Ensino de História da África: possibilidades e estratégias | Abatirá | 2021

O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma pessoa,

o jeito mais simples é contar sua história, e começar com “em segundo lugar.

Chimamanda Adichie (2015)

A década de 1990 constituiu um marco importante no que concerne o ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nas escolas brasileiras da rede pública. Embora de forma relativamente não sistematizada, a contribuição dos africanistas brasileiros tem-se demonstrado, ao longo das últimas duas décadas, relevante no que concerne o ensino da história e cultura africanas nas escolas da rede pública (LIMA, 2017, p. 117-140). Paralelamente, a promulgação da Lei Federal 10639/2003 definiu novos caminhos, favorecendo reflexões mais articuladas e propostas pedagógicas e didáticas mais eficazes no âmbito do ensino da História da África. De acordo com Anderson R. Oliva (2007, p. 143-173), a aprovação da Lei incentivou, embora de forma desigual e fragmentada, iniciativas importantes em termos de ensino, pesquisa e extensão, tendo sido implementados, a partir dos primeiros anos do novo milênio, cursos de especialização e levadas a cabo ações de formação de professores, congressos e seminários, bem como publicações científicas. A Lei constituiu um ponto de viragem fundamental no ensino, embora de um modo geral se tenham privilegiado temáticas relacionadas com a história e cultura afro-brasileira, em detrimento do ensino da história africana. É nesta linha de reflexão que o autor sublinha o fato de intelectuais africanos terem apontado para a necessidade de uma “inversão de foco histórico de matriz eurocêntrica para um foco conduzido por uma matriz afrocêntrica” (OLIVA, 2009, p. 155). No entanto, cabe interrogar em que medida tais reflexões e produções têm correspondido aos objetivos fixados pela lei federal referenciada e como esse percurso tem sido traçado e quais os principais desafios?

A imagem construída sobre África- enquanto espaço geográfico, epistêmico e sociocultural- foi, fundamentalmente, romantizada, retratando um continente “excepcional” (ZAMPARONI, 1995, p. 512-527; LIMA, 2017, p. 117-140; SANSONE, 2018, p. 32-35), associado aos empreendimentos imperiais e coloniais ocorridos entre os séculos XV e XX, em que ganharam particular ênfase narrativas sobre o tráfico de escravizados, as guerras de “pacificação”, os sistemas coloniais e as lutas de independência. Todavia, tais descrições e reflexões privilegiaram em boa medida, seja em termos de fontes que de dados etnográficos, a visão dos “vencedores” (colonizadores) em detrimento das experiências dos “vencidos” (colonizados), isto é, as vozes marginalizadas da história. É neste sentido que Sabelo Ndlovu-Gatsheni se refere à necessidade de uma retomada do pensamento decolonial como movimento epistemológico de longa duração cujo objetivo é a libertação do (ex) colonizado da dependência da colonialidade global (NDLOVU-GATSHENI, 2015, p. 485-496). Tal como defende o autor, o pensamento decolonial traduz-se em uma forma de pensar, de conhecer e de agir que caracterizou historicamente os povos subalternzados. O movimento epistemológico surgido dos dominados foi historicamente ofuscado pelo pensamento e teorias sociais provenientes do “norte global” e, como movimento político, o mesmo foi sistematicamente subjugado às matrizes do poder imperial e colonial.

No Brasil, esta visão global sofreu uma mudança significativa no decurso dos anos 1990. De acordo com Anderson Oliva (2009, p. 143-173), os principais documentos aprovados no que concerne o ensino da história da África têm sinalizado, ainda que de uma forma relativamente tímida, uma aproximação aos estudos africanos (p.145). De uma forma geral, os livros didáticos dedicados ao ensino da história a nível do ensino fundamental incluíram aspetos da história africana (sobretudo entre a quinta e a oitava séries), embora se concentrando no período do tráfico transatlântico, em particular modo nos séculos XVII e XVIII. Por outro lado, os Parâmetros Curriculares Nacionais/PCN evidenciaram importantes lacunas que acabaram contribuindo para a progressiva invisibilização de aspetos importantes na história africana. Em particular, são notórias as dificuldades analíticas das sociedades africanas, seja em termos da sua definição/conceituação que da sua distribuição espacial e temporal, mostrando um conjunto de inconsistências relativamente aos povos e aos saberes africanos. O continente africano aparece largamente representado como uma unidade homogênea, negligenciando contextos e particularidades. A África possui, certamente, uma sua unidade cultural e não é errado considerá-la como tal a partir dos seus aspetos comuns. No entanto, é importante reconhecer a diversidade que caracteriza os seus povos e civilizações, em uma perspectiva de história e mudança para, acima de tudo, não confundir unidade com uniformidade. Esta questão parece estar estritamente conexa ao atual debate sobre o racismo no Brasil, um problema fundamental da nossa época. Se é verdade que “o racismo mata” por condenar o “outro” à condição de inferioridade e invisibilidade porque fundamentalmente diferente, é igualmente verdade que esforços notáveis têm sido levados a cabo por africanos e por diaspóricos no sentido de contrastar e denunciar esse câncer social ao qual a intelectual maliana Aminata Traoré se referiu em 2001, em Porto Alegre, no âmbito do Fórum Social Mundial (TRAORÉ, 2002), denunciando de forma contundente as desigualdades sociais do mundo contemporâneo. A proclamação da Década Internacional dos Afrodescendentes (2015-2024) pela Assembleia Geral da ONU constituiu um marco importante na luta contra o racismo e pela construção de uma nova imagem de África e de suas comunidades descendentes; a institucionalização da década traduziu-se não apenas no engajamento global por um sistema mundo mais equilibrado, bem como em iniciativas concretas visando a promoção do conhecimento de e sobre África e africanos. Neste sentido, as comunidades internacionais e regionais precisam, entre outros aspetos, difundir a Declaração e programa de Ação de Durban e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, bem como preservar a memória histórica dos afrodescendentes.

Globalmente, os textos que compõem este dossiê propõem discussões que privilegiam visões que não apenas deslocam o olhar em termos da matriz constitutiva do ensino da história da África no Brasil e em outros contextos latino-americanos, mas que oferecem, contemporaneamente, visões positivas e não estereotipadas do continente africano, destacando a necessidade de revisitar os conteúdos das propostas curriculares e das metodologias de ensino em sala de aula, bem como das temáticas abordadas. É um chamamento para que transformemos as instituições escolares e, consequentemente, os cidadãos que habitam este vasto planeta que vive, neste momento, um dos seus momentos especiais na sua longa e sistemática luta para acomodação e convivência de todas as espécies, entre as quais a humana.

Para ler este mundo e nele atuar, os seres humanos construíram conhecimentos, dentre os quais, o histórico. É a partir desta possibilidade de leitura que os textos aqui organizados o fazem, tendo por temática outros campos de saberes. E isso é muito bom!

O dossiê “Ensino de História da África: possibilidades e estratégias”, organizado por estímulo dos professores da Itamar Freitas, Margarida Dias e Patrícia Godinho Gomes, reúne trabalhos de autores brasileiros e estrangeiros, atuantes em sete instituições. Tal diversidade se expressa, principalmente, nas formas de representação com as quais abordam a temática provocada pela revista. Os partícipes dessa empreitada refletem sobre o ensino de história da África, a partir da objetivação da narrativa literária e fílmica, na poética das canções e da legislação inclusiva da cultura africana e afroamericana.

No artigo “Incursões das literaturas africanas no ambiente escolar”, uma adaptação de “Terra Sonâmbula”, de Mia Couto, Zoraide Portela Silva reflete sobre a produção de conhecimento e a necessidade de diálogo com a sociedade e, como ele efetivamente se faz, independente da academia, tomar este fato como objeto da escola e aqui se faz por meio da ficção, especificamente, a partir da adaptação do romance para a linguagem cinematográfica.

No Centro Territorial de Educação Profissional do Piemonte da Diamantina II, em Jacobina – Bahia, em 2017, Denise Dias de Carvalho Sousa construiu os dados para o artigo intitulado “O ensino das literaturas africanas no livro didático de Língua Portuguesa do Ensino Médio: A formação do leitor literário”. A autora os apresenta e, por meio dos resultados, instiga de forma contundente a comunidade acadêmica a ser mais propositiva em relação ao modelo de livro didático que temos atualmente. Será necessário, a nosso ver, que continuemos a pautar, como a autora o fez, as instituições formadoras de professores para dialogar em novos patamares com as editoras, autores e todos os sujeitos que intervêm diretamente na elaboração de livros didáticos em nosso país.

A positividade desta conexão entre áreas de conhecimento se dá, sobretudo, pela potencialidade de entendimento de fenômenos se aproximando mais da forma como os indivíduos pensam – sem desvincular as variáveis – e, portanto, retomar o diálogo com a sociedade da qual a academia vem, sistematicamente, se afastando. Quando a construção do conhecimento já se inicia por meio da tentativa de recuperar esta simbiose, os seus resultados publicáveis se tornam ainda mais potentes. Portanto, observem estes aspectos em artigo que explora letras de música.

O artigo “Música, baile, oralidad como espacio de resiliência y de rehumanización entre las poblaciones afrodiaspóricas y africanas”, da autoria de Sébastien Lefèvre e Christian Coffi Hounnouvi, nos estimula a refletir sobre o papel desta tríade apresentada no título como uma forma potente de resistência e sobrevivência dos fenômenos culturais das populações subjugadas. Fazendo isso, a partir de tempos mais recentes e do conceito de resiliência, os autores são extremamente eficazes em nos tirar da zona de conforto para analisar esta temática. Se podemos compreender a necessidade de compartimentalização do conhecimento pela nossa incapacidade de em tempos exíguos dar conta da extrema complexidade dos fenômenos sociais, não devemos nos apegar a este modelo de produção como impeditivo de produzir um diálogo permanente com os mais variados públicos, dos quais a escola básica, formadora de cidadãos, é uma das mais importantes. Daí compreendermos que o ensino-aprendizagem de História deve se encaminhar na construção do cidadão com autonomia para buscar as informações, proceder interpretações e análises e construir narrativas tendo as produções historiográficas condensadas nos livros didáticos como meios importantes, mas não únicos, embora todas as outras referências utilizadas precisem, igualmente, ser contextualizadas e compreendidas suas formas de produção.

Tal educação, que constrói o sujeito autônomo, carrega a criticidade e o respeito a diversidade de sentir, pensar e agir, mas tendo o bem coletivo como de maior importância. Dessa forma, esse ensino-aprendizagem de História promove a defesa dos direitos humanos, sejam eles pensados para a materialidade das vidas, sejam para o direito à memória e a história. Afinal, apagar a existência da história, é outra forma de matar. É neste sentido que análises das leis que têm por objeto políticas afirmativas, fundamentais na sociedade contemporânea, são aqui contempladas com dois artigos.

Em “Afrodescendientes en Argentina y Educación – Ley n° 26.852: Una lenta incorporación de lo afro a la enseñanza”, Omer Nahum Freixa nos apresenta o desafio de refletir sobre nossa própria experiência em relação a lei 10639/2003. Dizemos isso porque o campo do ensino de História no Brasil não costuma refletir sobre as experiências de outros países comparativamente, principalmente no que concerne a América Latina. Daí a primeira importância das reflexões apresentadas neste artigo que parte de uma imagem da nação Argentina, autodesignada como branca, moderna e europeia. Argentinos, não raro, marginalizam os grupos que não cabem nessa tríade, entre eles, os negros. A lei argentina é de 2013 e o artigo analisa seus resultados até o momento.

O artigo intitulado “Geografia da África: Possibilidades para uma Educação Antirracista”, escrito por Jonathan da Silva Marcelino, se apropria do paradigma decolonial para sinalizar, como afirma o autor, as possibilidades pedagógicas dessa abordagem nas salas de aula da educação básica, tendo por meio a geografia, executar um ensino-aprendizagem antirracista. É importante ressaltar, como também faz o autor, que apesar de a Lei Federal 10.639/03 indicar que os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, na prática, as ações se restringiram aos conteúdos históricos e é necessário ultrapassar esta limitação, inclusive, em campos de saberes que se apresentam como a-históricos como as chamadas ciências exatas.

Literatura, poética musical e dispositivos reparadores em termos curriculares são a contribuição da Abatirá para esse momento inquietante da educação nacional. Eles contribuem no sentido de nos ensinar a combater as narrativas únicas e evitar as histórias de pessoas, comunidades, sociedades que estejam em segundo lugar, com bem afirmou Chimamanda Adichie. Fazer oposição às histórias dos “segundos lugares” é equivalente a lutar contra a ideia de que existem os civilizados e os não civilizados e, portanto, das justificativas para dominações de toda ordem.

Convidamos as leitoras e os leitores a imergir nos textos deste Dossiê e dialogar com as reflexões e resultados que eles apontam. Com eles, podemos construir – todas e todos – novos modelos de interlocução entre os campos de saberes e compreensão das especificidades das formas de produção desses mesmos campos dos saberes, incluindo as lógicas que chamamos do senso comum. Somente assim, para além das bolhas que o cotidiano cria, podemos edificar soluções que assumam o conflito sobrepondo a negatividade e elaborando novos caminhos a transitar.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma única história. Trad. Erika Rodrigues. Disponível em < http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcrip t?language=pt-br> Acessado em 20 jul 2015

LIMA, Mônica. História da África e da diáspora africana na universidade: ultrapassando os muros da academia. In: Paulino de Jesus Francisco CARDOSO (Org). História da África: balanço, desafios e perspectivas. 1 Ed. Itajaí: Casa Aberta, 2017, vol.1, p.117-140.

MUNANGA, Kabengele. África: trinta anos de processo de independência. Revista USP, Dossiê 18, 1993

NDLOVU-GATSHENI, Sabelo. Decoloniality as the future of Africa. History Compass. vol.13, 2015, p.485-496.

OLIVA, Anderson Ribeiro. A história africana nas escolas brasileiras. Entre o prescrito e o vivido, da legislação educacional aos olhares dos especialistas (1995-2006). História. São Paulo, vol.28 (2), 2009, p.143-172.

OLIVA, Anderson Ribeiro. Lições sobre África: diálogos entre as representações dos africanos no imaginário ocidental e as abordagens da História da África nos manuais escolares em Angola, Brasil e Portugal. Tese de doutorado: Brasília, UnB, 2007.

SANSONE, Lívio. Africa has no special smell: towards academic equality in African studies. Codesria Bulletin, n.1, 2018, p.32-35.

TRAORÉ Aminata, L’immaginario violato. Milano, Ponte alle Grazie, 2002.

ZAMPARONI, Valdemir. A situação dos estudos africanos no Brasil. In: Actas do Colóquio Construção e Ensino da História da África. Lisboa: Linoplazas, 1995, p.512-527.


Organizadores

Margarida Maria Dias Oliveira – Possui doutorado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (2003). É professora Titular do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). https://orcid.org/0000-0002-8542-4173 Email: [email protected] Endereço institucional: Av. Senador Salgado Filho, Campus Universitário – Lagoa Nova, Natal – RN, 59078 – 970.

Patrícia Godinho Gomes – Professora Associada visitante no Programa de Pós Graduação em Estudos Étnicos e Africanos – Pós-Afro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em História e Instituções da África (2002) e pós-doutorada em História da África pela Università degli Studi di Cagliari (2006-2010) e em Estudos Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) (2014/2018). https://orcid.org/0000-0003-0726-1206 Email: [email protected]. Endereço institucional: Centro de Estudos Afro-Orientais. Praça General Inocêncio Galvão, 42, Dois de Julho, Salvador, Bahia, Cep.40060-055.

Itamar Freitas Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP-2006), doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS-2019) e pós-doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (PPGH/UnB-2014). É professor do Departamento de Educação e do Mestrado Profissional em História (UFS). http://orcid.org/0000-0002-2226-2015 Email: [email protected]. Endereço institucional: Av. Senador Salgado Filho, Campus Universitário – Lagoa Nova, Natal – RN, 59078 – 970.

 


Referências desta apresentação

OLIVEIRA, Margarida Maria Dias; GOMES, Patrícia Godinho; FREITAS, Itamar. Ensino de História da África: possibilidades e estratégias. Abatirá. Eunápolis, v.1, n.1, p.15-22, jan./jun., 2020. Acessar publicação original [IF]

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