendo”.1 Segundo uma testemunha, Juan Antonio López, um homem de 38 anos, o casório foi celebrado por um padre legítimo, que seguiu, passo a passo, o protocolo católico. Após questionar os noivos sobre juramentos e obrigações da vida a dois, o pontífice os decretou marido e mulher “em nome do Pai, da Mãe e do Filho”. Após a cerimônia, os noivos foram conduzidos ao leito matrimonial, enquanto a festa se desenrolava com pompa.

Essa seria uma história banal, se não fosse por um detalhe: os noivos eram cachorros. As autoridades eclesiásticas consideraram o casório canino uma heresia. O fato levou o padre Basterrechea a ficar detido por semanas na prisão secreta da inquisição mexicana e, mais tarde, a desculpar-se publicamente por ter cometido uma blasfêmia. Segundo Zeb Tortorici, casamentos, batizados e funerais de animais de estimação não eram raros no México dos anos 1700. Traziam à tona o lugar deles na elite da sociedade mexicana.

Essa é uma das histórias contadas no livro sob apreço, uma coletânea de textos cujo ponto de partida foi o painel Animals, Colonialism, and the Atlantic Word, realizado durante o Annual meeting of the American Society for Ethnohistory. O encontro ocorreu em 2006, na cidade de Williamsburg, Virginia, Estados Unidos da América. Os editores do volume são Zeb Tortorici, Professor Assistente de Literatura e Línguas Portuguesa e Espanhola, na New York University, e Martha Few, Professora Associada de História Colonial

Latino-Americana na University of Arizona, em Tucson. Os demais autores são historiadores, pesquisadores e professores de universidades latinas e norte americanas. Eles partiram de uma proposta inovadora: contar a história da América Latina a partir do ponto de vista de “animais não humanos”.

Divide-se o volume em três partes que retratam a influência dos animais na história colonial e pós-colonial do México, Guatemala, Peru, Porto Rico, Cuba, Chile, Brasil, República Dominicana e Argentina. A primeira parte, denominada Animals, Culture and Colonialism, composta de três artigos, trata da relação entre humanos e animais nas colônias espanholas. Em The Year the People Turned into Cattle, León Garcìa Garagarza analisa as consequências da introdução de espécies exóticas de animais de pastoreio no México desde os anos 1500 e como as populações indígenas resignificaram a multiplicação dos rebanhos bovinos ao interpretarem o grande número de animais como transmutação de gente em gado. Para se livrar desse destino, os indígenas acreditavam que deveriam retornar à dieta ancestral e não consumir carne bovina.

Na segunda parte da obra, intitulada Animals and Medicine, Science and Public Health, os autores enfocam a relação entre medicina, animais e fronteiras entre espécies. Adam Warren, em From Natural History to Popular Remedy juntamente com Neel Ahuja, em Notes on Medicine, Culture, and the History of Imported Monkeys in Puerto Rico apontam o uso dos animais não só como recursos para produção de medicamentos presentes nos manuais de medicina popular no Peru colonial, como também para experimentos da indústria farmacêutica em Porto Rico. No artigo Pest to Vector: Disease, Public Health, and the Challenges of State-Building in Yucatán, Mexico, 1833-1922, Heather McCrea descreve a mudança de categoria dos mosquitos: eles passaram de praga para vetores a partir do estabelecimento dos programas de saúde pública no México.

A terceira seção do volume, intitulada The Meanings and Politics of Postcolonial Animals, é a mais extensa do livro, composta por quatro artigos. O artigo Animal Labor and Protection in Cuba: Changes in Relationships with Animals in the Nineteenth Century, de Reinaldo Funes Monzote, aborda a mudança da percepção do uso de animais nas plantações de cana-deaçúcar em Cuba. Essa mudança ocorreu de acordo com as alterações na economia, a importação de tecnologia e o aumento/diminuição de trabalho humano. Paralelamente à intensificação do uso dos animais de tração, deuse início, em 1882, a um movimento contra maus tratos aos animais, com a fundação da Sociedad Cubana Protectora de Animales Y Plantas. Isso tinha raízes em uma tradição iniciada na Inglaterra, com a fundação da Society for the Prevention of Cruelty to Animals, em 1824.2

Da exploração à conservação, esse é o fio condutor dos artigos da terceira parte da obra: Birds and Scientists in Brazil: In Search of Protection, de Regina Horta Duarte, e On Edge: Fur Seals and Hunters along the Patagonian Littoral, 1860-1938, de John Soluri. Duarte aborda desde o uso intenso de penas e plumas de pássaros brasileiros em acessórios femininos, durante as primeiras décadas do período republicano brasileiro, as ações e medidas conservacionistas iniciadas por alguns naturalistas atuantes dos museus de ciências brasileiros como também a influência da atuação desses profissionais na elaboração de leis conservacionistas nos anos 1930. Soluri relata a caça predatória das focas na Patagônia e as medidas conservacionistas que tentaram coibi-la. A última parte do volume é encerrada com Trejillo, The Goat: Of Beasts, Men, and Politics in the Dominican Republic, de Lauren Derby, que narra a escolha feita por opositores políticos do odiado ditador da República Dominicana, Rafael Trujillo, de representa-lo na figura de um bode.

O livro encerra-se com uma conclusão do antropólogo Neil L. Whitehead. O autor comenta o crescimento do debate filosófico sobre a interação entre animais humanos e “não-humanos” a partir do aparecimento das obras de Peter Singer Animals Liberation em 1975 e, em 1976, de Tom Regan, Animals Rights and Human Obligations.3 Whitehead afirma que a percepção da presença dos animais como parte da história teve seu início com o livro Man and the Natural World: Changing Attitudes in England 1500-1800 do historiador britânico Keith Thomas.4 O autor defende ainda que, para escrever uma história do ponto de vista animal, é preciso levar em conta povos entre os quais a divisão entre humanos e animais não é estanque.

Esse desafio metodológico, de contar a história a partir do ponto de vista dos animais, é encarado de diferentes formas pelos autores presentes na coletânea. Alguns trataram dos animais como agentes da história, outros autores consideraram os animais como categorias sociais, juntamente com outras amplamente tratadas na historiografia tradicional, como Estado, Igreja e classe social. Há ainda textos que lidaram com os animais a partir de um viés utilitarista, como em Notes on Medicine, Culture, and the History of Imported Monkeys in Puerto Rico. Neel Ahuja trata da mudança no status dos macacos Rhesus (Macaca mulatta), que passaram de instrumentos de progresso científico, devido ao uso em testes da indústria farmacêutica norte-americana à praga que colocava em risco a vida e a segurança dos humanos devido a encontros crescentes em áreas urbanas entre seres humanos e macacos, como também investidas de grupos de primatas a plantações nas franjas urbanas de Porto Rico. O departamento nacional de agricultura de Porto Rico, devido a esses problemas, propôs regras e legislações que implicaram em proibições gradativas a importação e posse dos animais a partir de 1990.

O livro não alcança o objetivo proposto de contar a história da América Latina mediante a perspectiva dos animais. Talvez isso seja devido à dificuldade implícita nesse tipo de narrativa, já que a história dos animais no livro é contada a partir de relatos de humanos, ou seja, os animais são apropriados como seres sociais. Entretanto, o livro alcança outros objetivos válidos, tais como evidenciar o antropocentrismo da historiografia tradicional. Pela leitura dos artigos, fica claro que as fronteiras entre o ser humano e os animais são borradas e que a definição do que seja um animal é o primeiro passo para redefini-las. Centering Animals in Latin American History vai além de casos excêntricos e curiosos, como o do casamento canino, já que (re) introduz os animais na história colonial e pós-colonial da América Latina. Os textos enfatizam a questão da interdependência entre os seres humanos e outros seres vivos além dos vários significados dos animais ao longo da historia da humanidade. O livro é indicado para acadêmicos e interessados no papel dos animais na história das sociedades humanas bem como aos envolvidos nas iniciativas de cuidado com os animais, selvagens ou domesticados, no período colonial dos Países citados. Depois de ler a coletânea, percebe-se que, sem os animais, a história das sociedades humanas seria muito mais trivial.

1 FEW, Martha; TORTORICI, Zeb (ed.). Centering animals in Latin American History, p.93.         [ Links ]
2 MCCORMICK, John. Rumo ao paraíso: a história do movimento ambientalista. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992.         [ Links ]
3 SINGER, Peter. Animal liberation. New York: New York Review of Books, 1990;         [ Links ] REGAN, Tom. The case for animal rights. Berkeley: University of California Press, 1983.         [ Links ]
4 THOMAS, Keith. Man and the natural world: changing attitudes in England 1500-1800. London: Peguin Books, 1984.         [ Links ]

Fernanda Cornils Monteiro Benevides – Centro de Desenvolvimento Sustentável Universidade de Brasília (UnB), Brasília (DF), Brasil, e-mail: cornils.fernanda@hotmail.com.

The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1330-1589 – GEEN (VH)

GREEN, Toby. The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1330-1589. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. 323 p. SCHLICKMANN, Mariana. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 51, Set./ Dez. 2013.

Os estudos acerca do tráfico de escravos em África já realizaram avanços primorosos, contudo, ainda há diversas lacunas em seus anos iniciais, sobretudo no oeste africano. Neste sentido, o livro The rise of the Trans-Atlantic slave trade in Western Africa, 1330-1589, publicado em 2012 e ainda sem tradução para o português, é uma imensa contribuição que o historiador britânico Toby Green – conhecido no Brasil por sua obra Inquisição: o reinado do medo – realiza para a história desta região pouco estudada.

Green se dedica, como o próprio título do livro indica, a estudar a ascensão do tráfico atlântico de escravos, do século XIV ao XVI. A área pesquisada é o oeste africano, termo utilizado primeiramente por George Brooks1 para se referir à área da Alta Guiné (que vai do Rio Senegal até Serra Leoa) e Cabo Verde. O objetivo desta obra é mostrar a importância da região para a consolidação do tráfico atlântico de escravos e para o surgimento de culturas e identidades criadas a partir da experiência da diáspora.

Utilizando fontes orais e documentos escritos por árabes e europeus, o autor defende que, no início do século XIV, o poderio do Império do Mali passa a se estender por toda a região da Alta Guiné, ao mesmo tempo em que o comércio transaariano de escravos aumenta e se afirma na área. A prática do comércio de escravos pelo deserto vem junto com uma cultura de violência, que se insere no cotidiano das sociedades que conviviam com os processos de captura, comércio e utilização de escravos.

Para o autor, as populações locais, ao passarem pelo processo de malinkização (apropriação de elementos culturais e religiosos do Império do Mali), ajustaram-se rapidamente à nova cultura de violência imposta pelo comércio de escravos. Esta capacidade de rápida adaptação a uma nova conjuntura cultural, política, religiosa e comercial; a flexibilidade e tolerância com novos povos deram ares cosmopolitas à região; fato que foi fundamental para o surgimento e depois consolidação do comércio com os europeus.

A ideia central deste livro é de que o oeste africano teve um papel chave não só no tráfico, mas na própria criação do mundo atlântico e no surgimento de identidades diaspóricas em todo o planeta, pois ali ocorrem as primeiras trocas comerciais, culturais e sociais que serviram inicialmente como um padrão. Por isso, uma perspectiva global permeia todo o livro, no intuito de mostrar as múltiplas conexões e as relações interdependentes entre o local e o global. O conceito de “mundo atlântico” auxilia metodologicamente Green neste sentido, que o utiliza em congruência com Russel-Wood: um espaço além de fronteiras políticas ou nacionais, onde intercâmbios sociais, culturais, comerciais e demográficos ocorreram de forma intensa entre os continentes europeu, africano e americano.2

O livro está dividido em duas partes. Na primeira – cujo recorte temporal é de 1300 até 1550 -, é traçada uma história regional antes do contato com os europeus, mostrando como as relações entre os mandingas e os guineenses influenciaram a conjuntura social que propiciou o comércio internacional, uma vez que moldou as populações de forma a se tornarem flexíveis e receptíveis em relação a novas culturas. É com esta sociedade cosmopolita, que não impõe barreiras para a realização de negócios com estrangeiros, que os europeus fizeram os contatos iniciais, conseguiram estabelecer e consolidar trocas comerciais.

A preocupação central do autor é expor que os comerciantes locais daquela área ditaram inicialmente o ritmo das negociações, pois as mercadorias e rotas traçadas eram as mesmas do comércio interno. Neste primeiro momento ele também mostra como as interações e trocas culturais entre europeus e africanos foram mudando ao longo do século XV, e como a chegada dos cristãos novos de ascendência ibérica na região no século XVI acarretou em mudanças na dinâmica do comércio, do tráfico e do jogo político de alianças locais.

Mudanças ocorreram também com a chegada de judeus, que exercem um papel importante no contexto e também na formação do mundo atlântico, ressalta Green, e também José da Silva Horta e Peter Mark.3 Os judeus formaram uma comunidade comercial muito importante no final do século XVI, que causou grande impacto na região. Uma delas foi a reorganização das redes de poder, uma vez que os estrangeiros procuravam se inserir através de casamentos com mulheres das elites locais, como aponta Havik,4 e dependiam destas para o sucesso comercial. Green procura também desconstruir a visão da dominação das mulheres pelos homens ao mostrar o importante papel ocupado por elas nestas sociedades atlânticas do oeste africano.

A segunda parte abarca de 1492 até 1589, e procura integrar a história regional até então traçada com o mundo atlântico, mostrando como um mundo afetou o outro e vice-versa. É apresentada a explosão do contrabando e a extensão da rede do tráfico de escravos, que se expandiu rapidamente no século XVI. Também é apontado que a criação de sociedades crioulas nesse contexto só foi possível através das conexões entre forças locais e globais em ambos os lados do Atlântico, uma vez que para o estabelecimento de relações, os comerciantes tinham de adotar os costumes dominantes do local, ao invés de propagar ou preservar suas diferenças culturais, o que propiciou a criação de redes e identidades diaspóricas e do fenômeno da crioulização.

Para compor este livro, o historiador britânico fez uso de história oral, com o objetivo de entender as práticas culturais locais das áreas pesquisadas e também de vasto material do Arquivo de História Oral da Gâmbia. Também fez observações etnográficas em Casamansa, Guiné Bissau e Cabo Verde entre 1995 e 2011. Como fontes escritas, utilizou relatos de viajantes, documentação oriunda de arquivos sobre escravidão, tráfico, história atlântica e o Santo Ofício da Colômbia, Portugal, Espanha e do Vaticano e uma vasta bibliografia sobre o tema.

Ele defende que apesar de grande parte do seu trabalho estar pautado em fontes externas – principalmente as produzidas por europeus – isso não torna seu trabalho eurocêntrico, uma vez que ele é capaz de interpretar as fontes sabendo dos limites impostos pelo contexto e mentalidade da época. Acredita que as fontes orais utilizadas, pertencentes ao Arquivo de História Oral da Gâmbia, permitem a integração de perspectivas africanas em sua análise, além de uma perspectiva diferente sobre um mesmo episódio. Cabe observar que o autor procura durante todo o texto analisar os documentos de forma crítica, sem forçar os limites impostos pelos mesmos e pautando todos os seus argumentos em diversos tipos de fontes.

No texto, Green critica a tendência de se estudar a história do tráfico por um viés quantitativo, pois se corre o risco de subestimar o número de africanos deportados nos primórdios deste tipo de comércio. Contudo, ele não ignora as importantes contribuições oferecidas por bancos de dados como o Trans-Atlantic Slave Trade Database, apesar de preferir seguir uma perspectiva não quantitativa, que ressalta os aspectos e impactos sociais, culturais e políticos do comércio de escravos, tendo para isso um arcabouço conceitual pautado principalmente no conceito de crioulização.

A crioulização, ou creolisation5, mostra a corrente historiográfica adotada pelo autor, o qual entende que o contato entre as diferentes culturas e costumes fez surgir algo novo: as culturas e identidades crioulas ao redor do mundo, que mesmo novas podem preservar características dos povos que a originaram. Roquinaldo Ferreira também partilha desta mesma visão, mas alerta que ela “está longe de ser consensual”.6 Green deixa claro que sua perspectiva tem o caráter linguístico como ponto de partida para observar as transformações sociais e culturais que decorrem do contato entre europeus e africanos, pois “o desenvolvimento de uma nova língua pode refletir novas forças sociais. Onde as interações sociais e as trocas são intensas, as mudanças linguísticas seguem” (p.12).7

Ao colocar esta região no centro do mundo, o livro de Toby Green passa a interessar não só os especialistas em História da África, mas a todos que se interessam pelo tema do tráfico, da escravidão, da diáspora africana e da História Atlântica.

1 BROOKS, George E. Landlords and strangers: ecology, society and trade in Western Africa, 1000 – 1630. Boulder: Westview Press, 1993.
2 RUSSELL-WOOD, A.J.R. Sulcando os mares: um historiador do império português enfrenta a “Atlantic History”. História, v.28, n.1, p.20, 2009.
3 HORTA, Jose da Silva; MARK, Peter. Judeus e muçulmanos na Petite Cotê senegalesa do início do século XVII: iconoclastia anti-católica, aproximação religiosa, parceria comercial. Cadernos de Estudos Sefarditas, n.5, p.29-51, 2005.
4 HAVIK, Philip. A dinâmica das relações de gênero e parentesco num contexto comercial: um balanço comparativo da produção histórica sobre a região da Guiné-Bissau – séculos XVII e XIX. Afro-Ásia, n.27, p.79-120, 2002.
5 Toby Green utiliza diversos referenciais para a utilização deste conceito, entre eles: MINTZ, Sidney W.; PRICE, Richard Price. The birth of African-American culture: an anthropological approach. Boston: Beacon Press, 1992; BERLIN, Ira. From Creole to African: Atlantic Creoles and the origins of African-American society in Mainland North America. The William and Mary Quarterly, 3rd Ser., v.53, n.2, p.251-288, April 1996; HEYWOOD, Linda; THORNTON, John K. Central Africans, Atlantic Creoles, and the foundation of the Americas, 1585-1660. Cambridge/New York: Cambridge University Press, 2007.
6 FERREIRA, Roquinaldo. Ilhas crioulas: o significado plural da mestiçagem cultural na África Atlântica. Revista de História, São Paulo, n.155, p.19, 2006.
7 Tradução da autora. “The development of a new language may reflect new social forces. Where social interactions and exchanges are intense, linguistic change follows”.

Mariana Schlickmann – Departamento de História. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte (MG). Brasil. Mestranda em História Social da Cultura pela Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: mariana.schli@gmail.com.

A teoria da Revolução no jovem Marx – LOWY (VH)

LOWY, Michael. A teoria da Revolução no jovem Marx. Tradução: Anderson Gonçalves. São Paulo: Boitempo, 2012. 218 p. ALMEIDA, Fábio Py Murta de. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 51, Set./ Dez. 2013.

O livro A teoria da Revolução no jovem Marx1 de Michael Lowy, diretor emérito do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS/França) em Paris, tem forma densa e precisa, mérito do autor que onera anos de atividade profissional dedicada aos fenômenos sociais/históricos. Pela opção metodológica apresenta a Europa do século XIX tendo em vista a vida de Marx através da sociologia da cultura.2 Buscando relacionar a obra marxiana com o movimento operário na época, apresenta a teoria da revolução no jovem Marx como formulação das experiências européias. Desse modo, o autor fortalece a sua tese que defende a relação entre Karl Marx e a classe que representava, através da teoria goldmanniana, no sentido de procurar conectar classes sociais, ideologia e cultura ao seu tempo.3

Para trabalhar o jovem Marx, Michael Lowy introduz historicamente suas palavras no pano de fundo da própria ideologia marxista entre 1830 e 1848. Pensadores e pensamentos são suas preocupações: desde o hegelianismo de esquerda até o socialismo e seus adeptos. Percebe como o termo revolucionário se fazia presente no tempo de Marx com o comunismo e a auto-emancipação do proletariado. Detém-se aos momentos de 1842-1844, com a primeira produção de Marx na Gazeta Renana, ligada ao hegelianismo de esquerda, que o leva a enveredar na política; antes disso, Marx trabalhava com jurisprudência. A partir desse momento, detalha a passagem de Marx do hegelianismo de esquerda para o comunismo, um processo lento, gradual, porém, conciso. Os trabalhos na Gazeta Renana dão mostras disso, principalmente quando crítica o Estado e os proprietários privados pela situação de sofrimento dos camponeses passíveis de penúria, carências e sofrimento.

No ano de 1842 o autor aponta um Marx ignorante sobre o comunismo, e mostra isso ao publicar sua biografia intelectual. Já o ano de 1843 é fundamental, pois ocorre “sua ruptura com a burguesia liberal no início de 1843 e essa descoberta do proletariado no início de 1844, Marx passou por um período de transição, ‘democrático-humanista’, fase de desorientação ideológica e tateamento que levara ao comunismo” (p.72). Levando à escrita da Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, por querer uma “verdadeira democracia” não ligada à propriedade privada. Escreve cartas a Ruge desenvolvendo idéias até aderir ao comunismo, caracterizado por: “o comunismo de massas” (p.85).

Depois se preocupa com o hiato de 1844 a 1846, quando Marx relaciona o socialismo e o movimento operário. Vinculam-se as ligas e as sociedades operárias secretas francesas estudando o ideólogo do período Buonarroti e sua “conspiração para igualdade”. Buonarroti pensa: 1) a tomada do poder pela conspiração de uma sociedade secreta; 2) a necessidade de uma ditadura revolucionária depois da insurreição; 3) e a aspiração de uma revolução igualitária que suprimia a propriedade privada. Marx estuda a obra de Dezamy, citada por ele na sua Sagrada Família de preocupações com uma sociedade proletária, quando Lowy destaca o vínculo de Marx com a Liga dos Justos, que teve contato em abril-maio de 1844, formada por artesãos alemães.

O contexto é responsável por Marx enveredar no comunismo alemão. A partir do qual as Ligas, na figura de Wilhelm Weitling, eram a vanguarda da tendência ideológica do artesanato proletariado na sua produção. Ele seria o “intelectual orgânico”4 do movimento, como diria Antônio Gramsci. Na própria Alemanha ocorreu a insurreição dos tecelões de junho de 1844 na Silésia. Esse foi o momento catalisador da reviravolta teórico-prática de Marx, como escreve, sobre a insurreição sendo “contra os burgueses e não contra as máquinas que o levante ocorreu” (p.188). Entre 1844 e 1846 produz sua teoria da revolução esboçada nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, percebendo o proletariado como classe alienada e o oposto do comunismo grosseiro é o comunismo filosófico.

A obra A Sagrada Família (primeira obra comum de Marx e Engels de 1844) opõe a Bauer, propondo um “comunismo de massa” por meio do processo histórico concreto projetando um comunismo materialista e um socialismo crítico. A próxima obra, as Teses sobre Feuerbach, seria a primeira obra marxista de Marx, o primeiro texto que expõe o pensamento da filosofia da práxis, em três níveis: epistemológico, antropológico e político. Visava superar a análise, mas descobriu a função “de entre do pensamento e ação, unidade dialética, crítico-prática revolucionária” (p.191). A obra A ideologia alemã, escrita entre setembro de 1845 e 1846 é outra obra conjunta de Marx e Engels, sendo o ponto de chegada da evolução dos pensamentos de Marx desde 1842. Critica ideólogos alemães e sua caminhada intelectual mostrando suas mudanças rejeitando a idéia de revolução apenas filosófica, citando pela primeira vez o termo “partido comunista”.

Entre 1846 e 1848, Lowy relaciona a atividade de Marx e Engels com o movimento operário, vinculado na querela do partido comunista. A partir desse momento, “as Teses sobre Feuerbach e do essencial da A ideologia alemã: é somente a partir desse momento que eles vêm claramente neles mesmos, chegam a uma visão de conjunto coerente” (p.175). Funda o Comitê de Correspondência Comunista em Bruxelas, em 1846 (primeiro partido marxista). Marcando rachas, diferenças e verossimilhanças entre os comunistas europeus e os cartistas. Em 1847, surge a Liga dos Comunistas. Para Lowy, dois temas da Miséria de Filosofia (a constituição do partido operário e o papel dos escritores comunistas) são retomados no Manifesto do Partido Comunista dando passos adiante de Miséria de Filosofia. Fundamental a percepção de que Marx participava da Liga dos Comunistas, e para ela escreve o Manifesto do Partido Comunista (p.194).

Após 1848, a teoria da revolução permeia sua obra até sua morte em 1883. O professor do CNRS sinaliza apontamentos posteriores da carreira de Marx. No âmago de sua mensagem em 1850, no Comitê Central da Liga Comunista, entende que era preciso tornar a revolução permanente até a tomada do poder do proletariado. Também, o conflito de Marx e Lasalle, este que acreditava que o socialismo seria “vindo de cima pelas graças de um salvador, contra a teoria marxista da revolução autoemancipadora” (p.195), vinculando-se à filosofia de Hegel. Para Marx, Lasalle propunha um socialismo da monarquia prussiana. Outra atividade de Marx foi a Primeira Internacional Comunista, junto a Comuna de Paris. Nesse tempo, Marx e Engels relacionam-se com o partido social-democrático alemão de 1875-1883, segmento no qual ajudaram a fundar, visando “uma luta política vigorosa e intransigente contra tendências oportunistas, reformistas e pequeno-burguesas” (p.199). Por fim, Marx produz cartas, debates e artigos contra os “homens de uma evolução pacífica que esperavam a emancipação proletária propriamente dita apenas dos burgueses cultivados, isto é de seus semelhantes” (p.207).

O livro A teoria da Revolução no jovem Marx encerra com apêndice da jornada de trabalho, retirada de Das Kapital (livro I, volume VIII). De maneira geral, no livro, há a convergência da história moderna européia confluindo na formação do jovem Marx e na composição da teoria revolucionária. Ele é um convite para os estudos da história da Europa e da gênese do marxismo. Por isso, indica-se que, caso os leitores queiram aprofundar os argumentos apresentados pelo autor, vale a pena conferir a obra Revoluções (organizada pelo próprio Michael Lowy5), e o título de Leandro Konder, Em torno de Marx.6

Michael Lowy conseguiu superar a dimensão espacial, levantando uma riqueza de detalhes e publicações sobre o “bom” Marx. Faz isso sem deixar de apresentar questões que levaram à formação do jovem Marx junto à teoria revolucionária e seu engajamento político. Ao mesmo tempo, o autor faz uma aproximação da disciplina de formação das idéias socialistas desde as atividades de Marx na Gazeta Renana, passando pelo partidarismo e tendo ponto final no comunismo marxista. Portanto, utilizando livros, artigos, cartas e debates, ele mapeia o desenvolvimento intelectual de Marx, esforço que ajuda a popularizar tais ideias no Brasil e poderão estimular novos estudos sobre o marxismo. A obra é importante para a formação acadêmica de diversas áreas, principalmente História, Ciências Sociais e Geografia.

1 O livro foi publicado originalmente no Brasil em 2002, e essa nova edição de 2012 se diferencia da primeira, pois se enxertaram novas partes e se editaram outras. Por exemplo, um fragmento foi acrescido intitulado: “A revolução da jornada de trabalho é a condição do reino da liberdade”, encontrado na p.209-216.
2 LOWY, Michel. Entrevista. Tempo, ano 2, v.4, p.1-9, agosto de 2008.
3 Destaca-se o início da obra quando Michael Lowy admite fazer uso da “sociologia da cultura” de seu orientador Lucién Goldmann, dessa forma: “em termos de condicionamento será demasiado esquemática se não introduzimos outro elemento: a autonomia parcial da esfera das idéias; pois se é verdade que as categorias fundamentais de uma obra podem ser socialmente condicionadas, não podemos indica deixar de observar que o desenvolvimento do pensamento obedece a um conjunto de exigências internas (…) com muita freqüência, é absolutamente inútil procurar as bases econômicas de todo conteúdo de uma obra a origem desse conteúdo deve ser procurada também nas regras específicas de continuidade e desenvolvimento da história das idéias” (p.34).
4 GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p.202-207.
5 LOWY, Michael. (org.). Revoluções. São Paulo: Boitempo, 2009.
6 KONDER, Leandro. Em torno de Marx. São Paulo: Boitempo, 2010.

Fábio Py Murta de Almeida – Faculdade Batista do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro (RJ). Brasil. Doutorando em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Contato: pymurta@gmail.com.

Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural – ASSMANN (VH)

ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011, 453 p. QUELER, Jefferson José. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 49, Jan./ Abr. 2013.

Ainda existe memória no mundo contemporâneo? Qual o papel da cultura em sua formulação ao longo do tempo? Tais são alguns dos desafios enfrentados por Aleida Assmann em seu livro Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. A obra foi recentemente traduzida do alemão por pesquisadores ligados à Universidade Federal do Paraná e publicada pela Editora da Unicamp, em 2011. Trata-se de versão modificada de uma tese de livre-docência apresentada à Universidade de Heidelberg, em 1992. Professora da Universidade de Konstanz, com formação em língua e literatura inglesa e em egiptologia, Assmann foi bem-sucedida em ultrapassar as fronteiras de suas especialidades. Atualmente seu trabalho desfruta de renome internacional entre as mais diversas áreas do pensamento, e pode estimular novas abordagens sobre a questão da memória no Brasil.

O livro foi produzido em meio ao rompimento do “silêncio coletivo” sobre o Holocausto e o período nazista na Alemanha, em momento em que tais temáticas assumem lugar de destaque em debates públicos naquele país. Da mesma forma, apareceu na esteira da crescente digitalização da mídia, em situação em que os computadores contribuem para modificar as formas de se lidar com o passado.

Diante de tais transformações, Assmann questiona posições que apontam o fim da memória nas últimas décadas. O alvo privilegiado de suas críticas, destacado desde as primeiras páginas do texto, é o historiador francês Pierre Nora. A obra deste último, em especial seu Les lieux de mémoire, obteve grande repercussão internacional ao proclamar a subsunção da memória pela história. Com o advento da modernização, a primeira, pautada por discursos espontâneos e naturais, seria cada vez mais incorporada pela história, marcada por um discurso artificial e racionalizado. Diante dessas colocações, Assmann coloca as seguintes perguntas: “É assim mesmo? Não existe mais memória? E que tipo de memória não existiria mais?”.

O eixo de sua argumentação consiste em demonstrar que não há uma essência da memória. Não apenas os indivíduos lembram-se das coisas, como também grupos e as mais diversas coletividades. Ou seja, os modos de recordar são definidos culturalmente, variam ao longo do tempo e segundo a formação cultural em que são formulados. Desse modo, se há o desaparecimento da memória, como quer Nora, isso é verdade apenas na medida em que há o descrédito de algumas formas de recordar. A mnemotécnica, tão exaltada na Antiguidade, sobretudo por Cícero, proclamava o valor do saber de cor, habilidade procurada em líderes e governantes. Entretanto, tal uso da memória cai em descrédito nos dias atuais, resvalando até mesmo na esfera do patológico. Afinal, perguntam-se muitos, por que decorar o que se pode registrar por escrito? Segundo a autora, não se considera mais a memória como vestígio ou armazenamento, mas como uma massa plástica constantemente reformulada sob as diferentes perspectivas do presente. Um pouco de exagero, pois poderíamos pensar na coexistência de diversas formas de se conceber e usar a memória atualmente.

Porém, a relevância do trabalho não deve ser diminuída. Assmann recorre a uma erudição impressionante para sustentar seus pontos de vista. Dialoga com autores clássicos das mais diversas épocas e áreas do conhecimento: Platão, Aristóteles, Shakespeare, Wordsworth, Halbwachs, Benjamin, Rousseau, Freud – mérito seu, evidentemente, mas que deve ser igualmente atribuído à situação institucional que abriu espaço para a elaboração desse trabalho de fôlego. E, a partir de tais autores, constata não apenas os mais diversos usos da memória, como também as diferentes formas pelas quais ela foi pensada e teorizada. Assim, enquanto Cícero notabilizou-se por delinear a arte da mnemotécnica, Nietzsche destacou-se por conceber a memória enquanto elemento central na formação da identidade. Outros embates são traçados: a memória recompõe cenas do passado, ou as reconstrói? Erige-se a partir tão-somente de um esforço deliberado, ou também de forma involuntária? Forma-se apenas com lembranças, ou também a partir de esquecimentos?

Nos horizontes de Assmann, destaca-se a preocupação de considerar tanto a memória quanto a história como formas de recordação. Elas, a seu ver, “não precisam excluir-se nem recalcar-se mutuamente”. As ciências históricas são vislumbradas como uma memória de segunda ordem, uma memória das memórias, a qual integra aquilo que perdeu relação vital com o presente. É o processo de formação dos Estados modernos o pano de fundo para o desenvolvimento delas. O interesse pela identidade nacional aumentou a velocidade do movimento arquivista, com a formação de coleções reunindo traços de um passado esquecido. E, uma vez reconquistado o passado das mãos dos monges e da Igreja, tornou-se premente a crítica das fontes. Mesmo diante de tais esforços, a autora aponta que os modos de recordar o passado nunca se concentraram exclusivamente nas mãos de profissionais ou especialistas. A memória nunca foi enquadrada totalmente pela história.

Os modos de recordação, por vezes, reconhecem revivescências. Assmann indica como a memória cultural tem seu núcleo antropológico na memoração dos mortos. Segundo tabu universal, estes devem ser sepultados e levados ao repouso; caso contrário, vão incomodar o mundo dos vivos. A Antiguidade, por sua vez, insistirá na eternização de alguns nomes. Poetas, cantores e historiadores serão mobilizados nessa tarefa. Concepção que, após interlúdio durante a Idade Média, será retomada no Renascimento. Casos como o memorial do Holocausto, por outro lado, marcariam o fim de quaisquer retóricas da Fama, voltando à forma original da lembrança histórica: a memoria dos mortos. Segundo a autora, contrapondo-se a Nora, a cobertura da Europa com locais de recordação da guerra não tem nada a ver com a modernização, mas com o regime totalitário e o genocídio planejado dos nazistas.

O livro de Assmann é publicado no Brasil em momento em que se instala uma Comissão da Verdade destinada a investigar, sem a prerrogativa da punição, crimes e abusos contra os direitos humanos cometidos durante a ditadura militar. Trata-se de situação bem distinta do contexto de produção da obra. Afinal, muitos dos criminosos nazistas foram julgados e condenados tão logo terminou a Segunda Guerra Mundial. Em seguida, é bem verdade, seguiu-se longo silêncio sobre o Holocausto entre a sociedade alemã. E a obra de Assmann foi construída justamente em conjuntura em que tal negação do passado era revista. No caso brasileiro, há que se perguntar se as diferentes formas de recordação presentes no debate público, tanto a memória quanto a história, serão capazes de iluminar os caminhos tomados pela Comissão da Verdade: suas formas de rememorar o passado talvez possam ser relativizadas a partir do trabalho de Assmann. Portanto, o livro em questão é de interesse não apenas para historiadores e cientistas sociais, como também para qualquer público interessado nas problemáticas colocadas pela memória.

Jefferson José Queler – Professor do Departamento de História. Universidade Federal de Ouro Preto. jeffqueler@hotmail.com.

História, teatro e política – PARANHOS (VH)

PARANHOS, Kátia. (org). História, teatro e política. São Paulo/Belo Horizonte: Boitempo/FAPEMIG, 2012, 248 p. DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Varia História. Belo Horizonte, v. 29, no. 49, Jan./ Abr. 2013.

O conhecimento histórico é uma construção refinada que dialoga com diferentes fontes documentais e discursos pretéritos. O teatro, em sua diversidade, é simultaneamente objeto de pesquisa, narrativa histórica e fonte documental. Nesse sentido, as relações do teatro com a História são necessariamente complexas e exigem do pesquisador competência para construção de trânsito interdisciplinar e sensibilidade para compreensão da narrativa teatral em si mesma. Exige também formação capaz de fazer da arte teatral um recurso epistemológico possível, na construção de abordagens históricas, que possibilitem compreender o tempo, as espacialidade e as relações sociais constitutivas da própria História.

Essa complexa inter-relação de dinâmicas e procedimentos metodológicos encontrou um belo lugar de expressão no livro História, teatro e política, organizado pela historiadora Kátia Paranhos. A obra de 248 páginas, publicada pela Editora Boitempo, tem o mérito de reunir textos, que embora referentes a experiências peculiares, trazem em comum a “compreensão do fato teatral como uma rede extensa e complexa de relações dinâmicas e plurais que transitam entre a semiologia, a história, a sociologia, a antropologia, a técnica e arte, a representação e a política” (p.10).

Ao abraçar essa perspectiva, o livro contribui para reflexão metodológica sobre o uso de fontes e teorias. Além disso, apresenta ao leitor, um retrato dinâmico de experiências históricas concretas em que teatro e política dialogam.

Na bela e densa apresentação da obra, Kátia Paranhos analisa como o movimento de redefinição do campo da História alargou possibilidades. Entre elas destaca-se a da compreensão do texto teatral não somente como documento ou fonte, mas também como elemento constitutivo da própria trama da história, uma vez que como fato é também ato. Nesse sentido, afirma:

A atividade teatral dialoga com outros campos do fazer artístico e, assim é lógico que incentive uma história que dê conta das relações verificadas dentro e fora do fenômeno teatral. (p.9).

Nesse sentido, para autora teatro é História, ou é a História em ato.

Essa orientação de valorização das inter-relações no campo do teatro está muito bem expressa no artigo de autoria de Adalberto Paranhos, História, teatro e política em três atos. Em seu texto analisa a interseção entre teatro e política, na construção da história por sujeitos sociais ativos:

O teatro seja autodenominado, político, engajado, revolucionário ou até apolítico, é sempre político, independentemente da consciência que seus autores e protagonistas tenham disso. O mundo da política é habitado por todos nós, queiramos ou não, quanto mais não seja porque toda e qualquer elação social implica, inescapavelmente, relações de poder, tenham essas o sentido de dominação ou não. (p.36).

Nesse sentido, não seria temeroso afirmar que a compreensão da organizadora da obra e dos autores dos textos nela reunidos é de que em sua construção artesanal cada espetáculo teatral é único. Mas que o teatro em si é heterogêneo, dialético e inserido em determinados tempo e espacialidade.

A dialética é inerente à extensa e diversificada rede de relações e dinâmicas que compõem o fenômeno teatral. Rede que, em uma tessitura de múltiplos fios, transita entre História, semiologia, sociologia, antropologia e política. Considerada essas características de mobilidade e pluralidade, o livro, em seu conjunto reafirma sua filiação a um campo renovado de produção do conhecimento histórico. Renovação que absorve novos objetos e novas formas de construção epistemológica, que considera a narrativa não uma simples reprodução do real, mas uma escolha permeada por variáveis diversificadas.

Ao traduzirem a complexa heterogeneidade inerente ao movimento da história e à construção do saber histórico, os textos selecionados pela organizadora do livro, além de reflexões sobre fontes, trazem rica contribuição sobre temas variados, entre eles o teatro russo e o teatro espanhol. A ênfase maior recai, todavia, sobre a produção teatral brasileira, em especial o teatro brasileiro de engajado, crítico e contestador, no período do imediato pré 1964 e na conjuntura que sucedeu o golpe político ocorrido naquela ano.

Na abertura da coletânea o leitor encontrará o belíssimo texto, “Editar Shakespeare”, de autoria de Roger Chartier, professor da Universidade da Pensilvânia” e membro do Centro de Estudos Europeus na Universidade de Harvard. Chartier, com precisão regada por formação histórica erudita, analisa a construção e a materialidade do texto shakespeariano e sua inerência histórica.

A coletânea também é composta por textos que abordam assuntos variados, tais como:

– relação entre História, teatro e política;
– teatro revolucionário russo;
– o teatro engajado de João das Neves;
– a produção dramática de Miguel Hernades à época da Guerra Civil Espanhola;
– a obra teatral de Oduvaldo Vianna, nos tempos sombrios brasileiros, pós AI5;
– produção de cenas teatrais por artistas como Hélio Oiticica e Lina Bo Bardi;
– itinerários da opereta e mapeamento de fontes selecionadas nas cidades do rio de Janeiro e São João Del Rei.

Os textos referentes ao teatro brasileiro são expressivos da importância histórica do teatro com especial destaque para o tempo presente, a bem dizer contemporâneo de muitos dos autores que contribuíram para a construção de um livro intenso que, embora de autoria múltipla, não se apresenta como um quebra cabeça desarticulado.

Como assinala Kátia Paranhos na apresentação do livro, o teatro em cena e o teatro em texto transbordam para além da representação e do fato teatral em si ganhando multiplicidade fulgurante e expressão histórica singular. A consideração da multiplicidade e da singularidade são também características do livro por ela organizado. As abordagens interdisciplinares inerentes aos capítulos escritos por autores de formação variada, trazem efetiva contribuição para a ampliação de horizontes metodológicos no campo da História em particular e das Ciências Humanas em geral.

Além disso, o livro cumpriu o objetivo de sua organizadora de “oferecer ao leitor um quadro inicial das diferentes categorias de discurso teatrais” (p.12). Ou seja, avançar para além do discurso teatral hegemônico e voltar o olhar para discursos teatrais não iluminados pela crítica. Para tanto considerou o fenômeno teatral em toda sua amplitude, incorporando análises sobre dramaturgia e dramaturgos, experiências cênicas, escrita teatral, gêneros do teatro, relações entre escolas de pensamento e práticas teatrais e, finalmente relação entre teatro e sociedade.

Essas são razões que considero mais do que suficientes para leitura do livro. Além disso, com certeza, o olhar e a compreensão dos leitores, encontrarão em suas narrativas e análises outros holofotes a iluminar a cena da leitura e as correlações entre o fazer teatro e política na História.

Lucilia de Almeida Neves Delgado – Departamento de História. Universidade de Brasília. lucilianeves@terra.com.br.

 

 

 

 

 

Domingos Álvares: African healing, and the intellectual history of the Atlantic World – SWEET (VH)

SWEET, James H. Domingos Álvares. African healing, and the intellectual history of the Atlantic World. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2011, 300 p. MELLO E SOUZA, Marina de. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012.

A história de Domingos Álvares, possível de ser reconstituída por ter ele sido alvo de um processo inquisitorial e da pesquisa minuciosa de James Sweet, permite que sejam discutidos vários aspectos das sociedades formadas a partir das relações tecidas em torno do Atlântico no século XVIII. Como já havia feito em seu livro anterior, Recreating Africa, o autor tem como projeto de fundo inserir processos históricos e universos mentais africanos no conjunto de variáveis a serem consideradas nas análises de situações coloniais que envolveram o Brasil e Portugal,e de trajetórias de africanos inseridos à força, por meio da escravização e da introdução na sociedade escravista brasileira, em relações que abarcavam espaços de três continentes, conectados por interesses econômicos, políticos, e palco de intercâmbios culturais. Com uma escrita de alta qualidade e uma narrativa muito bem construída, conduz o leitor por uma sequência de fatos que o envolvem num crescendo no qual a força do texto não prescinde de uma pesquisa de grande fôlego. Cada elemento apresentado pela narrativa foi minuciosamente pesquisado em arquivos e discutido à luz de estudos anteriores, com os quais o autor mantém diálogos que permitem que reflexões já feitas sejam utilizadas de forma a tornar mais consistente sua própria análise.

O fio condutor da narrativa são os acontecimentos da vida de um curandeiro que é obrigado e se reinventar constantemente ao ser escravizado e transportado do Daomé para Pernambuco, dali para o Rio de Janeiro, onde compra sua liberdade e é preso como feiticeiro, sendo então levado para Lisboa, onde conhece os horrores dos porões inquisitoriais, antes de ser condenado ao exílio no extremo sudeste de Portugal, passando então a vagar em busca de uma sobrevivência cada vez mais árdua de ser obtida. Tendo saído adulto de um Daomé convulsionado pelas guerras de expansão do tempo de Agaja, que impunha sua autoridade sobre territórios vizinhos, submetendo os chefes tradicionais e tornando-se o principal fornecedor de escravos para o comércio atlântico a partir da segunda década dos setecentos, levou consigo o conhecimento especializado já adquirido, que o habilitava a recorrer aos voduns e antepassados para lidar com as adversidades do mundo visível, fossem elas pertinentes a questões físicas ou emocionais. Ligado a tradições perseguidas por Agaja que se via ameaçado pelas estruturas de poder a elas ligadas, nativo de uma região submetida ao expansionismo irradiado a partir de Abomé, foi um dos muitos escravizados naquele contexto de guerras regionais, entre os quais deviam se encontrar vários especialistas em práticas mágico-religiosas como ele. Mas de poucos deles foram registradas informações detalhadas. Para desgraça de Domingos Álvares e fortuna do pesquisador e de seus leitores, ele caiu nas garras da inquisição, talvez até por ter superestimado seus poderes e não ter sido suficientemente discreto e cuidadoso no exercício de suas atividades de adivinhação e cura.

As muitas lacunas da história de Domingos Álvares, extraída do processo inquisitorial aberto contra ele, são preenchidas com suposições fundamentadas em informações de ordem diversa, como a história do Daomé e as tensões entre Agaja e os sacerdotes de Sakpata, vodun responsável pela cura da varíola, e as obtidas no banco de dados sobre o tráfico atlântico de escravos, sob a coordenação de David Eltis, que indica a quantidade significativa de escravizados jejes desembarcados no Recife nas primeiras décadas do século XVIII. Para entender o percurso do escravizado Domingos Álvares, primeiro em um engenho nas cercanias de Recife e depois naquela cidade, o autor traça um quadro da economia da época, que passava por um período de crise com muitos engenhos parados, e das relações sociais escravistas que exigiam determinados comportamentos não só dos escravos mas também dos senhores, de forma a garantir a manutenção do sistema. A presença significativa de pessoas escravizadas oriundas da região do Daomé é rastreada não só pelos dados quantitativos produzidos pelo comércio de escravos, mas também pela centralidade do fon no dicionário da língua geral organizado por Antonio da Costa Peixoto, que entre outras coisas associou o vodunon com o padre católico. Em um ambiente de misturas antigas, entre índios, portugueses e africanos, entre os quais até então haviam predominado os bantos, nos anos seguintes a 1720 chegaram muitos jejes, adeptos dos voduns, em consonância com os processos de escravização em curso na costa ocidental da África.

Nesse meio social que propiciava alguma identificação entre africanos vindos da mesma região e que passava por uma crise econômica, os conhecimentos curativos de Domingos Álvares foram agenciados pelo seu proprietário em Recife, para que atuasse não só junto aos escravos como também entre os brancos, pois até mesmo padres católicos integravam elementos de origem africana em suas práticas. Certamente homem de inteligência e sagacidade acima da média, Domingos logo incorporou conhecimentos curativos que circulavam em terras pernambucanas, como plantas adequadas para combater certas doenças e uma prática que adotará a partir de então que consistia em envolver a cabeça do paciente em uma toalha sobre a qual era lentamente derramava água.

Ao detectar a possibilidade de, por meio de suas atividades de cura e adivinhação, articular laços sociais entre seus semelhantes e reivindicar maior independência entrou em atrito com seu senhor que não abriu mão do controle que tinha sobre suas ações. No embate entre a busca de mais autonomia por parte de Domingos e o empenho do proprietário em mantê-lo sob controle conforme as regras da sociedade escravista, as relações entre ambos deterioraram,e seus poderes mágicos foram direcionados contra o senhor e sua família. Já no gozo da fama de curandeiro poderoso, foi acusado de tentar matá-los e encarcerado até que aparecesse um comprador, que o embarcou para o Rio de Janeiro, sendo assim afastada a ameaça que representava não só para aquela família como para a manutenção da ordem senhorial. A falta de vento durante a viagem foi atribuída a resultante de feitiço seu, o que lhe rendeu boas chibatadas e a confirmação de que se tratava de um elemento altamente perigoso, que manipulava forças mágicas.

A despeito dessa fama, ou devido a ela, foi comprado por uma pessoa cuja esposa sofria de uma doença crônica da qual ninguém dava jeito. Nessa nova casa também não foi possível a convivência entre os escravos e seus senhores, que o acusaram de agravar a doença da senhora e mesmo tentar matá-la. Por outro lado, a integração entre os negros do Rio de Janeiro foi rápida e logo Domingos estava novamente exercendo sua atividade de curandeiro. Quando sua permanência na casa do senhor se tornou insustentável devido ao grau a que haviam chegado os conflitos e a ameaça que ele passou a representar à vida da senhora, uma autoridade colonial foi chamada a intervir para solucionar o caso, sugerindo que fosse transferido para a casa de outro senhor, cujos escravos estavam adoecendo em quantidade acima do normal, podendo ser Domingos de utilidade em função dos seus talentos, cujos benefícios eram àquela altura amplamente reconhecidos apesar dos mesmos poderem também ser materializados em malefícios, como ocorreria na casa em que se encontrava.

O sucesso de suas adivinhações e desmanche dos feitiços que estavam provocando as doenças entre os escravos foi imediato e o novo senhor entrou em um acordo que foi favorável a ambos, dando-lhe a autonomia que buscava e liberdade para exercer sua profissão de curandeiro em troca de pagamento. As vantagens pecuniárias foram tão altas para os dois, que apesar do baixo índice de alforrias entre homens africanos, Domingos conseguiu comprar sua liberdade, depois de ter dado um bom lucro ao seu senhor. Sweet atribui os diferentes comportamentos de seus senhores no Recife e no Rio de Janeiro às diferenças entre a maneira de pensar e agir de um senhor de uma área rural conservadora, atrelado à sua lógica econômica, e a maneira de pensar e agir de um senhor inserido num mundo urbano pautado pelo empreendedorismo, para o qual o ganho obtido por meio do trabalho do escravo era mais importante do que a manutenção de uma dada estrutura social.

A etapa final da trajetória de Domingos Álvares no Brasil transcorreu entre a população livre do Rio de Janeiro, africana, afrodescendente, mestiça e mesmo branca, com ele atuando sempre nas fímbrias, seja do centro urbano, seja entre aqueles inseridos nos lugares menos privilegiados da organização social. Depois de ter seus talentos monopolizados pelo senhor em Recife, contra o qual se insurgiu, ter conquistado autonomia e propiciado altos ganhos para si e seu segundo senhor no Rio de Janeiro, o que lhe permitiu comprar sua liberdade, entrou numa terceira etapa de sua adaptação à vida na sociedade escravista brasileira, ao construir em torno de si uma comunidade de adeptos, estabelecida num centro de culto que atraía pessoas em busca de cura para seus males. Tal sucesso deve ter lhe subido à cabeça e dado uma autoconfiança que fez com que não percebesse o perigo que corria com o exercício público e aberto de suas curas e adivinhações. As denúncias aos representantes da inquisição se multiplicaram (e serviram de base para a reconstituição de sua atuação como adivinho e curandeiro) e em 1742 Domingos acabou enviado para Lisboa para ser julgado pelo Santo Tribunal. Junto com ele desembarcaram em Lisboa outras duas acusadas de feitiçaria: uma crioula chamada Luzia da Silva Soares e Luzia Pinta, nascida em Luanda e objeto de alguns estudos que buscam entender as misturas presentes em suas práticas e os processos culturais que levaram à formação delas.

Depois dos interrogatórios, mais de dezoito meses na prisão e uma sessão de tortura rápida e eficiente, Domingos abjurou de suas culpas, saiu em auto da fé e rumou para Castro Marim, na divisa com a Espanha, onde deveria cumprir a pena de quatro anos de exílio. Premido pela necessidade de sobrevivência ignorou a pena imposta e perambulou pela região fazendo curas em troca de comida e abrigo, e adaptando-se às necessidades locais ao incorporar novos conhecimentos. Tratou doenças com ervas e disse ser capaz de encontrar tesouros enterrados uma vez que esta era uma forte demanda local para os portadores de poderes de adivinhação. Conseguiu construir vínculos com uma ou duas pessoas que o ampararam em momentos de maior necessidade mas nunca foi tão marginal, com as marcas da alteridade inscritas na cor de sua pele, nos orifícios nas orelhas e nariz, nas incrustações nos dentes, todos indícios de sua condição de africano e ex-escravo, ainda por cima condenado ao exílio pela inquisição. Mesmo assim não abriu completamente mão de sua ousadia e descumpriu a ordem de permanecer em Castro Marim, e voltou a exercer sua profissão de curandeiro e adivinho, para o que chegou a forjar situações que simularam a interferência de forças do além para impressionar seus clientes.

Mais uma vez denunciado, voltou a argumentar diante do tribunal a partir da lógica da racionalidade ocidental e do catolicismo, dizendo que apenas usou ervas para curar e que os incidentes sobrenaturais não passaram de engodo estimulado pela extrema necessidade em que se encontrava. Seu estado deplorável talvez tenha comovido o juiz, que o libertou depois de alguns meses de cárcere, condenando-o ao exílio em Bragança onde parece nunca ter chegado pois findam em Évora, onde foi julgado pela segunda vez, os registros acerca de sua existência.

A história de Domingos Álvares, é narrada com extrema competência tanto no que diz respeito à minuciosa pesquisa que busca completar as informações do processo inquisitorial e dar subsídios para uma análise que transcenda a esfera individual e proponha uma compreensão de contextos pelos quais o indivíduo transitou, quanto no que se refere ao texto propriamente dito, que transporta o leitor para o seio dos acontecimentos e prende sua atenção num crescendo que faz com que se emocione com o destino do personagem. Mesmo sendo um livro essencialmente descritivo, com potencial para interessar um público mais amplo do que o de um grupo de historiadores, contém uma boa análise sobre a realidade apresentada, sempre conectando a história do Daomé com os processos em curso ao redor do Atlântico, e a organização social dos grupos daquela região da África com as experiências vividas por Domingos Álvares. Nesse sentido, argumenta que as estruturas básicas que ligam o homem à sua ancestralidade e ao grupo social do qual é parte indissociável estariam sempre orientando as suas ações, ao mesmo tempo que ele buscaria se adequar aos contextos nos quais se encontrava, para o que geralmente, mas não sempre, demonstrava especial sensibilidade, ao perceber quais comportamentos seriam mais proveitosos. Pois se não escondeu suas atividades de adivinho e curandeiro, talvez sentindo-se fortalecido pela comunidade que criou ao redor da sua casa de culto no Rio de Janeiro, ao ser inquirido pelos juízes do tribunal da inquisição entendeu ser mais proveitoso se apresentar como escravo, mesmo já tendo comprado sua liberdade, pois dessa forma evocava um vínculo com alguém que poderia protegê-lo no contexto da sociedade escravista e buscava evitar o pior, que seria a existência totalmente isolada, afastada fosse dos ancestrais, fosse dos senhores.

Com uma interpretação bem mais consistente do que a presente em seu livro anterior, Recreating Africa, James Sweet continua, entretanto, a tratar a cultura como um conjunto de traços o que faz com que busque paralelismos entre práticas daomeanas e brasileiras, como por exemplo quando equipara os processos de iniciação no culto de Sakpata e o batismo católico. Mais interessado em detectar equivalências que expliquem as novas práticas, do que em desvendar processos de interpretação e de tradução simbólica, sua análise perde fôlego no que se refere à esfera da cultura, e o fascinante quadro de trocas simbólicas que seu texto desvenda não chega a ser explorado além da descrição de práticas e da indicação de paralelismos. Nesse sentido, não entra no conjunto de preocupações do autor a busca por compreender os mecanismos por meio dos quais Domingos Álvares adotou tradições em vigor em Pernambuco, no Algarve, e mesmo incorporou explicações típicas do discurso inquisitorial, como quando acusou uma mulher de feiticeira, pois anos antes ela teria dormido com o Demônio. Essa ausência só é notada porque os contatos culturais estão constantemente presentes no texto e não chegam a ser explorados com mais vagar, como acontece com vários outros assuntos introduzidos pela documentação. Domingos é apresentado como se reinventando constantemente, como um híbrido cultural, como tendo uma extraordinária capacidade de adaptação, mas não é proposta uma análise dos processos pelos quais essas transformações ocorreram. A constatação, presente em vários momentos do livro, de que a partir do exílio era necessário construir novas comunidades, orienta a análise para a esfera das relações sociais e talvez seja essa a razão da interpretação final carecer de densidade, pois propõe uma análise do universo intelectual existente no quadro de circulações atlânticas sem ter se detido com mais vagar sobre as questões culturais, pertinentes, me parece, ao que chama de intelectual.

Ao comparar os destinos de Domingos Álvares e de uma menina que Tegbesu mandou de presente ao rei de Portugal (por meio de um embaixador que enviou a Salvador em 1750), mas que por ter ficado cega não seguiu para Lisboa, James Sweet conclui seu livro ressaltando casos nos quais a invisibilidade social e a solidão prevaleceram, atribuindo essa derrota às instituições imperiais que levaram à individualização, por oposição às tradições africanas nas quais os laços de parentesco, seja com os vivos, seja com os mortos, eram constitutivos básicos do ser.Segundo essa perspectiva, que não toca na questão das relações de poder em jogo, podemos pensar que de nada teria valido a capacidade de adaptação de Domingos Álvares diante das determinações do mundo capitalista em construção. Segundo Sweet, suas práticas de cura, que não diziam respeito apenas às pessoas mas também à sociedade, pois desvendavam conflitos e tensões, representariam uma alternativa para neutralizar o infortúnio por meio da ênfase no bem estar comum. Mas no embate entre diferentes lógicas, de um lado a das tradições africanas, e de outro a da Coroa portuguesa, da Igreja católica, e dos senhores coloniais, restou para Domingos Álvares o isolamento social e a penúria. E para isso os interesses imperiais do Daomé trabalharam junto com os de Portugal, pois também para Agaja e Tegbesu o poder dos ancestrais e dos voduns deveria ser neutralizado para não constituírem uma ameaça a eles. Esse, aliás, é um dos pontos fortes e originais da análise de Sweet, que argumenta que havia uma interconexão entre os processos imperiais em curso em Portugal e no Daomé, que se encontraram no mundo Atlântico do século XVIII.

Considerando Domingos um intelectual africano, o que me parece um uso inadequado do conceito, com a ressalva de que não tenho familiaridade com os estudos dos quais extrai essa ideia, Sweet entende que pessoas como ele, mesmo quando neutralizadas pelo poder institucional português, produziram um profundo impacto no discurso intelectual do mundo atlântico ao oferecer uma linguagem alternativa de cura que desafiava o nascente imperialismo sócio econômico. Mesmo sendo parte derrotada nesse embate as ideias africanas fariam parte das construções atlânticas, ao lado da herança intelectual europeia. Apesar de concordar com sua afirmação, discordo da maneira como a fundamenta, pois, no meu entender, se a contribuição africana está presente na construção do que Sweet chama de mundo intelectual atlântico não é por ter proposto uma lógica alternativa, que confrontou a dominante, e sim porque muitas pessoas foram bem sucedidas ao participar de processos de construção de comunidades que, apesar de dominadas, fizeram parte da formação desse novo mundo atlântico e da interpretação de sistemas simbólicos que resultaram em concepções e práticas que mesmo não hegemônicas integram-no.

Na ânsia de chamar atenção para o lugar da contribuição africana na construção do mundo atlântico, inclusive considerando os processos políticos internos ao Daomé, Sweet propõe uma interpretação que não me parece ser sustentada pela sua pesquisa e pelo seu admirável texto, que conta a história de uma pessoa que, depois de um sucesso temporário, fracassou em sua tentativa de recriar laços sociais a partir de práticas de cura africanas, mergulhando na obscuridade da solidão e do isolamento, enquanto tantas outras foram bem sucedidas e, elas sim, participaram da construção de um mundo atlântico, no qual o lugar da contribuição africana está sendo cada vez mais demonstrado. Como já transparecia em seu livro anterior, Sweet prefere abordar os diferentes sistemas culturais em contato, africanos e europeus, como estruturas que entram em choque e não como sistemas que criam áreas de comunicação, que resultam em produtos culturais novos. No que entende ser um embate entre um estilo europeu individualista e iluminista (e não nos é dito como este se coadunaria com o tribunal da inquisição), e sistemas de pensamento africanos que enfatizariam o bem estar comum, percebe a derrota deste, no seu entender temporária, com a saída de cena de Domingos Álvares. A sua resistência em voltar a atenção para os processos de diálogo cultural não permite que invista na análise do que a história que nos conta aponta com mais força, ou seja, a maleabilidade do comportamento de Domingos Álvares e a sua capacidade de perceber rapidamente o mundo que o cerca, adaptar-se a ele e buscar formas de integração que comportam práticas e comportamentos de sua sociedade de origem.

Ao ignorar o caminho que considera o compartilhamento de códigos culturais na formação de um mundo atlântico e enveredar pelo que ressalta o confronto entre eles, força uma análise segundo a qual a contribuição africana, fundada no enfrentamento das vicissitudes pela perspectiva da cura, teria antecipado a contestação à escravidão e ao imperialismo que surgiria mais tarde, resultante do humanitarismo e das ideias relativas às liberdades individuais. Por esse caminho reivindica um lugar para a contribuição africana no desenvolvimento de posturas humanistas, para as quais seriam sempre apontadas apenas as contribuições europeias e americanas, e entende Domingos Álvares como um típico exemplar da modernidade, ao mesmo tempo que feroz oponente do mundo capitalista, em formação à época em que viveu. Ao deixar de explorar os processos pelos quais as contribuições africanas formaram o mundo atlântico na medida em que participaram de um diálogo, mesmo ocupando o lugar de dominados, busca identificar essa contribuição na linguagem gestada a partir do pensamento ocidental, identificando nas tradições africanas elementos de modernidade antes que esta se constituísse enquanto tal. Proposta certamente ousada e não destituída de interesse, não chega a ser plenamente convincente ao tomar como base para sua defesa a vida de Domingos Álvares, pela qual somos magistralmente conduzidos pela sua perícia de narrador e pesquisador.

Marina de Mello e Souza – Departamento de História da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP, São Paulo – SP, marinamellos@uol.com.br.

O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador – PINHO (VH)

PINHO, Osmundo. O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador. Curitiba: Progressiva, 2010, 491 p. SANTOS, Erisvaldo Pereira dos. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012

No final da década de 1970, a emergência do movimento social negro urbano, denunciando as práticas racistas, as desigualdades raciais e desmistificando a democracia racial brasileira, produziu um novo interesse de interpretação e mudança da problemática social e racial no Brasil. No contexto internacional, esse interesse hermenêutico sofreu influências não somente das lutas contra o racismo e em prol dos direitos civis empreendidas por negros dos Estados Unidos, que tiveram início na década de 1960; mas também das lutas em favor das independências de países africanos, contra o racismo e pela valorização da cultura negra, nas quais se encontravam intelectuais carismáticos do porte de Leopold Senghor, Cheikh Anta Diop, Amilcar Cabral, Kwane N’Krumah, Frantz Fanon, Aimé Cesaire e Jean Paul Sartre. No contexto nacional, o resultado da produção científica da Escola de Sociologia da USP, assinada por intelectuais como Roger Bastide, Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni, revelava, além dos aspectos perversos do racismo e da integração do negro na sociedade de classes, as sobrevivências africanas no Brasil, através de pesquisas sobre o candomblé da Bahia, desenvolvidas por Roger Bastide. No cadinho desses acontecimentos políticos, culturais e epistêmicos, no seio da juventude negra que ingressou nas universidades despontaram intelectuais interessados em apresentar novas interpretações sobre a história e o pensamento social negro brasileiro, a partir de configurações culturais e reações políticas, evidenciadas como reterritorialização do espaço urbano, através da agência de segmentos da população negra. É nesse contexto que se inscreve a obra O mundo negro: hermenêutica da reafricanização em Salvador de Osmundo Pinho, cujo conteúdo é resultado de sua tese de doutorado em Ciências Sociais, realizado na UNICAMP.

A fim de evidenciar características da reafricanização e o desenvolvimento de novas identidades e organização negra em Salvador, o autor inicia sua reflexão identificando vínculos entre raça e classe na história da fundação do Bloco Ilê Aiyê, no meado da década de 1970, informando que tanto os fundadores do Ilê Aiyê quanto do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR, mais tarde denominado MNU), eram trabalhadores da Petrobrás e do Polo Petroquímico de Camaçari. Na inserção dos negros no trabalho industrial, o autor identifica transformações que foram mudando a paisagem social, econômica e cultural de Salvador. Conforme o autor, as deficiências estruturais das lutas antirracistas na Bahia, talvez possam ser atribuídas à inserção precária dos negros no mercado de trabalho (p.80).

Como expressão de luta antirracista, o Bloco Ilê Aiyê (expressão em língua iorubá, que em uma tradução livre pode significar mundo negro), constitui-se como “uma insurreição contra a tradição baiana, congelada entre o espaço vazio da inserção precária no trabalho e a folclorização de práticas culturais de resistência como o samba e o candomblé” (p.83). Dessa forma, o Ilê Aiyê é o dado empírico que representa o paradigma da reafricanização na Bahia, através da agência política de negros trabalhadores da indústria petroquímica, os quais além de seduzidos pela “onda de soul” no Brasil da década de 1970, também foram inspirados pelas lutas globais de emancipação racial (p.14). Assim, “O mundo negro” que o Ilê Aiyê levou para as ruas no Carnaval de 1974, de Salvador, em pleno contexto da Ditadura Militar, era mais uma maneira de dar visibilidade à população negra da capital baiana. Expressando-se a partir de uma linguagem estética, marcada por ritmos, sons, cores e coreografias, performances que recriavam o espaço do terreiro de candomblé Ilê Axé Jitolu, onde nasceu o bloco, na grande avenida da cidade, os componentes do Ilê Aiyê demonstravam que a tentativa de fazer desaparecer as heranças africanas e o povo negro no Brasil havia malogrado. A palavra de ordem do bloco era evocada no canto que dizia: “Que bloco é esse, eu quero saber. É o Mundo Negro, que viemos mostrar pra você.” Com refrão musical, os negros e as negras organizados/as na Ladeira do Curuzu, no bairro da Liberdade, instauravam um Carnaval negro na cidade de Salvador.

O autor procurou “edificar uma leitura sobre o surgimento de novas identidades afrodescendentes em Salvador, seus contextos e cenários, suas articulações e conexões, seus níveis de constituição e reprodução […] como modo de fazer uma revisão compreensiva dos estudos afrodescendentes […]” (p.14-15), cujo “objetivo foi a construção da reafricanização como um objeto para a reflexão crítica […] tomando a narrativa de Risério [sobre “Carnaval Ijexá”] como ponto de partida para sua des-representação através dos textos e discursos”. A revisão dos estudos sobre afrodescendentes é constituída por aportes que se encontram presentes em uma vasta bibliografia que trata sobre o negro do Brasil, envolvendo autores como: Nina Rodrigues, Manuel Querino, Artur Ramos, Gilberto Freyre, Edson Carneiro, Ruth Landes, Roger Bastide, Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Thales de Azevedo, Oracy Nogueira, até reflexões mais contemporâneas como as de Júlio Braga, Vivaldo da Costa Lima, Jocélio Teles, Lívio Sansone e João José dos Reis. Além desses pensadores e pesquisadores, o autor utiliza-se de outras fontes como as entrevistas feitas aos membros fundadores do Ilê Aiyê.

Do ponto de vista metodológico, o tratamento dos dados se inscreve na perspectiva de uma hermenêutica crítica, pois como afirma o autor “ao invés de enfatizar o aspecto essencializante das identidades negras, preferi, de outro modo, apontar suas características críticas e por em relevo, o peso cristalizado das representações, discursos (…) ambiente para as relações raciais no Brasil” (p.22). A abordagem teórica utilizada para conduzir a interpretação pretendida, envolve autores como Marx, Heidegger, Rorty, Foucault, Baudrillard, Derrida, Deleuze, Michel de Certeau, Bourdieu, Homi Bhabha e Paul Gilroy. A partir da confluência dessas fontes bibliográficas sobre o negro brasileiro e os aportes teóricos desses pensadores, os quais estão vinculados a diferentes campos epistêmicos, O mundo negro passa a ser uma obra que se destina não apenas ao público interessado sobre a temática da sociologia do negro no Brasil, mas também aos pesquisadores que se debruçam a história do pensamento social negro no século XX.

Compreendendo a obra de Nina Rodrigues como um aporte do pensamento racialista do Brasil, o autor inscreve como seus herdeiros tanto Arthur Ramos quanto Gilberto Freyre, identificados como representantes da transição entre os paradigmas racialistas para os culturalistas (p.172). Em Arthur Ramos encontra-se a perspectiva da aculturação e integração do negro na sociedade brasileira, através de modelos de transformação como o sincretismo. Em Gilberto Freyre, “o negro é parte integrante da alma nacional, uma vez que está miscigenado e que todos nós temos algo de negro se não no sangue, na alma.” (p.175-6). Na concepção do autor, os estudos afro-brasileiros, ao constituir o “negro” como “objeto de ciência,” impediram sua constituição como sujeito político da representação. (p.302). Ainda segundo o autor, foi Roger Bastide, em sua obra Religiões africanas no Brasil o responsável por desenvolver um conjunto de argumentos anti-culturalista que além de deslocar a reflexão sobre o “problema do negro”, passou a “considerar a tradição africana no Brasil como inserida em estruturas sociais historicamente enraizadas, como que habitando-as.” (p.283-4). Outro pensador que criticou os Estudos Afro-Brasileiros foi Guerreiro Ramos, ao afirmar que tais estudos “transformavam o negro em ‘peça de museu’ ao estudarem os aspectos tradicionais da cultura negra, vistos por ele como elemento de atraso e de ignorância” (p.424).

Como uma obra realiza uma reflexão hermenêutica sobre a história do pensamento social negro e sobre a agência política e cultural de segmentos negros organizados, tendo o bloco Ilê Aiyê como um paradigma da reafricanização e contestação da realidade social, política e cultural da população negra de Salvador, os resultados apresentados são bastante alvissareiros, no que se refere à reterritorialização e também à valorização da cultura negra em Salvador. No entanto, o texto apresenta alguns problemas que não são apenas aqueles apontados pelo autor quando na conclusão caracteriza seus argumentos como “precariamente alinhavados” (p.433). O primeiro problema diz respeito ao conjunto de informações imprecisas que o autor oferece sobre o candomblé de Salvador, demonstrando que tem um conhecimento limitado do candomblé, sobretudo quando se refere ao bori (p. 133-4, 146) e também quando apresenta tabelas imprecisas sobre correspondências e hierarquias (p. 139, 140, 142).

Concluo destacando ainda mais dois problemas. Um refere-se à maneira pouco sistemática como o autor transita em campos epistêmicos tão diferenciados, sem estabelecer mediações discursivas, como no caso das apropriações que faz de abordagens filosóficas tão distintas, envolvendo os estudos culturais e autores de diferentes tradições epistemológicas como Foucault, Heidegger, Marx, Rorty. O outro problema se refere à conclusão, onde praticamente desaparece não somente o objeto principal do estudo – “O mundo negro do Ilê Aiyé” -, mas também o foco da hermenêutica da reafricanização, inicialmente direcionado para o vinculo entre raça e classe, os discursos do modelo do candomblé jeje-nagô e para a tradição dos estudos afro-brasileiros. Esse último problema aparece justamente em razão do autor pretender refletir sobre o Teatro Experimental Negro – TEN, sem que esse tenha sido um dos objetivos do estudo.

Erisvaldo Pereira dos Santos – Departamento de Educação (ICHS) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Mariana – MG, erisvaldosanto@yahoo.com.br.

From Africa to Brazil: culture, identity, and an Atlantic slave trade, 1600-1830 – HAWTHORNE (VH)

HAWTHORNE, Walter. From Africa to Brazil: culture, identity, and an Atlantic slave trade, 1600-1830. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2010, 288 p. MARCUSSI, Alexandre Almeida. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 48, Jul./ Dez. 2012.

O Estado do Grão-Pará e Maranhão é uma região relativamente pouco estudada pelos historiadores que se debruçaram sobre a América Portuguesa, se o compararmos com as capitanias do Nordeste ou com a região de Minas Gerais, por exemplo. Da mesma forma, dentre as regiões da costa africana que participaram significativamente do comércio atlântico de escravos, o tre-cho localizado entre os rios Senegal e Serra Leoa – a costa conhecida como Alta Guiné – talvez seja um dos menos bem contemplados pelos estudiosos. É natural, portanto, que a obra de Walter Hawthorne, que aborda a conexão entre ambas as regiões, seja uma adição bem-vinda à historiografia que trata do período colonial.

Hawthorne, que atualmente leciona História da África na Universidade Estadual de Michigan, é autor de outra obra importante sobre a Alta Guiné, Planting rice and harveting slaves, na qual analisa a produção de arroz na região. Em From Africa to Brazil, ele alarga o escopo da pesquisa para com-preender a articulação dessa região com o Maranhão, outra importante área produtora de arroz do Atlântico que estabeleceu fortes vínculos com o comér-cio guineense de escravos – mais especificamente, com os portos portugueses de Cacheu e Bissau, ao sul do rio Gâmbia.

Como já sugere o subtítulo da obra, que poderia ser traduzido como “Cul-tura, identidade e um comércio atlântico de escravos, 1600-1830”, o objetivo do autor é compreender as influências da diáspora guineense sobre a experi-ência cultural das comunidades escravas no Maranhão, sobretudo no período que se estende de 1750 a 1830, quando houve predomínio numérico de cativos oriundos da Alta Guiné nas importações do porto de São Luís. Esse vínculo é explicado em parte pelo regime de ventos e correntes marítimas do Atlântico, que favorecia as viagens entre a costa norte do Brasil e os portos de Cacheu e Bissau, e em parte pelas políticas pombalinas de desenvolvimento econômico do Estado do Grão-Pará e Maranhão, que tiveram como base a produção do arroz empregando mão-de-obra africana fornecida por esses portos.

O autor compara manifestações culturais dos povos da Alta Guiné com as das comunidades escravas do Maranhão para propor a tese de uma con-tinuidade cultural entre as duas realidades. Dessa forma, a perspectiva de Hawthorne alinha-se à de outros historiadores norte-americanos normalmente denominados “afrocêntricos”, tais como Paul Lovejoy, John Thornton e James Sweet, com os quais Hawthorne mantém intenso diálogo ao longo do livro.

É interessante notar, inclusive, que o plano de capítulos de From Africa to Brazilecoa a organização temática de A África e os africanos na formação do mundo atlântico, de John Thornton,1partindo da realidade africana para iluminar aspectos culturais das sociedades americanas, num projeto de com-preender o protagonismo dos africanos na configuração do mundo atlântico. O primeiro capítulo aborda a transição do regime de mão-de-obra indígena para o trabalho africano no Maranhão, na década de 1750, e analisa a origem geográfica dos escravos desembarcados. Na sequência, o autor empreende um estudo da organização do comércio escravista e da cultura da Alta Guiné, para depois passar à realidade americana, discutindo o regime de produção agríco-la do arroz, as estruturas matrimoniais e familiares vigentes na comunidade escrava e, por fim, as práticas religiosas dos africanos e seus descendentes.

A obra de Hawthorne partilha com a historiografia dita “afrocêntrica” muitos de seus pressupostos e métodos de análise – bem como alguns de seus limites interpretativos. Nota-se logo a importância capital da demografia na argumentação: o autor demonstra que o maior grupo dentre os escravos im-portados para o Maranhão proveio da Alta Guiné, correspondendo a 57% dos ca-tivos desembarcados entre 1751 e 1842. Mais que isso, a análise dos etnônimos nos inventários maranhenses e o profundo conhecimento que o autor tem do funcionamento do comércio escravista na África ainda permitem demonstrar que, dentre os escravos que vieram dessa região, houve claro predomínio das etnias habitantes da faixa costeira (balantas, bijagós, papel, floup, banyuns e brames), em detrimento dos fulas e mandinkas do interior, caracterizando um cenário em que o autor identifica um certo grau de homogeneidade cultural.

A partir daí, a obra busca os vínculos culturais entre as duas regiões. A análise está ancorada, em grande medida, no trinômio origem-etnia-identida-de. Trata-se de propor que os escravos guineenses puderam resgatar a etnia como critério de identidade no Maranhão, recriando na América elementos de sua cultura de origem. Contudo, o autor ressalta que eles não resgataram propriamente suas etnias particulares, mas uma espécie de cultura comum da Alta Guiné, baseada em pressupostos culturais largamente compartilhados, que foram enfatizados na diáspora.

Pode ser proveitoso pensar no argumento do autor à luz daquilo que Luis Nicolau Parés denomina “identidades metaétnicas”, agrupando vários etnô-nimos em denominações mais amplas a partir da interação entre africanos e europeus.2Hawthorne explica de várias maneiras a formação dessa identidade compartilhada: em alguns momentos, sugere que ela possa ter sido uma es-tratégia dos escravos para evitar conflitos étnicos no interior do grande grupo guineense. Predomina na obra, no entanto, a ideia de que essa identidade te-ria sido uma recriação mais ou menos “espontânea” baseada em similaridades culturais já existentes desde a África. Nesse sentido, ela seria de fato um res-gate de uma realidade cultural africana, e não propriamente uma recriação específica da sociedade colonial ou do mundo atlântico.

Observa-se que, em alguns casos, as supostas continuidades culturais com a Alta Guiné estão fundamentadas em fenômenos que também podem ser observados em outras regiões da África e no restante da América Portuguesa – por exemplo, as bolsas de mandinga3 – , enfraquecendo um pouco a argumen-tação do autor. Até por conta disso, a ênfase na costa da Alta Guiné como fon-te majoritária da cultura escrava maranhense soa um tanto exagerada, ainda mais se considerarmos que as etnias da costa nunca chegaram a compor mais de 32% da população escrava.

A despeito de seus limites interpretativos, em grande parte derivados da perspectiva teórica escolhida, a obra apresenta diversas contribuições re-levantes. Para além dos pouco conhecidos dados a respeito da comunidade africana maranhense, cabe destacar a abordagem do comércio de escravos na Guiné, que foge dos modelos clássicos ao mostrar que o tráfico não implicou centralização política naquela região. Vale ainda mencionar a sofisticada aná-lise a respeito da implantação da cultura do arroz no Maranhão, que articula vasta informação documental, um profundo conhecimento acerca do cultivo de arroz no Novo e no Velho Mundo e uma reflexão sobre o comércio atlântico colonial. O autor estabelece um diálogo com a chamada “tese do arroz ne-gro”, segundo a qual o conhecimento técnico para o plantio do arroz na Amé-

rica teria sido trazido pelos africanos da Alta Guiné. Comparando as técnicas de cultivo na África e no Maranhão, o autor demonstra definitivamente que essa tese não pode ser estendida para o Brasil. Para ele, a natureza mercantil da colonização determinou as características ambientalmente predatórias do plantio, enquanto o conhecimento africano pôde ser preservado e empregado apenas nas etapas do beneficiamento e do preparo culinário. Daí, portanto, a ideia de que o arroz maranhense não seria nem “branco” e nem “negro”, mas “marrom”.

Do ponto de vista metodológico, From Africa to Brazilfundamenta-se em uma extensiva e sólida pesquisa documental. Embora falte em alguns mo-mentos uma crítica mais rigorosa de algumas fontes, o autor demonstra am-plo conhecimento, contemplando uma documentação heterogênea que vai de inventários maranhenses até relatos de viajantes na costa africana, passando pelas fontes inquisitoriais.

From Africa to Brazilnão interessa apenas aos especialistas na história do Maranhão, mas também a todos os estudiosos das culturas afro-americanas e do comércio atlântico de escravos. A obra de Hawthorne preenche uma lacuna importante, trazendo à luz as especificidades de realidades históricas pouco conhecidas na historiografia. Esta é sem dúvida, sua maior contribuição.

1 THORNTON, John Kelly. A África e os africanos na formação do mundo atlântico: 1400-1800. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
2 PARÉS, Nicolau. A formação do candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2006, p. 26.
3 Compare-se a perspectiva do autor com SANTOS, Vanicléia Silva. As bolsas de mandinga no espaço Atlântico: século XVIII. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008. 256 p. (Tese de doutorado – História Social); e SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Alexandre Almeida Marcussi – Doutorando em História Social Departamento de História da Universidade de São Paulo – FFLCH/USP São Paulo – SP alexandremarcussi@gmail.com.

Mulheres em Macau – PENALVA (VH)

PENALVA, Elsa. Mulheres em Macau: donas honradas, mulheres livres e escravas (séculos XVI e XVII). Lisboa: CHAM/CCCM: 2011, 237 p. Resenha de: WAGNER, Ana Paula. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

Macau está longe de nós, se tivermos como ponto de referência o espaço geográfico brasileiro. Entretanto, o trabalho de Elsa Penalva chega para fazer uma aproximação, trazendo àqueles que desconhecem as particularidades da história macaense elementos que permitem um contato com a sociedade em questão. Numa parceria entre o Centro de História de Além-Mar e o Centro Científico e Cultural de Macau, o trabalho da autora foi publicado na Coleção Estudos e Documentos, que tem divulgado investigações relacionadas com a História dos Descobrimentos e da Expansão Lusa, assim como a presença portuguesa no mundo.

O primeiro ponto a ser evidenciado é que as mulheres são as protagonistas dessa obra, o que já se encontra anunciado no próprio título do trabalho. São mulheres de diferentes estatutos sociais, que viviam em Macau entre finais de Quinhentos e meados de Seiscentos. No topo da hierarquia local estavam as “donas honradas”. Conforme ressaltado por Elsa Penalva, essa condição, ser “honrada”, não se ligava necessariamente a uma conduta moral reta; mas era acrescida de uma valoração positiva facultada “pelo enlace com um homem com poder econômico, e com possibilidades de acesso às elites atinentes ao exercício do poder político”. Abaixo desta categoria, “donas honradas”, encontravam-se as mulheres livres e, depois, as escravas. Para estas últimas, equivalia situar-se na base da pirâmide social macaense, no lugar mais indesejado. Num campo intermediário estavam as mulheres livres. Entretanto, para esses dois segmentos sociais, independentemente da condição de livre ou escrava, “significava ter que se organizar, atendendo à sociedade patriarcal em que se inseriam”. Eram mulheres que, no geral, tinham dinâmicas de vida muito trabalhosas.

Porém, o universo feminino em Macau era muito mais complexo e diversificado do que a existência dessas três categorias, contando também com a presença de órfãs, religiosas, viúvas com posses ou não etc. Essa heterogeneidade é devidamente explorada pela autora no livro, além de ser redimensionada em razão do caráter multicultural da sociedade macaense, com indivíduos de diferentes procedências, como Portugal, China e Japão, por exemplo. Desse amplo quadro, a autora acaba por apresentar maiores detalhes do segmento das mulheres economicamente mais favorecidas. Tal circunstância deriva, possivelmente, de uma escolha feita por Elsa Penalva e, certamente, do tipo de documentação utilizada para a elaboração da pesquisa.

Em grande medida, ao problematizar a inscrição das mulheres na vida social de Macau, a autora procura não superestimar as ações delas, buscando equilibrar sua argumentação. A conclusão que chega é que “sem capacidade política, nem autoridade pública, e com reduzida intervenção social, a mulher em Macau, dificilmente escapava à dominação masculina a partir da riqueza de que dispunha”. Ou seja, a maior parte delas encontrava-se submetida a uma valoração fundamentada em índices de riqueza e, nesse ambiente, o casamento era considerado a principal garantia de segurança e de sobrevivência material. Mas, por outro lado, a condição de viúva, quando acompanhada de poder econômico, facultava à mulher a “manutenção do prestígio social e a aproximação ao universo masculino”.

Elsa Penalva não valoriza demasiadamente o papel da mulher em Macau, mas também não as vitimiza, procurando sempre um ponto de equilíbrio. No que diz respeito ao casamento, por exemplo, percebido como um importante mecanismo do processo de inserção social e de diferenciação entre o grupo feminino, ele foi um instrumento bem aproveitado pelas mulheres que viviam em Macau. Ainda que em algumas circunstâncias o matrimônio tenha sido imposto, as mulheres buscaram construir espaços de movimentação e, na medida do possível, procuraram atuar independente dos códigos sociais a que estavam sujeitas.

Como indicamos, a autora acabou privilegiando, em seu estudo, as mulheres economicamente melhor favorecidas, no caso, as viúvas com posses. Particularmente no que se refere a esse grupo social, as ideias de passividade feminina não se configuravam como majoritárias no período em análise, séculos XVI e XVII. Em relação ao aspecto econômico, algumas viúvas conseguiram ultrapassar determinadas barreiras e chegaram a ser as responsáveis pelo gerenciamento de seus patrimônios (garantindo a sua rentabilidade), constituindo-se em grande feito para a conjuntura daquela sociedade:

Algumas [mulheres], após terem enviuvado, tornaram-se elementos activos no meio mercantil em que viviam. Foi o caso de Isabel Reigota que entre 1652 e 1663 se opôs ao jesuíta Manuel de Figueiredo à data, Procurador da Vice-Província da China. Em causa estava o comércio do sândalo, e uma luta pelo poder travado no seio da Companhia de Jesus. O comportamento desta viúva deixa entrever uma aprendizagem de âmbito prático, fruto da observação atenta da actividade do marido, Francisco Rombo de Carvalho, e do contacto com os jesuítas com que privava. A sua casa, local de práticas dos vários saberes a que tinha acesso como mulher, permitira também a aquisição de conhecimento próprios do universo masculino, que, face à morte do marido, se tornaram recorrentes, funcionando como mecanismos de manutenção e sobrevivência.

A história da Isabel Reigota, indicada acima, sintetiza muito bem a argumentação da autora, e apresenta todos os elementos envolvidos na trama oferecida pelo livro. Ou seja, revela o cotidiano de mulheres que, por meio do casamento com um indivíduo com posses, tem acesso a um ambiente que lhes possibilita desenvolver conhecimentos e habilidades, que foram utilizados no momento em que seus cônjuges faltaram. Do mesmo modo, evidenciam as relações estabelecidas entre algumas ordens religiosas instaladas em Macau e determinados segmentos populacionais, fosse no contato para cuidar dos assuntos sagrados, ou sociais, ou econômicos.

Como se nota, paralelamente à história da condição social das mulheres de Macau, a autora descortina alguns aspectos do mundo religioso institucional da localidade, particularmente aquele que dizia respeito à Companhia de Jesus. Conforme Elsa Penalva, essa ordem era a que tinha maior poder em Macau, “pela sua antiguidade, modelo de aproximação à população, e ocupação logística do terreno. Isto pelo menos desde 1565 até inícios da centúria seguinte”. As Clarissas, ordem religiosa feminina que se instalou em Macau, em 1633, também ganhou atenção da autora. Segundo seu argumento, a partir de 1642, essas religiosas “funcionaram como um grupo de pressão nas lutas pelo poder que se desencadearam na cidade”, passando a se constituírem nas grandes oponentes à Companhia de Jesus naquele território. Entre as Clarissas estavam as filhas de mercadores abastados e influentes que se estabeleceram em Macau. Nota-se, assim, a configuração de um quadro bastante complexo que interliga o cotidiano das mulheres e as disputas religiosas e econômicas locais.

Sem dúvida, o livro em questão atende aos interesses daqueles leitores que buscam informações sobre as experiências das mulheres na Macau dos séculos XVI e XVII; contudo, também contempla a história de algumas ordens religiosas instaladas naquela localidade. Em grande medida, esse é um dos méritos do livro, fazer com que diminuam as distâncias que separam Macau de seus leitores. Embora a sociedade macaense tenha suas particularidades, devidamente exploradas e contextualizadas pela autora, tem-se a impressão de que é possível identificar algumas semelhanças com a história de outros territórios de colonização portuguesa, em especial nas questões relacionadas ao cotidiano das mulheres. É nesse sentido que dizemos que o livro de Elsa Penalva permite estabelecer algumas aproximações, desde o contato com esse espaço geográfico que constituía Macau até o conhecimento de experiências sociais nele desenroladas e comuns a outras sociedades.

Outra grande contribuição do livro Mulheres em Macau é a publicação, como anexos, de três documentos redigidos no século XVII, especificamente entre 1644 e 1690. Embora esses textos tenham sido escritos por homens e, portanto, nos digam muito do universo masculino, as mulheres que tiveram suas histórias vividas em Macau continuam sendo as protagonistas daquelas narrativas. Aliás, essa preocupação com as fontes e o recurso a um sólido trabalho documental é um dos pontos fortes da obra. Elsa Penalva pesquisou uma vasta documentação para compor seu trabalho, como os legados da Santa Casa da Misericórdia de Macau, documentos relativos a Câmara Municipal, processos inquisitoriais e registros de contendas relativos a Macau. Saliente-se, a propósito, a cuidadosa transcrição e referenciação dos documentos e da bibliografia consultada. Por fim, os capítulos apresentados no livro têm como base os estudos empreendidos pela autora em sua tese de doutorado (defendida em 2005) e comunicações apresentadas em congressos, porém ampliados à luz de novas indagações. Enfim, o que se tem em mãos é uma investigação de grande fôlego que requer e merece uma leitura atenta.

Ana Paula Wagner – Pesquisadora do Centro de Documentação e Pesquisa em História dos Domínios Portugueses (CEDOPE)/DEHIS-UFPR. Rua Senador Xavier da Silva, n. 272, ap. 41. Curitiba/Paraná. Cep: 80.530-060 anapwagner@gmail.com.

 Jerusalém colonial – VAINFAS (VH)

VAINFAS, Ronaldo. Jerusalém colonial. Judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 376 p. Resenha de: FEITLER, Bruno. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./Jun. 2012.

Nesse livro, que é dos últimos resultados da sua importante produção historiográfica, Ronaldo Vainfas se mantém dentro da temática dos estudos sociorreligiosos, seguindo um veio que iniciou com seu Trópico dos pecados (1989). Vainfas estuda desde então fenômenos vários de desvios religiosos no mundo católico português. Esse prisma na verdade diz muitas vezes mais sobre as instituições e as culturas dominantes do que os estudos a elas diretamente dedicados. Essa história sociológica, voltada para as rupturas e as descontinuidades à la Foucault, e que Vainfas domina com uma extrema sensibilidade e familiaridade, é uma importante contribuição para a compreensão do Brasil colônia e também um estímulo metodológico para os historiadores brasileiros.

Em seu livro, Jerusalém colonialJudeus portugueses no Brasil holandês, mais do que apenas estudar a estrutura e o funcionamento da comunidade sefaradita local (o que não deixa de fazer), Vainfas continua a tratar daqueles comportamentos e personagens heterodoxos. Contudo, não lhe interessa estudar ritos e cerimônias religiosas, mas sim o comportamento social e os dilemas identitários dos seus personagens, tratando assim de uma questão que não deixa de ser de uma extrema atualidade. Com todos os cuidados necessários, ele abre uma janela para as ligações existentes entre religião, cultura, origem geográfica e identidade no mundo português, no qual esses judeus estavam inseridos muitas vezes com extremo gosto, e a despeito da rejeição que sofriam de parte dos “bons” católicos.

Essa leitura sociológica da (curta) história da comunidade judaico-nordestina (1636-1654) tem assim origem no próprio percurso de Vainfas. Mas ela também deve muito à mais recente produção historiográfica sobre a diáspora sefaradita, como ele claramente frisa desde a sua introdução, sobretudo nos trabalhos de Yosef Kaplan e com seu conceito de “judeu-novo”.

Esses judeus, descendentes daqueles convertidos à força no Portugal de 1497, em seguida estigmatizados pelo epíteto de “cristãos-novos”, sofreriam, por sua origem judaica e por uma vivência católica por vezes secular, “dramas de consciência” (p. 15). Assim, Vainfas faz uma história geral da comunidade judaica do Recife de Israel (Kahal Kadosh Tsur Israel), cuidadosamente reconstituindo o percurso da comunidade mãe de Amsterdã, e retomando de José Antônio Gonsalves de Mello, sua principal inspiração, temas como a importância dos sefaraditas para a economia da empresa comercial da Companhia das Índias Ocidentais no Brasil, concentrando-se na questão identitária. Vainfas intencionalmente quis se manter livre de adotar qualquer conceituação mais ampla de um “espírito judaico” ou sefaradita, como fizeram muitos dos seus predecessores no estudo da diáspora judaico-portuguesa. Ele quer assim evitar reduzir a análise da religiosidade dessas pessoas a algo de unívoco, desviando-se do caminho seguido pelos inquisidores (“Melhor não imitá-los”, p.278), e pondo em causa autores mais recentes como Nathan Wachtel, que defendem a ideia de uma “essência judaica” generalizada dos cristãos-novos ibéricos (p.41). Nosso autor contudo sucumbe, ao meu ver, a uma certa generalização, ao afirmar que “a ambivalência dos judeus novos era, portanto, inerente à identidade cultural – e individual – da maioria deles” (p.75). Mas essa pequena nota não diminui em nada a importância do seu livro. Vainfas aplica ao caso brasileiro, no seu estilo instigante e inconfundível, as mais recentes interpretações historiográficas sobre o judaísmo sefaradita, que até agora permaneceram restritas a limitadas publicações acadêmicas.

Jerusalém colonial também traz novidades. Vainfas revê de modo surpreendente, entre outras questões (a origem recifense do judaísmo de Nova York, a figura do jesuíta Antônio Vieira, as divisões no seio da comunidade judaica, etc.), a personagem de Isaac de Castro Tartas. Preso na Bahia em nome da Inquisição em 1644, e queimado vivo em seguimento ao auto-da-fé lisboeta de 1647, ele foi transformado num verdadeiro mártir do judaísmo pela comunidade de Amsterdã. Vainfas desfaz o mito do erudito e corajoso rapazola que de Recife teria passado a Salvador para proselitizar cristãos-novos, mostrando a trágica indefinição identitária de Isaac.

O autor também consegue, retomando uma documentação de certo modo já surrada, encontrar novas e interessantes leituras da estrutura social da comunidade judaica do Pernambuco holandês. Vainfas mostra que Tsur Israel foi monopolizada por homens vindos da Europa. Ele fala primeiramente de “Uma nova diáspora. Diáspora colonial” para se referir à comunidade pernambucana, tendo em vista a sua intrínseca ligação com a empresa da Companhia das Índias Ocidentais (p.160-161). Mas em seguida mostra que essa colonialidade também pode ser flagrada na preponderância numérica que os “retornados” na Europa tinham sobre os que se tornaram judeus professos no Brasil. Para crescer, a comunidade dependeu sobretudo da imigração. Finalmente, essa preponderância europeia também era social. “Os judeus convertidos no Recife acabaram relegados à condição de judeus de segunda categoria. Judeus incertos. Judeus coloniais” (p.188). É sem dúvida isso que explica que alguns desses judeus-novos tenham escolhido ir para Amsterdã para se fazer circuncidar, em vez de utilizar os serviços dos mohelim locais.1

Já a escolha de uma estrela de seis pontas para ilustrar a capa do livro parece ser um anacronismo editorial, já que a chamada estrela de Davi só se tornou um símbolo especificamente judaico durante o século XVIII, a partir do mundo askenazi.2

Em todo caso, é o trabalho uma grande contribuição aos estudos dos judeus no Brasil, sobretudo em tempos de redefinições identitário-religiosas.

1 Lisboa. Arquivos Nacionais da Torre do Tombo (ANTT). Inquisição de Lisboa (IL). Processo 11562. Processo contra Pedro de Almeida.
2 Ver SCHOLEM, Gershom. L’étoile de David: histoire d’un symbole. In: Le messianisme juif… Paris, 1992, p.367-395.         [ Links ]

Bruno Feitler – Departamento de História – Unifesp. Estrada do Caminho Velho, 333. 07252-312. Guarulhos, S.P. feitler@unifesp.br.

Inventar a heresia? ZERNER (VH)

ZERNER, Monique (org.). Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas: Editora da Unicamp, 2009, 304 p. Resenha de: SILVA, Carolina Gual da. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

A Editora da Unicamp, em parceria com o LEME (Laboratório de Estudos Medievais USP/Unicamp), inaugura com essa obra uma série de traduções de importantes textos dedicados à História Medieval com o intuito de tornar acessíveis obras que discutem de forma original e atualizada temas da historiografia medieval. Este livro, organizado por Monique Zerner, discute a construção do discurso anti-herético na Europa pré-Inquisitorial.

Monique Zerner, professora emérita da Universidade de Nice, pesquisadora vinculada ao CNRS e experiente em estudos sobre as heresias, 1 coordenou os trabalhos de outros nove pesquisadores da Antiguidade Tardia e Idade Média, reunidos no seminário “Heresia, estratégias de escrita e instituição eclesial” acontecido em Nice entre 1993 e 1995. O livro publicado na França em 1998 agora chega para os leitores brasileiros em versão traduzida.

A obra é composta por uma introdução, feita pela organizadora, oito capítulos, dois excursos e um posfácio. Os dois primeiros capítulos se referem a textos da Antiguidade Tardia com Jean-Pierre Weiss escrevendo o primeiro capítulo, “O Método Polêmico de Santo Agostinho no Contra Faustum” e Jean-Daniel Dubois com “Polêmicas, Poder e Exegese: o exemplo dos gnósticos antigos no mundo grego”. A esses capítulos se segue o primeiro excurso que inaugura a discussão em torno do século XI, “Saint-Victor de Marselha no Final do Século XI: um eco de polêmicas antigas?”, escrito por Michel Lauwers. A partir do excurso temos os capítulos referentes aos séculos XI e XII, o principal foco do livro: capítulo 3, de Guy Lobrichon, Arras, 1025, ou o “Processo Verdadeiro de uma Falsa Acusação”; capítulo 4, “A Argumentação Defensiva: da polêmica gregoriana ao Contra Petrobrusianos de Pedro, o Venerável”, de Dominique Iogna-Prat; capítulo 5, de Monique Zerner, “No Tempo do Apelo às Armas Contra os Hereges: do Contra Henricum do monge Guilherme aos Contra Hereticos“; capítulo 6, novamente de Michel Lauwers, “Os Sufrágios dos Vivos Beneficiam os Mortos? História de um tema polêmico (séculos XI-XII)”; capítulo 7, “Na Época em que Valdo não era Herege: hipóteses sobre o papel de Valdo em Lyon (1170-1183)”, de Michel Rubellin; capítulo 8, escrito por Jean-Louis Biget, “Albigenses: observações sobre uma denominação”; o segundo excurso, “Um Caso de não Heresia na Gasconha no ano de 1208”, por Benoît Cursente; e finalmente o posfácio escrito por Robert Ian Moore.

É interessante notar que, embora seja uma coletânea de diferentes autores, os textos aparecem como capítulos de uma mesma obra e não como artigos independentes reunidos. Isso se deve, em parte, ao contexto de produção do livro, resultante de pesquisa conjunta dos autores ao longo de cerca de cinco anos. Os textos de Inventar a Heresia? possuem uma coerência e coesão muito grande não apenas na temática, mas também no tipo de documentação utilizada e principalmente na linha teórico-metodológica que seguem. Eles podem, sim, ser lidos separadamente, mas é em seu conjunto que eles ganham uma força argumentativa e explicativa que tornam essa uma obra tão rica.

Zerner nos apresenta, na introdução, todas as motivações teóricas e metodológicas que guiaram os textos apresentados no livro. O impulso inicial veio das pesquisas dos anos 1980 da própria autora e da inquietação dela e de vários outros pesquisadores, principalmente a partir dos anos 1990, em relação ao tratamento dado pelos historiadores ao catarismo, nas palavras da autora, “tomado como um fato indiscutível na historiografia francesa”.2 Com os seminários de Nice colocou-se a necessidade de pensar as relações entre heresia e estratégias eclesiásticas que tiveram um papel fundamental em sua construção doutrinal e historiográfica.

Surge, assim, a necessidade de considerar as fontes de uma maneira mais crítica, pensando-as dentro da lógica de sua produção, questão ressaltada por Moore no posfácio como sendo “a regra mais elementar porém facilmente negligenciada por nosso métier“.3 Assim, a preocupação com as fontes pode ser vista claramente no tratamento dado, em todos os capítulos do livro, aos seus respectivos documentos. Todos os autores baseiam suas pesquisas fortemente sobre a análise crítica das fontes primárias em relação aos seus contextos de produção (presente em todos os textos, mas com maior ênfase no capítulo de Monique Zerner no tratamento da autoria e composição dos manuscritos), aos mecanismos retóricos e discursivos (particularmente o texto de Jean-Pierre Weiss a propósito da obra de Santo Agostinho e de Dominique Iogna-Prat a respeito do discurso de Pedro, o Venerável), aos termos utilizados (especialmente na discussão sobre o termo “albigense” feita por Jean-Louis Biget) e às relações do texto escrito com as práticas sociais (Michel Lauwers no capítulo sobre os sufrágios dos vivos). Essa orientação dialoga com a historiografia anglo-americana sobre as práticas da escrita com o tema da literacy.4

Outro elemento de coerência da obra está na escolha das fontes utilizadas pelos pesquisadores. Os estudos trabalham com os textos polêmicos dos séculos XI e XII, à exceção dos dois capítulos iniciais dedicados aos textos polêmicos da Antiguidade Tardia. As fontes desses capítulos iniciais, especificamente o Contra Faustum de Agostinho e o texto de Irineu de Lyon contra os gnósticos, têm como função explicar o método polêmico e lançar luz sobre as técnicas retóricas utilizadas. Eles servem como uma ferramenta para que se possa entender, mais à frente, o tipo de texto que se desenvolveu nos séculos XI e XII e cujas formas de argumentação são bastante semelhantes.

Por fim, os textos são guiados pelo título provocador da obra em forma de pergunta: Inventar a heresia? O capítulo que se atém de forma mais direta a essa pergunta é o de Jean-Daniel Dubois, mas a resposta – ou a pergunta – é o fio condutor de todos os autores. Numa organização que vai progressiva e quase que cronologicamente montando o quadro das heresias nos séculos que antecedem a Inquisição, cada autor procura demonstrar que o discurso sobre a heresia se constitui muito mais como uma construção discursiva – daí a ideia de invenção – do que uma realidade vivida.

Guy Lobrichon, por exemplo, demonstra a autenticidade do sínodo de Arras de 1025. Entretanto, ele comprova que a maneira como o manuscrito foi registrado e organizado em um dossiê, mais de um século depois, junto com outros documentos anti-heréticos, deturparam seu sentido original em nome de interesses e realidades da época da compilação. Zerner faz o mesmo com a edição de um tratado contra o herege Henrique, feita por Raoul Manselli nos anos 1950. A autora mostra que a edição, na verdade, une três documentos diferentes de épocas também diferentes e cria a falsa impressão de um dossiê anti-herético que jamais existiu para o caso de Henrique.

De forma mais direta, Michel Lauwers inicia seu texto já com a afirmação “A heresia é certamente o produto de um discurso forjado pela instituição eclesial”. 5 Além da ênfase na construção do discurso, Lauwers coloca outro tema que é uma constante do livro: a relação entre a institucionalização da Igreja e o combate à heresia. Lobrichon associa esse movimento anti-herético ao crescimento e fortalecimento dos cistercienses, hipótese também fortemente sustentada por Michel Rubellin e Jean-Louis Biget. Iogna-Prat, Zerner, Rubellin e Cursente enfatizam o processo da reforma gregoriana, particularmente o fortalecimento do poder papal, como um importante fator na “invenção” da heresia.

O elemento político também aparece de forma bastante clara, culminando com o caso relatado no último excurso, de Benoît Cursente, em que aquilo que seria possivelmente considerado como heresia em outras regiões da França ou mesmo da Itália na Gasconha foi dispensado como um incidente sujeito apenas a leves penas e multas e facilmente resolvido. Não interessava ao contexto político envolvendo o papa Inocêncio III e o rei João da Inglaterra que aquilo tomasse as proporções de uma heresia. O caso deveria “ser tratado com cuidado, como um abscesso local a cortar e não como uma metástase da peste herética a erradicar”. 6

Outro exemplo da interferência do fator político é o caso de Valdo, como discute Rubellin. Até o ano de 1183, Valdo teria sido um aliado do arcebispo de Lyon, inclusive com a simpatia do papa Alexandre III, o que permitiu que ele seguisse seus ideias religiosos livremente. Com a morte desses dois aliados, a eleição de um novo arcebispo cisterciense e o contexto senhorial da região, Valdo e seus seguidores foram expulsos de Lyon. No momento em que os interesses locais se transformaram, Valdo tornou-se uma ameaça em potencial e foi, então, tachado de herege.

Jean-Louis Biget também demonstra o quanto a “fraqueza relativa” do condado de Toulouse, envolvido em inúmeras guerras e disputas internas, favoreceu o desencadeamento da cruzada albigense de 1209. A existência e quantidade de hereges na região de Albi foram amplamente exageradas com o intuito de desviar as forças que ameaçavam a região. Além do contexto político, Biget destaca, novamente, que o espírito cisterciense teve papel fundamental na elaboração da noção dos albigenses como hereges.

Essa referência repetida ao papel de Cister na criação do discurso anti-herético nos séculos XI e XII também aponta para o elemento religioso e espiritual presente nesse movimento. Embora enfatizem o elemento político, os autores em nenhum momento eliminam o componente religioso da equação. Há questões de doutrina e crença envolvidas, mas elas são colocadas, na maioria das vezes, a serviço dos interesses de unificação e institucionalização da Igreja.

Os autores tampouco negam a existência de heresias. A afirmação da “invenção” da heresia se refere especificamente à maneira como a Igreja construiu a imagem delas, transformando-as em uma heresia, exagerando seu alcance e seu perigo, definindo o que era um comportamento herege, por fim criando uma imagem tão bem elaborada que orientou boa parte das pesquisas sobre heresias até os dias atuais. Essa postura dos autores também revela uma crítica à leitura literal, quase ingênua, da documentação por boa parte dos estudiosos.

Ela também tem o intuito de deixar claro que o contexto dos séculos XI e XII é bastante diferente daquele do século seguinte, com a instituição dos tribunais inquisitoriais. Iogna-Prat, em seu capítulo sobre o Contra Petrobrusianos, lembra que, a partir do século XIII, a heresia se torna algo impronunciável. Não é mais o momento de polemizar, argumentar. O tom dos textos muda radicalmente. Com a Inquisição e o estabelecimento da heresia como crime de lesa-majestade passa-se do plano judiciário ao mais discursivo.

E foi nesse contexto da Inquisição que a maioria dos dossiês e tratados anti-heréticos foi compilado. Com isso, criou-se a falsa impressão de que as heresias, particularmente aquela denominada genericamente de “cátara”, explodiam já nos séculos XI e XII e exigiam empreitadas maciças para combatê-las. Sem uma análise criteriosa da documentação através dos elementos da crítica documental, corre-se o risco de ver nesses documentos uma expressão da realidade e não uma construção discursiva que cria uma realidade.

É ao trazer essa abordagem crítica e nova de fontes já conhecidas (é importante ressaltar que as fontes utilizadas são já estudadas, muitas delas editadas) que a obra organizada por Monique Zerner se mostra um elemento fundamental para o avanço dos estudos sobre as heresias na Idade Média. Além disso, os textos mesclam um caráter bastante didático – explicando os contextos e fornecendo dados biográficos e históricos para o leitor não tão familiarizado – com um tom altamente erudito – apresentando citações originais em latim, trazendo em anexos trechos dos documentos trabalhados e fazendo uma discussão teórica e metodológica muito aprofundada.

O Posfácio não é tanto uma conclusão quanto um apanhado geral da obra, ressaltando e resumindo alguns dos pontos mais importantes discutidos. Robert Ian Moore, ele próprio um grande contribuinte para o estudo das heresias,7 destaca que esse livro é apenas o começo, mas um começo de extrema importância para que se escreva de novo a história das heresias nos dois séculos que antecedem a cruzada albigense. Monique Zerner aponta para estudos e edições em andamento que poderão trazer novas interpretações. Espera-se que a tradução dessa obra para o português ajude os estudantes medievalistas brasileiros a se inserirem nesse debate historiográfico tão atual e significativo e quem sabe trazer, eles também, contribuições futuras. Reutilizando Duby a partir de Monique Zerner – que foi sua aluna – “A história continua”.8

1 Entre seus trabalhos estão: La croisade albigeoise. Paris: Gallimard, 1979; Le cadastre, le pouvoir et la terre:le comtat venaissin pontifical au début du XVe siècle. Rome: Ecole française de Rome, 1993; (org.). L’histoire du catharisme en discussion:le concile de Saint-Félix, 1167. Nice: Centre d’études médiévales, 2001.
2 ZERNER, Monique. Introdução. In: Inventar a heresia? Discursos polêmicos e poderes antes da Inquisição. Campinas/São Paulo: Unicamp, 2009, p.7.         [ Links ]
3 MOORE, Robert Ian. Posfácio. In: Inventar a heresia?, p.279.
4 Zerner aponta, particularmente, para os estudos de Brian Stock.
5 LAUWERS, Michel. Os Sufrágios dos vivos beneficiam os mortos? História de um tema polêmico (séculos XI-XII). In: Inventar a heresia?, p.163.         [ Links ]
6 CURSENTE, Benoît. Um Caso de não Heresia na Gasconha no ano 1208. In: Inventar a Heresia?, p.273.
7 Sua mais importante obra é MOORE, Robert Ian. The formation of a persecuting society: power and deviance in western Europe, 950-1250. Oxford: Blackwell Publishers, 1987,         [ Links ] na qual já apresentava a ideia da heresia como uma “criação” vinculada ao desenvolvimento e fortalecimento das autoridades eclesiásticas.
8 Citado por ZERNER, Monique. Introdução. In. DUBY, Georges. L’histoire continue. Paris: Poches Odile Jacob/Points/Seuil, 1991, p.13.         [ Links ]

Carolina Gual da Silva – Mestre em História Social pela USP. Doutoranda em História – Unicamp/Ecole de Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris – Bolsista CNPq/CAPES Departamento de História/IFCH Cidade Universitária Zeferino Vaz Distrito de Barão Geraldo -13083-896 – Campinas – SP carolgual@hotmail.com/gual.carolina@ehess.fr.

La humanitas hispana – GIBERT (VH)

GIBERT, Javier García. La humanitas hispana. Sobre o humanismo literário em Siglos de Oro. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2010, 239 p. Resenha de: GILES, Ana Inés Rodríguez. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

La humanitas hispana visa completar a pesquisa sobre o humanismo espanhol, deficiente entre os interesses dos estudiosos. Neste livro, J. García Gibert expõe uma defesa meticulosamente justificada do humanismo espanhol, no contexto da corrente européia. Como o autor distingue o movimento ibérico do movimento continental, por argumentar que o primeiro não rompeu com o passado como os movimentos franceses ou italianos, ele analisa o debate historiográfico sobre esse assunto. Ele também distingue o humanismo espanhol do europeu, porque o primeiro buscou popularizar o conhecimento, enquanto os humanistas de outras regiões não o fizeram, como enfatiza ao longo do livro. O autor também analisa outras diferenças, como as influências mútuas entre o movimento nacional e o continental,

García Gibert encontra duas dificuldades que tentam resolver ao longo do livro, que dizem respeito à possibilidade, em termos ideológicos, de a cultura espanhola ter um humanismo renascentista e se foi preparado o aspecto linguístico. A primeira parte é resolvida pelo autor, afirmando que havia uma lenda negra sobre a Espanha, que ele não aceita, enquanto analisa esse debate histórico. Ele afirma que o humanismo espanhol era diferente porque não destruía os aspectos que faziam parte de uma herança, mas poderia ser construído a partir deles, tendo métodos e procedimentos errados, mas as intenções humanísticas e seguindo os aspectos formais, que estão relacionados com o segundo problema e resolve dessa maneira.

García Gibert analisa diferentes livros e corpus, movimentos ou escritores particulares, separando forma e função do discurso. Ele compara os autores espanhóis, mas também inclui escritores de outros países europeus. Ao longo deste livro, podemos encontrar muitas análises sobre literatura espanhola e algumas biografias intelectuais também. Também podemos encontrar um estudo iconográfico extremamente interessante, no qual ele examina a função dos livros nas esculturas funerárias espanholas, através das variações das posições dos corpos mentirosos, prestando atenção ao volume que estão carregando. Este estudo é útil para analisar a mudança na importância da literatura para nobres e clérigos, e é muito interessante do ponto de vista metodológico.

O autor chama especialmente sua atenção para a questão da Reforma Católica e defende as possibilidades de um desenvolvimento do humanismo consagrado nesse movimento, contra a possibilidade de um protestante. Ele conclui que não podemos distinguir entre o humanismo renascentista e a mente pós -identista, que o influenciou e incentivou na Espanha.

Sobre esse problema, García Gibert revisa a discussão sobre a influência da Inquisição no movimento humanista. O autor afirma que, apesar de a Inquisição expurgar livros e incomodar numerosos intelectuais, despertou o espírito dos escritores, que conscientizaram a importância de suas mensagens. O autor se refere à clareza das regras e proibições nessa redução da intervenção da Inquisição no movimento intelectual espanhol. Essa defesa significa que os acusadores foram responsabilizados pelas dificuldades que os intelectuais experimentaram. O autor conclui que o pensamento contra-reformista espanhol não foi restringido por agentes repressivos externos, além disso, o renascimento espanhol se espalhou pela península e influenciou a contra-reforma,

Duas idéias prevalecem ao longo do livro: livre arbítrio e decepção. Quanto ao primeiro, podemos encontrar muitas referências ao longo deste estudo, relacionando o trabalho de muitos autores – como ele faz na interessante comparação entre Alonso de Cartagena, Marqués de Santillana e Juan de Mena – a esse conceito. As referências à decepção são ainda mais interessantes e são colocadas no século XVII do humanismo espanhol, desde que entendidas como uma reação psicológica a uma situação histórica específica. Ele encontra aqui a forma do ceticismo na Espanha durante esse período, enquanto em outros lugares lançou as bases para a revolução científica e filosófica. O pensamento espanhol não teria se interessado particularmente nessas áreas de conhecimento, como em assuntos místicos.

O aspecto mais fraco deste livro é a idéia que se refere à “alma nacional” espanhola, onde o autor encontra uma justificativa romântica para esse fenômeno: a falta de interesse do pensamento espanhol na pesquisa científica expressaria sua lealdade a uma longa tradição filosófica focado em assuntos espirituais. A idéia da alma espanhola foi proposta em seu tempo, mas finalmente discutida e abandonada pelos historiadores.

No entanto, o livro tem outras idéias originais. É o caso do estudo mais destacado deste livro, que diz respeito ao conceito de analogia. O autor analisa como o ser humano tem sido considerado um centro analógico por meio de um mecanismo que possibilitou superar a distância entre o finito e o infinito de tal maneira que essa ideia incorporou a noção de transcendência.

O autor também encontra algumas particularidades nesse humanismo relacionadas ao desenvolvimento do erasmismo na Espanha e à ausência de discussão entre propostas clássicas e modernas. Dessa forma, ele introduz a importância do idealismo e do realismo na literatura renascentista espanhola, mas também a importância do pensamento escolástico como uma particularidade do movimento.

Por fim, García Gibert analisa o trabalho dos principais escritores do período barroco, atendendo aos diferentes paradigmas que eles levantaram: Cervantes e liberdade; Quevedo e o potencial aprimoramento moral do ser humano – levando em conta seu livre arbítrio e a importância da cultura escrita para atingir esse objetivo -; Baltasar Gracián, cujo projeto humanista é considerado pelo autor como o mais representativo do movimento barroco espanhol, enquanto o mais característico da mente contra-reformista. A partir da análise da obra deste escritor, o autor traz à discussão a questão da “discrição” e o conceito de “pessoa”, considerando a humanidade como um conceito cultural: se o artifício é o estigma da imperfeição humana, então,

As idéias colocadas por García Gibert tornam este livro uma leitura particular que pode surpreender os estudiosos por causa de sua transgressão, mas também as novas maneiras de ler a literatura clássica, considerando-a formar conceitos que não eram usuais não apenas neste período, mas também para historiadores, misturando eles com alguns outros conceitos que já foram abandonados pela historiografia.

Ana Inés Rodríguez Giles – Centro de Estudos de História Social Européia / Instituto de Pesquisas em Humanidades e Ciências Sociais (UNLP – CONICET). Faculdade de Humanidades e Ciências da Educação (FaHCE). Universidade Nacional da Prata (UNLP). anarodriguezgiles@hotmail.com.

Por uma história do político – ROSANVALLON (VH)

ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa Editorial, 2010, 101 p. Resenha de: SANTOS, João Batista Ribeiro. Varia História. Belo Horizonte, v. 28, no. 47, Jan./ Jun. 2012.

A história filosófica e a história conceitual são âmbitos das proposições enunciadas sobre o político e sobre a política. O autor, Pierre Rosanvallon, tem por objetivo historicizar os últimos decênios de estudo do político.

O livro começa com o artigo que apresenta Pierre Rosanvallon, “A democracia como problema: Pierre Rosanvallon e a Escola Francesa do Político”, escrito por Christian Edward Cyril Lynch. Nesse artigo a obra teórica e a vida acadêmica de Rosanvallon, suas influências, importância e, sobretudo, seu debate nos domínios do político são apresentados tendo por intuito facilitar ao leitor o acesso à história do político.

Christian Edward afirma que o estudo da teoria política foi colocado à margem, como “idealista e elitista” pela humanitas, representada pelas histórias social e das mentalidades, mas também pelo marxismo; mesmo no século XX, após a Primeira Guerra Mundial, a história do político, como estudo acadêmico, foi tida como “anedótica e individualista”. Poderia mencionar que o resgate da história política só acontece destacadamente com Reinhart Koselleck e John A. Pocock.

É nessa época que os teóricos da história do político reagem aos seus adversários, mormente com René Rémond1 e seu livro, Por uma história política. Rémond postula “a renovação da história política a partir da multidisciplinaridade”; nesse sentido, alarga os domínios do político e busca dialogar com as várias disciplinas das ciências humanas e sociais, sem negar ao político a sua capacidade de arbitrar os conflitos. Entretanto, quem define o conceito de político são os pesquisadores do Centro de Pesquisas Políticas Raymond Aron, do qual Rosanvallon participou desde o início.

O artigo procura demonstrar a importância de Alexis de Tocqueville (1805-1859) para a teoria política e para as pesquisas coetâneas realizadas na França, destacando a sua compreensão da democracia como regime político moderno capaz de fornecer ferramentas adequadas para a igualdade de condições entre os cidadãos, a democracia como opção frente ao desaparecimento da ordem aristocrática e o retorno ao liberalismo através da democracia. Estes três eixos de Alexis de Tocqueville fizeram parte da historiografia dos pesquisadores do Centro Aron. Christian Edward procura ainda delimitar as ações e influências de François Furet e Claude Lefort sobre a obra de Rosanvallon. Esclarecedor do pensamento daqueles dois mestres é a trajetória de Furet e Lefort, da esquerda marxista ao liberalismo conservador pensado por Raymond Aron, seja por decepção política, seja por virada ideológica da maturidade científica – sendo ambos críticos da “experiência soviética”. É importante salientar que Claude Lefort entendia que o político é anterior ao social; seguindo esse raciocínio, eu diria que o político arquiteta o âmbito social.

O artigo de Christian Edward demonstra que Rosanvallon sente-se seguro para retomar seu objetivo inicial, ou seja, reconstruir a teoria geral da democracia; é nesse contexto que o autor do artigo o situa como historiador do político. Demonstra mais espanto por não compreender o motivo que levou Rosanvallon a trocar, na aula inaugural no Colégio de França em 2002, em sua abordagem historiográfica, a qualificação “filosófica” por “conceitual”. Também o autor do artigo não se dá conta que quando Rosanvallon afirma que “a tarefa do historiador é a de tentar restituir ao passado sua dimensão de presente”2 está, possivelmente, dialogando com Reinhart Koselleck,3 o Koselleck de Futuro passado.

Politicamente discordo dos postulados liberais, mas leio com agrado a exposição concisa da trajetória do pensador do político Pierre Rosanvallon, que “define o mundo da política como segmento do mundo do político, operado pela mobilização dos mecanismos simbólicos de representação”.4

No ensaio “Por uma história filosófica do político”, Pierre Rosanvallon faz um balanço, como acadêmico engajado, pelo “retorno do político”. Analisa a história filosófica do político, trazendo ao centro do debate a questão da democracia, mormente o sufrágio universal. Considera que até a década de 1960 a divisão ideológica serviu para preparar a qualificação intelectual para o debate entre marxistas e liberais. A qualificação se deu também em relação à metodologia da filosofia do político quanto ao entendimento dos problemas das sociedades contemporâneas. Na definição dessa história, Rosanvallon recorre mais uma vez a Claude Lefort: o político é “o conjunto de procedimentos a partir dos quais desabrocha a ordem social”,5 unindo assim o político e o social. E para tanto, para pensar a sociedade, Rosanvallon declara juntar textos clássicos a obras menos nobres, cujo objetivo precípuo é fundamentar uma abordagem e um conteúdo originais no campo da história filosófica do político – consciente das objeções suscitadas, cuja voz mais potente é a de Roger Chartier.

Na aula inaugural proferida no Colégio de França, cujo título é “Por uma história conceitual do político”, era de se esperar que Rosanvallon justificasse a mudança de abordagem do político entre história filosófica e história conceitual. Eis aqui algo que merece crítica. Por essa razão, justifico a menção a um possível diálogo entre Pierre Rosanvallon e Reinhart Koselleck. Para o pesquisador alemão, conceito é ferramenta para realizar uma história dos conceitos, mas que também se preocupa com a modernidade, tendo esta como fundamento da democracia. Por outro lado, em síntese, Rosanvallon faz história conceitual do político, e logo define o seu conceito de político: “compreendo o político ao mesmo tempo a um campo e a um trabalho“.6 Como campo o político abarca os âmbitos sociais dos seres humanos; como trabalho, movimenta-se nos contextos vitais, nas atividades que tornam a polis uma comunidade viva. Notem que o conceito quase se assemelha à filosofia do político.7 Talvez isso o possibilite a permanecer no campo do político. Assim, Rosanvallon pôde teorizar sobre a democracia como fundamento da modernidade, ainda que a considere “uma solução problemática” na constituição de uma polis de cidadãos. Ao que parece, não é apenas a democracia que é considerada problemática, mas também o povo; como o sufrágio universal institui a igualdade política, o povo é considerado conflituoso. Deter-me-ei agora em duas questões historiográficas.

A história do político distingue-se então, pelo próprio objeto, da história da política propriamente dita. Além da reconstrução da sucessão cronológica e dos acontecimentos, esta última analisa o funcionamento das instituições, disseca os mecanismos de tomada de decisões públicas, interpreta os resultados das eleições, lança luz sobre a razão dos atores e o sistema de suas interações, descreve os ritos e símbolos que organizam a vida. A história do político incorpora evidentemente essas diferentes contribuições. Com tudo o que ela acarreta de batalhas subalternas, de rivalidades de pessoas, de confusões intelectuais, de cálculos de curto prazo, a atividade política stricto sensu é, de fato, o que ao mesmo tempo limita e permite, na prática, a realização do político. Ela é ao mesmo tempo uma tela e um meio.8

Muito esclarecedora a definição acima, a menos que se confronte a consideração acerca do povo, conflituoso, por um lado, quando considerado “nós”; mas quando visto inserido na democracia, legitimado pelo sufrágio universal, torna-se detentor do poder. Concomitantemente, o autor alude a “ficções jurídicas” arroladas ao desenvolvimento das convenções para “assegurar uma igualdade de tratamento e de instituir um espaço comum para homens e mulheres que são, contudo, bastante diferentes entre si”9. E esta é a segunda questão. Pierre Bourdieu destacou que o campo político é um campo de força e que a tarefa dos líderes, nesse caso, seria obter a adesão dos cidadãos. Como o fictício não é nem verdadeiro nem falso (Carlo Ginzburg), quais as mudanças que podem ocorrer na “comunidade” e em que medida? Rosanvallon poderia se considerar com mais um problema de conceito para resolver. Quanto ao pessimismo com relação à democracia, Rosanvallon traz consigo, como apoio argumentativo, Aleksandr Issaievitch Soljenitsyn e, mais uma vez, a crítica ao bolchevismo. No entanto, mesmo para quem prefere endurecer mais contra o que se seguiu a Vladimir Illitch Ulianov Lenin ao nazismo, a democracia não deveria ser tão ruim. Não obstante, por fim chega Marcel Mauss, “nenhuma lentidão é suficiente; em matéria de prática, não se pode esperar”.10 A prática é um risco, sem falácia.

Enfim, Pierre Rosanvallon atinge tanto o objetivo historiográfico quanto, especificamente, conceitual, e insere as suas pesquisas nos debates contemporâneos sobre a história do político, mormente quando analisa a prática política no âmbito do político.

1 RÉMOND, René. Por uma historia política. Rio de Janeiro: FGV, 2003.         [ Links ]
2 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.34.
3 KOSELLECK, Reinhardt. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/ Editora PUC Rio, 2006         [ Links ]
4 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.30.
5 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.41.
6 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.71.
7 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.78.
8 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.78.
9 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.82.
10 ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político, p.100.

João Batista Ribeiro Santos – Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), mestrando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), pesquisador-bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). jj.batist@gmail.com.

Measuring the New World – SAAFIER (VH)

SAFIER, Neil. Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul. Chicago: University of Chicago Press, 2008, 387p. Resenha de: COLACIOS, Roger Domenech. Varia História . Belo Horizonte. v. 27, n. 46, jul / dez. 2011.

Qual o formato do mundo? Seria achatado ou inchado nos polos? Este questionamento provocou um debate científico entre inglês e francês no século XVIII, os primeiros a entender a posição de Isaac Newton de um planeta achatado em suas extremidades, os últimos favoráveis ​​à argumentação de René Descartes dos polos inchados. Como resolver este problema? Um fim de realizar medições que comprovaram uma outra teoria, expedições científicas foram enviadas, em 1737, para duas partes do mundo: uma para Quito, na América Espanhola, com Louis Godin, Pierre Bouguer e Charles-Marie La Condamine, e outra para a Lapônia, liderada por Pierre-Louis Moreau de Maupertuits. Ao final, segundo os savants envolvidos na controvérsia, Isaac Newton estava correto.

Este é o pano de fundo do histórico Neil Safe em  Medindo o Novo Mundo: Ciência do Iluminismo e América do Sul , publicado em 2008 e ainda sem edição no Brasil. Uma disputa entre academias que levou seus membros a partir de uma pesquisa de comprovação de teorias e hipóteses com respeito à circunferência do mundo. Mas este não é o foco principal da obra: sua análise está voltada para os resultados desta expedição científica para o Novo Mundo, com os desdobramentos do trabalho e a apropriação do conhecimento adquirido junto aos “nativos” (indígenas, mestiços e espanhóis), que, assimilados e transformado pelos europeus, ganhou novo sentido, perdendo a identificação de suas origens mistas.

A problemática de Safier está direcionada para duas questões: o que foi alterado na prática das ciências empíricas quando esta mudou de local de atuação – no caso da Europa para o Novo Mundo? E também o que foi alterado nos locais por onde estes cientistas passaram? Esses questionamentos são respondidos por Safier tendo como ferramenta de análise o que chamou de intercâmbios e plataformas transnacionais na construção do conhecimento científico a partir de dois vieses: 1) transformação do conhecimento obtido, adaptando-o aos padrões europeus em seu sentido estético, seja textualmente ou cartograficamente; 2) apropriação do conhecimento obtido e sua incorporação (devidamente transformado) no corpus científico europeu, pelo valor (commodities) na economia do saber, uma forma de apagar o que foi feito anteriormente e controlar desta forma os discursos acumulados.

O autor monta um palco onde diversos atores promovem a interação e o intercâmbio de conhecimentos científicos entre áreas transnacionais com a intenção de compreender a trajetória do conhecimento adquirido na viagem extraeuropeia de La Condamine. A estratégia narrativa segue a mesma lógica em todo o texto: inicia os capítulos e a introdução utilizando um recurso teatral, no qual monta um cenário onde insere os protagonistas que irá analisar na sequência. A partir da cena enquadrada, faz a contextualização dos fatos centrais ou das trajetórias dos objetos científicos gerados com as expedições (como mapas e livros), associando essa estratégia às negociações entre os atores principais; neste caso, trabalha com os elementos não-normativos, mais voltados para questões políticas e de interesses pessoais.

Essa estratégia faz o autor beirar a ficção literária em sua escrita, mas logo na continuação do texto aparece o problema que pretende responder e/ou a chave-interpretativa – o trabalho de transformação estética e textual, nas modificações e seus sentidos, e demais assuntos internos da apropriação de um saber ou de um objeto pelos cientistas europeus -colocando, assim, a análise histórica em primeiro plano. Um jogo de cena, onde os atores envolvidos, sejam eles cientistas ou não, desempenham papéis na trama que está sendo montada: a obtenção de conhecimento a partir de métodos científicos europeus e com a associação da experiência nativa. As práticas científicas são colocadas num espaço socialmente ocupado, embora com características diferentes das encontradas na Europa, mostrando as ciências como circunscritas pela sociedade e como uma encenação material.

As fontes do autor são variadas: livros, mapas e cartas. Não somente de La Condamine, mas de muitos outros atores que estiveram envolvidos na trama de Safier, ou participaram indiretamente, como Humboldt e suas impressões, mais de cinquenta anos depois, do local onde foram realizadas as medições da circunferência terrestre. Suas fontes são o material produzido por vários atores nativos ou europeus e suas consequentes modificações no terreno da Europa.

O recorte histórico de Safier não é preciso. Navegando por meados da metade do XVIII, apresenta apenas o momento inicial, especificamente a partir de 1739, quando uma peça teatral (que dá o mote ao trabalho de Neil Safier) foi encenada na Vila de Tarqui, local dos trabalhos dos cientistas europeus no Novo Mundo. Uma montagem na qual os nativos representam os cientistas, com seus instrumentos e toda a estrutura gestual particular do trabalho científico. Esta pantomima, como entende Safier, teria enchido os olhos de La Condamine, tanto por ter sido homenageado pelos nativos, quanto pela reprodução exata de suas atitudes e gestos. Mas a pergunta do autor que segue a esta descrição do teatro é o ponto principal para a compreensão de seus objetivos no livro: Qual o sentido desta representação, tanto para os europeus quanto para os nativos?

Para responder a esta questão, o movimento narrativo feito por Safier passa por três estágios de interação e apropriação do saber: material, visual e textual. Procurando descrever e analisar a transformação do conhecimento, o primeiro movimento parte da construção de um marco: as Pirâmides de Yaruqui, um monumento para a perpetuação do saber. Essas esculturas, erguidas pelos nativos a partir da ideia de La Condamine, representaram quando finalizadas apenas o papel dos europeus na empreitada. Quando os cientistas as descreveram na Europa foram apagados os laços com os seus construtores braçais, diluindo a interação no campo material entre dois espaços: as pedras e braços do Novo Mundo e a realização intelectual dos savants europeus. As pirâmides erguidas nos dois locais de medição da circunferência do mundo seriam, numa primeira análise e justificativa de La Condamine, a demarcação dos pontos utilizados como referências geodésicas para quando fosse necessária a verificação dos resultados ou a realização de novos trabalhos.

O segundo movimento vem da transformação visual desta interação entre dois espaços distintos, mediante a construção de mapas do Novo Mundo. O capítulo quatro, Correcting Quito, representa este movimento, trazendo a análise do processo de constituição de mapas (Carta de La Província de Quito – 1750) produzidos nos ateliers de artistas e gravadores na França, sob a tutela de D’Anville. Essas representações cartográficas foram baseadas nas anotações de Pedro Maldonado, que participou de expedições com La Condamine, com a consequente adaptação aos requisitos estéticos da Europa e a perda da identidade autoral, com a inclusão de vários autores, mas terminando com La Condamine como o principal.

O último movimento, a apropriação textual, tem como exemplo o capítulo seis, “Incas in the King’s Garden“, no qual Neil Safier trabalha com uma das diversas traduções da obra de Garcilaso de La Vega sobre a cultura e história Inca. A análise do autor utiliza a versão francesa, reorganizada como um livro de História Natural e, principalmente, apropriada pelo Jardin du Roi para promover a “instituição” e a sua importância na introdução de novas espécies alimentícias na França.

A obra de Neil Safier apresenta uma assimetria. Apesar de sua intenção, ele não promove plenamente a interação do conhecimento entre os espaços transnacionais, pois toda a análise é baseada em textos e representações gráficas europeias. É pela narração de La Condamine que o autor descreve a encenação indígena, pelas cartas trocadas entre D’Anville e La Condamine que irá compreender as manipulações cartográficas. A obra de Garcilaso é modificada apenas por europeus, por exemplo. O olhar do autor é assimétrico, tendo em vista que o filtro é proveniente apenas de um lado da balança, o de cima, europeu. Não temos a palavra direta do outro lado. Em alguns momentos aparece um contexto híbrido, com a presença das correções (muitas não efetuadas) de Maldonado, ou a descrição (embora breve) do livro de Garcilaso. O seu foco de fato é a obra e a figura de La Condamine, as táticas e estratégias deste na própria modelação como um renomado membro da Academia de Ciências da França e, consequentemente, como um savant de sua época. Portanto, são as apropriações deste ator das transformações, das interações e do “esquecimento” que proporcionam, na utilização dos saberes de outro contexto social, outro espaço de criação de conhecimento, o Novo Mundo.

Essa assimetria, entretanto, não tira o mérito do livro. A obra deve ser colocada junto às demais da historiografia sobre esta transposição de saberes entre espaços, antes entendidos na clivagem entre centro e periferias, e agora como núcleos diversos de produção de conhecimentos e ciências. Neste sentido, a obra de Neil Safier, somada aos trabalhos de Kapil Raj sobre as trocas entre ingleses e indianos e também Jorge Cañizares-Esguerra quanto ao papel “esquecido” dos países ibéricos na constituição das ciências modernas na Europa, traz novos aspectos das colonizações europeias, as suas interações com os nativos, sejam autóctones ou colonos.

Roger Domenech Colacios – Doutorando em História Social – FFLCH / USP. Av. Luciano Gualberto, 315, CEP: 05508-900. Cidade Universitária, São Paulo-SP / Brasil. rdcolacios@usp.br .

Portugal em transe. Transnacionalização das religiões afro-brasileiras: conversão e performance – PORDEUS JÚNIOR (VH)

PORDEUS JR. Ismael de A. Portugal em transe. Transnacionalização das religiões afro-brasileiras: conversão e performance. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2009, 168 p. Resenha de: SANTOS, Milton Silva dos. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 46, Jul. /Dez. 2011.

Os portugueses, assim como os brasileiros, estão familiarizados desde antanho com rezas, mezinhas, bruxedos, simpatias, previsões, promessas, ex-votos e toda sorte de amuletos capazes, creem muitos, de afastar malefícios e infortúnios. Isto bastaria para evitar o assombro a quem recebesse a inédita notícia de que na terra de Camões também há diversos terreiros (ou “macumbas”, diriam outros sem pudor) frequentados por lusitanos em busca de auxílio espiritual e alívio dos estados de aflição causados pela modernidade secular. Este é o cenário de Portugal em transe, livro publicado por Ismael Pordeus Jr., professor titular aposentado da Universidade Federal do Ceará e autor dedicado, há mais de quinze anos, ao estudo da expansão transnacional dos cultos afro-brasileiros nos países da Europa e, principalmente, em Portugal, “onde esse fenômeno encontra-se intrinsecamente relacionado [num primeiro momento histórico] com a migração, sobretudo a migração feminina portuguesa” (p. 9).

Desde então os lusitanos têm multiplicado o número de terreiros onde é possível vivenciar experiências antes desconhecidas, como, por exemplo, a “técnica do transe” mediúnico e suas variadas performances nos cultos afro-brasileiros transnacionalizados para Portugal. Daí o título do livro, que também pode remeter-nos à adoção de formas culturais em “mouvance“, de religiões que pululam na modernidade contemporânea, movimentando e instalando-se em diferentes países. Isso vem ocasionando não só a recomposição do campo religioso português, como também o solapamento do catolicismo, que agora divide espaço com outras orientações religiosas, incluindo as redes neopentecostais brasileiras também de olho nas aflições alheias.

Baseado numa etnografia híbrida e dialógica (Mikhail Bakhtin e Hommi Bhabha), na interpretação e não na explicação (James Clifford) e no intercâmbio entre observador e observado (Vincent Crapanzano), Pordeus Jr. abre espaço aos discursos dos próprios convertidos1 e procura encontrar, nas histórias de vida e nos relatos de conversão, o motivo para a adoção de uma religião oriunda de outro país. Seu universo de pesquisa é composto por aproximadamente vinte terreiros, percorridos ao longo de várias estadias entre os portugueses; a última delas, ocorrida entre 2005 e 2007, originou a publicação ora apresentada. A fim de analisar as formas de atuação religiosa dos novos convertidos, ele evoca Victor Turner e propõe duas categorias, que podemos chamar de descritivas e analíticas. A primeira delas é a performance do tipo “communitas” que resulta em comunidades de adeptos dispostos a receber e a incorporar “um sistema de significados” e “a construir e disciplinar uma identidade comunitária dentro dos valores” peculiares aos cultos luso-afro-brasileiros (p. 27). A segunda é a performance “anticommunitas“, estritamente mágico-religiosa e individual, dos pais e mães-de-santo portugueses e brasileiros que vão a Portugal, por curta temporada, veicular seus serviços especializados em jornais locais e atender suas clientelas nas casas de parentes consanguíneos e/ou religiosos, bem como em espaços alugados para consulta espiritual. Ao contrário da primeira, a segunda categoria não cria comunidades religiosas baseadas em laços sociorreligiosos.

A partir desse quadro teórico-metodológico delineado no capítulo um (e retomado no final do segundo) é possível acompanhar os depoimentos, identificando neles as performances “de todos aqueles que dizem e fazem as religiões luso-afro-brasileiras em Portugal” (p. 15). Dentre esses performers encontram-se Fernanda e Georgete, as “irmãs precursoras” da “nova religião”, e Mãe Virgínia Albuquerque, que fundou a primeira “casa luso-afro-brasileira com certeza”2 em 1974, ano em que a “Revolução dos Cravos” pôs fim à ditadura de Marcello Caetano, sucessor de Salazar. Essas três mulheres emigraram para o Brasil em meados de 1950, mas retornaram para Lisboa, duas décadas depois levando, na bagagem, a umbanda, “uma religião brasileira”.3 Seus relatos de conversão, assim como os depoimentos de suas filhas-de-santo portuguesas, são muito semelhantes. Através de parentes, amigos, anúncios de jornal, etc., elas acorreram aos terreiros a fim de solucionar problemas familiares, espirituais ou “dificuldades de saúde em consequência dos guias” (p. 33).

Além dessas sacerdotisas pioneiras, existem outros pais e mães-de-santo que atuam “além de Lisboa”, ou seja, em Sintra, Mafra, Cadaval, Coimbra, Porto e noutras cidades. Seus depoimentos reunidos nos capítulos três e quatro evidenciam, pode-se dizer, a segunda fase de expansão dos cultos luso-afro-brasileiros, que ocorreu, mais intensamente, na última década do século passado, período no qual alguns brasileiros desembarcaram em Portugal e lá se instalaram como sacerdotes. Dentre os brasileiros ouvidos por Pordeus Jr. estão o cearense Pai Cláudio – “Terreiro de Umbanda Caboclo Nharauê”, fundado em 2002 -, que se diz responsável por uma “rede” de três terreiros, sessenta médiuns e cerca de “200 filhos e filhas de fé” (p. 73); o pernambucano Pai Arnaldo, que viveu em Madrid (Espanha), onde dirigia um terreiro de candomblé e jurema, antes de migrar e fundar um novo terreiro na cidade portuguesa de Cadaval; o “juremeiro” Josenildo, também natural de Pernambuco, amigo e auxiliar de Pai Arnaldo; e a Mãe Virgínia de Mafra, natural do Espírito Santo, a única mãe-de-santo de nacionalidade brasileira encontrada pelo autor, dirigente da “Casa de Caridade Maria de Nazaré”, inaugurada em 2007. Outros terreiros também foram fundados na mesma década em que Portugal promulgou, em 2001, a Lei de Liberdade Religiosa.

Se os processos de transnacionalização afro-religiosa comportam “a criação e não simplesmente a repetição” (p. 141), no penúltimo capítulo da obra é possível conhecer a primeira “entidade genuinamente portuguesa”, o Marinheiro Agostinho, um marujo nascido numa localidade perto de Peniche, uma tradicional região de pesca portuguesa. Incorporado numa sessão dirigida por Pai Cláudio, performance cambaleante e típica de alguém não habituado à terra firme, Agostinho narra sua biografia de pescador e fala de suas viagens pelo Brasil durante uma longa “entrevista (…) entrecortada de risos” (p. 144). Diz que nasceu em 1874 e que morreu no mar, naufragado no álcool. Aliás, a bagaceira, “líquido de ouro”, do lado de lá, e a cachaça, o rum ou a cerveja, do lado de cá, são bebidas rituais sem as quais a “linha” da marujada ébria não trabalha. Antes de “subir” ou morrer, Marinheiro Agostinho já havia conhecido o catimbó (culto afro-ameríndio) em Sergipe e a umbanda, tendo sido doutrinado para “trabalhar no astral” (p. 144).

Tal criatividade pode provocar a ampliação e a reordenação do panteão de entidades cultuadas cujos perfis imitam ou se aproximam dos perfis sociais de alguns personagens e tipos populares e regionais, como o marujo Agostinho. Certas ressemantizações ou adaptações estimulam a aceitação das religiões afro-americanas em países cujas populações reconhecem nos guias e orixás os atributos associados aos santos da Igreja. Esse é um dos caminhos para se compreender a adesão transnacional aos cultos afro-brasileiros, conforme revela Pordeus Jr. no conclusivo capítulo sete.

Graças às pistas que abre, é inevitável sair deste “ensaio”, conforme define seu autor, sem interrogações. A propósito, convém perguntar: em razão das disputas por espaço e reconhecimento na esfera pública, as performances “communitas” dos pais e mães-de-santo portugueses vêm originando laços de solidariedade extrarreligiosa entre os seguidores e as casas de culto? Como os peregrinos-convertidos interpretam o processo de conversão? Se sentem abrasileirados e/ou africanizados pela fé? Será que estão adotando as novas religiões e descartando as identidades religiosas herdadas através das gerações? Ou se posicionam como dúplices religiosos, isto é, indivíduos que optam pelo continuum, conjugando, na vida cotidiana, as cerimônias católicas e os ritos de terreiro?

Se considerarmos especialmente o quinto capítulo onde o autor descreve as “interritualidades” da “linha das capelas”4 e do rito do “lava-pés”,5 podemos concluir que os portugueses em transe estão compatibilizando, aqui e ali, diferentes sistemas de crenças cada vez mais procurados e acessíveis no luso mercado de bens mágico-religiosos.

Em se tratando de acessibilidade, no caso desta edição – de fácil leitura e atraente tanto para especialistas em história, antropologia e ciências da religião quanto para os demais leitores interessados nos trânsitos religiosos entre Brasil e Portugal – há um glossário de termos religiosos, entre os quais a curiosa e lusitana expressão “bruxedo da intrusa”. A edição ficaria ainda mais interessante se reunisse imagens do trabalho de campo, ou melhor, dos terreiros visitados, das cerimônias públicas observadas, etc., e dos adeptos-narradores para os quais a obra foi dedicada.

1 Cit. HERVIEU-LÉGER, Danielle. A religião despedaçada: reflexões prévias sobre a modernidade religiosa. In: O peregrino e o convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008, p.31-56. Pordeus Jr. baseia-se em dois modelos descritivos ideais, a saber: o peregrino, que trilha um caminho espiritual individual, e o convertido, que escolhe a sua própria família e pertença religiosas. Em se tratando das religiões luso-afro-brasileiras, ele funde os dois modelos e propõe um terceiro, o do peregrino-convertido. Este, vindo “de outras práticas religiosas, passa por experiências em outros credos, deambula no campo religioso e converte-se a uma religião onde encontraria uma resposta para os seus problemas”. HERVIEU-LÉGER, Danielle. A religião despedaçada: reflexões prévias sobre a modernidade religiosa, p.68.
2 PORDEUS Jr., Ismael. Uma casa luso-afro-brasileira com certeza: emigrações e metamorfoses da umbanda em Portugal. São Paulo: Terceira Margem, 2000.
3 CONCONE, Maria Helena Vilas Boas. Umbanda: uma religião brasileira. São Paulo: FFLCH/USP, CER, 1987.
4 Pessoas que trabalham em capelas de Lisboa, realizando também trabalhos de umbanda.
5 Rito realizado por Mãe Virgínia Albuquerque numa Sexta-Feira Santa. O mesmo está relacionado à Última Ceia, momento em que Cristo lava os pés dos Apóstolos. Na umbanda lisboeta de Mãe Virgínia é o preto velho, espírito tido como humilde e caridoso, quem “lava cada pé da pessoa, enxuga-o e faz uma cruz na parte de cima do pé com pemba” (p. 110).

Milton Silva dos Santos – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, UNICAMP. Rua Cora Coralina, s/nº, Campinas. São Paulo. 13083-896. miltonrpc@gmail.com.

Apesar de vocês: oposição à ditadura – GREEN (VH)

GREEN, James Naylon. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985. Tradução S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 582p. Resenha de: MONTENEGRO, Antonio Torres. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

O livro de James N. Green começou a ser pensado, segundo ele mesmo, quando, em 1998, durante um encontro da Lasa (Associação Americana de Estudos Latino Americanos), um historiador brasileiro criticou os brasilianistas por não terem atuado de forma significativa na resistência ao regime militar que tomou o poder, no Brasil, em 1964. Posteriormente, constatou que uma parcela de intelectuais brasileiros também tinha uma avaliação semelhante. Discordando dessa leitura, James, ao longo de dez anos, pesquisou diversos documentos para construir outra historiografia acerca da reação de uma parte de intelectuais dos EUA ao regime militar.

Duas seriam as razões básicas que James, afirma terem concorrido para produzir essa avaliação “não verdadeira” acerca da atuação de certos setores da sociedade dos EUA, especialmente intelectuais, em relação ao regime militar que dominou o Brasil de 1964 a 1984. A primeira estaria relacionada à censura, o que dificultava o conhecimento acerca das campanhas internacionais contra o regime, tanto na Europa quanto nos EUA. A segunda seria a corrente antiamericanista, que se espalhou pelo mundo acadêmico, quando análises marxistas, antiimperialistas e nacionalistas, tornaram-se dominantes nas décadas de 1950 à 1970.

James N. Green propõe romper com essa perspectiva antiimperialista que domina muitos estudos macropolíticos e macroeconômicos, acerca das relações políticas e culturais entre o Brasil e os EUA.

Por meio de uma significativa pesquisa documental, associada a mais de cem entrevistas, o autor apresenta as redes que se formaram nos EUA, congregando exilados políticos brasileiros, ativistas americanos, professores de diferentes universidades dos EUA, religiosos, políticos, jornalistas e pessoas simpáticas a causa dos direitos humanos.

O percurso narrativo é construído apresentando um acirrado embate entre forças políticas antagônicas, que inclui o movimento em defesa dos direitos humanos, a embaixada do Brasil em Washington, o Departamento de Estado, a grande imprensa dos EUA, o conselho de Igrejas. Mas não são apenas essas redes, grupos, ou órgãos e instâncias de poder que se digladiam. Dentro do próprio Estado Americano há divergências e conflitos de orientação política. O Departamento de Estado e o Congresso dos EUA, algumas vezes, entram em rota de colisão acerca da política adotada em relação ao Brasil. Também se descobre como a grande imprensa americana produz editoriais e artigos que não correspondem ao que o governo, gostaria que fosse debatido e divulgado. Em outros termos, James, lembra-nos como a generalização no campo da história se apresenta como uma grande armadilha. Sobretudo, porque simplifica e minimiza os confrontos e apaga o trabalho de resistência dos indivíduos, grupos sociais e organizações que também produzem ações com efeitos de verdade e mudanças na definição das políticas de Estado.

Nesse sentido, é revelador dos interesses e princípios conflitantes que informam a política externa, entre Brasil e EUA, o novelo de forças que se constitui logo após a promulgação e publicação do AI – 5, em 13 de dezembro de 1968. Narra o autor que o embaixador americano William Belton estabelece a linha política a ser adotada pelo Departamento de Estado, ou seja, dos EUA permanecerem discretos quanto ao pronunciamento público contra o regime militar, mas passando também a considerar a idéia de suspender ajuda ao Brasil. Talvez, informado, Delfin Neto, ministro da Fazenda, no governo do general Costa e Silva, veio a público desmentir qualquer possibilidade de congelamento da ajuda, no que foi apoiado irrestritamente pelo presidente da Câmara de Comércio norte-americana, em São Paulo, que teria declarado: “as empresas norte-americanas em São Paulo apóiam o governo brasileiro e consideram [o] AI – 5 a melhor coisa que poderia ter acontecido ao país”.1 Mesmo sob pressão da grande imprensa dos EUA, o Departamento de Estado não contrariou os interesses da Câmara de Comércio e nem desfez os prognósticos de Delfin Neto.

Assinala James, que a imprensa dos EUA, que até então raramente tinha publicado alguma crítica ao regime militar, após o AI – 5 passa a nomear o regime político do Brasil de ditatorial e a fazer denúncias de abuso de poder. No entanto, é em razão de um editorial do The New York Times, em dezembro de 1968, criticando o AI 5 – e que causou indignação aos militares brasileiros – que o professor Robert Levine na época jovem professor assistente na Universidade Estadual de Nova York em Stony Brook enviou uma carta a esse jornal, tecendo críticas ao referido editorial, mas em um sentido oposto. Para Levine, o editorial estava equivocado ao afirmar, que os militares tinham boas razões para derrubar o governo constitucional de João Goulart. Levine inaugura – segundo o autor – a série de artigos e pronunciamentos públicos de intelectuais norte-americanos contra o regime militar.2

Porém, gostaria de chamar a atenção para passagens que me parecem carregadas de muitos significados. Em certo momento – como documenta o autor – é possível acompanhar o esforço do regime civil-militar brasileiro de tentar influir no discurso da imprensa nos EUA e na Europa, quando são publicadas matérias relativas a torturas e prisões arbitrárias. A tentativa do regime, de criar um órgão exclusivamente para cuidar da imagem do Brasil no exterior, é uma informação importante para refletir acerca do esforço dos governos em produzirem seus discursos de verdade e poder. Por outro lado, quando o Washington Post publicou um editorial condenando as práticas de tortura e afirmando o quanto este fato era grave para a imagem dos EUA – pois estaria sendo associado a um governo opressor – , imediatamente, há forte reação do governo brasileiro. O ministro das relações exteriores do Brasil convida tarde da noite o embaixador americano para uma conversa. Reclama que houve por parte da imprensa dos EUA um “ataque ofensivo, perverso e insultuoso contra o governo brasileiro”.3 Essa reação também estava relacionada ao fato de que, neste editorial, o presidente Médici é nomeado de “general bronco”. E o embaixador, Mario Gibson Barboza, inicia um trabalho sistemático junto a alguns jornais dos EUA para tentar alterar as matérias críticas ao governo: “No entanto, após seis meses de intensa interação com importantes jornais do país, chegara à conclusão de que as posições ideológicas do Post, do Times e do Christian Science Monitor os levava a tratar do Brasil de maneira hostil, apesar de sua “ação incansável para esclarecer [os relatos enganosos de] pessoas influentes nesses jornais, sem resultado”. Barboza informou ao ministro das Relações Exteriores: “Minha avaliação é que não se trata de um problema de esclarecimento e persistência, e sim de uma posição ideológica estabelecida e, portanto, muito difícil de demover”.4

O ministro, ao afirmar que os jornais defendiam uma posição ideológica e não apenas conjuntural, remete ao problema do imperialismo. Ou seja, os EUA têm uma agenda política, econômica, cultural, social que expressa seus projetos de dominação e interage com os demais países a partir dessa agenda. Como documenta James, essa agenda sofre variações e pressões diversas. A repressão e a tortura seriam inadmissíveis para diversos segmentos da sociedade norte-americana, no entanto, para outros segmentos não, como o livro documenta. Mas, penso que não se pode avaliar essa história política fora dos quadros complexos das relações desiguais entre as nações, em que aqueles que têm mais riqueza e poder instituem e agenciam o discurso do justo e do verdadeiro. Ou seja, deve-se analisar historicamente este quadro ou jogo de interferências de poder entre nações na perspectiva de uma política imperialista. Essa análise histórica não é contemplada por James Green ao estudar as formas de manifestação política contra o regime militar do Brasil a partir de 1964 nos EUA, o que enriqueceria sua obra.

Noam Chomsky, em entrevista recente na China, afirmou:

O ano de 2010 é chamado “O Ano do Irã”. O Irã é descrito como uma ameaça para a política externa dos EUA e para a ordem mundial. Os EUA impuseram sanções severas e unilaterais, mas a China não lhe seguiu o exemplo… Poucos dias antes de deixar a China, o Departamento de Estado dos EUA advertiu a China de uma maneira muito interessante. Disse que a China tem de assumir as responsabilidades internacionais, ou seja, seguir as ordens dos EUA. São estas as responsabilidades internacionais da China. Isto é o imperialismo típico: os outros países têm de agir de acordo com os nossos desejos. Se não, são irresponsáveis. Essa é a lógica típica do imperialismo.5

Em síntese, o livro de James traz importante pesquisa sobre as lutas, os confrontos, as alianças, os boicotes no cotidiano da política dos EUA, na relação com o regime civil-militar que se instala em 1964, particularmente após o AI 5. Revela uma trama complexa, em que os exilados brasileiros nos EUA, os brasilianistas, as organizações religiosas, os políticos dos EUA comprometidos com a agenda dos direitos humanos, atuaram de forma importante e significativa para desnaturalizarem as práticas autoritárias de governabilidade do regime militar que os EUA ajudaram a montar.

1 GREEN, James Naylon. Apesar de vocês: oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964 -1985. Tradução S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras. 2009, p.145.
2 GREEN, James Naylon. Apesar de vocês, p.149.
3 GREEN, James Naylon. Apesar de vocês, p.228.
4 GREEN, James Naylon. Apesar de vocês, p.297-298.
5 Noam Chomsky interviewed by Southern Metropolitan Daily, August 22, 2010.

Antonio Torres Montenegro – Professor Titular Programa de Pós-Graduação em História/ Centro de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Pernambuco. Campus Recife Avenida Acadêmico Hélio Ramos S/N 10º andar CFCH. Cidade Universitária -Recife- PE- Brasil. CEP:50670-901 montenegroantonio084@gmail.com.

 

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A Biologia militante – DUARTE (VH)

DUARTE, Regina Horta. A Biologia militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil – 1926-1945. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, 219 p. Resenha de: PEREIRA, Airton dos Reis; OLIVEIRA JÚNIOR, Rômulo José Francisco de. “A  voz mais alta da Biologia”: Diálogos entre história política e história da ciência. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

A Biologia Militante, de Regina Horta Duarte, professora titular do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, é, certamente, uma grande contribuição aos muitos cursos de graduação e pós-graduação em História e permite-nos não apenas aprender sobre o tema analisado, mas compreender os procedimentos teórico-metodológicos do fazer histórico.

A partir da leitura dessa obra temos a certeza de que, além de pesquisas em arquivos, a escrita da história é fruto de escolhas afetivas, de constantes perguntas, da busca por conhecimentos transformadores e do desejo de fazer História como uma aventura intelectual que ressignifica nossas questões referentes à relação presente-passado por meio da construção de narrativas plausíveis.

A Biologia Militante é uma escrita leve, sedutora, clara e traz excelentes análises sobre a história do Brasil no período varguista. O fio condutor adotado foi a história do Museu Nacional do Rio de Janeiro, no período compreendido entre 1926 e 1945, privilegiando as articulações entre prá-ticas cientificas e vida política, o surgimento das especializações, no caso especifico da ciência biológica, e as experiências de divulgação científica.

O livro nos convida a entrar em contato com os conhecimentos e as práticas de três cientistas do Museu Nacional: Edgar Roquette-Pinto (18841954), antropólogo; Alberto Sampaio (1881-1946), fitobotânico; e Cândido de Mello Leitão (1886-1948), aracnólogo. Ambos haviam passado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro quando esta tinha passado por reformas, com a introdução de novas disciplinas e ênfase no ensino prático. As novas tendências européias de valorização do laboratório e do conhecimento biológico, sob influência da teoria de Pasteur, estiveram presentes na faculdade, nesse período. Esses homens fizeram de suas pesquisas ferramentas para a construção de uma identidade nacional e por meio da noção de saber criativo possuíam a esperança de que este tipo de conhecimento transformaria a sociedade brasileira

Roquete-Pinto foi professor do Museu Nacional desde 1906, sóciofundador da Academia Brasileira de Ciências (ABC), membro fundador da Associação Brasileira de Educação (ABE) e participou ativamente da organização da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro da qual foi seu secretáriogeral. Mello Leitão iniciou sua carreira como zoólogo, em 1913, na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, do Rio Janeiro e no ano de 1916 trabalhou com Roquete-Pinto na Escola Normal do Rio de Janeiro. Sampaio foi contratado como professor de Botânica do Museu Nacional, em 1912, era membro da ABE e participou ativamente das atividades da Rádio Sociedade. Roquete-Pinto e Sampaio, embora que em momentos distintos, participaram de viagens feitas por Marechal Rondon no interior do Brasil.

Além de serem grandes amigos, tais cientistas articulavam, entre si, não só a produção e difusão de conhecimentos, mas o jogo de reconhecimento pessoal e intelectual e, por outro lado, partilhavam grandes expectativas de transformação do Brasil numa grande nação, num contexto de jogo político intenso do governo provisório de Getúlio Vargas. A perspectiva era a construção de uma sociedade sem conflitos, harmônica, corporativa e regida por um Estado forte e centralizado. Estudos como os de Mello Leitão – num processo de negação ao darwinismo -focalizavam a vida social dos animais negando a competição entre os seres vivos, mas a obediência, harmonia, bondade, solidariedade, a hierarquia. Não obstante, as perspectivas de Vargas encontraram eco nas concepções defendidas pelos cientistas do Museu Nacional. Apesar das nuances do jogo político da época, esses cientistas foram atores em sintonia com as perspectivas do governo provisório de Vargas em “curar o corpo e aperfeiçoar o espírito” de um povo desvalido e empobrecido, vítima de elites egoístas.

O livro é composto de três capítulos. No primeiro, “A voz mais alta da biologia”, a autora argumenta que, desde o final do século XIX, a idéia da natureza como patrimônio nacional era um tema importante, e acreditava-se que o Brasil deveria se afinar ao debate internacional para amoldar-se aos padrões de civilidade. A hipótese central deste capítulo era de que, entre 18951930, a biologia se afirmou como saber específico e diferenciado, ganhando importância política e visibilidadede “mestra da vida”. Duarte estabelece sua argumentação a partir de quatro temas: a eugenia nas primeiras décadas do século XX,a biomedicina,a entomologia (médica e agrária) e o que ela vai chamar de a experiência de campo (em que poderíamos denominar de pesquisas para obter a noção da relação teoria e prática dos estudos).

A autora mostra como a biologia se constituiu como campo específico do conhecimento e como este se firmou como um saber decisivo na resolução de problemas políticos, principalmente a partir da emergência da população como objeto de preocupação nacional. Neste capítulo, Duarte trata ainda da participação de Roquette-Pinto, Mello Leitão e Sampaio, autoridades científicas do Museu Nacional, na elaboração de um anteprojeto do Código de Caça e Pesca, solicitado pelo Ministério da Educação e Saúde, em 1933, cujo decreto foi assinado pelo Presidente da República, no ano seguinte. O Código de Caça e Pesca seria um instrumento importante na regularização e preservação do patrimônio flora-faunístico. Naquela época era notória a extinção de espécies animais cujas peles eram exportadas para compor a moda da “alta sociedade”. Os cientistas advogaram a necessidade do Governo Federal regular os “apetites” das elites em favor dos interesses de todos. Duarte destaca os êxitos e as frustrações dos cientistas no tocante ao texto final da Lei.

No segundo capítulo, A miniatura da Pátria, a historiadora inicia discorrendo sobre um churrasco realizado na Quinta da Boa Vista, na cidade do Rio de Janeiro, por contingentes das forças armadas gaúchas que visitavam a capital do Brasil. Edgar Roquette-Pinto, diretor do museu, convidou os soldados e os acomodou no Museu Nacional para assistir vídeos educativos sobre a natureza fauna-florística brasileira. Tal evento ganhou expressão para compreender como os biólogos articulavam uma série de meios comunicativos para propagar a idéia de preservação da natureza do país. Rádio, cinema, jornais e a Revista Nacional de Educação foram os principais divulgadores dessa idéia e o Museu Nacional abriu as portas para aulas práticas com crianças e jovens, e para visitas à sala de exposições de antropologia. Divulgar o conhecimento natural de todas as formas possíveis, ensinar às massas a ler e a escrever eram metas dos biólogos do museu. Ao final deste capítulo a autora se debruça sobre a documentação da Coleção Brasiliana1 e analisa as idéias dos três cientistas publicadas em diversos livros que produziram e cujo tema central versava sobre a biologia no Brasil. Entretanto, sendo o período histórico em questão, um momento na qual circulava no país as concepções da Escola Nova, seria muito mais enriquecedor se a autora tivesse tecido relações com essa postura pedagógica. Acreditarmos que essas análises seriam um elemento a mais para compreender a propagação das políticas de divulgação do conhecimento científico na era Vargas.

No terceiro capítulo, Como se fazia um biólogo, a autora nos apresenta a criação da Sociedade dos Amigos do Museu Nacional. Esse grupo surgiu em detrimento do afastamento dos três cientistas do museu e nos conduz a compreender a trajetória de Cândido de Mello Leitão ao analisar esmeradamente as obras escritas por ele e como sua produção foi significativa para a Biologia tornando-o reconhecido nacional e internacionalmente como um especialista em aracnídeos. Duarte não deixa de mencionar que o Museu Nacional perdeu força no fim da era Vargas como instrumento constituidor de opinião pública e que o discurso biológico, da mesma forma, se enfraqueceu como símbolo da identidade brasileira. Não obstante, a Biologia despontou como ciência importante no cenário brasileiro e ganhou espaço significativo nas universidades do país.

A leitura de A Biologia Militante é fundamental por ser um exemplo de trabalho bem escrito, fundamentado teoricamente e com fontes utilizadas de forma burilada. Deve ser lido para entender que o exercício interdisciplinar, lançado mão desde a Escola dos Annales, é extremamente significativo para as pesquisas históricas. É possível ainda conhecer possibilidades do exercício prosopográfico e perceber que muitos temas podem ser vistos como edificadores da nacionalidade brasileira.

O texto nos mostra ainda que a melhor referência teórica a ser aplicada na escrita depende dos documentos que escolhemos para cotejar as informações; é assim que Michel Foucault emerge diversas vezes na obra, principalmente quando fica notória a noção de que os sujeitos se constituem nas redes relacionais em que atuam, como no caso dos biólogos analisados. A obra coloca o leitor na perspectiva da História como conhecimento criador, realizado nas condições de possibilidades de cada pesquisa. Ao analisar racionalmente o papel do fazer científico na instituição das sociedades ao longo dos tempos, a autora busca se afastar do que Marc Bloch chamou do “satânico inimigo” da História: a mania de julgar.

A Biologia Militante, além de ser um excelente diálogo entre História e Biologia, pode permitir primorosos debates sobre questões sócio-ambientais, no Brasil, além de servir de alerta à sociedade brasileira para não aplainar o novo Código Florestal, aprovado em maio de 2011, sem indignações.

Mais do que um discurso histórico construído na interface da história política e da história da ciência, o livro de Regina Horta Duarte ajuda a compreender as articulações e os arranjos políticos que certos intelectuais fazem em seu tempo, no campo de produção e no jogo de relações com os poderes instituídos. Podemos, com certeza, afirmar: é uma excelente contribuição ao campo da história intelectual.

Programa de Pós-Graduação em História/Centro de Filosofia e Ciências Humanas.Universidade Federal de Pernambuco. Campus Recife.Avenida Acadêmico Hélio Ramos S/N10º andar CFCH. Cidade Universitária -Recife- PE- Brasil. CEP:50670-901.

1 A Coleção Brasiliana foi inaugurada em 1931 por Fernando Azevedo e o projeto central era de “descobrir o Brasil aos brasileiros”.

Airton dos Reis Pereira – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Professor da Universidadedo Estado do Pará (UEPA) e membro do Grupo de Pesquisa: Movimentos Sociais, EducaçãoeCidadania na Amazônia/UEPA/CNPq. airtonper@yahoo.com.br.

Rômulo José Francisco de Oliveira Júnior – Doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Integrante do GEHISC/UFRPE/CNPq. romulojunior7@hotmail.com.

Paulistas e emboabas no coração das Minas – ROMEIRO (VH)

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, práticas e imaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008, 431 p. Resenha de: STUMPF, Roberta. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Publicado em 2008, este livro da professora Adriana Romeiro, do Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, tem como tema a Guerra dos Emboabas, como ficou conhecido o levante ocorrido na capitania das Minas Gerais em 1708-1709. Já nas primeiras páginas retoma as análises historiográficas de um episódio que foi exaustivamente estudado até a segunda metade do século XX, perguntando-se o que de novo poderia dizer sobre a matéria. E não é preciso avançar demasiadamente na leitura para observar que apresenta uma visão claramente inovadora, ao adotar uma perspectiva analítica que privilegia a história política “à luz de uma perspectiva cultural” (p.26).

É esta mesma proposta a de seu livro anterior, publicado em 2001, Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais,1 pelo que se pode dizer que a trajetória de investigação da autora apresenta um percurso homogêneo, não obstante a diversidade dos temas aos quais se dedica. Neste livro anterior, estuda um personagem fascinante, o português Pedro de Rates Henequim, que ao voltar ao Reino, depois de viver nas Minas, foi acusado de heresia pelo Santo Ofício e queimado em um auto de fé, em 1744. Em ambos os livros, a análise recai não tanto na história de vida dos personagens ou na descrição dos eventos, por si só interessantes ao leitor. O que lhe importa analisar são as práticas e as idéias de acentuado cunho político que coexistiram nas Minas do século XVIII e que tinham diferentes matrizes: uma portuguesa e outra, original, inovadora, mestiça, sertaneja, popular….

Sobre a última obra publicada, o que nos importa explorar é a tese principal de Romeiro, que permeia todos os capítulos, embora se apresente com maior clareza no quinto, “Idéias e práticas políticas”, o qual segundo a própria autora é “o âmago do livro”. Neste caso, não opta por seguir uma seqüência cronológica linear, comum aos historiadores mais interessados na descrição dos eventos. Antes opta por um percurso narrativo que vai da dimensão imperial ao nível local das Minas, atenta sempre às idéias e às práticas daqueles que atuaram neste contexto particularmente importante na história das Minas e de todo o Império português: a década inicial do Setecentos.

As diferentes propostas administrativas que eram gestadas para as Gerais são compreendidas mediante a análise dos imaginários políticos que coexistiram e que acabaram por explicar o confronto que teve a capitania como palco. O posicionamento da Coroa e de seus representantes é cuidadosamente analisado porque foi determinante para o sucesso ou o fracasso das estratégias adotadas por paulistas e emboabas, que irão se enfrentar ao longo das diferentes etapas que constituíram este processo de descobrimento e colonização das Gerais.

Longe de apresentar uma atuação uniforme, a política governamental foi determinada muitas vezes pelos interesses pessoais de governadores gerais e governadores da Repartição Sul assim como pelas diferentes percepções que dividiam as autoridades no Reino em relação à importância estratégica do ouro e das Minas para a monarquia portuguesa. As incertezas em relação aos benefícios da extração aurífera e à importância do estabelecimento de um aparato administrativo consolidado beneficiou, nos primeiros anos do século XVIII, os paulistas que encontraram naqueles sertões recém descobertos um terreno propício para agirem. A valentia destes homens, guiados por valores como a honra, que mais do que ninguém sabiam vencer os perigos de um território povoados de índios e súditos rebeldes, foi útil à empresa colonizadora nas Minas, como haviam sido, na figura de Domingos Jorge Velho, na luta contra o quilombo dos Palmares (p.197). Pelo que nos primórdios a Coroa aproveitou-se da ambição dos paulistas pelas distinções para cooptar seus serviços, provendo-os em cargos políticos importantes e beneficiando-os com o primeiro Regimento que regularizava a distribuição das datas.

É verdade que muitas autoridades não eram favoráveis a esta tendência pró-paulista, pois a outra face da “legenda negra”, associada a estes, e que eles próprios contribuíram para consolidar, prejudicava a consolidação de uma ordem nos moldes desejados pela monarquia. Quando a riqueza proveniente do ouro despertou a cobiça régia e a monarquia julgou necessário controlar a região, a imagem dos paulistas como homens inclinados à autonomia ganhou maior acolhimento. A forma particular que tinham em negociar com as instâncias políticas centrais, a adoção de uma tática de “guerra brasílica”, o sangue mestiço, ou mesmo a violência utilizada em defesa da honra, sustentavam a desconfiança, por exemplo, dos conselheiros ultramarinos que resistiam cada vez mais lhes conceder mercês.

A semelhança do que ocorria em outras paragens da América, onde os primeiros descobridores ou restauradores de um território ocupado por inimigos julgavam-se beneméritos de mercês régias, também os homens do Planalto se apropriaram da retórica do “direito da conquista” para “pleitear as mais valiosas honras e mercês” (p.38). Mas a vertente detrativa da imagem atribuída aos mesmos dificultou seus intentos favorecendo, por sua vez, os emboabas, como eram chamavam pelos paulistas aqueles que não descobriram as Minas, mas que para lá se dirigiam para tirar proveito de suas riquezas e de seus cargos ainda por ocupar. Mas se estes forasteiros não podiam se valer do fato de terem sido os primeiros a desbravar os sertões, esforçavam-se por serem vistos como fieis súditos do monarca que restaurariam o poder régio na região comandada pelos tirânicos paulistas. Trata-se de duas retóricas distintas, e igualmente legítimas para a cultura política vigente, adotadas por dois grupos que tinham estratégias diversas que visavam o mesmo fim e que traduziam, como evidencia com sucesso a autora, imaginários políticos em confronto, que terão repercussões duradouras naquele território.

É este talvez o maior contributo desta obra: o destaque dado a um conflito que não teve como principal palco o campo de batalha. Os vencedores não foram os que sabiam melhor guerrear ou os que tinham as armas bélicas mais eficazes. Mas sim aqueles que percebendo a realidade, e agiam nesta, de forma mais conveniente aos interesses régios, foram eleitos como sendo os mais dignos de receberem as recompensas, cargos ou honras, que ambos os grupos almejavam conquistar. A economia moral do dom não fora apenas um instrumento que permitiu a consolidação dos laços entre súditos e monarcas. Foi um sistema tão atrativo aos desejos de ascensão social que determinou muitas vezes que súditos envolvidos em embates na disputa de recursos e mercês utilizassem retóricas distintas e conflitantes para verem-se agraciados pelas autoridades.

Por vezes somos levados a pensar que Romeiro atribui à naturalidade dos vassalos um fator essencial para explicar o posicionamento régio e consequentemente o desfecho do levante, contrariando assim as análises historiográficas mais recente que insistem na pouca relevância da oposição entre naturais da América e do Reino, ao menos até o final do século XVIII. Se os paulistas possuíam uma identidade cultural que os singularizava, ou mesmo “étnica” como afirma a autora, eram reconhecidos evidentemente como sendo os naturais de São Paulo. Porém, no que compete aos em-boabas, se há indícios de que os conselheiros ultramarinos lhes atribuíam uma naturalidade reinol, provavelmente assim faziam para salientar as diferenças em relação aos paulistas, a quem faziam fortes ressalvas. A autora, no entanto, cita outros documentos coevos que comprovam o quanto a naturalidade dos emboabas era uma questão controvérsia, que tampouco deve ser resolvida. Assim, embora a dimensão paulista seja sempre enfatizada, ao mostrar que os emboabas eram tanto americanos como reinóis, a autora critica as análises que deram ao levante um cunho nativista. Se no contexto de 1708-9 a naturalidade paulista estava associada a uma postura contestadora e autonomista, no decorrer da centúria nada indica que esta associação continue a ter a mesma intensidade, ao menos é o que percebemos no teor das solicitações de mercês efetuadas pelos habitantes das Minas nas quais a naturalidade não aparece nos pareceres como um critério a legitimar ou não a justiça das súplicas.

Se o levante emboaba, como se infere no título do livro, é crucial para entender todo o século XVIII mineiro, não o é por esta razão. Seu maior legado, como afirma a autora nas conclusões, são as formulações políticas que naquele contexto eclodiram e que serão essenciais ao imaginário político da população local (p.317). Ao longo do Setecentos as idéias e as práticas políticas, que traduzem matrizes da tradição insurgente e também não insurgente, sobreviverão, muitas vezes com um conteúdo remanejado. Tanto o discurso embasado no “direito da conquista” como o “restauracionista”, defendidos respectivamente por paulistas e emboabas, legitimaram motins e sedições, entre os quais o mais importante deles ocorrido em 1788-9. Talvez fosse interessante saber, seguindo a sua própria linha de raciocínio, se ao longo desta centúria os súditos interessados em fazer valer seus direitos pelas vias consideradas legítimas, se apropriaram destes discursos para solicitar mercês ao Conselho Ultramarino.

A autora, porém, apesar de mencionar na introdução a importância de se evitar uma análise da Guerra dos Emboabas que se restrinja à curta temporalidade, ou seja, ao episódio em si, só analisará rapidamente a permanência destas retóricas nos movimentos sediciosos na última página do quinto capítulo, voltando a lhe dar destaque nas conclusões. Romeiro não despreza a importância do tema, mas não o aprofunda, quase como se estivesse a sugeri-lo para uma investigação futura, de sua autoria ou de outro historiador, disposto a aproveitar esta dica tão valiosa.

Esta obra foi bem acolhida pela historiografia brasileira, e deve continuar a sê-lo pelo que nela foi dito e exaustivamente analisado, ou pelo que foi apenas sugerido, já que a consistência das sugestões também se deve ao rigor e à originalidade da pesquisa que apresenta.

1 ROMEIRO, Adriana. Um visionário na corte de D. João V: revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

Roberta Stumpf – Pesquisadora do Centro de História de Além Mar/Universidade Nova de Lisboa Rua Berna, 26C, gabinete 2.19, Edifício DRM Lisboa, Portugal, CEP1069-061, robertastumpf@gmail.com.

 

 

 

Histórias mestizas en el Tucumán colonial y las pampas – FARBERMAN; RATTO (VH)

FARBERMAN, Judith y RATTO, Silvia. (coords.) Histórias mestizas en el Tucumán colonial y las pampas, siglos XVII-XIX. Buenos Aires: Biblos, 2009, 222 p. Resenha de: CERCEAU NETTO, Rangel. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Desde a obra O Pensamento Mestiço, do francês Serge Gruzinski,1 despontam para as Américas possibilidades que versam sobre as ruínas dos povos indígenas e a renascença de novos estudos sobre criações mestiças – nem européias e nem pré-hispânicas -, mas resultado de um processo de fusão de mundos díspares. Este referencial historiográfico aparece como um arquétipo inspirador dos estudos sobre as misturas e tem iluminado as novas abordagens.

Pode-se dizer que nos últimos anos, na historiografia sobre o período colonial da América Latina, as trajetórias de vida de homens e mulheres têm causado grande fascínio em pesquisadores e em leitores interessados nessas pequenas histórias. No caso das Américas, a exemplo de O pensamento mestiço, os estudos que têm a mestiçagem como eixo imprimem dinâmica especial aos trânsitos individuais, grupais e familiares. O foco dessas dinâmicas surgiu pela valorização de personagens ou de grupos anônimos que viveram e formaram as populações do complexo universo colonial americano.

É nesta perspectiva que se insere a coletânea de artigos publicados no livro Historias mestizas en el Tucumán colonial y las pampas, siglos XVII-XIX, coordenado pelas pesquisadoras portenhas Judith Farberman e Silvia Ratto. Os trabalhos reunidos neste livro retratam os processos de mestiçagens envolvendo as uniões matrimoniais e de compadrio, bem como suas vinculações religiosas e jurídicas. Também constitui um estudo das categorias taxonômicas sócio-étnicas e das identidades profissionais dos chamados indo-mestizos.

Para essas análises temáticas foi utilizado um corpus documental muito diversificado: códigos de leis coloniais, cartas e disposições do reino e das áreas administrativas, relatos e memoriais de governantes e autoridades reais, protocolo de escrivães, censos populacionais, registros paroquiais de batismos e matrimônios, processos civis e criminais, visitas eclesiásticas e dicionários de época. Todo este maço documental está disponível em bibliotecas, arquivos regionais, nacionais e internacionais da antiga metrópole.

O livro está inserido na dinâmica migratória que levou cerca de 30 milhões de indivíduos de outros continentes às Américas, durante o período colonial. Ele reflete o impacto planetário e demográfico causado pelo tráfico oceânico de escravos, pelos deslocamentos não forçados de pessoas para o Novo Mundo e pelas formas de trabalhos compulsórios marcados pela escravidão, encomienda e mita. Tudo isso demonstra que a América foi marcada por um amplo processo de adaptações entre os povos nativos e os que chegaram de fora deste continente, os quais ali passaram a viver formando um mosaico de novas realidades, um verdadeiro laboratório de experiências.

A coletânea é composta de seis artigos sobre a história de Tucumán colonial e dos pampas e pode ser comparada à história de outras regiões da América espanhola e portuguesa. Essa comparação se deve à enorme variedade étnica de índios, europeus, africanos e de mestiços já frutos de intensa mescla processada. Também, a presença de libertos, escravos e nascidos livres derivados das formas de trabalho compulsório, como a escravidão, a encomienda e a mita, promoveu realidades regionais mundializadas e bem similares.

O estudo coordenado por Farberman e Ratto corrobora com estudos recentes2 que abordam o fenômeno das mestiçagens e das formas de trabalhos forçados nas sociedades ibero-americanas. Aliás, a história de Tucumán e dos Pampas colonial está longe de ser uma realidade isolada para as regiões espanholas urbanas e rurais. Outras regiões, cidades e vilas coloniais como: Lima, Potosi, Cartagena de Índias, Santa Cruz de La Sierra, Quito, México, Puebla, Salvador, Recife, Rio de Janeiro, Sergipe Del Rey, Vila Rica, Sabará, Minas Nova do Arrassuai, Vila do Príncipe entre outras, também conheceram intensa mestiçagem entre povos africanos, europeus e indígenas.

Na verdade, a obra buscou analisar as regiões do litoral e do interior da antiga jurisdição de Córdoba e que hoje fazem parte do território argentino. Ela retratou, de forma regionalizada, porém conectada ao global, as experiências inovadoras envolvendo as mesclas culturais e biológicas de diversas pessoas e grupos sociais, especialmente dos grupos de espanhóis e índios que compreendiam a maioria dos casos envolvendo os processos de mestiçagem na região de Tucumán e dos pampas.

Outra questão importante contemplada na coletânea e pouco abordada pela historiografia argentina foi as mestiçagens originárias de outros grupos étnicos e sociais que não envolviam somente os europeus e os índios. A presença dos africanos e da escravidão na cultura andina compôs um quadro social mais amplo e complexo para a história das Américas espanhola e portuguesa. Mérito deste estudo que recupera essa dimensão histórica das populações africanas em relação às indígenas e as européias, apagadas propositalmente dos anais da história argentina. Nesta perspectiva, o estudo mostrou um enorme avanço historiográfico e coloca novas perguntas. Como foi possível, durante tanto tempo, a população negra daquela região sumir das interações sociais e das mesclas com europeus e índios? A quem interessou a construção da memória que suprimiu a presença desses africanos, negros e mulatos que povoaram a região de Tucumán e dos Pampas? Ou mesmo o desaparecimento da escravidão que estava presente concorrendo com outras formas de trabalho compulsório como a encomienda e a mita. Neste sentido, o livro aponta para a necessidade de novas abordagens comparativas da dinâmica populacional daquela região com outros lugares no período colonial.

Nesta obra, as mesclas entre índios nativos, africanos escravizados e colonizadores europeus constituíram o foco do problema a ser investigado. O termo mestiçagem passou a ser visto como sinônimo de um processo. Ele é problematizado nos seus múltiplos significados e temporalidades, evocando as dinâmicas contraditórias e adaptativas dos processos que levaram à conquista da América e a chegada de novos povos. Por um lado, a mestiçagem apareceu vinculada ao processo violento de dominação, de perda de identidade e de genocídio, fruto dos choques causados pelas diferenças culturais entre espanhóis e povos nativos. Por outro lado, reflete a intermediação cultural gerada pela aproximação entre espanhóis, indígenas e, posteriormente, dos africanos. Esses indivíduos forjaram um Novo Mundo, adaptando invenções e novas maneiras de viver e pensar, ainda que numa síntese conflituosa ou pacífica.

O ponto forte do livro está na forma explicativa e processual na qual as misturas biológicas e culturais ocorreram nos matrimônios inter-étnicos entre espanhóis e índios. No primeiro momento, as misturas derivadas desses relacionamentos foram apoiadas pelas estratégias dos ibéricos de lançarem “indivíduos línguas” (aqueles que tinham facilidade em aprender as línguas nativas) para fazer a mediação comercial e de troca de práticas e saberes com os povos nativos.

Todavia, a ambientação dos colonizadores europeus ocorreu no momento em que eles se envolveram com os indivíduos da nobreza indígena e, destes relacionamentos, geraram filhos mestizos. As pesquisadoras do grupo liderado por Farberman e Ratto analisaram as uniões familiares que promoveram as etno-genesis ou a criação étnica do grupo dos hispanocriollos, filhos de espanhóis e dos mestizos nascidos nas Américas. Esse grupo de mestiços envolvendo espanhóis com nativos ou seus descendentes representam 85% dos casos retratados pela obra.

Para as pesquisadoras do livro, os hispanocriollos constituíram a marca da ambiguidade e da ambivalência já que esses mestizos empregavam estratégias eficazes para reivindicar os benefícios legados a eles, pela ascendência dupla de seus pais. Para os peões comuns, mestizos filhos de espanhóis com índios, e os mulatos, filhos de espanhóis com negros ou filhos de índios com negros, o uso das estratégias de disfarce, segundo sua conveniência e necessidade, foi fator corriqueiro, pois eles faziam uso de roupas e símbolos pomposos ou evocavam a ascensão do pai conquistador para fugir de impostos e tributos e do trabalho compulsório como a encomienda e a escravidão. Nesta mesma lógica, figuravam os criollos e os mestizos de certa nobreza e que formavam a elite proprietária da mão de obra encomendeira e escravocrata e, também, os personagens mesclados dos grupos médios responsáveis pelos ofícios qualificados que promoveram a produção e o consumo de bens nas áreas urbanas e rurais.

Outra característica importante abarcada pela coletânea compreende a própria formação e mobilidade social adquiridas pelos grupos que se auto-reconheceram como hispanocriollos, mestizos e mulatos entre outros. Estes, muitas vezes, produzindo ou se apropriando de novas taxonomias identitárias, procuravam reformular e reconstruir as suas próprias identidades e, ao se afirmarem enquanto grupos sociais, buscavam a distinção entre si, criando e/ou readaptando as hierarquias sociais já existentes.

Também, a formação e a readaptação das identidades destes grupos mesclados, tomados na América espanhola por castas, estavam intimamente ligadas aos processos de ascensão social e econômica vivenciados por eles. Assim, utilizando-se dos simbolismos de poder dos conquistadores ou das próprias sociedades pré-hispânicas, esses hispanocriollos, mestizos e mulatos lançavam mão, por exemplo, do florete e do espadim para justificar a sua posição social e hierárquica.

A contribuição mais relevante deste livro é oferecer ao campo das ciências humanas uma melhor compreensão da pluralidade e da polissemia que marcou e constituiu uma parcela da população americana no período colonial.

1 GRUZINSKI, Serge. O pensamento mestiço. Trad. Freire d’ Aguiar. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
2 Alguns desses estudos são: QUEIJA, Berta Ares y STELLA, Alessandro. (coord.) Negros, mulatos, zambaigos: derroteros africanos em los mundos ibéricos. España, 1999; AIZPURU, Pilar Gonzalbo y QUEIJA, Berta Ares. (coords.) Las mujeres em la construcción de las sociedades iberoamericanas. Sevilla-México, 2004; PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho. (orgs.) O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver – séculos XVI a XIX. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/PPGH-UFMG, 2002; PAIVA, Eduardo França e IVO, Isnara Pereira. (orgs.) Escravidão, mestiçagem e histórias comparadas. São Paulo/Belo Horizonte/Vitória da Conquista: Annablume/PPGH/UFMG: Edunesb, 2008; PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira e MARTINS, Ilton César. (orgs.) Escravidão, mestiçagens, populações e identidades culturais. São Paulo/Belo Horizonte/Vitória da Conquista: Annablume/PPGH/UFMG: Edunesb, 2010.

Rangel Cerceau Netto – Mestre e Doutorando em História pela Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG, Bolsista da CAPES, Membro do Conselho Editorial da Revista Temporalidades Av. Antônio Carlos, 6627, FAFICH/História, Belo Horizonte, MG, 31270-901, cerceaup@gmail.com.

Na trama das redes – FRAGOSO; GOUVÊA (VH)

FRAGOSO, João e GOUVÊA, M. F. (orgs.) Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 599p. Resenha de: ROIZ, Diogo da Silva. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Em 2001, o livro O Antigo Regime nos trópicos, constituiu-se num conjunto de resultados inovadores, tanto quanto instigantes, sobre as peculiaridades da dinâmica imperial portuguesa. Entre suas principais constatações, encontravam-se: a) “a importância da dinâmica imperial constituída pelas conexões e interações de diferentes formas sociais, que iam desde a sociedade aristocrática reinol, passando pela escravidão americana, pelas hierarquias sociais africanas e pelas que configuravam o Estado da Índia”; b) a de visualizar as “discussões em voga acerca do processo de formação do Estado Moderno, por meio das quais se questionou o suposto caráter absolutista e/ou centralizado dos impérios ultramarinos português, britânico, dentre outros”; c) a de que “minhotos, açorianos e outros reinóis haviam chegado e se instalado nos trópicos, criando uma sociedade dita colonial, com um universo mental e cultural que lhes era próprio”, quer dizer, “as características de Antigo Regime com a sua concepção corporativa de sociedade”; d) e, enfim, “a compreensão de que tal concepção de mundo constituí-se em um dos pontos de partida desse processo de organização social, havendo ainda vários outros” (p.13-14). Assim, consideravam João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa, ao fazerem um rápido balanço daquele empreendimento, e demonstrarem sua contribuição para a consecução de Na trama das redes. Mesmo que não seja tão direta sua relação com o livro: Conquistadores e negociantes, de 2007, que perscrutou a história e a organização das elites do Antigo Regime nos trópicos, evidentemente, tal projeto contribuiu para o amadurecimento dos resultados que o leitor encontrará em Na trama das redes.

Neste novo livro coletivo, que em muitos pontos dá continuidade ao anterior, O Antigo Regime nos trópicos, há um avanço considerável sobre o tratamento dado a essas e a novas questões, assim como sobre as fontes, os grupos e os indivíduos. A reunião de 16 textos, distribuídos em quatro partes não foi casual. Ela constitui uma bem fundamentada proposta, articulada teórica e metodologicamente entre suas partes. Na primeira, Debates entrecruzados: estados modernos e impérios ultramarinos, encontram-se dois textos, de António Manuel Hespanha e o de Jack P. Greene. Na segunda, Redes e hierarquias sociais no império, há outros cinco, de Mafalda da Cunha, Maria de Fátima Gouvêa, Roquinaldo Ferreira, João Fragoso, e o de Ronaldo Vainfas. Na terceira, O império e seus centros, há mais quatro, de Nuno Monteiro, Maria Fernanda Bicalho, Júnia Furtado, e o de Francisco Cosentino. Na quarta e última parte, Povos e fronteiras imperiais, encontramse outros cinco textos, de Hebe Mattos, Antonio Carlos de Sampaio, Luís Frederico Antunes, Nauk de Jesus, e o de João José Reis.

Todos os trabalhos visam explorar as peculiaridades do Antigo Regime estabelecido nos trópicos, a partir da pormenorização das redes socioculturais e das tramas políticas e econômicas que as compuseram entre os séculos XVI e XVIII. Não por acaso, a “conquista e a organização da sociedade nos trópicos pelos portugueses foram presididas por conjuntos de valores e sistemas de regras vindas da Europa meridional: a concepção corporativa da sociedade” (p.15), amplamente transplantada para as Américas (Portuguesa, e também Hispânica). Daí a importância de se estudar indivíduos e grupos, que se estabeleceram nos trópicos, fazendo amplo uso dessas estratégias para constituírem suas redes sociais, políticas e econômicas, assim como seus desdobramentos culturais ao longo do tempo. Se tal questão foi comum no Antigo Regime, dado que o funcionamento corporativo da sociedade a viabilizava nos trópicos como os autores demonstram, apesar do ambiente favorável, a transplantação desses modelos de sociabilidade, não deixaram de despertar certas resistências, que não se limitaram aos nativos, o que os fez encontrarem respostas e tramas originais para a sua boa execução. E é detendo-se sobre alguns desses exemplos, um dos pontos altos da coletânea, que os ensaios demonstram de que maneira houve a trama de certas redes, vinculando os indivíduos, a projetos de cunho político, econômico, social e até cultural – por darem alguns dos principais contornos ao espaço público e privado, e que, por sua vez, organizariam determinadas formas de sociabilidades entre seus habitantes. Aí se justificaria o estudo de personagens, como: o capitão Manuel Pimenta Sampaio, João Soares (pardo), d. Luis da Cunha, Luis César de Meneses, Manuel Pimenta Tello, dentre outros, que firmaram suas relações sociais nos trópicos, em corporações que formariam tentáculos que se prolongariam no tempo, estabelecendo redes de sociabilidade, cuja função, entre outras coisas, estava em efetuar a manutenção das classes dirigentes nessas terras.

Para levarem a bom termo tal empreendimento, eles fizeram uso de termos como monarquia pluricontinental, que “é entendida como o produto resultante de uma série de mediações empreendidas por diversos grupos espalhados no interior do império” (p.17). Nela se encontraria o reino de Portugal, único a operacionalizar as tramas com os trópicos, e também estaria cerceado por uma só aristocracia e diversas conquistas. Pois, as ramificações dos governos no Novo Mundo, gerando autogovernos, em muitos casos, independentes a centralização metropolitana, “foram veiculadas nas práticas e vontades surgidas no âmbito das relações sociais daquelas mesmas localidades (…) produzidas pela interação de agentes sociais como potentados, escravos minas e crioulos, índios e pardos”. Contudo, mais “importante é perceber que tais práticas e costumes veiculados pelas instituições locais eram reconhecidos em termos do próprio princípio de autogoverno praticado pela monarquia portuguesa” (p.18). Nesse sentido, o “império resulta (…) do processo de fusão da concepção corporativa e da de pacto político, fundamentada na monarquia, e garantindo, por princípio, a autonomia do poder local”. É dentro dessas circunstâncias específicas, que a “monarquia pluricontinental se torna uma realidade graças à ação cotidiana de indivíduos que vivem espalhados pelo império em busca de oportunidades de acrescentamento social e material” (p.19).

Assim caminham os textos de António Hespanha e o de Jack Greene, ao procurarem demonstrar a especificidade do império português nos trópicos. Para o primeiro, este seria definido pela “justaposição institucional, pluralidade de modelos jurídicos, diversidade de limitações constitucionais do poder régio e o consequente caráter mutuamente negociado de vínculos políticos” (p.57), enquanto para o segundo, completando a argumentação do primeiro, para a obtenção do “consentimento e [d]a cooperação daquelas classes, os oficiais metropolitanos não tinham outra escolha a não ser negociar com eles sistemas de autoridades” (p.111), nos quais esse “processo de barganha, tão semelhante ao que caracterizou a formação do Estado nos primórdios da Europa moderna, produziu variações de governo indireto que ao mesmo tempo definiu fronteiras claras em relação ao poder central, reconheceu os direitos das localidades e das províncias a vários graus de autogoverno e assegurou que, em circunstâncias normais, as decisões metropolitanas que afetassem as periferias teriam de consultar ou respeitar interesses locais e províncias” (p.111-12).

A par dessas questões, e dos resultados que oferece de acordo com a ação e a forma de organização dos grupos e dos indivíduos no poder, o texto de Mafalda da Cunha perscruta como se conformaram certas redes sociais em torno dos recrutamentos de governantes no período das conquistas (entre 1580 e 1640), muito semelhante ao que fez Maria de Fátima Gouvêa ao estudar as redes governativas portuguesas, e a maneira como ocorreram as centralidades régias no mundo português (entre 1680 e 1730). Por sua vez, o texto de Roquinaldo Ferreira se deterá sobre as redes de comércio ilegal no mercado ultramarino português (de 1690 a 1750), enquanto João Fragoso irá questionar a forma pela qual se compunham as hierarquias sociais no Rio de Janeiro do século XVIII, por meio da investigação da trajetória do capitão Manuel Pimenta Sampaio. Com o objetivo de rastrearem os vários centros, em torno do império português, Nuno Monteiro reconstituirá a ‘tragédia dos Távoras’, por meio da análise da estrutura de parentesco, das redes de poder e as facções políticas na monarquia portuguesa do século XVIII. Maria Fernanda Bicalho o fará dando ensejo a interpretação das tramas políticas que se formaram em torno dos conselhos, secretários e juntas na administração da monarquia portuguesa e de seus domínios ultramarinos. Ao centrar sua análise na trajetória de dom Luis da Cunha, Júnia Furtado, objetivou vislumbrar a organização geopolítica do novo império luso-brasileiro.

Desnecessário se alongar nos exemplos que são explorados por outros ensaios, visto que eles próprios também fazem parte de uma trama bem articulada pelo conjunto dos textos. Portanto, ao se apoiarem nas sugestões de Barth, Grendi e Levi de que “todos os sistemas de normas são incoerentes, na medida em que estão em contínuo movimento” (p.16), que em seus ensaios os autores procuraram visualizar o impacto desse tipo de movimento contínuo na conformação das tramas políticas e econômicas, ao mesmo tempo formadoras de redes socioculturais e de seus desdobramentos no tempo, assim como de suas dissoluções e reformulações em formas metamorfoseadas, mas nem sempre totalmente novas, pois, alicerçadas sobre ramificações forjadas no passado, que manifestavam a ambição de manter certa continuidade no tempo.

Diogo da Silva Roiz – Doutorando em História pela UFPR, bolsista do CNPq. Professor da UEMS. diogosr@yahoo.com.br.

O outono da Idade Média – HUINZINGA (VH)

HUINZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac & Naify, 2010, 656 p. Resenha de: BAGOLIN, Luiz Armando. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Se confiasses teu barco ao sabor dos ventos, não navegarias para a direção desejada, mas para onde eles te levassem; se jogasses tuas sementes nos campos, haveria a alternância entre os anos bons e ruins. Tu te abandonaste ao domínio da Fortuna: deves submeter-te aos caprichos de tua mestra. Pretendes sustar a rápida revolução de sua roda? Oh, insensato! Então a Fortuna não seria mais a Fortuna.

Boécio, A Consolação da Filosofia

Extraída de A Consolação da Filosofia, de Boécio (livro II, 1), a citação acima repropõe a imagem da Fortuna (Týche) como circular, produzindose desde a História de Heródoto, na qual a Fortuna é roda, que não cessa de girar, alternando, no alto e no baixo, vitoriosos e derrotados, elevados e decaídos, luz e treva, verão e inverno. Johan Huizinga a revisita, a roda da Fortuna, em seu livro O Outono, recolhendo-a nas histórias de Chastellain, Froissard, Eustache Deschamps, Meschinot, Mathieu d’Escouchy, Jean Gerson, Dionísio Cartuxo, Ruysbroeck, Eckhart, Suso, Tauler, assim como nas pinturas dos Van Eyck e de seus sucessores, para a construção de sua história das formas de vida e de pensamento presentes na Borgonha, na França e nos Países Baixos durante os séculos XIV e XV. O cronista assemelha-se a um pintor que traz para o seu quadro certamente um colorido artificial, mas que imita as cores naturais. A moderação implícita na crônica, não sua exatidão, implica que se considerem as diferenças entre aquele tempo e o nosso, dele muito distante. O príncipe era visto de forma esquemática, simplificada e ao mesmo tempo fantástica, sendo o imaginário político do público afetado diretamente pela canção popular e pelo romance de cavalaria.

Não dominando os gêneros retóricos implicados na constituição destes discursos enquanto crônicas, Huizinga, confere a eles um grau de realismo, ainda que reconheça que este seja bem menor que o proposto para o documento oficial utilizado pelo medievalista tradicional. Como media res ou posição intermediária na roda, o mal que para o historiador, seguindo os cronistas, existiu, pode tanto seguir seu curso rumo à sua extinção pelo bem, pela luz, quando o movimento for ascendente, quanto, o contrário, seguir para a escuridão extrema, no descendente, lugar da crueldade, do terror e da miséria. Diante de um mundo mesquinho, cruel e miserável, ao homem medieval, segundo Huizinga, restaram apenas três saídas, três caminhos: o da “renúncia”, o do melhoramento do próprio mundo e o do “sonho” ou da aspiração por um mundo inundado de beleza no qual arte e vida se serviriam mutuamente.

Como ideal de vida bela, a “estética cavalheiresca” traduz-se pelo desfile de belos trajes e sentimentos elevados de honra, nobreza e virtude representados pelo orgulho em enfrentar o perigo. O topos que circula é o do aristoi, o herói despojado, casto, defensor das mulheres a quem honra por amor e cujo exemplo é Jean Le Meingre, le maréchal de Boucicaurt. Degenerando o teatro da vida idealizada por detrás da viseira do cavaleiro, dá-se lugar ao sentimento da vida pastoral, às formas do gênero campestre em que se canta a tranquilidade do bucólico, não sem que se desconsidere ou cesse a imposição da presença da morte ou de sua lembrança recorrente (memento mori) como imagem da deterioração e do apodrecimento. As danças da morte expõem-se quase nunca fantasmagóricas, porque os cadáveres exibem os seus ventres abertos, rindo de escárnio de nobres e plebeus por entre nesgas de carne e vestes pendentes, como na figura da morte no Cemitério dos Inocentes.

Não havendo escapatória à morte, pois seus dignitários escabrosos estão prontos a ceifar toda a inveja, mas também todo orgulho, atenuam-se as fronteiras entre o sentimento religioso e o erótico, que faz do primeiro, dentro dos limites de uma inconveniência proposital, um sentimento vicário. Huizinga vê, no entanto, o cruzamento do erótico com o religioso como “irreverência blasfema para com o sagrado” tornada possível graças às incongruências, aos descompassados do “espírito medieval”. Como exemplo, acolhe o Díptico da Madona de Antuérpia ou Díptico de Melun, pintado por Jean Fouquet, particularmente quanto à representação da Madona, mostrando-a, com um dos seios desnudo e redondo como um pequeno perfeito melão, lívida como o manto branco que recobre seus ombros e costas, deixando à vista o seu colo, alvíssimo, apertado por um corselete muito justo de fino veludo cinzento que se abre na altura de seu diafragma. Para o autor, “apenas uma sociedade totalmente permeada pelo sentimento religioso, e que aceita a fé como algo óbvio, conhece todos esses excessos e degenerações”. Portanto, os inúmeros exemplos, raros na arte, mas corriqueiros nas crônicas de época, de devassidão e desrespeito aos lugares e signos sagrados, não podem ser interpretados como ateísmo, mas como uma forma estranha, controversa, de devoção.

Exprimir o “inexprimível”, eis o que se lia na palavra de São Paulo aos Coríntios, por exemplo: “videmus nunc per speculum in aenigmate, tunc autem facie ad faciem”. “Ver face a face”, entretanto, não é expressão que deva ser interpretada como designativa de um ato empírico, fruto de um “pensamento causal”, oposto ao “simbólico”, conforme propõe Huizinga. “Do ponto de vista do pensamento causal”, diz Huizinga, o simbolismo é considerado um curto-circuito intelectual. O pensamento procura a conexão entre duas coisas não ao longo das sinuosidades ocultas de seus vínculos causais, mas sim saltando por cima das conexões de causa. A conexão não é um elo entre causa e efeito, mas entre significado e objetivo.

Como metáfora estendida ou continuada, a alegoria é um tropo de pensamento que substitui um pensamento em causa por outro, por relação de semelhança a ele. Por um lado, a construção da representação, como fala e escrita, por outro, uma hermenêutica, ambas reguladas quanto à adequação entre um sentido figurado e um sentido próprio. Adepto aparentemente da visão romântica, segundo a qual a alegoria é vista como artificial e fria, um invólucro vazio e exterior, oposta, portanto, ao símbolo, autorrepresentativo, signo ou manifestação de uma qualidade interior, não nominativa, Huizinga propõe a alegoria como sendo um “simbolismo projetado num poder de imaginação superficial” com “o potencial de ser reduzida a um pedante lugar-comum e ao mesmo tempo reduzir uma ideia a uma imagem”. Mas e a arte? Uma das motivações de Huizinga ao escrever O Outono foi a de perceber como as formas de vida da cultura franco-borguinhã do final do século XV poderiam ser compreendidas a partir da pintura dos Van Eyck, assim como de Rogier van der Weiden e Memlinc, e da escultura de Sluter. Mas entendido pelo autor como um “poslúdio sem fim”, a poluição visual do “estilo flamboyant gótico” revelaria o esgotamento de um sistema de representação formal aliada ao horror vacui, “que dá a cada detalhe uma elaboração contínua, a cada linha, a sua contralinha”.

Como expressão tardia da arte do período, a pintura dos Van Eyck exibe “a imaginação terrena do divino” a partir do mais extremado “naturalismo” consoante às representações textuais a ela contemporâneas, tais como os sermões de Johannes Brugman ou as descrições de Dionísio Cartuxo. Huizinga acredita que a pintura permaneceu na “seriedade dos trípticos e do retrato”, enquanto a “literatura” escancarava “o sorriso voluptuoso da sátira erótica e do horror monótono da crônica”. Refém da “elaboração irrefreada de detalhes”, a pintura torna-se um gênero subordinado ao cômico, ao burlesco, segundo o autor, mas ainda neste terreno, ela é ultrapassada pela palavra.

A pintura do norte do século XV, diferentemente do que acontece com a italiana do Trecento, da época de Giotto, não busca o sentido de coesão dos elementos representados, carecendo de ritmo e perspectiva. Retórica, oratória e poética são vistas pelo autor como temas que passam a comparecer nos escritores franceses do século XV, principalmente, aliando aos antigos cronistas, Chastellain, La Marche, Molinet e outros, os novos representantes de um estilo humanista, como Villon, Coquillart, Henri Baude e Carlos de Orléans.

Enrijecido por uma visão evolutiva de acordo com a história das mentalidades sob a qual não disfarça a teleologia aplicada à produção artística, Huizinga não consegue visualizar a pintura que tanto o encantou como uma máquina retórica para a qual a alegoria, como parte da elocução, é importantíssima, encarecendo pelo ornatus o discurso. É esta máquina, longe de ser um tropeço para o pensamento, que faz circular a metáfora por toda a parte onde a Fortuna se apresente.

Luiz Armando Bagolin – Professor Doutor Docente e pesquisador da área de história da arte Instituto de Estudos Brasileiros – IEB/USP, lbagolin@usp.br.

Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil – FRANCO (VH)

FRANCO, José Luiz de Andrade; DRUMMOND, José Augusto. Proteção à natureza e identidade nacional no Brasil, anos 1920-1940. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2009, 272 p. Resenha de: MENARIN, Carlos Alberto. Varia História. Belo Horizonte, v. 26, no. 43, Jun. 2010.

A proteção ao meio ambiente é dos temas mais atuais. Diariamente são veiculadas pelos meios de comunicação notícias relacionadas à degradação ambiental registradas em regiões e cidades do Brasil e no mundo. Desde a década de 1980 vemos um número crescente de ONGs propondo ações para amenizar tais impactos sobre populações e ambientes. Numa leitura apressada poderíamos reduzir essa questão ao descaso dos Estados. Entretanto, se a atuação dos governos tem deixado a desejar, vale lembrar que no Brasil, o Estado tem sido o principal indutor de políticas de proteção a natureza. Portanto, torna-se importante compreender a atuação desse Estado frente a essa questão ao longo do tempo.

O objetivo do livro Proteção à Natureza e Identidade Nacional no Brasil, anos 1920-1940, (2009) de José Luiz de Andrade Franco e José Augusto Drummond, é analisar a atuação de um grupo de cientistas preocupado com a proteção da natureza no Brasil da primeira metade do século XX, os quais tiveram papel importante na elaboração dos primeiros textos normativos sobre essa questão. Se a atuação do Estado não é o foco da obra, sua importância está presente em todo o volume, da incorporação das discussões e implementação dos códigos e leis às contingências impostas pelos interesses privados quanto à exploração dos recursos naturais. Sob essa perspectiva, sem dúvida, o livro oferece um rico debate sobre a constituição do campo de políticas públicas voltadas à proteção da natureza no país.

Com um texto de agradável leitura, articulado com fartas e longas citações das obras dos cientistas analisados, o livro se presta tanto ao público especializado quanto aos interessados de modo geral sobre o tema. O cerne da obra é fruto da pesquisa de doutoramento em História, realizado por Franco na UnB. Parte do conteúdo foi apresentado em forma de artigos em revistas acadêmicas, como Vária História, (n.26, jan.2002 e n.33, jan. 2005), Textos de História (v.12, n.1 e 2, 2004), revista Ambiente e Sociedade (v.08, n.01, 2005), História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v.12, n.03, 2005 e v.14, n.04, 2007), dentre outras, já contando com a parceria de Drummond. Desse período de “maturação” eis que emerge uma obra coesa e vigorosa na análise e interpretação que propõe.

O grupo de cientistas e intelectuais estudado pelos autores era constituído pelo botânico Alberto José Sampaio, o jornalista e artista plástico Armando de Magalhães Correa, o zoólogo Candido de Mello Leitão – todos tiveram passagem como professores no Museu Nacional do Rio de Janeiro – e Frederico Carlos Hoehne, que, inicialmente prestando serviços como jardineiro naquele Museu, autodidata em botânica, chegou a acompanhar a Comissão Rondon pelo Brasil. Hoehne, posteriormente fixou residência em São Paulo participando na criação do Instituto de Botânica e do Jardim Botânico. Embora houvesse particularidades quanto às concepções de proteção à natureza entre esses cientistas, um traço que lhes garantiu certa coesão dizia respeito à necessidade de construção de um Estado nacional forte e de uma identidade nacional.

O livro proporciona um instigante passeio pela história da emergência de áreas protegidas, como os Parques Nacionais, em diversas partes do mundo. No índice remissivo presente ao final do volume, temos acesso às diversas instituições, temas, personagens e ao grande número de conferências internacionais ocorridas de fins do século XIX até a primeira metade do século XX; pouco conhecidas e estudadas, constituindo relevante entrada para análise das diversas concepções sobre a proteção à natureza em voga naquele período.

Ressalta-se dessa obra, além da recuperação e exame crítico das discussões e projetos de proteção à natureza do referido grupo de cientistas, a importância de instituições como o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Um espaço de articulação e atuação desses intelectuais na promoção e difusão de pesquisas, capaz de influenciar setores da burocracia varguista sobre a proteção do patrimônio natural, bem como oferecendo apoio e infra-estrutura para a realização da Primeira Conferência Brasileira de Proteção à Natureza, realizada entre os dias 08 e 15 de abril de 1934. Na análise desse evento, Franco e Drummond identificaram duas formas de valorização da natureza que o permearam: o mundo natural como recurso econômico a ser usufruído racionalmente e o seu culto e fruição estética.

Essa análise permitiu aos autores apresentarem de forma abrangente o contexto de circulação de idéias sobre a proteção à natureza, os debates entre “preservacionistas” e “conservacionistas” e a ressonância das diversas conferências, reuniões e encontros internacionais realizados no período e a prática de criação de Parques Nacionais, inspirados no modelo norte americano de Yellowstone (1872). Perceberam que, no Brasil, as discussões entre as concepções de preservação e conservação apareciam de maneira “intercambiáveis”.

Não circunscrito ao grupo analisado, mas partindo dele, Franco e Drummond, estabelecem ligações com instituições e cientistas de outros países e mesmo de período anterior, mostrando como circulavam idéias e concepções de proteção à natureza. O livro apresenta quão relevante foi para o referido grupo, a recuperação do pensamento de Alberto Torres como matriz teórica para pensar a proteção à natureza naquele momento, concebendo-a como bem nacional, e, para protegê-la, a importância de atrelá-la, tanto do ponto de vista científico, como de divulgação, com o processo de construção de uma identidade comum.

Com argúcia e sutileza, os autores perscrutaram o pensamento desse grupo de intelectuais que vinculava preocupações de proteção à natureza e o estabelecimento de reservas naturais a um projeto de construção da nacionalidade, alcançando espaço nas instâncias deliberativas do governo Vargas, mostrando-se, ainda, em sintonia com as discussões, idéias e práticas que vigoravam nos demais países quanto à proteção da natureza.

Outras instituições como o Museu Paulista, a Comissão Geográfica e Geológica e sua seção de Botânica, instalada na Serra da Cantareira, tiveram atuação destacada no Estado de São Paulo. Mesmo com a presença estrangeira característica no âmbito dessas instituições, o brasileiro Edmundo Navarro de Andrade teve atuação relevante, contando com o aval do governo para empreender ações e agindo com cautela para não contrariar os interesses dos grandes proprietários de terras. Traço que revela a importância da compreensão das relações entre as políticas públicas e os interesses privados.

Nesse sentido, é significativo o aspecto apontado por Warren Dean, citado pelos autores, de que muitos funcionários públicos, entravam em conflito com o próprio governo que os empregava “dominados como eram pelos grandes proprietários de terra, cujas premências especulativas, técnicas destrutivas de manejo e zelo por seus direitos de propriedade iriam constituir barreiras à implementação de políticas conservacionistas”. Ou seja, um componente imprescindível que deve ser considerado para compreendermos o processo de formulação, a abrangência e os limites das políticas de proteção ambiental e as relações de poder regidas a partir de interesses privados.

Ao alargarmos um pouco os horizontes dessa obra, chegaríamos á geração de 1830-1870 que teve o romantismo como base para construção de uma idéia de nação e buscou estabelecer os aspectos que caracterizariam o Brasil, dos quais se destacou a singularidade da natureza, processo argutamente analisado por Bernardo Ricupero. Ou o trabalho da historiadora Cláudia Heynemann, sobre a região que viria a ser a Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, colocando em evidência o papel da natureza no processo de constituição de um ideal de civilização almejado pela classe dirigente imperial. Com o reflorestamento de tal área, a partir de 1861, a elite política refletia sua proposta de organização do Estado Imperial a partir do ordenamento da natureza.

O grupo estudado por Franco e Drummond se inseriu no contexto político intelectual da época, tendo o seu relativo alcance dado pelo fato de terem relacionado proteção à natureza com a questão da identidade nacional, além de demonstrarem uma sensibilidade romântica em relação ao mundo natural. Nesse aspecto, a análise empreendida por Ricupero poderia dar maior profundidade a essa constatação. Não se trata de precisar e afirmar a valorização da natureza no pensamento romântico do século XIX, mas de problematizar essa sensibilidade como objeto de intervenção política; a classe dirigente imperial, a partir de um programa orientado para produção de obras literárias e historiográficas que dessem conta da articulação dos elementos considerados constituintes da identidade nacional, empreendia um projeto político de afirmação do poder e de construção do Estado nacional. De certa forma, esse projeto político da classe dirigente do Segundo Reinado tornou-se hegemônico, e em grande medida, a concepção de natureza como elemento característico da nação brasileira utilizada pelos cientistas e intelectuais do início do século XX, emerge desse projeto.

O Epílogo “A incompatibilidade entre o desenvolvimento e o uso racional dos recursos naturais” reafirma a importância da obra e dá o tom de intervenção crítica sobre a realidade atual, ao apontar os motivos pelos quais foram pontuais os efeitos dos regulamentos editados nos anos de 1930, dado, sobretudo, pela prevalência do “desenvolvimentismo, como ideologia que galvanizou todos os componentes do espectro político e todos os grupos sociais”. Ideal que ainda apresenta grande vitalidade no discurso político contemporâneo.

A periodização trabalhada pelos autores definiu-se por um momento de reorganização do Estado brasileiro, em busca de eliminar as instituições herdadas da Primeira República, inspiradas no liberalismo, impondo a intervenção de um Estado forte. Questão que, na atualidade, reveste-se de significativa importância, dada a ascensão da política neoliberal no Brasil dos anos de 1990 em diante, e a conjuntura daí decorrente, onde se impõe para o novo século a compreensão dos papéis desse Estado, particularmente, frente à proteção ambiental e exploração dos recursos naturais. Ou seja, a leitura de Proteção à Natureza e Identidade Nacional no Brasil, anos 1920-1940, nos dá o alento necessário para continuarmos pensando alternativas para o modelo político-econômico vigente, ainda calcado no ideal desenvolvimentista excludente e dilapidador do patrimônio ambiental do país.

2 Cf. HEYNEMANN, Claudia. Floresta da Tijuca: natureza e civilização no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura/Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural/Divisão de Editoração, 1995.

Carlos Alberto Menarin – M stre e Doutorando em História Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Av. Dom Antonio, 2.100 – Parque Universitário. Assis – São Paulo – 19806-205. menarin@bol.com.brcmenarin@gmail.com</